Discurso político e discurso poético na literatura galega moderna

 

(Texto íntegro)

 

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     Queridos amigos, companheiros de docência e aprendizado, tenho que começar expressando, naturalmente, o meu agradecimento polas carinhosas palavras que acabam de ser pronunciadas agora no meu louvor, e tamém poIa adesom que a essas palavras se tem manifestado com o aplauso dos presentes. E vou renunciar a qualquer insistência no meu imérito, como dizia Calixto na Celestina, a propósito das questons postas, e nom quero tampouco fazer referência algumha à modéstia do meu trabalho que, mesmo condicionado nom só polas limitaçons pessoais mas polas limitaçons com que um estudante do meu tempo se movia quando a minha formaçom se iniciou, grava a minha obra, que somente o afecto com que vós a enxergades pode magnificar, convertendo em grande o pequeno como conseqüência da actividade da vara mágica do carinho. Durante os dias anteriores, diversas personalidades da cultura galega, distintos professores e estudantes da nossa cultura, tenhem abordado temas pontuais relativos à personalidade de Celso Emílio Ferreiro, e parece oportuno que a minha intervençom clausurante de hoje se limite a traçar um marco dentro do qual, com a focagem que as minhas possibilidades me permite, se poda situar esta figura que deve ser objecto de futuros estudos postos sobre bases em parte mui distintas daquelas que servirom até agora de suporte à ilustraçom, à difusom, ao comentário deste escritor que, como sabedes, numha determinada época desfrutou de umha popularidade dificilmente comparável à que atingiu nengum outro dos escritores, poetas ou prosistas, que se moviam no seu tempo dentro do círculo da literatura galega.
     Hai, evidentemente, muitas capelas na casa do Senhor, segundo o sagrado texto, e, portanto, longe de nós supor que somente umha férrea e monolítica disciplina que nos consagre como com votos canónicos ao cultivo de umha determinada temática, pode favorecer a criaçom literária. Polo contrário, sabemos hoje e souberom-no sempre aqueles homes que com a devida preparaçom e a devida liberdade de espírito focarom estas questons, que o discurso poético, entendendo por tal nom só aquele que tem o verso como meio de expressom mas todo discurso que utiliza a palavra como instrumento estético, se caracteriza fundamentalmente pola literariedade, se caracteriza fundamentalmente polo êxito que obtenha ou pola tentativa que ensaie para atingir um plano de arte, e que a temática é neutra, a temática é indiferente para facilitar umha consagraçom, para facilitar um êxito, no terreno da poesia, no terreno da literatura, no terreno da arte que tem como material a palavra. Neste sentido hoje estamos longe daquelas situaçons de conveniência táctica que subordinavam a qualidade poética ao volume de voz com que se defendia umha tese política. Desde as poesias de calendário, décimas ou redondilhas que temos lido tantas vezes em homenagem do Sagrado Coraçom de Jesus até aos mais acesos poemas de reivindicaçom social, temos um acervo, um conjunto de textos que, se umhas vezes atingem verdadeiros cumes de inspiraçom real dentro da arte da palavra, noutras muitas ocasions se justificam somente de um ponto de vista sociológico pola sua eficácia propagandística. E a realidade é que o escritor, o poeta que hoje dá motivo a este Simpósio, até tempos mui recentes apenas foi considerado mais que como um esforçado trabalhador da oposiçom política dos tempos da ditadura franquista. Tempo é de que, ainda que os politólogos e os sociólogos e os historiadores dos movimentos contra a repressom política continuem os seus trabalhos estudando as relaçons entre vida literária e vida política e social, que som tam importantes e tan interessantes; tempo é de que ainda que se continue fazendo este trabalho por aqueles especialistas, os especialistas em artes literárias, os filólogos no sentido amplo projectem de umha vez a sua atençom seriamente sobre as distintas facetas do trabalho poético, mesmo do trabalho prosístico deste escritor, a fim de situá-lo de umha vez dentro da realidade da nossa literatura moderna. O tempo é propício a esta situaçom. Tenhem mudado notavelmente as circunstâncias que rodearom o poeta no tempo em que se publicou Longa noite de pedra, no tempo em que se publicou Viaxe ao país dos ananos. Nom significa isto que a totalidade, nem sequer talvez o mais essencial do mundo que o poeta e outras tantas pessoas no mundo literário e no mundo político contemporâneas dele tratavam de substituir, tenha efectivamente dado o passo a umha situaçom inteiramente oposta, inteiramente distinta daquela que se combatia. Em primeiro termo nunca, como dizia Curros, se realiam programas liberais. Com esta frase Curros aludia, nom precisamente aos programas políticos concretos que no século XIX e princípios do XX alimentava o partido liberal ou os partidos republicanos, mas ao feito de que nunca se realiza plenamente o ideal de justiça de algúns idealistas, mentres as duras realidades da vida nom os pervertem, defendem com teimosia e com fervor.
