Ensaios sobre narrativa galega de após-guerra

 

(Texto íntegro)

 

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1. O PONTO DE VISTA

     Anita Loos escreveu romances nos quais o narrador é umha rapariga bem dotada de encantos físicos que administra mui economicamente, mas virgem de instruçom e de complicaçons espirituais ou intelectuais. William Faulkner ousou utilizar como narrador um idiota. No género da narrativa de forma autobiográfica ou em primeira pessoa abundam estes ensaios, alguns, como os citados, afortunadíssimos. Nom é este o único tipo de técnica possível para essa classe de relato. Assi como Shakespeare, ao pôr no palco Cleópatra e António, nom intenta fazê-los falar em grego ou latim —que eram sem dúvida os idiomas em que realmente se entendiam—, e fai agromar nas suas bocas palavras inglesas, assi hai muitos autores que traduzem o discurso pessoal dos seus narradores protagonistas ou testemunhas ao próprio discurso do autor. Em Shakespeare, Cleópatra nom só fala em inglês, mas tamém —afora alguns traços de decorativa erudiçom— discorre e organiza a sua fala conforme o código semântico anglo-isabelino do maneirismo eufuísta, e nom com sujeiçom ao helenístico ptolomeico em que a personagem histórica se criara. É umha convençom como a anterior, que quando se trata de figuras alongadas no tempo e no espaço procura facilitar-nos a comunicaçom com a pessoa do relato, e sempre aforra ao autor um esforço de caracterizaçom e reproducom arqueológica e fotográfica que poucas vezes rende satisfatórios frutos. Sacrifica-se, pois, a fidelidade material —amiúde inatingível— a respeito da realidade suposta, para lograr umha maior agilidade e profundidade —com o manejo da umha linguagem perfeitamente dominada polo autor— na mensagem essencial que ao leitor se dirige.
     Este segundo procedimiento permite ao escritor consagrar-se desembaraçadamente ao seu cometido poético, sem gastar energias numha pretensom paraliterária de psicolingüista ou sociolingüista ou historiógrafo ou taumatúrgico espiritista, ou como se queira qualificar o ofício de remedador do trabalho documental.
     O primeiro dos procedimentos catalogados, com todo o seu lastro de rigor científico, que pom mui difícil o cometido do autor, pode, contodo, se exitoso, acrescentar um valor estilístico à estrutura da obra, valor que se incorpora à essência da mesma.
     Assi que quando Blanco Amor fai falar o Castizo ou Neira Vilas o Balbino, nós, para emitir opinions sobre o bom ou mau sucesso do relato, temos que resolver previamente a questom relativa a se em A Esmorga e nas Mamorias dun neno labrego se aspirava a que os actantes se exprimissem realmente como um picapedreiro ourensano ou um cativo da aldeia de determinadas épocas, ou mais bem se tratava de oferecer um correlato artístico do discurso possível dessas figuras de ficçom como figuras da realidade.
     É evidente que considerados todos e cada um dos aspectos formais do produzir-se locutivo do Castizo e do Balbino, com as opçons lingüísticas e estruturas funcionais lógicas e dialécticas que nessas novelas se oferecem, teríamos que concluir que a declaraçom do operário e a rememoraçom do rapaz nom poderiam produzir-se exactamente assi na realidade extraliterária. Os autores podem suster que nom o pretendêrom, com o que nom poderiamos exigir às vozes das suas personagens o rigor da mecânica gravaçom ou a imitaçom pseudodocumental.
     É este o caso do narrador de Os mortos de aquel verán? Cremos que nom o é. Quer dizer, cremos que o propósito do autor da novela que acabamos de citar é fazer falar ao seu narrador, que é umha testemunha dos feitos que narra, como realmente faria um burocrata —funcionário judicial, ou policial, ou político—, em todo caso um rábula com expêriência de papelista. E cremos que o aludido novelista, como Mistress Loos e como Mister Faulkner, fijo da condiçom expressiva do seu narrador, umha nota essencial do seu relato.
     Como no caso dos dous escritores norteamericanos, essa condiçom, que supom umha evidente dificuldade técnica para o desenvolvimento da fábula, por parte do autor, nom pode ser posta mais que como um elemento estruturante da mesma, e entom a execuçom está subordinada essencialmente ao mantimento dessa premissa. A fala de umha rapariga frívola, a de um diminuído mental e a de um plumífero anodino nom fornecem de nengum jeito substância poética em si a umha narraçom; todo o contrário. Nom som recursos retóricos de carácter positivo. Assi, a adopçom desse arriscado e incómodo ponto, de vista só pode explicar-se como ensaio de renovaçom radical da textura expressiva da narraçom. Nesta deixa de ser o fundamental o acontecimento, e passa a sê-lo a técnica, o virtuosismo do discurso narrativo, que, polo difícil e descomunal, polo obstaculizante e incómodo para o escritos —enquanto o força a umha ficçom tam alheia aos seus próprios hábitos expresivos, que o obriga a disfarçar-se com prendas mui estranhas ao seu normal indumento—, adquire o carácter de elemento radical da novela, em detrimento do trama da mesma. Escrever, como se tem feito, umha história sem a valiosa cooperaçom do verbo, ou sem utilizar jamais um determinado fonema; ou pintar um quadro, como fazia Grandio, sem mais cores que o branco e o negro; ou compor umha sinfonia pastoral em que se ouçam o soar dos chocalhos, o bramir dos touros, o rinchar dos cavalos, o bruar das fervenças e o suspirar das pastoras, é procurar umha experiência técnica que converte o meio em fim, o instrumento em objecto. Trata-se de um exercício ginástico que hai que julgar pola coerência e precisom com que se execute.
