A Constituição da União Europeia: um comentário impertinente

 

 

A Constituição da União Europeia

     Ainda que, segundo o prometido, a Constituição da União Europea (UE) será objecto dum referendo entre nós, não deve esperar-se que ao amparo deste se desenvolva nenhum debate franco e aberto. O que já sabemos da ordem que padecemos invita a concluir, antes bem, que se imporá, com o apoio das duas principais forças políticas de ámbito estatal, uma formidável maquinária de propaganda, manipulação e ocultamento. Malia isso, ou tal vez por isso, tem sentido mergulhar nalguns dos muitos elementos conflitivos que carreta a Constituição objecto do nosso interesse.
     A literatura especializada formulou já muitas preguntas em relação com a futura Constituição. Todas elas remetem a questões importantes às que seria saudável puidesse se achegar a nossa opinião pública. Com certeza, porém, nada disto acontecerá. Deixemos constância, mesmo assim, dalgumas dessas preguntas que @s expert@s tiveram que autoformular-se nos últimos meses: estamos diante duma genuina Constituição ou ante um híbrido entre uma Constituição e um simples tratado? (1) Não remete a esta última fórmula o mecanismo de elaboração desenvolvido, que confirmaria a velha máxima que reza que "os tratados são assuntos dos príncipes, e não dos povos"? (2) Que modalidade de texto político-legal é esta que nasce sem um povo (3), uma nação e um Estado que lhe confiram sentido e fundamento? Ainda que, olhados os feitos desde outra perspectiva, e como quer que dispomos já duma moeda, o euro, sem um Estado acompanhante, por que não se haveria de configurar também uma Constituição sem um povo? (4) Não nos encontramos, noutro terreno, diante dum exemplo visível de fria engenharia legal, que lhe da aços a um maximalismo jurídico que ao cabo o que esconde é um minimalismo político? (5) Qual está chamado a ser, em suma, o produto final do processo em que a Constituição se insire: uma confederação, uma federação, um Estado com vocação unitária, uma fórmula de governo transnacional...?



Uma triste sordidez

    
Como não podia ser doutra maneira, a Constituição que nos ocupa é portadora de muitas normas que não são nem boas nem más por si. Ainda que resulta obrigado reconhecer que para chegar a alguma conclusão firme haverá que deixar que o tempo passe, é preciso convir que os antecedentes invitam, como pouco, e porém, ao receio. E é que cada vez parece mais urgente resgatar uma discussão relativa ao que é, antes que a Constituição, a própria União Europeia. Nas palavras de Pietro Barcellona, "quando o poder está claramente nas mãos dos potentes lobbies dos negócios e das finanças, dos círculos mediáticos e da manipulação das informações, os juristas abandonam-se ao cosmopolitismo humanitário e sumam-se ao grande partido das boas intenções e das boas maneiras" (6). Tudo aconselha concluir que como quer que na União Europeia realmente existente acostuma haver uma enorme distância entre a letra e a prática real, o mais razoável é aseverar que a primeira nasceu para ser violentada.
     À margem do anterior, na trama da Constituição não se percebe nenhum impulso político que produza, com claridade, uma inércia de mutações estimulantes: encontramo-nos, pelo contrário, ante a mesma triste sordidez herdada do passado, e isso por muito que se invoque retoricamente, e é um exemplo entre outros, o peso da democracia participativa. É lícito manter dúvidas, pelo demais, no que se refire à possibilidade de que a Constituição sirva para satisfazer os objectivos aos que ela mesma confessa se subordinar: achegar a UE aos cidadãos e cidadanas, afortalar o carácter democrático da União, acrescentar a sua capacidade de decisão, propiciar a sua actuação como uma voz coherente no cenário internacional e responder de maneira eficaz aos retos derivados da globalização e a interdependência (7). Mais bem parece como se, da mão do texto político-legal que nos interessa, se estivesse a confirmar a intuição de Cornelius Castoriadis: "Pesa muito a ilusão constitucional, a ideia de que é suficiente com ter uma Constituição para que as coisas estejam em ordem" (8).
     Também não se intue, em fim, que existam motivos sérios para aceitar o argumento de que a Constituição da UE é um primeiro passo que permitirá assumir outros posteriores chamados a provocar um destino saudável. Se, por um lado, o texto objecto da nossa atenção carreta, sem mais, uma simples ratificação do já conhecido —a Constituição limita-se a recolher o já constituido e não incorpora nenhuma dimensão de genuina revisão crítica de nada (9)—, pelo outro o impulso orientado a introduzir novidades parece, como adiantamos, claramente trabado. Alguem poderia se preguntar, afirmado seja entre paréntese, por que este esquema dos pequenos passos na linha do progresso se invoca em relação com a Constituição da União Europea, mas se deixa no esquecemento, pelo contrário, no que se refire às constituições dos diferentes Estados-nação. Para além disto, há que concordar por força com a afirmação de Antonio Cantaro que sugere que "é uma ilussão típica da ideologia europeia, mesmo da mais sinceramente europeista e federalista, pensar que se pode dar vida a uma lei superior sem introduzir no programa, de maneira explícita, a discussão sobre uma nova ordem social e política" (10).
     Era de esperar que no seu preámbulo uma Constituição se entregasse, em suma, ao exercício da autoadulação. Limitemo-nos a mencionar que aquela entende, sem rubor nenhum, que "a Europa" é uma realidade vinculada com a "igualdade das pessoas, a liberdade e o respeito da razão", que tem permitido o enraizamento do "lugar primordial da pessoa e dos seus direitos invioláveis e inalienáveis, assim como o respeito do direito", e que está chamada a avançar "pelo caminho da civilização, o progresso e a prosperidade" (art. 5) (11). Com certeza que ao leitor e à leitora inteligentes, e também aos desinformad@s, não lhes faltarão conhecimentos para pôr em dúvida que todo o anterior se aproxime à realidade.



