Estuário

 

(Texto íntegro)

 

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muita voz a tanta distância

será questão
do verão ainda tão primitivo

posso ver a noite
apenas com os olhos sem destino e tu não estás lá

pôr-te-ão um nome
como se fosses um vestido
e quiçá uma rosa no silêncio

não sei por que
há tanta desfeita
por no sorrir
o que é insorrível










tens como sempre
cara de lua ausente, infeliz
por não te correr
entre os dedos
qualquer nome










A Laura F. V.

todos os dedos juntos,
harmonia
e pão

uma pele onde confluem
todos os espíritos
que sabem de infância
          —a tua—
quando a imortalidade
sabemos
que tem riços
e está aprendendo a falar










tu já sabes
que os espelhos falam
como tu queres
mas não sabes
se te pensam
ou os pensas

temos de trabalhar
que o verão é mal momento
para sermos transcendentes










de anjos sabia mais que ninguém
a tua ausência










dias de sabores
azuis
e tentações agora tão pueris
que nos fazem velhos
profetas de alquímias medievais

onde estarás
tu que vivias
nas beiras dos caminhos
com rumo a nenhures?










para quem puder dizer
que as ensonhações
são anomalias mentais
que somos uns neuróticos
que vemos fantasmas desencantados em todas as sombras
dir-lhe-emos
que sim,
que talvez tenha razão ou razões
mas que se cale
para sempre
porque graças a isso
fazemos nossa
a fantasia










e tu
ainda nua de mim
foste ventos










que se queres fazer
um concurso de ausências

que se queres subir
a céus de pão

que se queres que sejamos
folhas tristes de figueira

e tu, mulher de voz opaca,
que olhas para acima?
já passei peregrino
faz tanto tempo
a tua pele de adolescência,
não te lembras?










ainda,
sim,
vejo-te sem olhar-te










quiseres
ou não quiseres
fazemo-nos noite










desterrado
o teu nome
descobro que tem
navalhas entre as letras










porque não quero
que me vejam sonhar
ou quiçá
porque sonhar
esteja interdito
sonho-vos na clandestinidade










e tu
água
e névoa
e utopia

o espelho minte
e as luzes erram










seguro que conheço
milheiros de vós, com olhos de gazela
e florestas à vista

Sois essa espécie de seres nunca débeis
que sabem dominar corações
e tecem sonhos secretos à alva

as marés levam-vos murmúrios
e as luas recriminam-vos a vossa crueldade
mas sois a natureza escura e muda de um tempo
que temos, algum dia, que esquecer

gostaria de não ser mais do que ar
e habitar para sempre
os campos livres da infância










gosto
do teu silêncio
animal










era verão
      toda a rua era cheia
de pombas e uma mulher estrangeira
pedia dinheiro numa porta...
tinha vergonha de olhá-la

      os jardins urbanos languideciam
como recordações que nunca se superam

vinhas
pensamento abaixo
pensamento acima
para me fazeres mais negro
este calor,
tocar-te era queimar-me

quiçá a mulher que pedia
ria-se ao ver-me tocar o ar
se é que ainda
se lembrava de rir










vi muitas tardes o sol
partir por aquele horizonte que quase sabia a mar

e o sol
eras tu
e o horizonte um tempo deitado
que nunca voltará










tu
um adeus
que se resiste
a se calar










e agora que

cumpre-nos fazer perguntas para escondermos respostas
que sabemos desde há séculos,
cumpre-nos fingir indiferença quando somos
manto de noite, porque o somos, sim

as palavras ficam nuas
deixamos que sejam naves intocaveis
que não chegam jamais a esse destino:
um telefone

      e amargaremos as máguas
com café, como sempre, como marinheiros
que nunca navegam e inventam as suas histórias

porque
quiçá
eu te inventei a ti










gritei o silêncio
que era
soidade
        a minha

gritei
mas não foi o ar
que voltou para o parque
ler o jornal
como uma pessoa qualquera

e ainda procuro ecos
que não nasceram.










os sonhos todos
decidiram que agosto
era um bom mês para irem morar
a uma pensão.

pegaram as malas
e voaram pela janela
aliás o ar de verão queimava
rosmavam como animais
racionais

ainda não apreendi
a dizer até logo
com uma xícara de vento na mão










tens fome?
o almoço ainda demora
mas temos música que range
e deve estar mole

o café vem com nostalgias
mas acho que ele passou sem dormir
como tu

hei-de ser um avião
para maldizer o tempo.

