Comemoraçom do Estatuto Galego de 1936

 

(Texto íntegro)

 

m2carvalhocaleroestatutogalego.html
     Os dados concretos, ponderáveis e mensuráveis, computáveis e numeráveis —horários, calendários, percentagens, estatísticas—, todo isso está nos livros, ou deve e pode estar, e mal poderia eu fazer hoje aqui, nos minutos que me som concedidos, rectificaçons relevantes ao meritório labor dos historiadores que tenhem reproduzido documentos ou sistematizado notícias sobre o processo estatutário da época republicana, dos tempos da Segunda República, aquel novo e falido intento de estabelecer em Espanha um regime de convivência democrática, que se desenvolve entre 1931 e 1936. Umha vulgarizaçom escolar dos acontecimentos que tal processo entranha, nom é tampouco tarefa que me resulte ajeitada, pois eu nom som professor de História nem tenho feito indagaçons gerais sobre o tema. Entendo que estou aqui para participar na comemoraçom que celebramos em qualidade de testemunha, e que o meu depoimento, se ha revestir algum interesse, deve manter-se dentro dos limites da informaçom sobre os feitos que presenciei, renunciando a manifestar-me mais que como um modesto espectador de acontecimentos que pode dizer algo dos mesmos por ciência própria, como assistente no palco ou na plateia —ou no galinheiro, se queredes— no teatro onde se realizava a representaçom. Tenho participado nalguns combates, e sei bem quam parcial e estreita é a visom das batalhas de Waterloo ou Borodino que podem oferecer Fabricio Valserra ou Pedro Besukhoff, os quais desde posiçons individuais assistirom a elas ou nelas tomarom parte. Mas as testemunhas percebemos um ambiente e conhecemos um sentido da história que muitas vezes escapa à percepçom dos historiadores, obrigados a descrever a carreira da cavalgada histórica sobre a base exclusiva das pegadas dos cascos das quatropeias que galoparom ou trotarom sobre um solo que conserva só calcos deformados ou esvaídos do golpe poderoso do tropel fugidiço.
     No processo estatutário dos tempos da República confluem duas correntes de pensamento político que tencionavam atingir umha concordância que lhes permitisse realizar-se parcialmente, mas efectivamente, leccionadas pola experiência ou ilustradas pula intuiçom que lhes sugeria a impossibilidade de lograr umha plasmaçom perdurável se nom se concertavam limitando-se, se nom se completavam transigindo.
     Eram duas correntes de importante tradiçom histórica, mas nunca plenamente coalhadas, ou frustradas nos começos da sua realizaçom.
     Umha era a expressom republicana do pensamento democrático e liberal, que se considerava incompatível coa situaçom política dominante a partir do deterioro do regime instaurado polo Marquês de Estella em 1923. Outra era a representada mais genuinamente naquel momento polo nacionalismo galego, cuja base cultural se remonta à Ilustraçom, e cuja concreçom sociopolítica —sempre precária— reveste no século XIX as formas de provincialismo e regionalismo.
     Em realidade, eram correntes paralelas e independentes. Ainda que, em princípio, a maior parte das forças republicanas aceitavam a fórmula federal —que segundo Castelar fora queimada em Cartagena, mas que conservava o prestígio teórico que lhe dera a austeridade política de Pi i Margall—, ese federalismo era centralista, se se me permite a paradoxa, pois contemplava-se como um método de recuperaçom —ou fundaçom— das liberdades essenciais de Galiza. Os nacionalistas pleiteavam co Estado, situavam-se numha postura dialéctica exterior ao Estado. Os federais situavam-se numha posiçom dialéctica interior ao Estado, cuja forma queriam melhorar. O nacionalismo nom era umha forma de republicanismo. O federalismo nom era umha forma de nacionalismo. A verdade é que, apesar de algumhas individualidades nas que parecia realizar-se a síntese, uns e outros olhavam-se como estranhos, cando nom como adversários. Encarna esta situaçom nas relaçons tensas que existirom sempre entre as mais sobranceiras figuras de cadanseu grupo no momento que estamos a considerar: Afonso Rodríguez Castelao e Santiago Casares Quiroga.
     Mas estes republicanos vagamente federais e estes galeguistas vagamente republicanos forom arrastados a um entendimento mais ou menos profundo pola força das circunstâncias. E assi, tendo os segundos colaborado na destruiçom da Monarquia, os primeiros achavam-se obrigados a repudiar o centralismo, que se ligava ao poder da Coroa, e a reactivar o federalismo de tradiçom pimargalliana. De jeito que uns e outros pareciamos luitar conjuntamente pola República Federal.