     Portanto, a novela em questom nom deve ser fundamentalmente julgada polo seu argumento, mas pola autenticidade da sua linguagem. Realmente, o que na novela ocorre imita-se muitíssimo ao que ocorre noutras novelas, o que pretendeu o autor foi contar um conto com linguagem curialesca. Na medida em que essa linguagem seja realmente curialesca, a novela estará lograda, porque se trata de umha novela experimental, nem mais nem menos que Cambio en tres, ainda que o autor de idade madura de hoje renuncia aos aspectos de aparência técnica mais revolucionária e subversiva que onte esta vam de moda.
     Mas, podemos afirmar que tenha logrado suster-se na difícil tessitura da voz do rábula informante? Em primeiro termo, nom vemos claramente que classe de burocrata é. Pode ser que o autor tampouco o saiba, e que considere irrelevante esse ponto. Mas nom se tratando das aventuras do senhor Merlim na casa de Miranda, essa falta de concretizaçom resta crédito ao relato. Nom estamos em presença de umha obra de imaginaçom arbitrária. Todo na novela nos conduz a um mundo mui quotidiano e familiar. Nada hai aqui de realismo mágico. Entom, essa falta de caracterizaçom do narrador, nom resulta intempestiva, por imprópria do género?
     Em todo caso, o funcionário em questom, de quadro ou eventual, é feito falar polo autor —isso si— no estilo e na linguagem da cúria. Queremos dizer que esse e o propósito do autor. Mágoa que este propósito se esqueça amiude, e o tal sujeito, ao serviço da Nova Ordem, se revele, se delate como um inimigo encoberto da mesma, que ironiza irreverentemente sobre questons de igreja e traça mal dissimuladas caricaturas de pessoas que exercem o poder na nova situaçom. Para satirizar a gente que manda, o autor nom necessitava servir-se de tal fâmulo. Nom é crível que este fosse tam insensato que nos informes ao seu superior vertesse conceitos tam pouco veladamente subversivos aos olhos do destinatário dos mesmos na história narrada. É o mais provável que a autoridade lhe figesse correr a sorte dos mortos daquele verao. Na realidade, o autor introduze-se eventualmente na pele do narrador, ou introduz um desafecto ao Movimento Nacional, com o que se quebra a perspectiva.
     Isto é especialmente chocante quando o pobre rábula, para fazer rir ao leitor, e com temerária imprudência, fingindo-se o inocente, se refere em termos ridicularizantes às figuras de maior peso na vila. No drama ou comédia que o leitor deveria registar através do frio e tópico estilo de gabinete, introduze-se um elemento esperpêntico que resulta extemporáneo ou que fai inoperante a frialdade rotineira da prosa administrativa. Os eufemismos desta deveriam manter-se sem desmaio para conseguir no descompensado do dizer em relaçom aos feitos, o efeito de ironia ou sarcasmo que as impossíveis brincadeiras do escrevente tratam de assinalar. A personagem sai-se do seu papel, o que resulta incoerente com os supostos da obra.
     Em romances referidos de um ou de outro jeito à guerra civil, como Nom agardei por ninguén, O silencio redimido ou Fábula, achamos umha riqueza de acontecimentos e de focagens sobre a nossa contenda de muito maior entidade que na novela casariana. Nom entendemos que isso revele inferioridade de inventiva do autor a respeito de Valenzuela, Santiago e Alcalá. Simplesmente, Os mortos é outra cousa. Nom aspira a competir com esses outros relatos pola qualidade, pola intensidade ou pola originalidade do argumento. O essencial é a técnica do relato: o feito de diligência sumarial ou atestado policíaco ou acta administrativa. Era necessário que se mantivesse rigidamente esse carácter de relatório, porque se trata de um experimento técnico. Era necessário, mas —cremos— nom foi possível. O empregado, ou o que seja, utiliza mal determinados vocábulos da gíria curial, fai uso de outros desconhecidos na época da história. Estes som perigos que espreitam toda narraçom histórica, e tem que haver umha margem de permissividade para as transgresons inocentes. Mas se o esforço está em contar um conto por boca de um narrador digamos «curialesco», nom cabem alegres saídas de tom próprias da paródia satírica ou esperpêntica, ainda que o leitor deva receber a impressom da tragicomédia através da prosa funcional e inerte do narrador, por contraste entre a matéria narrativa e o estilo enunciativo do informe.
