A ideia da Galiza em Otero Pedrayo

 

(Texto íntegro)

 

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Un centenário

     Os galegos celebramos este ano o centenário do nascimento de Ramom Otero Pedrayo, como os portugueses celebram o centenário do nascimento de Fernando Pessoa. Concorremos pois galegos e portugueses para deixar mais umha vez constância da nossa fraternidade cultural, organizando a expressom da mesma arredor desses dous centenários, o do português e o do galego, tam significativos o um e o outro —os centenários e os escritores para as respectivas culturas, ramos dialectais ambas da frondosa árvore da cultura europeia, essa árvore que fala, como no conto das Mil e umha noites, no nosso caso no ibero-românico ocidental, sistema que se realiza nas diversas normas do galego-português, entre elas o galego comum —que luita pola sus estabilizaçom— e o português padrom, de codificaçom mais antiga e —como voz de um Estado independente, com brilhante história própria— mais perfilado, consolidado e conhecido no mundo. Duas manifestaçons, as formas protocolárias dessas duas expressons lingüísticas, da mesma unidade hispano-atlántica, que, os galegos com as vacilaçons e licenças que o nosso passado justifica, e os portugueses com a segurança e coerência que conquistou o seu passado, empregamos como idiomas naturais, entendendo-nos sem esforço, ainda que as distintas incidências da nossa vida colectiva através do tempo, tenham marcado a nossa fonética, a nossa morfologia e o nosso léxico com particularidades que constituem. um pecúlio próprio dentro da herdança comum.
     Muito contribuiu Ramom Otero Pedrayo a promover o galego como instrumento literário. Dotado o nosso autor de umha admirável fecundidade, temo-lo polo mais prolífico cultivador das nossas letras. Isso foi possível mercê à rapidez de execuçom que o caracterizava, e que, impulsando-o à improvisaçom e privando-o da sossegada revisom correctora do seu ingente labor, explica certos desequilíbrios ou descompensaçons que se podem registar talvez na estrutura de boa parte da sua obra. Nel prevalece sobre a ordem clássica o ímpeto romântico, a inspiraçom arrebatada sobre a planificaçom cuidadosa. Mas esse ímpeto, essa inspiraçom mostram tal
energia e tal riqueza, que mesmo nos casos em que a estrutura adoece de debilidade temos que reconhecer a força e a elevaçom do alento poético que percorre o produto literário.
     No seio de umha família fidalga com vivenda rural nas proximidades de Ourense —o paço ou solar de Trasalva— e morada urbana na antiga rua dos Sapateiros na capital da província, Otero Pedrayo foi o filho unigénito de um matrimónio formado por Henrique Otero Sotelo, que morreu novo, e Eládia Pedrayo Ansear, que faleceu quase centenária. Ramom graduou-se em Madrid, na Universidade Central, de Licenciado em Filosofia e Letras e Direito, e doutorou-se na primeira das citadas Faculdades. Foi catedrático de Geografia e História nos Institutos de Ensino Médio de Burgos, Santander e Ourense, e, já ultrapassada a soleira da senectude, ganhou por oposiçom a cátedra de Geografia da Universidade de Santiago de Compostela. Jubilado em 1958, voltou a viver em Ourense e Trasalva até o seu falecimento em 1976.