Misérias da Convenção

    
Nada invita a concluir que o eterno problema do défice democrático que a União Europea arrastra vai entrar em caminho de resolução da mão da Constituição que glosamos. E isto tanto mais quanto que esta sem povo, sem nação e sem Estado por debaixo, lembremos o feito mais uma vez mostra um vazio de legitimação que é obrigado encher com o concurso de meios o direito dos tratados, os direitos fundamentais, a jurisprudência, a administração, os expertos... que pouca relação mantêm, em si mesmos, com a prática vital da democracia (12).
     A dimensão da tara mencionada em modo nenhum se ve rebaixada pelo feito de que os trabalhos da Convenção encarregada de elaborar a Constituição se desenvolvessen segundo critérios formalmente abertos. E é que a Convenção em questão exhibiu fendas inquietantes (13): os seus membros foram cooptados e não são, por tanto, o produto da eleição popular, de tal maneira que a Constituição não nasceu de nada que lembre, nem de longe, a uma assembleia constituinte. Na cúpula da Convenção operou, por outra parte, um grupo de notáveis que, encabeçado por Valéry Giscard d'Estaing, assumiu funções executivas que aos olhos de muit@s eram visivelmente excessivas (14). As tarefas, a miudo opacas, ficaram longe do conhecimento da maioria dos cidadãos e cidadanas, e o resultado das mesmas não foi outro que um texto redigido numa língua quase sempre incompreensível (15). Por se pouco fosse todo o anterior, e nos feitos, na Convenção só estiveram presentes pessoas próximas às forças conservadoras, liberais e socialdemocratas que são maioria nas instituições europeias, com visível marginação das demais (16). Não se esqueça que no caso espanhol, de forma significativa, só participaram na Convenção representantes dos partidos popular e socialista.
     Noutro terreno, sublinhar-se-há que o afortalamento do papel do Conselho e do seu presidente, inserido no núcleo da Constituição, carreta uma ratificação paralela das capacidades dos governos em detrimento doutras instâncias (17). A própria disputa sobre as maiorias, e as possibilidades de veto, na toma de decisões no Conselho da UE ilustra com clareza algo que não deve passar inadvertido: nessa instância, de importância dificilmente rebaixável, não se percebe o eco da eleição popular no ámbito próprio da UE. Haverão de ser, antes bem, os governos dos Estados os que fiquem com a totalidade dos votos correspondentes a estes últimos, algo que, com certeza, e por demais, reduzirá significativamente a representação das ideologias. O anterior seguirá a ser certo por muito que as decisões adoptadas devam ser refrendadas pelo Parlamento da UE.
     Não deixa de ser significativo que forças políticas de corte aparentemente diferente procurem manter quotas de poder para os seus Estados, e receiem em paralelo da conveniência de afortalar, até onde for possível, as suas opções ideológicas. Parece como se para muit@s tivesse mais peso a perspectiva de que a Espanha, a França ou a Itália conservem determinados votos ou escanos que a possibilidade de que a opção ideológica própria —conservadora, socialista ou a que for— disfrute de activos reais de decisão nas diferentes instituições da UE.