     É realmente irrelevante o contido da história. O essencial era o discurso, e o discurso cifrava-se em manter sem desmaio o tom da narraçom. Em todo o romance de Mistress Loos ouvimos o tagarelar de Loreley. O autor de Os mortos nom foi quem de deixar a palavra ao seu burocrata, e interrompe-o a cada passo, substituindo-o. Entom, nom valia a pena o esforço falsamente sustido. Ensaiou-se umha técnica que exige umha inflexível coerência, e que nom se revela concorde com a prática do autor. Hai um erro de programaçom que fai irrealizável o projecto. No caso deste realizador —pois non omnes possumus omnia— ou talvez em qualquer caso, pois hai cousas que a todos nos estám vedadas.
     Nom descartamos a possibilidade da existência de um romancista capaz de veicular eficazmente umha história dramática —bem que misturada de elementos intencionalmente cómicos— através do frio, rotineiro e inerte estilo notarial de um expediente administrativo. O génio pode atingir os cumes mais esgrêvios. Mas se existisse esse narrador capaz de realizar tal proeza técnica, pensaríamos sem dúvida que com tal experimento, ainda logrado, se impugera umhas limitaçons, umhas restriçons, umhas travas, uns atrancos que nom alteravam, com o alarde técnico do seu vencimento, a inanidade e inadequaçom de tal estilo para desenvolver o seu discurso. O seco e acartonado relatório oficinesco oferece escassas oportunidades literárias, e o suposto autor malgastaria o seu talento escolhendo para o seu relato tam pobre e árida voz. Se, contodo, lograsse o milagre de elaborar umha narraçom que valesse a pena, quê maravilhas nom poderíamos esperar dele se realizasse a sua empresa ceive dessa embaraçosíssima atadura? Sempre será mais brilhante a carreira de um bom ginete se a fai a lombos de um cavalo puro sangue que se elege como cavalgadura, por simples pruído de vencer dificuldades, um faco ruim, ou qualquer outra classe de équido facarenho. Cabem, decerto, em teoria —e isso pode alegar o autor—, misturas de técnica, estilo ou estrutura, encaminhadas a conseguir determinados efeitos literários. Cabem mesmo incongruências propositadas para produzir determinados impactos no leitor. As saídas de tom podem integrar-se numha certa harmonia que utilize a dissonância. Todo isto, no entanto, requer umha cuidada programaçom, que nom deixe campo à improvisaçom arbitrária. As roturas da ordem ham de verificar-se dentro de umha ordem de nível superior. No nosso caso, nom parece haver sistemáticos acenos a um leitor de quem se espera umha cumplicidade metanarrativa, mas simplesmente esporádicos abandonos do ponto de vista adoptado, que introduzem no presente do relato o futuro retroactivo do momento em que o autor escreve a sua história, sem outra finalidade que umha eventual libertaçom de humor em satírica anacronia estimativa.



2. O ROMANCE, GÉNERO MOROSO

     Designo de entrada o autor de O enxoval da noiva com a rigorosa literalidade com que ele mesmo se designa: Víctor F. Freixanes. Víctor está seguramente escrito assi no registro civil, e na partida de baptismo, se, como suponho, este laureado escritor recebeu no seu momento as águas baptismais. Nas datas correspondentes, o castelhano era a única língua oficial na Galiza, e à ortografia oficial havia que ater-se. Hoje poderia chamar-se Vítor, como em português, se opinasse que o português é umha forma do galego, polo que resulta mais natural para o galego umha ortografia galego-portuguesa que umha ortografia galego-castelhana. O nosso autor modificou, no entanto, a ortografia do seu apelido, que segundo creio era oficialmente Freijanes. Pujo um x em troca do j, mas por inadvertência ou timidez nom alterou a terminaçom da palavra, castelhanismo morfológico, e assi, a forma autêntica Freixans ficou emascarada pola híbrida Freixanes.
     O autor de O enxoval da noiva foi aluno meu. Entom já era escritor, e começava a obter prémios como tal, mas escrevia em castelhano, e, creio, assinava Freijanes, que será, como fica dito, a forma oficial —ainda que aberrante— que aparece na documentaçom pública, se nom se emendou mediante o expediente oportuno. Mais adiante, Freijanes se converteu em escritor galego, e continuou obtendo prémios. Já como Freixanes publicou diversos livros, entre eles dous romances: O triángulo inscrito na circunferencia e O enxoval da noiva.
     Dandom-me amostras de estima que muito lhe agradeço, obsequiou-me com sendos exemplares dessas obras, carinhosamente dedicadas. Desditosamente para mim, num e noutro caso motivos de saúde obrigarom-me a suspender a leitura mal encetada, e nem sequer tivera vagar ou lazer para acusar por escrito recibo do obséquio. Afinal, pudem acabar a leitura da mais moderna das duas narraçons. Logo, retomei a da mais antiga. Numha ocasiom em que coincidimos numha viagem, pudera agradecer verbalmente ao seu autor o envio desta, que ainda nom tivera tempo de ler. O enxoval chegou-me num momento em que umha prolongada doença me obrigou a demorar toda amostra de reconhecimento.