A Galiza como tema

     Substancialmente, toda a obra científica e literária de Otero Pedrayo tem a Galiza como tema. Superando a concepçom dos Precursores, que nom estava livre de um certo pintoresquismo ruralista, o nosso autor, como os seus companheiros de idade e trabalho na redacçom da revista Nós —que deu nome a essa geraçom—, reata a tradiçom medieval europeísta galega, e mediante obras como a Guía de Galicia e o Ensayo histórico sobre Ia cultura gallega, infunde nos galegos cultos umha visom da Galiza, na sua configuraçom física como território e no seu desenvolvimento como povo através da história, que supera em elevaçom e profundidade todos os ensaios anteriores. É umha visom alapeada polo amor ao objecto descrito, e nesse sentido, se se quer, umha visom romântica. Mas as lapas deste amor alumiam com penetrante luz aquel objecto, pondo de manifesto aspectos até entom ignorados ou obscurecidos. Nom se trata, pois, de umha perspectiva sentimental que quase apaga a verdadeira realidade do contemplado para substituí-lo no espaço que ocupa por umha criaçom pessoal que, conservando talvez as dimensons e os limites do substituído, instala nesse espaço umha substância intelectual segregada pola mente do observador. Nom se trata da construçom de um iluminado que ordenou consoante umhas categorias mentais apriorísticas o reflexo do fenómeno externo, reformado, quando nom deformado, mais que informado, por um seleccionador subjectivo dos dados da experiência profundamente caldeado previamente polo lume de anseios e voliçons que pertencem ao campo dos afectos e nom ao da compreensom cognoscitiva. Nom hai dúvida de que o estilo aceso —mas nom confuso nem congestionado— do nosso autor, revela umha força de penetraçom na realidade analisada que a nimba de umha auréola de beleza e dignidade mal entrevistas polos predecessores do escritor. A sua teoria da Galiza fica assi tingida de umha tonalidade característica daquel. Mas,
fora do facto de que nom hai conhecimento que de algumha maneira nom esteja informado polas categorias do sujeito cognoscente, é evidente que a matéria ordenada por Otero aparece-se-nos, no concurso da história da nossa compreensom do fenómeno galego, modulada e plasmada, informada e apreendida intelectualmente com umha claridade e umha plenitude desconhecidas até esse momento. Que essa claridade e essa plenitude ostentem um resplandor de beleza e umha opulência de perfis que para alguns caiba qualificar, aquela de romântica e esta de barroca, supom umha matizaçom que nom resta fundura e coerência à operaçom intelectual realizada polo professor ourensano na sua procura da essência da sua terra.