     A realidade é que o ideal, precisamente por ser ideal, vive num mundo estelar que nom tem umha possibilidade de plasmar-se literalmente no mundo real. Temos que renunciar, portanto, na vida pública como na vida privada, a que as cousas marchem inteiramente polos roteiros que nós desejaríamos. Mas, ainda assi, ainda concedendo que o mundo das realizaçons é um mundo imperfeito e que nunca pode coincidir plenamente com o mundo ideal, que é umha orientaçom, como umha estrela, como umha estrela polar à qual no importa que se poda arribar realmente, de todas as formas, ainda com esta benevola interpretaçom da evoluçom do mundo contemporâneo, do mundo europeo, do mundo espanhol, do mundo galego, ainda assi temos que admitir que som muitíssimas as lacras herdadas polos tempos presentes daqueles tempos já felizmente passado em que Celso Emílio Ferreiro atingiu umha extraordinaria popularidade como poeta civil. Mas, se estes feitos e a possibilidade de calibrá-los em relaçom com os motivos polos quais o poeta seguiu ou nom seguiu um determinado caminho na sua obra literária, se é certo que todas estas particularidades reais podem e devem ser objecto de estudo continuado, tamém é preciso, insisto, em que por fim reconheçamos que, à parte da personalidade política e biográfica individual de Celso Emílio, quanto às suas relaçons privadas com os seres que o rodearom e a sua actividade pública como poeta que pom em grande parte o seu verso ao serviço de um ideal, hai nele um fazedor de versos, um criador de literatura que cultiva o, castelhano e o galego, o verso a prosa, e a quem hai, por fim, que defrontar sem prejuízos para determinar qual é exactamente a sua postura dentro da literatura galega e se som afeiçoados os que se ocupem nesta matéria das valorizaçons hierárquicas, tamém (isto é secundário do ponto de vista da crítica literária que deve ser fundamentalmente analítica), para ver em relaçom com os seus companheiros de idade, em relaçom com os seus mestres ou em relaçom com os seus, possíveis discípulos em que medida está por riba ou por baixo dos que constituem com ele o conjunto dessa espécie de escada de Jacob que é o censo dos, poetas galegos do seu tempo, que como Jacob tenhem que suster a loita com o anjo, anjo da poesia, com esse anjo que favorece e que rejeita ao mesmo tempo ao home quando este quer, atingir o, céu da poesia.
     Mas nom é o meu propósito iniciar este lavor, até agora apenas podemos dizer que anunciado por alguns precursores, de examinar por fim de um ponto de vista puramente literário, puramente poético, até onde o poético e o literario podem ser puros, qual é a significaçom concreta, qual é a avaliaçom justa da obra de Celso Emílio Ferreiro, porque já dixem que mais bem, dado o carácter de fecho deste Simpósio que tem a minha intervençom, o que quigem, o que quero fazer, é traçar umha moldura, traçar um marco, modesto Por suposto, um marco de carpinteiro, nom um marco de ebanista, que poda ajudar a compreender este fenómeno da poesia social, da poesia cívica, como preferia o próprio Celso Emílio designar a sua poesia, dentro da realidade Poética do século XX, e ver até que ponto está inserto numha tradiom ou se, polo contrário, rompe umha tradiçom e inova umha maneira de conceber a poesia galega. Por isso fala o rótulo desta modesta palestra de discurso político e discurso poético na literatura galega moderna». O discurso político é, por suposto, o conjunto de razoamentos, e tamém o conjunto de actuaçons que plasmam esses razoamentos e essas doutrinas na realidade quanto à transformaçom da sociedade. E o discurso poético e, por suposto, o conjunto de actividades literárias nas quais se incluem tamén, claro está, aquelas de tipo litúrgico, podemos dizer, que conspiram à criaçom: de um acervo, de um tesouro de trabalhos que tenham como finalidade a beleza e como silhares na construçom estética as palavras, as palavras que, com diferença às notas musicais, por exemplo, com diferença às pinceladas do artista plástico, estám perigosamente dobradas de umha carga conceptual que subjaz ou sobrejaz à sua carga fonética. De aqui que a poesia, entendendo esta expressom em sentido amplo e deixando que toda a obra literária caia dentro deste conceito, de aqui que as palavras tenham duas vertentes, podeis ser efectivamente, silhares, como dizia antes, do edifício puramente artístico mas dificilmente se desprendem das notas, umhas vezes realmente essencial, outras vezes simplesmente conotativas (das co-notas se queredes), que apon tamos cara umha ideologia, porque toda palavra que pronunciamos, em certo jeito, em maior ou menor medida, define o nosso próprio pensamento. A simples escolha das palavras, o feito de que tenhamos preferência por umhao e deixemos de lado outras, significa umha atitude de escolma, umha atitude de selecçom entre possibilidades ideológicas que significam umha concepçom do mundo, umha mundivisom que nos define, que nos acouta, que nos caracteriza, que nos compromete.