     Agora quero, como continuaçom dos meus pequenos ensaios sobre literatura do após-guerra, rascunhar umhas poucas páginas sobre alguns aspectos formais do Enxoval. Nom se trata de atacar de frente a crítica da obra, tarefa mui necessária no caso dos escritores que figuram, como Freixanes, no cânone oficial, e que portanto gozam de boa imprensa, mas nom de boa crítica. Essa tarefa devem empreendê-la críticos mais novos, que estarám mais ao nível da estética do criticado, sempre que sejam independentes, se é que os hai: quero dizer que nom fagam parte da burocracia administrativa do poder nem da oposiçom —se esta dispom de umha burocracia—; pois só críticos nom comprometidos politicamente podem considerar as obras daqueles escritores sine ira et studio.
     Nom sei se o nosso autor está ou nom sob a influência de um ensaio de Ortega y Gasset que foi famoso no seu tempo —no tempo da publicaçom do ensaio—; ainda que nom duvido que, como catedrático que é Freixanes de Literatura, nom terá deixado de lê-lo. Em todo caso, é curioso que nos seus dous romances, F. —no sucessivo assi designado, com o que nos evitamos a escolha das formas Freijanes, Freixanes ou Freixans, as primeiras aberrantes e a última nunca usada polo interessado— procede como se quigesse levar à prática a teoria exposta polo egrégio autor do aludido texto. Este texto, de por parte, nom estava construído mediante abstracçons matemáticas nem cousa polo estilo. A sua teoria induzia-se da prática, principalmente da narrativa de Stendhal, Dickens, Dostoyewsky e Proust, autores os quais dom José considerava entre os mais puros cultivadores do romance moderno.
     O ensaio, Ideas sobre Ia novela, contém um epígrafe que reza «La novela, género moroso». Sabido e que novela em castelhano, é romance em galego-português. Os dous romances de F. caracterizam-se pola sua evidente morosidade.
     No intitulado —ainda que nom compreendamos a transcendência do titulo— O enxoval da noiva, assistimos, a partir das primeiras linhas, ao anúncio das bodas de Lucrécia Bórgia com o herdeiro do Ducado de Ferrara. É, ou vai, ser, o terceiro matrimónio da filha do Papa Alexandre. Chegam à urbe os componentes da embaixada ferrarense, em que figuram vários irmaos do noivo, mas nom o noivo mesmo, que permanece prudentemente em Ferrara, e casará por poderes. Anunciam-se as bodas, e sentimos —talvez ingenuamente— que som prolegómenos todas as descriçons, excursos e discursos que precedam abundamente à narraçom da boda mesma. Esperamos a boda como climax do relato. Mas umha e outra vez esse momento se demora. Os ferrarenses entram na urbe. Preparam-se e celebram-se as esplêndidas festa em que se combinam Entruido e Natal. Os inimigos de César Bórgia promovem distúrbios, que o Valentino reprime duramente. Mas no relato a boda dilata-se. A abadessa Girólama, cujo nome suponho esdrúxulo, ainda que nun leva acento gráfico, talvez por italianismo, pom-se a contar a Lucrécia umha história logo continua o narrador geral, mentres Girólama se introduz praticamente na história que encetara. Agora nom sabemos bem se o que se nos conta pertence ao nível da história principal ou ao nível da história, lendária que referia, a abadessa. O artúrico ou britânico cavaleiro Tristam, mercenário ao serviço do Duque de Ferrara, mas ao mesmo tempo figura fantástica no relato de Girólama, move-se nos dous planos, o qual cria umha confusom que constituiria um defeito de composiçom se nom se tratasse, como parece, de umha ruptura estrutural querida polo autor com um fim estilístico. Com todo isto, a boda nom acaba de calhar. Mesmo se dilata tanto que se reserva para as derradeiras páginas do romance, constituídas pola carta que o Cardeal Hipólito de Ferrara escreve ao seu pai o Duque. Aqui por fim achamos constância de celebraçom da boda, com o que temos um simulacro de happy end. A notícia, que tamém se nos dá da morte misteriosa de Tristam deixamos na incerteza sobre a interpretaçom realista ou a interpretaçom fantástica do sucesso. É evidente que F. escreveu um romance histórico de tendência realista em que insere umha espécie de romance de cavalarias ao divino. Que esta contenha en abyme a chave do significado da primeira ou que o autor praticasse por puro capricho estilístico umha mistura de géneros, é questom que deixamos de parte. O cavaleiro Tristam move-se em ambos os mundos, o que o constitui em figura de grande ambigüidade. Agora só nos interessa enquanto a sua fantástica história —primeiramente conhecida por umha Girólama maravilhosamente informada, e logo continuada, com a própria Girólama dentro dela, polo omnisciente narrador principal— funciona como elemento de demora na história das bodas da princesa romanda, dando-lhe o carácter moroso que explicava Ortega y Gasset, ainda que nom propiamente —ou nom tanto— por acumulaçom de detalhes quotidianos, que nom faltam, se nom mais bem por intercalaçom de um longo parêntese, que nota se pode dizer que suspende o desenvolvimento da acçom principal, porque —ainda que nom se nos alcançe em que medida e em que plano— um sucesso da história intercalada —intercalada?—, a dupla —dupla?— morte de Tristam, passa a integrar-se —bem que inexplicado— na história principal.