Os limites da Galiza

     Mas, quais os limites dessa terra? Qual a extensom do objecto que Otero pretende definir, se cabe este infinitivo demasiado preciso e geométrico para denominar a realizaçom intuitiva, alimentada pola vontade cordial de comunhom, mediante a qual o senhor de Cimadevila desprega perante os nossos olhos a sua representaçom da Galiza?
     Comecemos por afirmar que para Otero Pedrayo, a Galiza resulta da conjugaçom de um elemento humano com um elemento geográfico. A Galiza nom é um conceito puramente geográfico. Se supomos que umha catástrofe histórica, um cataclismo político dificilmente imaginável para o home de hoje, mas desgraçadamente nom impossível de conceber como perversa eventualidade futura; se supomos que umha aberrante mobilizaçom de forças colectivas e individuais que seguissem a umha contenda encarniçada, conduzisse a umha despótica deportaçom massiva dos galegos a quaisquer terras alongadas, à ilha de Madagascar ou ao deserto de Góbi, e, totalmente despovoada a minha terra, fosse transferida a ela umha nova populaçom que nom tivesse relaçom algumha étnica, cultural ou lingüística com a populaçom actual, daquela, segundo a minha interpretaçom do pensamento de Otero, essa terra, habitada por essa nova populaçom, nom seria a Galiza. Ainda que a nova Administraçom continuasse designando-a com aquel nome, obviamente esse elemento territorial, mesmo no caso de que os seus habitantes fossem chamados galegos, nom seria a Galiza de que Otero era filho e teorizádor.
     A Galiza estaría constituída polos galegos exilados transferidos a Madagascar, onde Hitler pensou em isolar os judeus, ou obrigados a colonizar o deserto de Góbi, a fazer florecer o deserto, para empregar a expressom bíblica, condenados a trabalhar forçosamente sob o látego de impiedosos capatazes até converter aquelas areias —ou aquelas pedras— em vergéis irrigados por canais que conduzissem as águas dos alongados rios? Os sobreviventes desta escravitude, assentados nas novas terras, seriam a Galiza? Também devemos responder negativamente.
     Pois para Otero Pedrayo, a Galiza é o resultado da fixaçom de um povo numha terra. O factor humano e o factor geográfico influem-se mutuamente, e isto dá lugar a umha cultura que constitui o fundamento de umha naçom.
     Para Otero, a Galiza é umha naçom. E o desenvolvimento cultural dessa naçom está exposto no seu Ensaio sobre a cultura galega, que em versom portuguesa de José Marinho, com prefácio de Francisco da Cunha Leão, foi publicado em Lisboa em 1954. Otero nom gosta de filosofar a propósito do conceito de naçom. Mas, evidentemente, é nacionalista, e mesmo foi presidente de um partido que se definia como nacionalista. Otero nom tende às teorizaçons abstractas, mas ao comentário histórico e à análise fenomenológica do presente. Hai um texto, no entanto, de carácter didáctico, em que Otero se viu obrigado a concretizar o seu conceito de naçom. Como o nosso autor é profissional e temperalmente um historiador e nom um filósofo, nom acaba de achar umha fórmula sintética e económica do facto nacional. Mais bem enumera notas do conceito, sem separar nitidamente as essenciais das próprias e mesmo das acidentais. É refractário à aridez da definiçom que procura o filósofo. Mais bem, como o sofista —no seu sentido originário, erudito comentarista das formas culturais, nom no vulgar sentido pejorativo de raiz socrática—, gosta da descriçom do fenómeno sem o pruído da sistematizaçom matemática. Reduzindo ao fundamental essa aproximaçom de Otero ao conceito da naçom, podemos dizer que se compom de dous elementos, um elemento físico e um elemento moral. O primeiro é o território, e o segundo o elemento humano. Umha terra e um povo, ou um povo que possui umha terra. Nom pode faltar o sentimento de unidade cultural nem o suporte geográfico.
     Segundo isto, os galegos em Madagascar ou no Góbi deixariam de ser
galegos. E haveria que perguntar a Otero se crê que nom existiu a naçom judia entre a destruiçom de Jerusalém por Tito e a fundaçom moderna do Estado de Israel. Pode ser que as suas opinions estejam edificadas sobre a situaçom normal, e nom pense em eventualidades anormais que exigiriam um novo jeito de pôr a questom. Em todo caso, no nosso geógrafo é de primordial importância o elemento geográfico. Otero nom concebe umha Galiza que mude de localizaçom, pois considera que a paisagem, que o factor ecológico em geral, modifica a mentalidade cultural, como a cultura religiosa ou artística pode modificar o meio geográfico.