     Esta arte palavra, pois, é ambígua, e quando se trata da criaçom poética, da criaçom literária, é evidente que temos que considerar como essencial o feito estético. A arte é a criaçom da beleza, mas se esta beleza se cria me diante a palavra, entom temos o que chamamos poesia como arte, incluída dentro das tradicionais belas artes. No entanto, apreensom do mundo, umha apreensom intencional do mundo, toda palavra, a mais insignificante, umha vez escolhida, umha vez lançada em comunhom com as suas companheiras, os demais vocábulos, e articulada na frase que é um colectivo que actua conjuntamente, dá umha nota de utilidade ao discurso, porque o conceito é um instrumento para dominar o mundo. O que ocorre é que esta ambigüidade da palavra pode determinar que o essencial na criaçom literária, o essencial no conjunto de proposiçons, de oraçons que formam o discurso lingüístico esteja votado principalmente cara a criaçom de beleza ou esteja votado principalmente cara a expressom de um pensamento que tem como objecto dominar umha realidade. Em puridade, as demais artes, as demais belas artes, tanto as ópticas como as plásticas, estám, em menor medida, desde logo, que a arte literária, dentro desta dualidade, dentro destas duas possibilidades, dentro desta bifurcaçom de caminhos, e assi falamos de belas artes e de artes úteis.
     Quando o poeta se inclina especialmente do lado da criaçom estética, por exemplo no caso de um Mallarmé, temos a poesia, temos a literatura quase desumanizada, quase desprovida de sentido utilitário. É um tipo de poesia que estivo realmente de moda em distintas épocas da nossa cultura. Quando a palavra se converte numha observadora de si mesma e tem a coquetaria de contemplar-se no espelho e enfeitar-se constantemente (os inimigos desta orientaçom podem indicar que como umha cortesá no seu boudoir), entom temos um tipo de poesia preciosista, poesia barroca, poesia alexandrina, poesia de Góngora que pode alcançar umha perfeiçom formal extraordinaria. Mais hai outras épocas, hai outros momentos, hai outras circunstâncias da vida em que o que predomina é, polo contrário, a expressom do pensamento, de umha ideologia que está encaminhada, naturalmente, a produzir umha modificaçom no mundo circundante. Entom temos a poesia, temos a literatura como arte útil. E claro esta que podemos cair em extremos sumamente agudos, podemos chegar a umha poesia que nom signifique nada porque os conceitos que as palavras exprimem estám convertidos em servos da sonoridade das palavras ou da evocaçom poética e simbólica que as palavras podem incluir como realidade operante, e tamém pode ocorrer que a palavra, como possibilidade de criaçom estética, se subordine inteiramente à didáctica, se subordine inteiramente à intençom. Quando o artista é um poeta, esta dualidade dá origem a dous tipos de poesia. Um velho tratado latino intitulava-se Vergilius orator an poeta. Discutia-se se Virgilio era realmente um poeta ou era um orador, ou era um retórico. Nom padecemos hoje, quando o mundo tem envelhecido tanto e tanto temos aprendido e tanto temos esquecido, nom adoecemos hoje da pueril, da infantil, da insolente pretensom de traçar limites estritos entre as cousas, de distinguir nediamente, com absoluta nitidez, o que poesia e o que é retórica. Realmente toda poesia necessita um apoio, necesita um andaime de construçom de alvanaria que é retórica e, por outra banda, umha retórica totalmente baleira de umha intençom poética, que se desentenda inteiramente da beleza artística, converte-se numha pura forma de discurso lingüístico utilitário. Os poetas que chegam, como no caso do criacionismo, a fazer um poema como a natureza fai umha árvore, a criar objectos que nom tenham umha referência à realidade, à parte de pretenderem algo utópico, estám afastando-se extraordinariamente desta possibilidade ideologica conceptual da poesia. O letrismo, por exemplo, ou outras escolas que estiverom em voga nom hai muitos anos, convertem a arte num puro jogo mecânico sem referentes que nos permitam assimilá-la de umha forma colectiva, e talvez estám realizando um acto de perversom da palavra, quiçá estám usando a palavra de umha maneira demoníana, destruindo-a em vez de utilizá-la para construir. Mas, por outra parte, a possibilidade de