     Efectivamente, Tristam morre na história intercalada, primeiro como anjo que combate as milícias do inferno —pois neste romance os anjos podem morrer—, e logo às maos dos esbirros de César quando escolta o seu próprio cadáver angélico e a fuga da Princesa. Como afinal, no desfecho do romance, Tristam está morto, cabe perguntar-se em que medida a história da sua morte está intercalada na principal ou é um episódio desta a certos efeitos. Quanto à herética doutrina da morte dos anjos, nom é ignorância ou descuido do autor, que fala de «a morte divina», e mesmo de «a morte de Deus» do que deduzimos que nom se sujeita ao ensino da Igreja em matéria de angelologia, e que considera mortais os anjos, com toda consciência da sua dissidência a respeito da doutrina ortodoxamente recebida.
     E no entanto, se, contra o que queria Ortega, o romance nom é «hermético», quer dizer, um mundo fechado, que se sustenta na coerência pròpria, senom que tem um significado transcendente, este nom pode ser mais que religioso, e Tristam e César simbolizariam Medievo e Renascimento, teologismo e humanismo, angelismo e satanismo, bem e mal. Na verdade, as cousas nom estam claras, como conseqüência da combinaçom de umha fábula histórica realista e racionalista, e umha fábula lendária idealista e fantástica. Em todo caso, a acçom principal avança parsimoniosamente, multiplicando em boa medida os pormenores para criar mundo, ambiente e densidade ficcional ou para adiar o fim do relato, e a história de Tristam —nom só no relato de Girólama, no qual nom hai nengum prurido de verosimilitude— funciona tamém como rémora supletória; de jeito que, de umha forma ou outra, a morosidade orteguiana nom deixa de estar presente.
     Mas, deveras podemos falar de morosidade orteguiana? Morosidade haina, sem dúvida; e como Ortega definiu o romance como género moroso, podemos afirmar que neste Enxoval se dá a condiçom de morosidade que registava Ortega como característica do género. Ora, se a morosidade registada por Ortega era do mesmo tipo, ou lograda com as mesmas técnicas que a praticada por F., é outra questom, que nom abordarei sem um prévio rodeio.
     Este rodeio prévio vai conduzir-nos ao exame —sumário— do outro —e anterior— romance do nosso autor, O triángulo inscrito na circunferencia.
     A leitura desse primeiriço romance confirma as nossas impressons no que di respeito à morosidade como nota essencial da narrativa longa de F. Decerto, se nos elevamos do nível das realizaçons ao nível dos modelos, podemos comprovar —sem dar um carácter matemático nem dogmático em ambos os dous produtos narrativos. Os contínuos adiamentos no desenvolvimento da acçom que transcorre no presente narrativo, as analepses e excursos som no Triángulo ainda mais notórios que no Enxoval. Como neste último romance todo induz a inspirar no leitor a ideia de que a boda de Lucrécia constituirá o material do desfecho, no primeiro o leitor espera um desenlace que implique o resultado da contenda entre as duas forças políticas e militares que se nos apresentam em pugna. Mas começamos por constatar que umha vez que o 14 de Agosto de 1829 se produz em Vilanova de Alba a explosom que afecta à Casa dos Catalans, nom se segue no discurso narrativo um registo sucessivo dos acontecimentos cronologicamente ordenado, antes somos conduzidos polo narrador a momentos precedentes de aquele evento, em ocasions mui remotos, noutros aparentemente atemporais, que adiam de tal jeito o curso normal da história, que hai que supor no autor a crença no atractivo estilístico da demora na consumaçom dos feitos constitutivos da linha do argumento, como certas mulheres suspendem sistematicamente ou propositadamente adiam a entrega amorosa para provocar um acréscimo de ansiedade no parceiro, que faga afinal mais deleitosa a desejada possessom.
     De resto, nom é só o tempo narrativo o que é comum a ambos os dous romances.
     À parte deste traço, hai entre os dous romances de F. semelhanças e identidades últimas de tipo estrutural tam evidentes, que, em certo jeito, poderia afirmar-se que —como já fica indicado— se trata de duas realizaçons do mesmo arquétipo. Ambos os textos adoptam o estatuto de romance histórico (ou pseudo-histórico), que, em princípio, se configura consoante um tipo de verosimilhança realista, se bem esse realismo é mais o realismo romântico de certos relatos da primeira metade do XIX que o realismo crítico ou verista de intentos posteriores. Mas esse romance histórico ou pseudo-histórico —trate-se de política matrimonial renacentista italiana ou das tensons ideológicas da Espanha e da Galiza sob o derradeiro absolutismo de Fernando VII— aparece dobrado, combinado ou penetrado de outro romance fantástico em que se desata o elemento maravilhoso nas suas diversas formas: como lenda intercalada, como premoniçom ou revelaçom onírica, como emblema alegórico ou como simples irrupçom do mágico no lógico —nom pretenderei precisá-lo causisticamente. Hai, pois, umha contaminatio de «história extraordinária» no corpo da «crónica de época», desde logo em diferentes doses e freqüências, segundo distintas composiçons sintácticas, mais escoradas da banda da justaposiçom no Enxoval, mais organicamente subordinadas as fantasias à corrente realista da trama argumental básica no caso do Triángulo.