     Umha importante ressalva haveria que anotar. Otero Pedrayo, que viajou a América convidado polas colónias galegas naquel continente e falou e escreveu abundantemente sobre a emigraçom, nom podia negar a galeguidade daquelas colónias. Mas é evidente que, por umha parte, dentro dos critérios oterianos deve haver um lugar para admitir a existência de galegos emigrados; e por outra, parece lógico admitir que o transcurso do tempo e a integraçom dos galegos na vida dos países que os acolhem, pode determinar um cámbio de nacionalidade, mesmo juridicamente efectivado, ficando reduzida ao campo sentimental a galeguidade originária no curso das geraçons que se sucedam.
     O marco geográfico da Galiza está constituído, pois, polas terras que ocupam o ângulo noroeste da Península Ibérica. Já veremos quais podem ser os seus limites. Nom, desde logo, os limites administrativos que em 1833 traçou o ministro espanhol de Fomento, dom Xavier de Burgos, ao organizar em províncias os antigos reinos de Espanha, e entre eles o antigo reino da Galiza. Assi como a populaçom necessita de um suporte territorial para constituir-se em naçom, assi o território nacional nom pode definir-se sobre a base de puros acidentes geográficos, nem tampouco de acordo com fronteiras puramente administrativas. Os limites venhem dados pola história da cultura, e no nosso caso serám aqueles entre os quais se verifique o desenvolvimento do espírito que caracterizou aquela cultura, aquela forma de vida colectiva, aquela consciência nacional.
     Nos escritos fundamentais de Otero Pedrayo, redigidos em dias por via de regra adversos à consideraçom da Galiza como comunidade nacional, quando vigente —ou em suspenso— a Constituiçom espanhola de 1876, ou a de 1931, a primeira organizadora de um Estado centralista e unitário, a segunda autorizadora de um regime de autonomia nom efectivado; nos escritos de Otero Pedrayo redigidos em tais circunstâncias, a doutrina formula-se em funçom das condiçons reinantes, partindo das restriçons existentes; e em tais conjunturas essa doutrina é comunicada na medida em que pode ter rendimento. É umha doutrina prática, que preside umha táctica económica. Para criar opiniom, para modificar a ordem jurídica estabelecida e promover o avanço na direcçom desejada, procede insistir nas ideias que podem ter umha realizaçom imediata ou prevista para um futuro próximo, e reservar para o momento oportuno aqueles elementos doutrinais que nom podem ter projecçom executiva no momento actual. Por isso, Otero Pedrayo considera inútil e mesmo perturbador pôr no momento questons teóricas que nom podem ser programaticamente traduzidas em propostas concretas. Cando se fala da Galiza, para entender-se com os interlocutores que resultam válidos, para que o nosso discurso resulte inteligível e mesmo aceitável por aqueles que representam o estado que se aspira a modificar, procede empregar umha dialéctica útil e económica, que nom crie inúteis complicaçons. Assi, os leitores ou ouvintes de Otero Pedrayo podem licitamente entender por Galiza, cando esta palavra brota na pena ou na boca do nosso autor, o conjunto das catro províncias espanholas da Corunha, Lugo, Ourense e Ponte-Vedra. E é verdade que essa é a Galiza que naquel momento pode ser considerada oficial, porque se estima que essas catro províncias som as herdeiras do antigo reino da Galiza, agora realmente inexistente do ponto de vista jurídico, mas do ponto de vista histórico cultural subsistente na forma de regiom. E de facto, Otero Pedrayo, como o resto dos galeguistas, está naquel momento entendendo por Galiza esse complexo regional, pois esse marco territorial é o que efectivamente justifica a sua actividade como galeguistas.
     Mas claro está que a tradiçom galeguista supom umha postura reformista no que di respeito à organizaçom territorial. No campo ideológico nom condicionado pola táctica política, Otero Pedrayo nom pode aceitar que a Galiza seja a regiom espanhola dividida por Xavier de Burgos nas catro províncias que ainda agora subsistem. A Galiza de Otero Pedrayo nom pode ser a Galiza administrativa; tem que ser a Galiza histórica. E será o elemento humano, a populaçom, a entidade que fixe, ou que nos permita fixar os limites do nosso território. A Galiza é o país que suporta a populaçom galega. Em tempos da República, em tempos da liberdade, Otero Pedrayo pode pôr de lado nalgum momento o sentido pragmático da Galiza que lhe impom a sua qualidade de político, e exprimir o seu pensamento como teórico do galeguismo. A conjugaçom do elemento geográfico e o elemento humano resolve-se numha cultura. Mas as incidências históricas podem modificar as dimensons do território colonizado por essa cultura. Hai, pois, umha Galiza ideal que se cadra só se realiza totalmente na utopia. Otero Pedrayo pode conceber essa ideia da Galiza e dar-no-la a conhecer num alto do labor político. Assi, temos umha declaraçom de Otero no decurso de umha entrevista de jornal, em que o nosso pensador declara que a sua Galiza ideal é a grande Galiza da antigüidade, a Gallaecia romana, a Gallaecia originária, a Gallaecia povoada polos galegos, quer dizer, polos gallaici.