umha arte poética, de urnha criaçom poética que se desentenda inteiramente da estética, que diga desprezar a estética, que diga desprezar a beleza e que queira simplesmente conseguir que se ganhe umha folga declarada ou que se experimente por parte dos cidadaos um movimento de reacçom frente a umha determinada lei ou um determinado regulamento ou umha determinada medida adoptada por umha autoridade municipal, supom tamém, claro está, umha atitude frente à palavra que se sai dos limites da poesia. Em realidade estamos propugnando um equilíbrio dificilmente conseguível, mas nestas dificuldades radica o mérito do escritor e cabe evidentemente, se nom somos fanáticos, se nom pretendemos de umha maneira estritamente maniqueia que a arte deve canalizar-se por umhas cales concretas e que fora dessa cale nom hai salvaçom para o artista nem para o home, se nom aceitamos esta doutrina, temos que aceitar nom já a poesia pura, nom já poesia útil, estritamente útil, mas umha poesia mista em que como todo o humano as sombras e as luzes, o espírito de lúdica criaçom estética e o espírito de expansom sentimental e mesmo de esforço para contribuir numha determinada direcçom a suprir deficiências do mundo actual, se combinem em maior ou menor medida.
   Ora bem, o caso da literatura, o caso da poesia galega, o caso do verso e a prosa do nosso país, sobretodo se consideramos o nosso país e na nossa prosa e a nossa poesia dentro dos limites assinalados a quo polo Renascimento do século XIX, se consideramos assi a nossa poesia, a nossa literatura, diremos que nela o sentido que podemos chamar utilitário, o discurso político, numha palavra, está presente desde o primeiro momento e ainda naqueles instantes em que parece eclipsar-se este sentido político, este discurso político, se queremos expressar-nos com mais moderaçom, com mais prudência; ainda nestes momentos esse discurso político subjaz à criaçom literária e neste sentido, aqueles estudiosos que procedentes do campo da politologia ou da sociologia tenhem trabalhado, tenhem comentado ou tenhem, simplesmente, fantaseado sobre a obra de Celso Emílio Ferreiro, som até agora, ou até hai mui pouco, quase os monopolizadores de umha realidade que tem muitas facetas; e eles, pola força naturalmente do seu método e tamém pola força das circunstâncias, porque a crítica literária tamém se incorporou à luita pola liberdade, à loita pola modificaçom das circunstâncias políticas que regiam naquele tempo, estes homes, estes sociólogos, estes politólogos tenhem sido inclinados, por umha dialéctica natural dentro do seu propósito e das realidades que viviam, a fazer de Celso Emílio Ferreiro um inovador neste aspecto concreto, no aspecto de que incorporou ao discurso poético o discurso político, com umha força, com umha insistência, com um êxito que nom se dera na poesia galega tradicional, e, realmente, tinham em parte razom e em parte estavam enganados, porque nom hai que crer, de nengunha maneira, que dentro da poesia galega, dentro da literatura galega, Celso Emílio Ferreiro é o que introduz o discurso político. Nem sequer se pode admitir, sem discussom, que nom tivesse precedentes enormemente brilhantes e que, em grande parte, determinarom a sua própria obra, porque o discurso político, já o indiquei hai um momento, de umha forma ou de outra —entendendo por discurso político o que expliquei ao princípio desta palestra—, está presente a todo o longo, da literatura galega, pois o feito de escrever em galego, o feito de compor versos ou prosas em galego num país em que o idioma estava postergado, em que o idioma estava decaído, em que o idioma estava oficialmente negado, ou num país como o actual em que, se oficialmente nom está negado o no idioma, está, polo menos, extraordinariamente coutado pola competência idioma oficial do Estado, o feito de escolher a atitude de poeta galego prosista galego, o feito de escrever em galego, o que resulta enormemente cómodo e moitas vezes resultou e pode resultar no presente e, se calhar, o futuro, esse feito supom umha atitude que entra plenamente dento do discurso político. De maneira que o discurso político está convivendo com o discurso poético desde os começos da literatura galega moderna. Alguém dos presentes ao melhor pensa que podíamos levar mais alá ainda esta ideia e suster que desde as cantigas de escárnio o discurso político está presente na literatura galega, na literatura galega anterior à desnormalizaçom do idioma galego, ocorrida a fins a Idade Média, a princípios do Renacismento. E nom hai inconveniente em aceitar esta doutrina, ainda que ocorre que nom devemos esquecer o carácter eminentemente cortesao da poesia trovadoresca, que se manifesta nom somente na cantiga de amor e na cantiga de amigo mas tamém na cantiga satírica. A cantiga de escárnio é umha cantiga comprometida, é unha cantiga, de tipo político muitas vezes, mas é evidente que é cortesá.