Manter o défice democrático

    
Pelo que atinge aos problemas, numerosísimos, que em matéria de qualidade democrática se manifestam no detalhe da Constituição da UE, nada melhor que invocar a análise desenvolvida por Demopunk com o título de "Crítica ao Processo Constituinte Europeu". Neste texto afirma-se o seguinte: "No cimo da autocracia situa-se o Conselho, uma espécie de deputação permanente do tratado de Versalhes. O representante espanhol é o monarca, ainda que por complicadas e desconhecidas razões de Estado delega no presidente do Governo. O Conselho nomeia ao presidente da Comissão, que novidosamente deve ser ratificado pelo Parlamento. Reserva-se a iniciativa à emenda constitucional, as principais decisões de política exterior e defesa, e mesmo a capacidade lexislativa em procedimentos especiais."
     "O denominado Conselho de Ministros é uma institução polimórfica, com membros que podem variar, nomeados discrecionalmente pelos governos (na Espanha sem ratificação parlamentar). É a instância de transmissão dos poderes executivos nacionais: uma espécie de poder executivo que voa. Dispõe dumas incomuns atribuções, particularmente no ámbito legislativo."
     "A função executiva mais estável realiza-a a Comissão Europeia. Encarregada da elaboração de leis e regulamentos —muitos deles obrigatórios—, da execução de resoluções e da inspecção, representa juridicamente à UE nos Estados membros e no resto do mundo. Tal vez o seu poder mais notável é o que se deriva do feito de que dispõe em exclusiva da iniciativa legislativa."
     "Outras instituições presentes no borrador constitucional são o Banco Central Europeu e as máximas instâncias judiciais: o Tribunal de Justiça, que assume o papel de tribunal constitucional, e o Tribunal Supremo. Os seus membros são nomeados discrecionalmente pelos governos sem ratificação parlamentar (art. I-28.2 e art. III-84.2)."
     "O Parlamento é a única instituição eleita do régime europeu. Como novidade, ratifica o nomeamento do presidente da Comissão (art. I-19.1) e, se bem pode exercer a moção de censura colectiva sobre esta (art. I-25.5 e art. III-243), não pode faze-lo individualmente sobre os seus membros. A iniciativa correspondente a esta moção de censura não está regulada. A função legislativa do Parlamento apresenta taras incríveis: carece da iniciativa legislativa, que está reservada em exclusiva à Comissão, e, ademais, partilha o procedemento legislativo ordinário com o Conselho de Ministros (art. I-33.1 e art. III-302), de forma que uma lei não pode ser aprovada sem a autorização de ambas instituções. Esta incrível paridade não é exactamente simétrica, toda vez que o Conselho de Ministros aprova em solitário muitos regulamentos e decisões europeias (art. III-334), legislação menor de carácter obrigatorio em muitos casos. O raquítico rol institucional do Parlamento situa-o quase no papel de instituição comparsa, com a principal função de escenificar a soberania popular na autocracia europeia."
     "O papel mencionado vê-se mais claramente da mão da consideração do que o Parlamento não pode fazer: não disfruta da iniciativa legislativa (art. I-25.2); tem que dirigir-se à Comissão para apresentar uma iniciativa dessa natureza (art. III-234); não nomeia, senão que só ratifica, ao presidente da Comissão (art. I-19.1); não nomeia nem ratifica individualmente aos comissários (art. I-26.2), ao ministro de Negócios Estrangeiros da UE (art. I-26.2), aos juizes do Tribunal de Justiça (art. I-28.2), à direcção do Banco Central Europeu (art. III-84.2) nem aos membros do Tribunal de Contas (art. I-30.3); não decide a composição do Comité das Regiões e do Comité Económico e Social (art. I-31.5, art. III-295); não tem competência efectiva em assuntos de política exterior e de defesa (art. I-39.6 e art. I-40.8); não dicta os regulamentos sobre a competência (art. III-52), sobre a relação entre a administração e as entidades financeiras (art. III-74.2), sobre os créditos dos bancos centrais (art. III-75.2), sobre os aspectos técnicos monetários (art. III-78.2) e sobre as matérias agrícola e pesqueira (art. III-126.1 e art. III-127.3); não elabora nem inspecciona o projecto de orientações económicas (art. III-71) nem o de orientações sobre emprego (art. III-102); não aprova a