     Ora, o feito de que —com a devida exageraçom— se poda dizer que nos tem dado F. duas aplicaçons da mesma fórmula na sua conjunçom de mimese e máquina, se útil para corroborar a identidade de técnica já apreciada no emprego sistemático da morosidade, nom tem especial relevância substantiva para o propósito deste ensaio, e procede, portanto, nom insistir mais sobre o particular. O que o leitor deve reter é a importância do elemento que Ortega denominava morosidade —e estimava característico da romancística moderna— na conduta literária do autor dos relatos nos quais vimos ocupando-nos.
     Concluiremos, pois, que o nosso antigo aluno executa nessas criaçons literárias a doutrina exprimida polo elegante filósofo no seu memorável ensaio? Ou a morosidade que achamos naquele, e aquela que se maneja nesta, nom som um termo unívoco?
     Vejamos.
     Para Ortega o romance é um género hermético que nos transporta a um mundo distinto daquele em que realmente vivemos. Mas nom porque seja um mundo fantástico e milagroso que nos arranque da nossa vulgar quotidianeidade; senom porque é um mundo tam redondo, ou tam perfilado, ou mais, que o nosso mundo quotidiano. É outro mundo, imaginário, no entanto tam poderosamente real como o mundo real. Tam quotidiano, na sua própria cronologia, na sua atmosfera, nas suas personagens, que nos incorpora a ele, e nele nos sentimos espectadores, solidários e familiares das figuras que nele se movem. Nom se trata de que o texto literário nos impila a modificar o nosso próprio mundo. A arte de convencer e persuadir por meio da palavra nom se chama romance, mas retórica. Hai romances que chamando a atençom sobre um problema colectivo provocarom reformas legislativas. No entanto, a essência artística do género, que resulta da técnica empregada, é outra cousa, independente do seu impacto individual ou social e essa essência manifesta-se pola sua propriedade de «tapar el mundo real con su mundo imaginario», o que exige umha acumulaçom de informes sobre esse mundo imaginário que no-lo apresente suficientemente enérgico, tupido e pleno para tapar-nos o mundo real. Isto somente se pode lograr, segundo Ortega, mediante umha generosa riqueza de detalhes.
     Nom é esta a morosidade que achamos em F. As personagens nom estám retratadas, física, psíquica e funcionalmente, com a nimiedade que Ortega regista em Stendhal, em Dostoyewsky ou em Proust. Mais bem estám vistas com a perspectiva do poema épico. A Maria Eulália do Triángulo nom aparece muito mais perfilada que a Aude da Chanson de Roland. A morosidade nom está aqui fundada, como queria o filósofo, na minuciosidade da pintura, mas na constante demora da crise argumental, na suspensom prolongadíssima da continuidade da linha mestra da acçom que vai desembocar no desfecho. Se o romance moderno é um género retardatário, em que a descriçom morosa dá vida ao mundo criado por abundância de informaçom, os romances de F. apresentam umha morosidade distinta da registada por Ortega, e lograda —a de F.— pola interposiçom reiterada de excepçons dilatórias, de interditos suspensivos, no processo da acçom, o que dá origem a um curso do discurso narrativo de tempo mui lento, nom pola saturaçom de dados que se nos proporcionam sobre a paisagem que o autor desprega perante os nossos olhos, mas polo sinuoso, flexuoso e serpentino da quelha pola qual fai avançar o rio do acontecer romancístico.


3. A CRÍTICA DA RAZOM PRÁTICA

     Eu prologuei, por petiçom de um amigo, um dos primeiros livros de Xavier Alcalá, A Insua. O mesmo amigo —ou o próprio autor— pediu-me mais adiante que prologasse A nosa cinza. Esta vez nom pudem ocupar-me nisso no praço assinalado, e prometim, em troca, escrever um artigo sobre o romance quando este saísse do prelo, já que a execuçom desta promessa nom implicava umha perentoridade semelhante à que me impedia escrever o prólogo solicitado. Assi que A nosa cinza apareceu sem prólogo algum na sua primeira ediçom, de 1980. Mas em 1987 apareceu a que Alcalá quantifica como enésima, e esta leva «A modo de prólogo» o artigo prometido, que, entretanto, e com o título de «A cinza dos anos mortos», eu publicara num jornal o mesmo ano da primeira ediçom. O artigo reproduze-se respeitosamente, talvez com algum pequeno descuido procedente do jornal, mas o seu primeiro parágrafo é o segundo da reproduçom do texto que figura na minha colectânea Libros e autores galegos. Século XX.
     Sublinho o feito da fidelidade com que, salva a troca de título, foi tratado o meu texto, porque o texto do romance, incluindo as «Notas à enésima edición de A nosa cinza (co rogo de que se lean)» que Alcalá escreveu neste ensejo, está revisado para sujeitá-lo à normativa do Decreto de unificaçom de 1982, normativa que obviamente nom era a das anteriores ediçons do sobredito romance.