     Portanto, ainda que a genialidade de este ou de aquele poeta poda permitir-se o luxo de marcar horizontes que ainda nom estám totalmente desvelados, é, em conjunto, umha obra de submissom cortesá. Contodo, ademais, nós somos perfeitamente livres de acoutar os espaços que queremos estudar, e aqui decidimos considerar a literatura galega moderna, e esta nasce precisamente em um compromisso com a língua e, neste sentido, é o discurso político o prevalecente na maior parte dos escritores que, com fortuna ou sem fortuna do ponto de vista poético, escrevem desde princípios do século XIX.
     Quando começa a Renascença das Letras Galegas? Quando começa o Ressurgimento da nossa literatura? Quando começa, enfim, esse surgimento com umha vaga ideia de que tem uns precedentes medievais que é, se quadra, a caracterizaçom mais exacta da história desse intre do nosso quefazer literário, já que os primeiros escritores do XIX galego ignoravam totalmente ou conheciam vagamente a existência de umha literatura galega medieval? Se examinamos os escritores do século XIX, podemos perguntar-nos se aqueles escritores populares que escreviam prosas e versos encaminhados a suscitar o ódio dos labregos contra os invasores franceses durante a etapa que se vai estendendo de 1808 a 1814, e aqueloutros que estavam inteiramente mergulhados na luita entre constitucionais e absolutistas depois da terminaçom da guerra da Independência
que foi, em grande parte, umha guerra civil, podemos perguntar-nos se estes escritores nom iniciam já, em realidade, a literatura galega moderna. Mas é igual que consideremos que com estes começa esse ciclo que chamamos Renascimento ou que começa mais adiante, quando ao redor de 1840 ou 1845 figuras como Alberto Camino, Francisco Anhom, Vicente Turnes se manifestam de um jeito ou de outro como Precursores de Rosalia. Em todo o caso esta literatura, nos começos, é umha literatura em que o discurso político tem umha enorme importância, e tem umha enorme importância porque o idioma se utiliza precisamente com este fim, com este fim prático de conseguir que haja umha palingenesia, que haja umha revoluçom espiritual que facilite a revoluçom de tipo material, de tipo social que pretende, já seja para expulsar os franceses do território galego, já seja para fazer triunfar umha ordem constitucional frente à ordem da monarquia absolutista, já seja , um pouco depois, para conseguir que a fórmula liberal, finalmente, ainda que precariamente, triunfante, se incline do lado do progressismo e nom do lado da reacçom moderada. Se consideramos a literatura galega da época da Guerra da Independência, veremos que um Fenández Neira, por exemplo, no seu Diálogo em que dous lavradores que intervenhem na luita contra os franceses, se contam mutuamente a sua história militar, ou Boado Sánchez quando mais adiante se ergue contra os abusos chamados direitos de estola e pé de altar, ou qualquer dos autores anónimos dos interessantes Diálogos na Alameda ou Diálogos na Quintana que se publicavam entre nós e que som alegados, ordinariamente em favor do regime liberal frente ao regime absolutista, ou do progressismo frente ao moderantismo, veremos que todas estas personalidades, umhas anónimas, outras perfeitamente situadas dentro da história biográfica dos nossos escritores, escrevem em galego com umha finalidade concreta, com umha finalidade política. Mas quando o nosso Renascimento se manifesta na sua plenitude passa o mesmo. O que ocorre é que se o escritor em questom é um grande escritor, se o poeta que versifica é um grande poeta, a sua emoçom política, o seu ideário social expressa-se com umha altura lhe dá valor estético.