vixilância e as sanções sobre desviações do défice (art. III-76), nem a lei de control deste (art. III-76.13); não pode modificar os estatutos do Banco Central Europeu (art. III-79); não tem competência efectiva em leis sobre política social (segurança social, baixas laborais...) (art. III-104.3) e política meioambiental (art. III-130), nem legisla sobre os procedimentos (art. III-178) e a cooperação policial (art. III-176.3); estão indefinidos os termos de control parlamentar desta última (art. III-177.2); não tem competências em caso de intervenção militar no exterior (art. III-210), no terreno da investigação militar (art. III-212), no da autorização de acordos comerciais com outros Estados ou organizações (art. III-217 e art. III-227) e no da ruptura de relações económicas e financeiras por motivos militares (art. III-224); não autoriza em caso nenhum o início das negociações de acordos internacionais (art. III-227); não é competente para activar a denominada cláusula de solidariedade (terrorismo, catástrofes, ...) (art. III-231.1); as suas comissões de investigação são inoperantes, não estão protegidas pelo juramento e rematam nun simples informe (art. III-235); não ratifica aos representantes permanentes do Conselho de Ministros (art. III-247); não é competente para regular o acceso do Tribunal de Contas ao Banco de Investimentos (art. III-290.3), para aprovar o regulamento do Tribunal de Contas (art. III-290.4), para modificar o estatuto do Banco de Investimentos (art. III-299), para fixar os salários e pensões dos cargos da UE (art. III-306), para autorizar cooperações reforçadas em matéria de defesa ou de política exterior (art. III-325.2), para autorizar que uma cooperação reforzada disfrute de financiação do orçamento comunitário (art. III-327) nem para fixar o régime lingüístico das instituições (art. III-339)" (18).
     O informe de Demopunk agrega que, por omissão, a Constituição da UE proibe formas de iniciativa popular como é o caso das relativas à ratificação de leis e tratados, à derogação dumas e outros, e à revogação de cargos públicos. Não só isso: o referendo com resultados vinculantes está proibido. "Outras modernas liberdades políticas, como o orçamento participativo, são desconhecidas para muitos dos pães da Constituição; conceitos como autogestão ou subsidiaridade popular são totalmente alheios a esta." (19) Se a Constituição, noutras palavras, pouco ou nada faz para pôr ao dia os direitos de cidadãos e cidadanas, bem que consinte, porém, fórmulas de pressão que nada tenhem de democráticas. Bastará com resgatar que o art. 51 formaliza o diálogo com as Igrejas, às que reconhece a condição de interlocutores sociais. "Isto significa que se um Estado, como é o caso da Espanha, tem assinado um Concordato com a Santa Sede que põe em questão direitos fundamentais, a União Europeia não poderia intrometer-se. Ademais, a União 'manterá um diálogo aberto, transparente e regular com as citadas Igrejas'. Não há que se enganar: o diálogo neste caso significa sessões de trabalho e consultas regulares sobre determinados projectos de lei e sobre orientações comunitárias. Outorga-se, assim, às Igrejas um estatuto privilegiado e um direito de ingerência no espaço e nos assuntos públicos da União" (20).
     Não parece que o panorama descrito esvaeça, de resultas da aplicação efectiva da Constituição, pela aparição do que alguns autores, como Jürgen Habermas, estão a chamar esfera pública europeia (21). Nada indica, em particular, que vão aparecer partidos, sindicatos e organizações sociais com ámbito de acção próprio da UE, e não dos Estados-nação ou de umas ou outras partes destes. Como nada indica que o próprio Habermas não foi vítima duma ilusão óptica quando interpretou que um demos europeu via a luz ao calor das manifestações contra a agressão norteamericana no Iraq (não está de mais lembrar, por certo, que muitos dos promotores e promotoras dessas manifestações gardam, por lógica, as suas distâncias no que se refire a uma Constituição da UE na que não percebem um impulso de superação de atávicas e pouco democráticas regras). Assim, demos-lhe parte de razão, pelo contrário, a Joseph Weiler quando afirma que o que os cidadãos e as cidadanas europe@s precisam é mais poder, e não mais direitos (22).