     Assi, cando, advido o novo regime, Tobio e mais eu nos pugemos a trabalhar na biblioteca da Faculdade de Direito —neste mesmo, edifício— na redacçom de um anteprojecto de Estatuto de Galiza, comezamo-lo com esta declaraçom: «Galiza é um Estado livre dentro da República Federal Espanhola». Dávamos, pois, por descontado, nom já que a República ia ser federal, mas que a República era federal, e que a ordenaçom constitucional encomendada a umhas Cortes ainda nom reunidas, nom ia alterar esse feito, senom articular, regulamentar esse feito, que, como a forma republicana de governo, era um postulado estabelecido pola revoluçom pacífica —pacífica, mas revoluçom— o 14 de abril triunfante.
     Mas a República nom foi federal, e o nosso Estatuto, que, como alguns diziam, impunha ao Estado umha forma que só o Estado podia dar-se, resultou inviável, e foi preciso ajeitar-se aos limites do Estado que os constituintes estabelecerom.
     Por iniciativa do Ajuntamento de Santiago, reunirom-se neste Paraninfo os representantes dos Concelhos galegos que tiverom a bem concorrer, o dia 3 de julho de 1932 para pôr em marcha o parcimonioso e escrupuloso procedimento que a Constituiçom exigia para que um território se organizasse como regiom autónoma. Eu, licenciado em Direito desde o ano anterior, na primeira promoçom de juristas da República, sentava-me num desses bancos, e estou vendo ao Secretário da Comissom Organizadora, meu antigo professor de Direito Civil dom Henrique Rajoi Leloup dirigir-se ao Alcaide da minha cidade natal, dom Jaime Quintanhilha Martínez, para in vitá-lo a presidir a mesa, «traiçom agarimosa», como a calificou este, porque nom precedera, ao parecer, consulta co interessado— no seu discurso de graças à Assembleia.
     Cando a Comissom de técnicos designada publica, para conhecimento da opiniom, o texto que redigira, eu apresentei umha emenda ao artigo 8.°, por estimar que tal como saíra das mans dos seus redactores, estabelecia
«para a designaçom da Junta de Galiza umha ineficaz combinaçom de presidencialismo e parlamentarismo, tecnicamente rejeitável. A minha emenda, que coincidia, ao parecer, com outra apresentada polo Grupo Radical Socialista de Vigo, foi aceitada, e aquela designaçom ficou ordenada conforme os cánones de um sistema parlamentário puro.
     Este Anteprojecto foi apresentado à Assembleia que se celebrou no Paraninfo ou Salom de Actos da Faculdade de Medicina os dias 17, 18 e 19 de decembro, à que eu assistim com umha credencial de técnico. Esta Assembleia foi especialmente memorável polos debates, tumultos e retiradas a que derom motivo dous conflitivos pontos do texto preparado. Eram o ponto relativo à capitalidade e o relativo à língua oficial. A Ponência propunha que a capital de Galiza fosse fixada pola primeira Assembleia estatutária que no seu dia se reunisse. Mas dom Manuel Iglésias Corral, alcaide da Corunha, membro entom do Partido Republicano Galego, advogou pola tese de que nom havia lugar a deliberar sobre esse estremo, pois Galiza contava já com umha capital, que era a cidade cujo Ajuntamento o orador presidia.
     Na outra questom mencionada, a da oficialidade lingüística o momento crucial atingiu-se num brillante duelo dialéctico entre dom Santiago Montero Díaz e dom Alexandre Bóveda Iglésias. Montero, daquela Bibliotecário da Universidade, era membro da Ponência, e em nome da mesma contestara breve e repetidamente a alguns assembleístas sobre pontos de menor interesse. Todas estas intervençons as realizava em língua galega, até o ponto de que um assembleísta que nom o conhecia, se dirigiu a el designando-o como representante do Partido Galeguista. Todos os membros deste Partido que, como deputados, técnicos ou pessoeiros dos Concelhos, estávamos presentes naquel acto, nos dirigíamos sistematicamente aos nossos colegas, quer dizer, aos assembleístas, na língua do país, e isto explica a confusom do interlocutor de Montero. Mas havia outras muitas pessoas que empregavam naquela ocasiom a mesma língua que nós. É o caso do Presidente, don Bibiano Fernández-Osório e Tafall; o Alcaide de Santiago, dom Raimundo Lôpez Pol; o deputado dom António Villar Ponte, o meu chorado companheiro de carreira dom Víctor Martínez Rodríguez, todos eles afiliados ao Partido Republicano Galego; ou dom Francisco Rei Barral, radial socialista. O galego que Montero empregava era vacilante e pobre, mas isso mesmo parecia sugerir um neofalante entusiasta que, apesar das deficiências da sua linguagem, se obstinava por motivos ideológicos em defrontar as dificuldades. Assi, causou surpresa que, cando se tocou o ponto relativo à cooficialidade das duas línguas, galego e castelhano, pronunciasse um longo e magnífico discurso em excelente castelhano propugnando a exclusividade desta língua como oficial em Galiza.