     Qual é o mais antigo entre os grandes livros do nosso Renascimento? Quando por primeira vez se escreve umha obra que se pode exportar, que se pode considerar como digna de ser lida fora das nossas fronteiras, que nom é somente um regulamento doméstico, que nom é somente um alegado para resolver, problemas internos mas que atinge universalidade pola sua brilhantez literária, pola profundidade ou pola emoçom ou pola elevaçom dos seus conceitos artísticos que envolvem o conceito propriamente utilitário? Isto ocorre, já o sabemos no ano 1863 quando Rosalia publica os Cantares Gallegos. Toda obra literária admite muitíssimas leituras. Historicamente Cantares Gallegos é qualquer cousa menos umha colecçom de idílios. Podemos, efectivamente, lê-la como um conjunto de idílios, com um espírito neutro com que hoje podemos ler os idílios de Teócrito. Mas isso está mui longe da intençom da autora. O prólogo de Cantares Gallegos declara paladinamente para que se escreve: escreve-se com umha homenagem a umha língua aldrajada, escrevese com umha homenagem a umha pátria empobrecida e desdenhada. Em grande parte nom se escreve para os mesmos galegos mas para aqueles que nom nos conhecem e tenhem de nós um conceito depauperante, um conceito pejorativo... de maneira que o discurso político está plenamente presente em Cantares Gallegos. Rosalia, porém, na sua segunda grande obra de versos, no seu segundo grande livro lírico, Follas Novas, publicado em 1880, o annus mirabilis da literatura galega, Rosalia em Follas Novas, ainda que, efectivamente, em grande parte deste livro afunda de jeito estremecedor nos problemas que angustiam o home situado entre um nascimento e umha morte sobre quem nom sabe nada (e neste sentido Rosalia é um poeta metafísico), além desta secçom da sua obra, nom esqueçam que Rosalia continua em parte tamém a direcçom iniciada em Cantares Gallegos, e no livro de Follas Novas (como sabedes Follas Novas está dividido à maneira clássica em livros segundo a tradiçom romana), no livro intitulado As viúdas dos vivos e as viúdas dos mortos, afronta directamente o problema da emigraçom, o grande problema social da época. Neste sentido hai um discurso político evidente em Rosalia. Rosalia escreve a maior parte da sua poesia lírica para defender a sua terra e para promover umha modificaçom do mundo galego, se bem, naturalmente, Rosalia nom incorre numha tendência a um absolutismo cego que ignore o indivíduo e que de umha maneira totalitária o subsuma no espírito da colectividade. Em Rosalía nom hai nengum Leviatám que se apodere do indivíduo, e portanto Rosalia tem todas as angústias, tem todas as preocupaçons ante o problema da morte, ante o problema de Deus, ante o problema do amor que tem o home, que forma parte como um elemento indispensável e essencial da colectividade galega.
    E que diremos das outras duas grandes figuras da poesia galega do século XIX? Pondal é um escritor ao serviço da sua terra. A funçom do intelectual simbolizada polo bardo é servir o país. Hai umha tendência aristocrática na poesia de Pondal, mas o aristocrata para ele é o servidor do povo, é o servo dos servos de Deus, para dizê-lo com umha expressom eclesiástica. Assi como o Romano Pontífice se intitula servo dos servos de Deus, o aristocrata, para Pondal, Pondal mesmo, é um home que está ao serviço dos ilotas, ao serviço dos escravos, e que emprega a sua superioridade mental ou cultural ou a sua superioridade moral no serviço do seu país.