Os direitos sociais esquecidos

    
No terreo dos direitos sociais o que aparece por toda parte na Constituição da UE é uma inflação de retórica como a que se percebe, pelo demais, e bem que conforme a outras claves, na sua homóloga espanhola. A Constituição lembra, pelo que faz agora, que as cartas assinadas pela União Europeia em 1961 e 1989 comprometem a esta no "fomento do emprego, na melhora das condições de vida e trabalho, para conseguir a sua equiparação pela via do progresso, numa protecção social apropriada, no diálogo social, no desenvolvimento dos recursos humanos para conseguir um nivel de emprego elevado e duradoiro, e na luta contra as exclusões" (art. II-103). Resgatemos, por outra parte, que no art. II-31, 1, tras fugir expressamente da postulação do ontológico "direito a dispor dum trabalho", sinala-se, sem mais, que "todo trabalhador tem direito a trabalhar em condições que respectem a sua saude, a sua segurança e a sua dignidade".
     Em ausência de garantias expressas para que os direitos, convertidos em obrigações, sejam uma realidade —não há motivo nenhum para aseverar, por exemplo, que a discriminação das mulheres vai rematar da mão de medidas específicas—, é obrigado concluir que os compromissos correspondentes têm, como acabamos de anunciar, uma evidente carga retórica. Alguem pensa em sério que fórmulas tão etéreas estão chamadas a servir de freio ante a irrupção de regras de jogo selvagens como aquelas das que é portadora a globalização capitalista em curso? Mais fácil é deduzir que ao amparo da Constituição da UE os direitos sociais seguem a ter uma condição inferior que facilita o seu incumprimento, tal e como aconteceu com anteriores textos legais próprios da UE, que em boa medida deixavam aqueles nas mãos das legislações dos Estados membros (23).
     Para fazer as coisas ainda mais ingratas, a Constituição não incorpora, de novo, nenhum projecto sério de convergência social (e de garantias meioambientais): na linha do tratado de Maastricht, os critérios de convergência excluem por completo, antes bem, a dimensão social. Em semelhantes circunstâncias sorpreende, claro, que as cúpulas dos dois sindicatos maioritarios no Estado espanhol, Comissões Obreiras e União Xeral de Trabalhadores, considerem "de forma globalmente positiva" uma Constituição que —elas mesmas reconhecem— não outorga maiores garantias de respeito dos direitos objecto do nosso interesse. No texto no que os dois sindicatos se pronunciam sobre estas questões declaram ver na Constituição, pelo demais, avanços interessantes em matéria de reducção do défice democrático e de desenvolvimento duma política exterior comum e saudável... O texto conta, como não podia ser doutra maneira, com o patrocínio da Comissão Europeia (24).
     Agreguemos que a Constituição da UE reclama "uma economia social de mercado altamente competitiva" (art. 9), no que parece a quadratura do círculo da mão do desígnio de postular ao tempo uma economia de dimensão social e um mercado no que a competitividade dita todas as regras. A margem de movemento para o crescimento dos direitos sociais é mínimo uma vez que se entronizan, em suma, regras de jogo como as vinculadas com o mercado, a libre competência e o défice público cero, circunstância que remete a um texto ajustado aos interesses dos empresários, e não aos dos trabalhadores. Ademais, a regra de unanimidade paraliza o reconhecimento dos direitos sociais, manifestamente afectados também pela ausência dum orçamento comum que mereça tal nomem, de políticas de harmonização fiscal e de normas unitárias no que à economia se refire (25). A Constituição revela, por certo, uma curiosa lasitude e indefinição nalguns enunciados, como o que sinala que "os Estados membros evitarão défices públicos excesivos" (art. III-76, 1).
     Com toda evidência, a economia segue a ser, pelo demais, o ámbito fundamental de desenvolvimento duma União na que ao político se lhe reserva, de sempre, um papel menor. Giuseppe Bronzini tem afirmado que é significativo que quando se refire ao mercado único a Constituição emprega a expressão "a União oferece", por enquanto noutros terrenos se limita a aseverar que "a União promove" (26). É certo, em fin, que, tal e como vâo as coisas, e num magma de miséria e ruindade, a enunciação franca de direitos sociais no texto da Constituição bem poderia ter o perverso efeito de rebaixar a natureza destes em comparação com o que com eles acontece nas Constituições de vários dos Estados membros (27).



