"Naquela manhã de Março mamã quis conjurar a morte com frascos de perfume"

 

 

v3celsocaccamopassos.html
Naquela manhã de Março mamã quis conjurar a morte com frascos de perfume
que revoavam no dormitório em agónica penumbra
quando se nega o dia a escalar o corpo dos altos edifícios
e fracassa o amor em impedir a vinda dos cruéis anjos negros.

Lembro-o assim porque eu era apenas um meninho com sono que levava
uma visão das ilhas de Stevenson nas pálpebras sombrias
e pervagava como animal cego polas florestas da memória
e perdia-me num mar de grandes familiares, de pranto e fumo espesso.

Não compreendia tudo, mas a turva
disposição das horas, a distinta maneira
de mamã apressando-se a refazer os leitos e arrumar os objectos piedosos
fez-me entender que às vezes o mundo inteiro dessangra o rio da inocência
e papá também chorava ainda que já era velho
e mussitava algo com cuidadosas palavras de vencido.

Esqueci a escura lição de geografia, as minhas prendas agres preparadas,
o ritual da manhã que refusava aquecer os corredores interiores
em altas línguas de luz adestradas para um cínico sequestro,
esqueci o meu relógio de escola sem mesura nas despensas
ou na inútil assembleia de frascos milagrosos no quarto onde gemiam os cadáveres.

Que de orações fingidas podem sair da boca dum meninho
que contempla o degredo da vida para um lugar de sombras!

Todo o dia foi longo, muito longo, como uma sucessão de estampas transparentes
ou uma demorada juntança familiar enquanto se consome o vinho e a madeira.

O dia, o angusto itinerário que ficou entre os móveis, jantares silenciosos
e tortuosas ausências merece ser contado
para apagar o signo que ainda agora
perdidas já a mágoa e a pureza me vincula.

 

 

 


logoDeputación logoBVG © 2006 Biblioteca Virtual Galega