Histórias do pretérito. Sonho ou pesadelo?

 

(Texto íntegro)

 

v2monchodefidalgohistoriasdopreterito.html
     Era uma noite normal como qualquer outra, o Roberto decidiu sair pela cidade a qualquer parte, não tinha preferências, ele só pretendia paralisar um sentimento estranho que lhe não deixava viver. Morava então numa casa emprestada, iam-lhe entregar um andar novo. A mim a história contou-ma um amigo comum do Roberto e meu...Abel. Contou-mo Abel uma noite que saímos de vinhos pela cidade velha.
    
Mas esta noite sim não era normal, a que saímos Abel e eu a tomar vinho. Era sexta-feira, treze...A parte baixa da cidade estava cheia de névoa, se não via um burro a três passos! O lamento dos barcos ouvia-se mais longe do normal, nos soutos da parte alta as corujas faziam festa na sua linguagem monótona e grave...Não lembro muito bem alguns detalhes já que afinal íamos bêbedos e os objetos resultavam duplos a nossos olhos...O Roberto não tinha noiva, estava livre como os táxis da ria. Sem embargo aquela noite seica percebia que algo lhe aconteceria agradável. Decidiu-se polo baile, segundo me contou o Abel naquela outra noite de vinho. Entrou, pois, na "Chouça do Pirata", essa que está perto da ria. A orquestra, porque é uma sala onde se baila música de orquestra, tocava uma valsa —contou Abel— e o Roberto andou primeiro polo recinto, deixou-se botar as cartas num cabide... "Nesta noite acharás a tua rainha que che dará dous filhos." E então a orquestra tocava um fado, cousas dessas raras que acontecem neste país, já que desgraçadamente nesta sociedade ignora-se avondo todo o que tem a ver com esse país tão formoso, dono dessa música meiga, perfeita para se namorar numa noite de brêtemas.
    
O Roberto ainda deu mais umas voltas pela sala, dous balcões para tomar beberetainas, um outro andar superior para aquelas parelhas que procuraram situações íntimas, uma mesa de bilhar onde nunca se joga!! De súbito observou uma carinha de mulher que luzia em destaque junto com outras lá num recanto...O Roberto aproximou-se dela e tentou iniciar conversa, mas ela rejeitou-o com amabilidade. Ele não era dos que teimava chegado esses momentos de sim, não, quiçá, que sei eu!! Deu meia volta e voltou ao balcão, pediu um sumo de ananás e com o copo na mão virou para sua direita porque uma mulher reclamava sua atenção...
    
—Dizia algo, minha senhora?
    
—Sim... Por que não voltas junto daquela menina de rosto branco e olhos bonitos?
     —Você está de brincadeira?
     —Não...De onde eu venho tomamo-nos a vida muito a sério.

    
—Não teimo onde me rejeitam!
    
—Mas se você voltar...
    
O Roberto ficou um bocadinho surpreendido daquela mulher que lhe insistia na idéia de lhe pedir de novo o baile à menina dos olhos grandes. Tomou um golo de sumo —contara-nos o Abel naquela noite de vinho— e voltando a olhada para a senhora inquiriu-lhe:
    
—Quem é você?
    
—Eu sou aquela que vem salvar a menina da face branca, a dos olhos grandes. Ela precisa de meu apoio, da minha ajuda.
    
—Olha lá agora esta! Em que barco chegou ...
    
—A minha viagem é curta não tenho tempo de "parolas" desnecessárias. Faz-me caso...
    
O Roberto deu outro golo no sumo enquanto arregalou os olhos, hesitou, colocou o cabelo e de novo virou a olhada para a estranha senhora e ali já se não achava. Tinha fugido como o fumo dos pitos que fumavam os assistentes da sala de baile.
    
—Vai-te embora, oferecida!
    