Só contam os Estados

    
Ainda que o tratado de Maastricht falava da UE como "uma união de povos", na Constituição estes últimos desaparecem como agentes fundamentadores, ao tempo que se foge do adjectivo federal para descrever a forma de coordinação das políticas circunstância que propícia, mais uma vez, a aseveração de que estamos diante dun tratado, e não diante duma Constituição e que se formaliza um compromisso expresso com a integridade territorial dos Estados (art. 1.11). Nos feitos, e ainda que formalmente se perfilam duas instâncias relevantes, os cidadãos e cidadanas, duma banda, e os Estados, doutra, tendo de conta a leviandade objectiva das atribuções que correspondem aos primeiros e primeiras, é obrigado concluir que serão os segundos os que seguirão a assumir todo o protagonismo.
Pelo que contam, ainda que o projecto inicial da Constituição fazia referência à "vontade dos povos" e a uma "relação federal", as expressões correspondentes foram retiradas de resultas da pressão exercida por Estados como a Espanha, a França e o Reino Unido (28). Assim, e no marco duma proposta na que os interesses dos Estados saem claramente bem parados, a duras penas pode sorpreender que dirigentes políticos como o presidente do Governo espanhol, José Luis Rodríguez Zapatero, empreguem a Constituição da UE para sublinhar que os projectos de secessão não tem espaço naquela (29). O argumento não pode ser mais trivial e mesquinho: num debate no que a racionalidade e o diálogo se iludem, é cómodo demais se apoiar na Constituição que um mesmo decidiu defender como se se tratasse duma arma legal neutra detrás da que não se percebem os interesses próprios.
     A Constituição da UE enúncia sem mais, por outra parte, o propósito de reduzir "as diferenças entre os niveis de desenvolvimento das diversas regiões e o atraso das regiões ou ilhas menos favorecidas" (art. III-116), no que Antonio Cantaro considera que é um exemplo de "solidariedade desarmada" (30). O denominado Comité das Regiões não parece chamado a rebaixar, em suma, o descontento, tanto mais quanto que não está claro como se designarão os seus integrantes (art. III-292). De pouco —de nada— parece servir que a Constituição seja traduzida, em fim, para línguas como o catalão, o eusquera ou o galego, que, segundo os prognósticos mais optimistas, poderiam alcançar, por demais, certo reconhecimento oficial. Muda esta circunstância a xeral discriminação e marginação que padecem, desde muito tempo atrás, essas línguas?