     Houvo nesta, segundo o autor nos di, «modificacións morfolóxicas». Na redacçom original « había formas vulgares e cotiás, do coloquio diario, que por imitaren as do português normativo (lusitano, lisboeta e lonxincuo) en nada conducían mais ca a distraer o lector afeito a dicilias de xeito galego».
     O autor acordou com a editorial «utilizar unha norma morfolóxica e ortográfica que non interrompese o seu discurso, se ben quedando dentro dos limites da normativa oficial vixente. Asi fixen, e velaí o resultado. Practicamente a volta á antiga normativa académica, da que noramá nos afastamos, e da que debiamos ter partido a camiño da reintegración, sen estridencias e por etapas...».
     Um exemplo pode-no-lo suministrar o derradeiro parágrafo do romance, que na primeira ediçom reza:
     «—Témoslle que dar unha má noticia... A sua aboa morreu e a familia reclama a sua presenza. Hai un coche da comandancia que o pode levar para alá...».
     e presenza forom substituídos por mala e presencia. Da coincidência morfológica com o português passou-se à coincidência com o castelhano. Sua, de nom registar o acento, de acordo com a ortografia portuguesa, passou a registá-lo, de acordo com a ortografia castelhana. Avoa escreve-se agora com v.
     Em conjunto, como o autor anunciava, produze-se um alongamento do português. E no entanto, nas mesmas «Notas» podemos ler o seguinte:
     «O fenómeno lingüístico da Galicia non pode ser rexional; o seu pobo, nun esforzo de diglosia consciente e controlada, débese proxectar na fala natural —o galego— e na outra fala adquirida —o castellano— sobre grandes pedazos do Globo; xuntando a un galego depurado o dominio das poucas claves diferentes do portugués, o costume do uso do castellano e unha boas bases do inglés, o Mundo halle resultar pequeno...».
     «Son lusista e sempre o serei, e cada día me sinto máis reintegracionista. Pero en min, coma en calquera escritor, hai un feeling, un instinto da lingua que me fai percibir o que encaixa no espírito dela —e prever o que nunca vai encaixar».
     E tamém:
     «A actual normativa oficial do galego, cando levada à sua máxima estreitez, demótica e foneticista, non ten porvir e só serve para marcar pautas orais de locutores. A volta á escritura histórica do galego, independente por completo da castellana en que nos educaron, ten que ser tarefa vital de escritores informados, para desenvolver con tempo e con tento, evitando obrigarmos ós termos vulgares da fala que a literatura recolle a se converteren en sapos difíciles de engulir polos receptores da nosa mensaxe artística».
     «Na idea reintegracionista non debemos ceder. Cómprenos loitar contra lingüistas cazadores de bruxas, políticos e penas rexionalistas, editores miopes e público desinformado. Pero habemos de seguir adiante, medindo os pasos, consultando o instinto, recuando se for preciso para logo avanzarmos máis —sempre à procura de xustificarmos o posto que os nosos talentos nos consigan no microcosmos esperpéntico e amado do que facemos parte...».
     Nesta ediçom enésima de A nosa cinza —o autor ignora quantas a precederom— temos um caso parecido ao da primeira —e até agora única— ediçom de outro romance —Amantia, de M. J. Queizán. Em ambos os casos, os textos vam precedidos de umha declaraçom que de um jeito ou outro formula umha teoria que nom se aplica na prática. Queizán di que se submete à normativa da editorial porque «a única alternativa, de non aceptala, é a creación en castelán». Alcalá, já vimos o que di. Com todos os distingos, reservas, cautelas, matizes e aclaraçons que se incluem, é evidente que os textos em presença se sujeitam a umha prática lingüística que nom é a projecçom da teoria formulada ou aludida na nota justificativa, cuja razom de ser reside precisamente nessa discrepância.
     Temos, pois, na enésima umha teoria da escrita galega e umha prática. Alcalá intitula-se nom só reintegracionista, mas mesmo lusista, ou seja, partidário de umha escrita histórica; no entanto, acorda com a editora ater-se à normativa oficial.
     Todo vai explicado, ou razoado, ou peneirado e pontualizado; assi que podemos dizer que nesse aspecto possuímos umha crítica da razom pura e umha crítica da razom prática.
     Aquela erige-o em decidido reintegracionista. Esta em praticante da normativa oficial. Ele, con Kant, distingue claramente umha e outra esfera. A sua teoria é terminante. A realizaçom fica modificada, ou adiada, ou suspendida por motivos que se plasmam num acordo com um representante da editorial. O manuscrito de A nosa cinza, como o manuscrito de Amantia, nom estava escrito assi. Os respectivos autores aceitarom que um e outro fossem emendados. Queizán fala de «imposición»; Alcalá, de «acordo». A primeira fala como se um corrector lhe normativizasse o texto; o segundo atribui-se  a si mesmo a execuçom das correcçons.