talvez
Einstein
tinha razão
sobre o relativo
que é voar










não ousaria nunca
beijar-lhe um sorriso

morreria se a ver
estéril
sentada num parque










esta tarde estava Le Petit Prince
no mais secreto das minhas linhas

peguei
o livro porque tem um estranho gosto de infância
não consumida
e li em francês as notas doces dessa tristeza
que Saint-Exupéry me explica
entre uma rosa
        uma espinha
        um espírito lento
tão amado










quem me ia dizer
que a morte e a vida
dançam juntas um fado










esta noite
quase tem pele de velo
suave como a brise que destinge levemente o verão

esta noite
quase tenho a certeza
que ela não existe










nos poros da música
de um aquele que não conheço
vem a magia
pelos telhados
         pelo ar antigo
                  pela mística invisível
do alento

e
somos peças
de um universo em fraldas










tenho direito de bater palavras que não digam nada

por desgraça tu compreendes a minha letra miuda










ocupas uma sintonia
ou uma sinfonia
ou uma lágrima

e tempo










se tiveres os contornos femininos
de tacto carnal
leve
e azul
o mundo
         ele ridículo
não seria o mundo










insistir
em baptizar mulher um rio
e um fado
hino
de tristezas

talvez o último califa de Granada
foi uma cana solitária
ao sol-pôr
numa praia
onde a mulher
jamais deixou pegada










imagino a Neruda com o crânio espido
a falar estrelas,
olhos encerrando por conhecer
cada passo prévio na areia

imagino-o cuspindo amores
que voaram até Benedetti,
amores que tingiu de nada Mário Quintana

você escreveu o meu nome lento
na praia

sei-o
porque são páginas do tempo










sábado

esperava que chovesse
mas o céu tinha outros planos

a terra tem sede
e eu tenho sede
mas os nossos líquidos nem sequer
nos espreitam

guardaremos os seus nomes
para outro dia...
até quando
até quando










os piões caminhavam
pela palma da minha mão
rumo à tua clandestinidade










quem a amar
será um livro em branco
numa biblioteca que não existe










a tarde lânguida
procura
procurar-te










hoje sabes a vinho
com alento de oliveira

hoje és
no meu peito
um Mediterráneo










cães e mentes
perdidos em trevas de tantas ausência
estrelas grávidas de indiferença por uma palavra
que tu
aquele dia
não fizeste










é triste
saber
que agora
o seu sorriso
é apenas uma guerra de pós










sujeito-me forte a um "ainda"
porque Ainda é seu nome em vestido de esperança

tem acústica verde e atlântica
sem estrondos nem bocas vazias
ainda sem saír
ainda com mãos como segredos
ainda de corações sem misturar

chamo-lhe "ainda"
porque faz do tempo mananciais.










escrever-te-ei na pel
como um pergaminho mágico
doces oráculos
de beijos clandestinos










um rosto

mil rostos

um rosto com mil rostos

um rosto anónimo

um rosto automático

um rosto intruso

um rosto sem rosto

imagens de rostos que invadem tepidamente
as sombras de lembrança

era chinês
era galego
era ela
ou nem era rosto










beijos de segunda mão
promoções de beijos
beijos bonitos nas montras

e ainda existem solitários

é um crime










ela amou-o
como vento
como pulo
como essência

ele temeu
apreender a voar
        a falar com as borboretas
e foi embora

ela é agora ribeira
e colo perpétuo ao vento
e mestra de solidões

foi
por aquele medo
que os lobos
a ele
já lhe não percorrem a pele










não sei a minha idade
mas oxalá não seja a vossa
soberba
silente
selvática










um velho na rua
ria
chorava
lia poemas de amor

carros
pessoas
na rua
nem o olhavam










hoje pesam mais as pálpebras
de ausência
e vozes
e festas
que fizeram as malas
meio vazias
de palavras

hoje as lembranças são tíbias
por estúpidas
nesse mar que não existe
quando abres os dedos










a lua
como uma unha iluminada
adormece
as ilusões
que não pronuncias










estrelas
nos números do teléfono
que tu
nunca desligas










 

 

 


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