Uma política exterior militarizada

    
A "estrita observância e o desenrolo do Direito Internacional, e em particular o respeito dos princípios da Carta das Nações Unidas" formulam-se como objectivos da política exterior por certo que se postula, sem receio, uma terminologia que empraça a segurança junto à política exterior da UE no art. 3.10 da Constituição. Significativo é que este compromisso fosse assumido por Estados que bem pouco antes de aceitar semelhante redacção iludiram falemos eufemisticamente a Carta das Nações Unidas no que ao Iraq de 2003 respecta.
     E é que, como era de esperar, também neste ámbito se revela uma alarmante distância entre a prática real dos Estados membros e a retórica enunciada. Esta fala (art. III-193, 2) de "consolidar e apoiar a democracia, o Estado de Direito, os direitos humanos e os princípios do Direito Internacional", de "manter a paz, evitar os conflitos e afortalar a segurança internacional, conforme aos princípios da Carta das Nações Unidas", de "fomentar o desenvolvimento sostível nos planos económico, social e meioambiental dos países em vías de desenrolo, com o objectivo principal de erradicar a pobreza", de "elaborar medidas internacionais de protecção e melhora da qualidade do meio ambiente" ou de "promover um sistema internacional baseado na cooperação multilateral sólida e a boa governança".
     O leitor e a leitora conscientes conhecem bem qual é a distância que há entre as políticas que a UE realmente existente abraça e os princípios enumerados. Haverão de extrair, também, as consecuências pertinentes no que atinge à ausência de medidas concretas que permitam garantir que os segundos se abrem caminho. Bastará com invocar de novo, a título de exemplo, a leviandade dos fluxos de aparente ajuda gerados pela União e dirigidos aos países mais pobres. Em relação com estes últimos, a "erradicação da pobreza" invoca-se como objectivo, de novo sem maiores precisões, no art. 3.10 da Constituição. Ilustrativo é que o art. III-193, 2 reclame que se estimule "a integração de todos os países na economia mundial, inclusive a través da abolição progressiva das restricções ao comércio internacional". É curioso este cauteloso inclusive, que parece reflectir alguma cautela no que se refire ao enunciado xeral, claramente inserido na filosofia da globalização capitalista.
     Necessário é sublinhar que a Constituição revela, em fim, significativas dúvidas no que atinge à possibilidade de desenvolver uma política exterior común. O art. III-195, 2 afirma que "os Estados membros apoiarão activamente e sem reservas a Política Exterior e de Segurança Comum, com espírito de lealdade e solidariedade mútua". Por que semelhante observação, que não se repete em relação com outras dimensões da carta magna da UE? É difícil, pelo demais, que a União encontre uma voz comum na escena internacional, dado que a Constituição não propícia um governo efectivo da economia na zona do euro e mantem a exigência de unanimidade, por outra parte, no relativo a matérias tão importantes como as relações exteriores, a fiscalidade e as políticas sociais (31).
     As imprecisões que glosamos contrastam poderosamente com a clareza com que, em diversos tramos da Constituição da UE, se defende uma militarização da política exterior desta. Lembremos várias circunstâncias. Pelo que faz agora, a Constituição postula missões militares longe da União, com o propósito enunciado de manter a paz, previr os conflitos e afortalar a segurança internacional (art. 40, 1 e art. III-210, 1); essas missões poderão ser encomendadas polo Conselho de Ministros "a um grupo de Estados membros" (art. 40, 5). O art. III-210, 1 sublinha, por outra parte, que "poderão contribuir à luta contra o terrorismo, mesmo com o apoio prestado a terceiros Estados para combater aquele no seu território". Fiel indicador do perfil da política exterior abraçada pela Constituição é o feito de que nesta se tem renunciado a formular um compromisso expresso de rejeitamento da guerra como procedemento para dirimir as diferenças. Não se seguiram em modo nenhum, em tal sentido, os critérios que inspiraram à Constituição republicana espanhola de 1931 ou á italiana de 1947 (32).
     Salientemos, por outra parte, que a Constituição leva uma referência expressa, a dizer verdade não muito precisa, à "prevenção de conflitos", "conforme aos princípios da Carta das Naçãos Unidas" (art. 40, 1). É preciso sublinhar que o termo prevenção, ontem portador de respectáveis valores, tem hoje, em virtude de circunstências bem conhecidas, um significado que resulta inevitável relacionar com as percepções estratégicas de EE.UU. O texto político-legal que nos interessa refire-se de maneira significativamente prolixa, ademais, à necessidade de criar uma Agência Europeia de Armamento, Investigação e Capacidades Militares, com objecto de "determinar as necessidades operativas, fomentar medidas para satisfaze-las, contribuir a estabelecer e, se procede, a aplicar qualquer medida ajustada para afortalar a base industrial e tecnológica do sector da defesa, e participar na definição duma política europeia de capacidades e de armamento" (art. 40, 3 e art. III-212, 1). Em várias oportunidades faz-se menção, em fim, do compromisso de respectar as obrigações que, contraidas por alguns membros da UE, se derivam do Tratado do Atlántico Norte (art. 40, 2 e art. III-214, 4).
     Agreguemmos que a impressão é que, sem propostas doutra natureza que se revelem de maneira consistente nos seus artigos, a Constituição subordina-se sem receio ao projecto duma Europa fortaleza, cada vez mais fechada. O art. III-166, 1 reclama, assim, a instauração progressiva dum "sistema integrado de gestão das fronteiras", compromisso que se acompanha da postulação duma política comum que garanta "a gestão eficaz dos fluxos migratórios". O que o adjectivo eficaz esconde não parece que se compense com a menção, que segue a continuação, da necessidade de actuar "contra a imigração ilegal e a trata de seres humanos" (art. III-168, 1). Num terreno que aos olhos dos nossos governantes é muito próximo, o art. III-177 refire-se, em fim, à colaboração entre os Estados membros no que se refire à luta contra a delinquência e o terrorismo. Não se procure por lugar nenhum, noutras palavras, a influência duma visão aberta e concesiva no que à imigração atinge.



Aberta a todos os Estados europeus

    
A Constituição não é muito explícita, em suma, no que atinge à determinação de quais são os Estados que a UE pode acolher no futuro. Sinala que a União "está aberta a todos os Estados europeus que respectem os valores mencionados no artigo 2 e se comprometam a promove-los em comum" (art. 57, 1). Não se clarifica, porém, que se entende por Estados europeus a questâo tem mais relevo do que parece, ainda que é fácil concluir que se fecha o horizonte de incorporação de países que, conforme a um artifício impregnado duma carga ideológica que se esconde por detrás dum aparente rigorismo geográfico, comunmente se entende que não são europeus.
     Num terreno diferente, e para rematar, são muitas as dúvidas que afectam ao mecanismo de ratificação do texto objecto do nosso interesse. Que acontecerá, por exemplo, se são menos de vinte os Estados que ratificam a Constituição da União Europea? E que sucederá, por outra parte, com aqueles que não assinem esta? Em qualquer caso, e como o tem sinalado Carlos Closa, o mecanismo em questão lembra mais, de novo, ao comunmente aplicado no caso dos tratados que ao próprio duma Constituição (33).