     Como a Gallaecia variou de limites várias vezes durante a denominaçom romana, poderíamos perguntar-nos quais som concretamente os limites da Gallaecia de Otero Pedrayo. Mas tampouco creio que sejam os da Gallaecia de Caracalla, que polo leste avançarom mesmo até o Ebro. Sem dúvida Otero Pedrayo pensava que a Galiza dos galaicos era aquela onde agora se falava galego. Suponho que integrava nela os territórios situados ao leste das actuais províncias galegas espanholas onde se fala galego, quer dizer, as zonas limítrofes com a Galiza da província de Astúrias até o rio Návia, o Berço galego-falante na província de Leom, e a Sanábria ou Seavra na província de Zamora, aproximadamente. Em Portugal, consideraria o Douro como limite com a Lusitânia, ainda que, tendo em conta que a zona comprendida entre aquel rio e o Mondego foi conquistada e povoada por galegos nos tempos da Reconquista e fazia parte do reino da Galiza em tempos do rei Dom Garcia, talvez incluísse estes territórios dentro da sua grande Galiza ideal. Mas todo isto apresenta um carácter especulativo sem transcendência prática. A fundaçom do reino de Portugal e a sua independência reduziam a grande Galiza con que sonhava Otero Pedrayo a um conceito utópico sem influência no comportamento real. Só os territorios galego-falantes do Principado e do antigo reino de Leom eram pensados na prática como partes da Galiza de onte e de amanha, e na Constituiçom de 1931 arbitraram-se procedimentos para a agregaçom desses territórios à comunidade galega no caso de que os habitantes dos municípios involucrados manifestassem inequivocamente a sua vocaçom naquel sentido.
     Cando Otero Pedrayo enumera as notas fundamentais que integram o conceito de naçom, menciona a língua como indispensável, juntamente
com o solo. Umha unidade lingüística é necessária, como o domínio de um território, para que exista umha naçom. A língua é o primeiro, é como o signo sacramental da nacionalidade. Pode nom existir a unidade de raça ou a unidade de religiom, mas nom pode faltar a unidade de língua. Entom é o idioma galego o critério que nos permitirá traçar os limites da Galiza. Hai que entender que na Galiza bracarense se fala galego, para que se integre com a lucense constituindo a grande Galiza.
     Apesar das aparências, estas ideias nom nos conduzem a postular umha organizaçom política que refaga a unidade da Gallaecia antiga. Em Otero Pedrayo nunca aparece taxativamente questionada a estrutura política fundamental da Península Ibérica em dous Estados. O nosso home acha-se na presença do Estado espanhol e do Estado português e parte dessa realidade. Respeita nom só a independência, mas também a unidade dessas duas entidades estatais. Quero dizer que nom pretende alterar a situaçom da Galiza como parte do Estado espanhol. Somente aspira a converter este Estado unitário num Estado federal, onde a Galiza desfrutasse de autogoverno. Já era velha doutrina das Irmandades da Fala a obtençom para a Galiza de um estatuto autonómico, como o era a constituiçom de umha federaçom ou confederaçom ibérica na qual a Galiza, espanhola politicamente, mas estreitamente ligada a Portugal pola tradiçom lingüística, desempenharia um importante papel de intermediária entre os dous Estados peninsulares.
     Pois se a língua é em realidade, ao menos no caso da Galiza, o elemento definidor da nacionalidade, de modo que os limites desta estám dados pola presença daquela, podemos perguntar-nos se nom existia Galiza cando nom existia a língua galega, ou sequer o latim galaico. Nom tenho achado em Otero resposta explícita a esta questom. Mas sem dúvida comprendia o nosso pensador que antes da conquista romana nom existia 'umha consciência nacional galega. No entanto, vam ser os habitantes pré-históricos e proto-históricos do noroeste hispânico, que Otero, seguindo a tradiçom dos Precursores, imagina celtas, cando menos nas camadas superiores, aqueles que, recebendo a língua latina dos romanos, elaboram sobre o substrato indígena o latim galaico e afinal o romanço galego. Pois eles, desde o alvorejar da história, representam a nebulosa maternal da Galiza e fundamentam a psicologia do povo galego, antidogmática, imaginativa, irónica, sonhadora, assi como as linhas essenciais das vivências colectivas: identificaçom com a paisagem, organizaçom em pequenos núcleos de populaçom, tendência panteísta:, atlantista, europeísta. Nom dispomos de espaço para matizar adequadamente as notaçons e conotaçons destes traços no pensamento de Otero Pedrayo, mais intituitivo que rigidamente lógico.