     O discurso foi mui aplaudido. Eu achava-me a pouca distância do estrado onde se assentava a mesa da Presidência, e nom longe daquela da Ponência. Mui perto de mim estava Álvaro de Ias Casas, dissidente do Partido Galeguista que estremava a linha anticastelhanista e que, como outros dos presentes, protestava ruidosamente qualquer manifestaçom que se reputasse antinacionalista. Creio lembrar que a suave elocuçom do meu paisano Montero e o comedimento formal da sua intervençom conseguiram que fosse escuitado sem tumultos. Dom Manuel Lugris Freire, que era membro da Ponência, pediu a palavra; mas convenceu-se-lhe de que deixasse falar a Bóveda, quem pronunciou um grande discurso defendendo o ditame. Emocionou e convenceu à Assembleia, que ratificou o critério da Ponência. Este discurso, e o que mais tarde pronunciou sobre o título III do projecto, relativo à questom económica, figerom de Bóveda a figura estelar da reuniom. Montero Díaz renunciou ali mesmo à sua condiçom de membro da Ponência e retirou-se espectacularmente do salom, manifestando que nom podia continuar colaborando na redacçom de um Estatuto que nom aceitava o castelhano como única língua oficial de Galiza.
     Daquela Assembleia saiu o projecto de Estatuto que havia ser plebiscitado, projecto aprovado maioritariamente. Mas, como é sabido, as reticências do Governo para ditar o Decreto indispensável, a reacçom perante aquel das forças políticas conservadoras e, afinal, a dissoluçom das Constituintes e o triunfo das direitas nas eleiçons, obrigarom a adiar o projecto. Só despois do triunfo da Frente Popular nos comícios de fevereiro de 1936, foi possível ressuscitar a ideia do plebiscito. Numha reuniom de Deputados e Compromissários que se celebrou no palácio das Cortes o 8 de maio, e na que eu —o mais novo dos presentes— actuei de secretário, acordou-se reactivar o processo estatutário. Eu figuro tamém na listra dos concorrentes a umha reuniom celebrada nesta cidade o 17 do mesmo mês, e na que se decidiu que o Comité Central da Autonomia se pugesse de acordo co Governo para fixar a data do plebiscito conforme ao Decreto de 27 de maio de 1933.
     Enfim, o 28 de junho de 1936 realizou-se o plebiscito. As cifras oficiais suponhem umha concorrência às urnas do 75 por cento dos eleitores censados, e um número de votos afirmativos quase igual ao de votantes: 1.000.963 e 993.351 respectivamente. Só 6.161 eleitores aparecen votando nom; e 1.451, em branco.
     Se comparamos estes dados cos relativos à plebiscitaçom do Estatuto vigente, ficaremos estupefactos, e induzidos a crer que a opiniom autonomista era muito mais pujante em 1936 que em 1980. No entanto, tal conclusom seria errónea.
     Eu nom fum observador directo do desenvolvimento do plebiscito de 1936. Poucos dias antes do assinalado para a votaçom tivem que sair para Madrid a fim de participar numhas provas que, de superá-las, me converteriam em professor oficial. Ainda que superei aquelas provas, nom pudem regressar ao meu país até cinco anos mais tarde, e em quanto ao meu ingresso efectivo no professorado oficial, nom se verificou até trinta anos depois. Achava-me em Madrid, polo tanto, cando se plebiscitou o Estatuto, e cando os comissionados galegos o entregarom ou apresentarom às Cortes e ao Presidente da República. Mas é evidente que as cifras oficiais nom forom fiscalizadas pola oposiçom, que estava mui ocupada nos seus cadros superiores em preparar os acontecimentos que se produzirom a partir do 17 de julho, e que nom via com bons olhos o Estatuto. Este, em meio da hostilidade ou a desconfiança das forças da direita, agás as que se consideravam «direita galeguista», contava esta vez, a diferença do que ocorria em 1932, coa aquiescência dos cadros de mando de todos os partidos inclusos na Frente Popular. Sem apoderados nem interventores adversos, ninguém impugnou as actas que chegarom ao Comité Central da Autonomia de Galiza, que o 5 de julho de 1936 certificou a aprovaçom do Estatuto por mais das duas terceiras partes de eleitores censados. Assi que, oficialmente, a presença de eleitores galegos favoráveis no plebiscito de 1936 foi aproximadamente a mesma de abstençons —em canto a percentagens— do plebiscito de 1980, que autorizou o Estatuto vigente. E de notar que nas eleiçons a deputados a Cortes de fevereiro de 1936, o número de votantes galegos nom sobrepassara o 69 por cem, mentres que as actas do plebiscito de junho apressentam-nos um 75 por cento.
     O Partido Galeguista, que dinamizara todo o processo, empregou os afiliados disponíveis na propaganda. Eu participei nela até o dia em que abandonei Galiza para trasladar-me a Madrid. De jeito que nom intervinhem na votaçom do plebiscito.
     Esta é a testemunha sumária que podo aportar à comemoraçom do cinqüentenário. É para mim umha honra que haja quem me considere digno de ocupar para esses efectos esta tribuna, tanto mais canto que este ano celebro pessoalmente o sexagéssimo aniversário do meu ingresso nesta Universidade, da que fum aluno e da que ainda me considero professor.


[Discurso no Paraninfo da Universidade de Santiago de Compostela o 27 de Junho de 1986.]

 

 

 


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