Notas
(1) M. Fioravanti, "Un ibrido fra 'Trattato' e 'Costituzione'", em E. Paciotti (dir.), La Costituzione europea. Luci e ombre (Meltemi, Roma, 2003), págs. 17-27.
(2) Cit. em A. Manzella, "Agnizione e innovazione: nascita di una Costituzione", en Paciotti, op. cit., pág. 29.
(3) M. Poiares Maduro, "Europe and the constitution: what if this is as good as it gets?", en J.H.H. Weiler e M. Wind, European constitutionalism beyond the state (Cambridge University, Cambridge, 2003), págs. 81 e ss.
(4) A. Cantaro, Europa sovrana (Dedalo, Bari, 2003), pág. 19.
(5) Ibidem, pág. 21.
(6) P. Barcellona, "Prefazione", em Cantaro, op. cit., pág. 7.
(7) E. Paciotti, "Introduzione", em Paciotti, op. cit., pág. 8.
(8) Cit. em X. Pedrol e G. Pisarello, La Constitución furtiva (Icaria, Barcelona, 2004), pág. 15.
(9) Ibidem, pág. 24.
(10) A. Cantaro, "La Europa social y la Constitución 'virtual' de la Unión Europea", em X. Pedrol e G. Pisarello, La ilusión constitucional (El viejo topo, Barcelona, 2004), pág. 41.
(11) Ver http://www.europa.eu.int/futurum/constitution/index_es.htm.
(12) Cantaro, Europa sovrana, op. cit., pág. 72.
(13) Ver "Crítica al proceso Constituyente Europeo", em www.demopunk.net/sp/intern/europe/pcon_euro01_sp.html.
(14) Pedrol e Pisarello, La Constitución furtiva, op. cit., pág. 34.
(15) D. Capezzone, Euroghost. Un fantasma s'aggira per l'Europa: l'Europa (Rubbettino, s.l., 2004), págs. 13-14.
(16) L. Vinci, Sinistra alternativa e costruzione europea (Punto Rosso, Milão, 2004), páss. 100-101.
(17) Como quer que o Conselho de Ministros partilha o poder executivo com a Comissão e com o Conselho, o seu é que se revelem problemas severos nas suas funções respectivas. Ver M. Luciani, "Complessità della struttura istituzionale", em Paciotti, op. cit., pág. 62.
(18) "Crítica al proceso...", op. cit.
(19) Ibidem.
(20) M.J. Aubet, "Un proyecto de Constitución contra la Europa laica y democrática", em Pedrol e Pisarello (dirs.), La ilusión constitucional, op. cit., pág. 62.
(21) G. Napolitano, "Democrazia sovranazionale", em Paciotti, op. cit., pág. 69.
(22) Em Cantaro, Europa sovrana, op. cit., pág. 122.
(23) Ibidem, págs. 102-103.
(24) "Los sindicatos ante la Constitución Europea" (CC.OO.-UGT, s.l., 2004).
(25) Cantaro, "La Europa social...", op. cit., pág. 35.
(26) G. Bronzini, "Il 'modello sociale europeo'", em Paciotti, op. cit., pág. 96.
(27) Cantaro, "La Europa social...", op. cit., pág. 30.
(28) J.R. Castaños, "Las nacionalidades en la Convención: una oportunidad perdida", em Pueblos (nº11, junho de 2004), pág. 38.
(29) El País (10 de dezembro de 2003).
(30) Cantaro, Europa sovrana, op. cit., pág. 125.
(31) Paciotti, "Introduzione", op. cit., pág. 9.
(32) X. Pedrol e G. Pisarello, "Ni 'un paso adelante' ni 'lo único posible': esta 'Constitución' no es nuestra Europa", em Pedrol e Pisarello (dirs.), La ilusión constitucional, op. cit., pág. 19.
(33) C. Closa, "La ratificación de la Constitución de la UE: un campo de minas" (Real Instituto Elcano, Madrid, 2004).


 

 

 


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