Os limites do galego


     Como nos perguntávamos sobre os limites territoriais da Galiza, devemos perguntar-nos agora sobre os limites do galego, da língua que compendia as mais puras essências do elemento étnico da realidade nacional. Em que medida e com que estatuto se relaciona com o português?
     A tradiçom romanística e galeguista coincidem em identificar ambos os termos dentro da fórmula galego-português. O galego-português é o romanço mais ocidental da Península Ibérica para Menéndez Pidal. Os honres de Nós aceitam essa fórmula. Galego e português som dialectos da língua comum, ou bem hai entre eles umha relaçom genealógica. Para o Otero anterior à Guerra Civil, galego e português nom constituem sistemas lingüísticos diferentes. Sendo deputado a Cortes, exprimiu no Parlamento estas mesmas ideias. Lembrava a Unamuno que a Galiza, tanto étnica como lingüisticamente, é umha prolongaçom de Portugal (ou Portugal umha prolongaçom da Galiza). Afirmava que a nossa língua é a mesma de Portugal. Num banquete em que som agasalhados os Deputados galegos em Madrid, manifesta que espera o apoio «dos nossos irmaos de raça» perante qualquer negativa das Cortes a conceder a Galiza a sua autonomia; e como isto causasse escândalo entre certos sectores de opiniom, Otero aclara que se referia à ajuda moral da naçom que «hablando nuestro mismo idioma... es considerada como hermana».
     A postura de Otero Pedrayo posterior à Guerra Civil pode parecer nalguns aspectos contraditória com a que acabamos de expor. Agora o nosso home, combativo galeguista na anterior etapa, renuncia à direcçom política do galeguismo, que luita penosamente na clandestinidade, e assume o papel que as circunstâncias objectivas e sujectivas lhe atribuem: vai ser o etnarca espiritual, que todos respeitam e admiram, um etnarca sacerdotal que representa simbolicamente a Galiza, sobretodo depois do falecimento de Castelao. Evita toda polémica e assi, neutralizado, obtém, umha vez passados os anos de perseguiçom, o consenso geral como símbolo patriótico. Mas nom pode escusar-se de responder cando é interrogado sobre problemas internos da cultura galega. Assi, cando Rodrigues Lapa lhe envia o seu famoso ensaio sobre a recuperaçom literária do galego, o velho patriarca amostra-se renitente perante a aproximaçom progressiva da língua literária galega à portuguesa que Lapa propugnava. Otero, que no seu ensaio Morte e resurreición (1932) escrevera «a língua deve voltar a ser a mesma», agora (1973) escreve: «si hoxe os esquirtores adoitamos o português ficamos de sutaque afastados do povo galego». Ainda se pode documentar mais a posiçom de Otero perante este problema. Noutra ocasiom declara que galego e português som originalmente a mesma língua, mas agora o galego é umha língua per se. Nom concorda com os que opinam que a única maneira de salvar o galego da substituiçom polo castelhano é que falemos e escrevamos como os portugueses. Somente se desesperamos de manter o galego, poderíamos adoptar essa atitude.
     Ao meu juízo, mais que um câmbio total de postura, estas manifestaçons de Otero Pedrayo denotam umha má inteligência do problema posto. Otero crê que o que se propom é simplesmente a substituiçom do galego
polo português. Tem razom ao considerar que isso, subitamente efectivado, produziria umha diglossia entre língua literária e fala popular que criaria muitos problemas. Renunciar ao característico do galego parece-lhe inadmissível. E o é. Ainda bem, a aproximaçom do galego ao português literário nom supom a proscriçom do galego, mas a sua vigorizaçom na forma escrita. Otero nom é lingüista, e nom tem ideias claras sobre a distinçom entre língua, escrita e sistema, de umha banda, e dialecto, fala e norma, por outra. A reintegraçom do galego no complexo ibero-románico ocidental está posta a nível da primeira dessas isotopias, e nom a nível da segunda. El nom o entende assi. Se lhe fosse explicado o pensamento dos reintegracionistas em termos diáfanos para um profano, nom rejeitaria tam perentoriamente o que el mesmo anos atrás propugnava.
     Temos despejado um pouco os elementos territorial e humano que constituem o conceito da Galiza para Otero. Como este se achega às vezes mais ao pensamento mágico que ao lógico, é inevitável que a nossa exposiçom deixe abundantes cabos soltos. Enfim, os celtas, estabelecendo-se no ocidente peninsular, fundam a. Galiza, mas com carácter embrionário. A criança sai a luz ao agomar o latim galaico, ou o romanço galego. Agora podemos perguntar-nos que é o que caracteriza essa cultura, a cultura que elabora esse povo assentado sobre essa terra. Caracterizaçom que se manifesta pola modificaçom do meio que realiza o home e pola influência que sobre o home exerce o meio.