     Com o máximo respeito para as teorias e as práticas lingüísticas de quem quer que seja, e portanto de Alcalá, a cuja obra, como fica indicado, tenho prestado reiterada atençom, e que tem prestado reiterada atençom à minha com umha generosidade notória, nom trago agora a colaçom o caso da enésima com o propósito de discutir o problema da normativa. Nessa matéria creio que toda pressom é impertinente, e nom vou acrescentar nada ao que outra vezes tenho dito sobre a necessidade de preservar a liberdade do escritor. Se nos meus pequenos ensaios sobre narrativa de após-guerra incluo este, nom é mais que para recolher —baseando-me num exemplo típico e da um escritor caracterizado— umha particularidade de índole pragmática daquela literatura, que se apresenta problemática polo que se refere à maior ou menor antonomia do escritor face à Administraçom e face às editoriais quando se trata de desenvolver o seu trabalho. Se o escritor se submete sem protesto às normas oficiais, achará fácil saída para a sua obra, sempre que convença da qualidade da mesma a quem sufrague a ediçom. Mas, como vemos, tamem se dá o caso de editoriais que, impondo ou acordando com o autor a modificaçom da língua deste, permitem que, nessa língua modificada, o autor proteste dessa modificaçom, ou exponha teorias que nom se acomodem à filosofia da modificaçom realizada. Decerto, nom faltam editores que se despreocupam da normativa originária do autor, quer por parecer-lhes que, ainda sem a protecçom oficial, a obra prosperará no mercado e nom constituirá para quem a tire do prelo um negócio ruinoso; quer porque aqueles editores som desinteressados promotores da literatura galega e podem permitir-se, numha ou otra medida, riscos ou perdas económicas em prol da protecçom de um autor moço ou postergado que estimam valioso. Logo estám, claro é, os autores que editam pola sua conta —os quais devem dispor de recursos económicos folgados, o que nom é freqüente—, e os grupos que se constituam precisamente para defender alternativas à normativa oficial. Interessa que entre os muitos especialistas em sociologia da literatura —profissionais ou afeiçoados— que trabalham no país ou fora dele, surja um ou vários que abordem e desentranhem a realidade destas condutas; que cataloguem e descrevam atitudes e motivos. Negar a existência de problemas neste campo ou ignorar todo o que nom encaixe numha dogmática política de dirigismo regulamentar, é fechar os olhos à realidade. De outra banda, as diversas posturas perante a questom da língua —a política lingüística, a política ortográfica— marcam com o sem voluntarismo a informaçom que fornecem. O estudioso debe tê-las em conta, pois a existência delas é umha realidade objectiva, mas sabendo que nom se trata, em princípio, de testemunhos imparciais, senom de alegados em prol das causas respectivas. A recensom de dados e a hierarquizaçom de informes sem ânimo beligerante e por pessoas ou equipas tecnicamente preparadas, é um labor prévio a todo intento de síntese dos fenómenos e interpretaçom dos feitos.
     Neste marco chegariam a aclarar-se e ponderar-se equilibradamente as contradiçons —ao menos aparentes— que encerram as relaçons dos autores com os seus editores em casos como os assinalados. Em que medida essas relaçons estám inscritas no âmbito estrutural da organizaçom jurídica da vida colectiva? Nom vai implicado um conceito de Administraçom pública como directora ou como intérprete da sociedade, como inspiradora ou como servidora da mesma?
     Que um escritor como Alcalá, depois de substituir por mala e presenza por presencia, e de expor as razons da sua conduta, entre as que figura a conveniência de nom ferir o leitor com formas lingüísticas, inseridas no discurso coloquial, próprias do português, manifeste afervoradamente a sua filosofia reintegracionista e chegue a definir-se como «lusista», merece umha exploraçom séria da paisagem social e política em que esses fenómenos se produzem. E demasiado simples salvar as dificuldades afirmando, com base em certas matizaçons contidas nas «Notas», que o autor de A nosa cinza é reintegracionista para o futuro e isolacionista para o presente. Umha cousa é propugnar umha táctica elástica, em que caibam mesmo retiradas «se for preciso para logo avanzarmos máis», e outra acordar por umha parte que um romance, já editado varias vezes, se «deslusize», e por outra parte chamar-se desafiantemente «lusista», alcunha que rejeitam os mais dos reintegracionistas.
     Tamém é demasiado simples assimilar inteiramente o caso de A nosa cinza ao caso de Amantia, e dizer que em ambos os dous houvo imposiçom do editor. Nom é isso o que Alcalá manifesta, e mesmo dá o nome do seu interlocutor em representaçom da editora. Se houvo, pois, acordo, e o próprio autor executou o acordado, o caso é, por vários conceitos, mais singular. Decerto, um novo índice da anómala realidade editorial galega. Como dizia, hai que estudar muitos aspectos da nossa vida literária que nos remontarám à estimativa social da língua e ao substrato sociológico onde tenhem as suas raízes os fenómenos que nos ocupam. Distorsionando licenciosamente os conceitos kantianos, diremos que nestes problemas o sociólogo tem que fazer umha crítica da razom pura e umha crítica da razom prática. Talvez umha análise científica do tema daria possibilidades de situar-nos melhor perante umha futura aproximaçom à consideraçom pragmática da política lingüística.

 

 

 


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