     Quanto a Curros, é um antecedente imediato de Celso Emílio Ferreiro. Nado na própria vila onde este nasceu, é sobretodo conhecido pola sua poesia reivindicativa, pola poesia de tipo social que, orientada e conformada polas ideias progressistas do seu tempo, vai produzir umha série de produtos poéticos excelentes que nom excluem tampouco, como no próprio caso de Celso Emílio ocorre, a poesia de outras orientaçons, de outra temática em que Curros foi tamém excelente. Curros, home de ideias religiosas de tipo deísta, Curros, home progressista na ordem das opinions a propósito do desenvolvimento da realidade social e política daquele momento, Curros é capaz de compreender a ternura das tradiçons, a beleza da lenda no caso de A Virxe do Cristal. De jeito que nom é, de nengumha maneira, como nom o é Celso Emílio Ferreiro, um poeta fanático exclusivamente votado a umha determinada temática.
     E assi continua o desenvolvimento da poesia galega, da literatura galega até aos mesmos tempos em que se inicia a transformaçom desta poesia por influxo das vanguardas literárias. Os grandes poetas herdeiros da poesia do século XIX som tamém poetas em que o discurso político tem umha grandíssima importância. Pensemos na figura mais destacada deste grupo de escritores, que é, evidentemente, Ramom Cabanilhas. Ramom Cabanilhas, se queremos projectar a sua obra sobre a pantalha das circunstâncias históricas do seu país, no seu momento, é um grande poeta social, é um poeta da época do agrarismo, é o poeta da época das Irmandades. E só nos últimos tempos, depois da Ditadura de Primo de Rivera, quando um renascimento cultural de tipo mais ou menos científico se manifesta através da instituiçons como o Seminário de Estudos Galegos, Cabanilhas, sempre atento ao serviço do seu país, incorpora-se a esta nova classe de combate por Galiza e escreve, por exemplo, as Sagas do Santo Graal, que podem, naturalmente, ser lidas como se contemplam por um indivíduo nom católico as ricas entoaçons de cor e de desenho das vidraças de umha catedral gótica, mas que, evidentemente, estám motivadas, do ponto de vista genético, pola criaçom, polo desejo da formaçom de um mito artúrico que simboliza, precisamente, o caminho de Galiza através da sua história e o seu propósito de encontrar-se a si mesma. Galaaz procura o Graal, Galaaz acha o Graal nas Sagas do Santo Graal de Cabanilhas. Mas esse Galaaz nom é senom a nossa terra que vai em procura de si mesma, e, neste sentido, todo o pré-rafaelistas que queirades, todo o influídas por Tennyson que podam estar, todo o miniaturistas, o miniadas, o artisticamente desenhadas em púrpura eclesiástica que estejam as Sagas do Santo Graal, som umha enormemente comovida e enormemente comprometida expressom de fé na nossa terra. É, como se dixéssemos, um itinerário que traça com o seu verso alexandrino e octossílabo o grande poeta de Cambados para ajudar ao Cristo que, como dizia Curros, é Galiza e que leva a sua cruz, a achar, nom o caminho do calvário onde está crucificado hai tanto tempo, mas o caminho da sua resurreiçom, o caminho de si mesmo.