Os momentos históricos


     A aceitaçom por Otero de um substrato celta mui operante na cultura tradicional galega é umha herdança da doutrina dos Precursores, que, estimando de raiz ibérica a cultura castelhana, afincavam no celtismo o feito diferencial. Como é sabido, a meseta castelhana forneceu numerosos testemunhos arqueológicos da presença dos celtas, e a filologia concorre com a arqueologia para confirmá-lo. O pré-historiador da geraçom Nós, Florentino López Alonso-Cuevillas, no seu livro La civilización céltica en Galicia (1953), admite que as raízes do povo galego som anteriores às invasons celtas. O acento pessoal, a originalidade que distingue as nossas manifestaçons culturais de outras vizinhas e coetâneas, reside nom nas gentes invasoras e forasteiras, mas nas anteriormente estabelecidas no país e identificadas secularmente com este, e às quais o país mesmo dotou de um carácter determinado. Ainda que os Sefes, povo celta que transformou o aspecto da vida no noroeste hispânico, se estenderom por todo o seu âmbito e levarom as suas peculiaridades aos mais agachados recantos, foi em definitivo o povo precelta dos Oestrímnios quem protagonizou verdadeiramente a formaçom do povo galego, conservando parte importante das suas criaçons próprias e fazendo suas e imprimindo o seu selo às criaçons dos seus
invasores e dominadores. Assi se expressa Cuevillas, grande amigo de Otero; Otero, que nos anos da sua velhice amostrou-se cauteloso na atribuiçom de muitas características dos galegos modernos aos devanceiros celtas, os quais, armados da sua espada de ferro, irromperom em toda a Europa ocidental.
     A Galiza resultou assi no momento céltico umha etnia profundamente europeia, em comunicaçom terrestre e marítima com povos afins estabelecidos às beiras do Atlântico. A romanizaçom e a cristianizaçom, com a formaçom do romanço e a descoberta do sepulcro de Santiago, acentuam a ecumeneidade do povo galego, que ocupa um lugar privilegiado na vida comunal da naçom cristã. Santiago de Compostela é a grande urbe católica de Ocidente. O grande momento de Gelmírez é celebrado polo nosso autor num romance em que se descreve a viagem a Roma do Prelado para impetrar de Pascoal lI o pálio arquiepiscopal. Este é o momento românico, o de maior esplendor e afirmaçom do espírito galego, que, vivo na acçom, nom necessita formulaçom teórica. Mas depois do momento céltico e o momento românico, o espírito galego esmorece. O reino de Castela impom a sua hegemonia. O galego deixa de ser língua literária. Já nom corresponde a umha administraçom própria a gestom da sociedade galega. Nom hai autonomia política. Mas o génio nacional pode expressar-se noutros campos. Assi ocorre no momento barroco, de grande esplendor na arquitectura. Até à revoluçom de Mendizábal, vai-se manter estável umha sociedade predominantemente ruralna qual a fidalguia, o clero e o campesinato som os estratos demográficos fundamentais. O quarto momento histórico em que o espírito nacional se manifesta, é o momento romântico, no qual umha minoria de intelectuais racionaliza a consciência de galeguidade, já apontada polos ilustrados, e pom as bases de um movimento de reivindicaçom política. As reformas que se operam na estrutura do Estado, dam fim ao antigo regime, arruinando os fidalgos, anulando o poder económico das ordens religiosas e introduzindo no meio rural a economia monetária e a presença do comerciante vido de fora, e do curial que se convertem em dominado res da vida rural. O centralismo e o laicismo de inspiraçom exótica som forças desgaleguizadoras segundo o-pensamento católico, mas liberal, de Otero Pedrayo. A desamortizaçom dos bens da Igreja e a exclaustraçom dos religiosos desnaturaliza a vida galega ao introduzir formas de um capitalismo desprovido de espiritualidade. Otero teria preferido umha evoluçom natural do antigo regime, que passasse das suas formas de vida semifeudais, nas quais se articulavam consuetudinariamente os estamentos sociais significativos, às formas exigidas pola modernidade e o desenvolvimento tecnológico, sem romper com a ordem tradicional para introduzir num mundo orgânico nomeadamente rural a mecânica do capitalismo urbano. Desejaria umha transformaçom regeneradora que figesse desnecessárias a revoluçom burguesa e a revoluçom proletária.



Resumo de urgência

     A ideia da Galiza de Otero Pedrayo, cujo pensamento deixa de acrecentar-se a partir de 1936, pode resumir-se nas seguintes fórmulas,
     A Galiza constitui umha unidade cultural ocidental e atlântica, europeia e universal; quer dizer, umha entidade nacional resultante da conjunçom de um povo e de umha terra situados no cruzamento da Céltia e a România.
     Depositária da tumba apostólica, toda a vida histórica da Galiza está impregnada de espiritualidade cristá, e a Igreja Católica foi a sucessora do Império Romano na ordenaçom da vida dos galegos. Toda modernizaçom desta vida deve respeitar essa tradiçom.
     Do latim civil e eclesiástico agoma o romanço galego. É o carimbo da nossa identidade, e seria renunciar a ser nós mesmos, esquecer essa forma do ibero-românico ocidental peninsular.
     O galeguismo fundado historicamente no catolicismo e no europeís mo, aberto a toda interpretaçom liberal que nom rompa com a tradiçom, e a forma consciente de viver a galeguidade, quer dizer, a autenticidade galega.
     Como deputado no Parlamento espanhol, Otero Pedrayo propugnaba umha organizaçom federal do Estado, apta para favorecer a cooperaçom com Portugal consoante a fórmulas livremente pactadas.
     E isto e todo quanto num urgente resumo julgo pertinente' expor a propósito da ideia da Galiza no pensamento de Ramón Otero Pedrayo.

 

 

 


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