     Por quê entom este triunfo explosivo de Celso Emílio Ferreiro com os seus versos a partir especialmente do que é um conjunto que leva um título tomado de Curros Henríquez, Longa noite de pedra, deixando à parte o tam controvertido e tam susceptível de discussom do ponto de vista ideológico de Viaxe ao país dos ananos? Celso Emílio Ferreiro tem umha etapa anterior de poeta de tipo neotrovadorista, de tipo hilozoísta, de poeta estetizante, e depois umha etapa, representada polos seus primeiros livros importantes, de poeta, que podemos chamar existencialista, com muita influência do existencialismo cristam. A referência a Deus, que naquela época é designado como Dios por Celso Emílio Ferreiro, em O sono sulagado é frequentíssima. Em 31 poemas que constituem o texto da primeira ediçom de O sono sulagado. Dios ou Senhor, para designar ao mesmo Dios, aparece 19 vezes: o neno preguntaba I sabe que hai Dios o vento?; namentras o bon Dios calado espreita; canle de Dios que cara o mar me leva... O silêncio de Deus, um tema fundamental do lirismo cristam, está mui presente neste livro de Celso Emílio. Mas a partir de Longa noite de pedra Celso Emílio converte-se no poeta civil mais característico, mais aplaudido, quase o único considerado naquele momento de Galiza, o qual significa que, efectivamente, tem uns meios de realizaçom poética do discurso político superiores aos dos poetas que o rodeiam. Nom diria eu que superiores aos dos poetas como Cabanilhas ou Curros que o precederom; e a sensaçom que tem algum leitor de Celso Emílio Ferreiro neste momento da sua eclosom como poeta civil de que se trata realmente de algo novo dentro da literatura galega procede, em parte, do feito de que, claro está, vivia-se entom sob umha censura estrita que somente por meios de tipo mui perifrástico —a própria poesia da época de Franco de Celso Emílio é perifrástica— permitiam a expressom de um pensamento de oposiçom à situaçom política entom vigente. Pero ademais, e sobretodo porque dentro da literatura, dentro da poesia galega, saíamos de umha etapa em que a tradiçom fora quebrada. Por primeira vez o desejo de cosmopolitismo, a tendência à pureza de método, ao especialismo, criara umha nova forma de literatura galega, representada por dous grandes poetas moços, malogrados, mortos aos 30 anos: Amado Carvalho e Manuel António. Sabemos que estes dous homes eram fervorosos nacionalistas, mas a sua poesia, afora leves pinceladas que se podem detectar sempre dentro de umha ordem para acusar a existência de outra ordem subreptícia, é umha poesia que refugava todo discurso político. Estava mal visto naquela época, do ponto de vista estético, recorrer ao tema político. E assi surge o especialismo na metáfora de tipo hilozoísta em Amado Carvalho, e a metáfora de tipo imaginista e criacionista, em geral, em Manuel António. Educamo-nos os homes da minha idade e da idade de Celso Emílio Fer
reiro, que era mui poucos anos mais novo ca mim, educamo-nos neste esteticismo de tipo apolítico que rejeitava a temática propriamente social, propriamente colectivista e que encaminhava a sua intençom à criaçom de umha arte puramente estética em que as palavras, como em Mallarmé, tinham um valor por si mesmas, ou polo menos tinham-no como expressom de conceitos de álgebra estética. A poesia é a álgebra superior das metáforas, chegou a dizer um grande ensaísta espanhol daquela época. E, neste sentido, claro está que a poesia que se fai indispensável como meio de combater literariamente a ditadura daqueles tempos e que provém de um espírito de necessário protesto, resulta algo sumamente novo para os que se educarom no hilozoísmo e no criacionismo de Amado Carvalho e Manuel António. Neste sentido é nova esta poesia, mas é nova porque a sua inovaçom vem a servir de elo, a servir de anel com relaçom à poesia galega tradicional. Esta foi sempre, pois, umha poesia que tivo em conta o discurso político e que somente numha breve etapa, a que precede imediatamente à poesia de protesto de Celso Emílio e dos seus seguidores, se apartou deste caminho.
     Isto é o que queria dizer e isto é o que dixem, com as limitaçons que me imponhem as circunstâncias pessoais, a propósito do discurso político e do discurso poético na poesia galega moderna. Umha palestra, umha modesta contribuiçom simplesmente ao desejo de emarcar Celso Emílio Ferreiro dentro das leis históricas que regem o devir da nossa literatura. Agora vós, interessados por este home e por esta obra, sem prejuízo de seguir estudando a sua figura sob ponto de vista biográfico e sob ponto de vista ideológico, tendes que realizar tamém o lavor de fixar a literariedade da sua obra, trabalho que apenas está encetado. Que este Simpósio sirva para que esse caminho de conhecimento da figura do poeta que hoje lembramos seja, em definitivo, iniciado e futuramente realizado por homes que, como a maior parte dos presentes, estám melhor preparados que os que já declinamos na nossa idade para acometer com métodos modernos, com métodos acurados, com métodos agudos, com métodos novos, com métodos precisos, com métodos exactos sine ira et studio um labor científico que deixo nas vossas maos.


[Transcriçom da conferência proferida o dia 22 de Abril de 1988 na Escola Universitária de Formaçom do Professorado de Santiago, como encerramento do Simpósio Celso Emílio, organizado pola Associaçom Galega da Língua e a Associaçom Nacional de Estudantes de Letras. (N. da R. de Agália).]

 

 

 


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