Seica o Roberto desde aquela data ficou muito impressionado. Contou-me o Abel naquela outra noite de vinho que a moça dos olhos grandes e belos aceitou bailar com ele, combinaram para outros dias, e outros mais. E assim terminaram casando. O assunto não teria mais "história" se o Roberto não comprovara com o passo do tempo que a senhora estranha da sala de baile era a mesma que depois achou numa fotografia de família da sua dona, então ainda futura esposa. Era a mãe que havia morto fazia treze anos.
    
Mas a noite que Abel e mais eu andáramos de bebedela aconteceram-nos cousas que não sei muito bem se elas tiveram lugar de verdade ou é que o vinho nos fez ver cousas estranhas. Tinham-nos falado num clube que há cabo do Pico da Morte, onde alguns barcos têm deixado de existir misteriosamente... Lá fomos, o taxista que nos levou era um tipo muito pouco falador. Ele só nos disse:
    
—Rapazes, se tiverdes lá algo de sentidinho voltavades para a casinha, com o dia que faz que é o que se vos perdeu a vós onde os barcos deixam de existir?
    
Ao Abel e a mim mesmo sentou-nos mal a ousadia do sujeito aquele. Quem é que lhe mandava meter-se na nossa vida? Deita lá, agora com essas...Você é que ia para predicador?
    
—Escusem-me os meus senhores, é que vão pela direcção equivocada.
    
A estrada começou a tornar-se retorta, ora para a direita ora para a esquerda...semelhava uma serpe arrodelada; a chuva apenas deixava ver qualquer cousa, aquilo começava a pôr-se feio... O treze, sexta-feira, que sei eu! O certo é que uma vez dentro do clube de meninas as cousas semelhavam andar melhor... bom, isso é um dizer! O Abel botou-lhe o olho a uma moça que lá havia, pernas longas e cumpridas. O cabelo ruivo, possivelmente de bote, e peitos avondo pronunciados; os bicos dos peitos adivinhavam-se debaixo de uma casaca translúcida e escassa em pano.
    
—Ai Jorginho, eu não deixo escapar aquela cousa voluptuosa.
    
Ainda disse arregalando os olhos o Abel antes de sucumbir ao tacto da malandra que adivinhando o apetite de meu companheiro aterrou na nossa órbita sem qualquer pudor. Naquela altura ignorávamos se chovia ou que tempo fazia! Passada aquela experiência ainda mais uma vez o Abel e mais eu temos falado no assunto, e não conseguimos saber o que é que se passou após aqueles instantes até que nos achamos sem roupas e aterecidos de frio na praia do Pico da Morte.
    
Temo-nos inquirido ambos os dous e não resolvemos o mistério. Os dous é que lembramos até o momento descrito e o mais surpreendente é que nos dias imediatos, e já com os sentidos sem interferir polo álcool, andamos toda a zona na busca do Clube, que com efeito tinha nome misterioso: "O último golo"...Mas não achamos nem rasto de tal "putifério".
    
Ainda tiveram que passar vários meses para que o Abel lembrara um pouco da sua história imediata àquele primeiro encontro com a ruiva de bote! Ele conta, mas eu duvido de se crer ou não.
    
—Jorginho, agora lembro algo daquilo acontecido no último golo... Ia eu enlouquecido pela beleza daquela mulher quando começou a tirar a roupa pouco a pouco, primeiro atirou acima da cama uma casaca que trazia, várias talhas inferior à sua! Seguidamente deixou os peitos pendurando como duas bolas do mundo sem apenas gravidade. Eu lancei-me àquilo que se me apresentava à vontade, mas ali é onde surge a minha primeira surpresa. Quando as minhas mãos fixam com força as costas da moça, deixando as duas bolas do mundo entre ambos os dous corpos, o que elas acharam não foi um corpo de carne jovem e quente. Era frio como o ferro; e de súbito aquelas peles e carnes magras começaram a se desfazerem como se for uma estatua de cera à que lhe prendes lume. Ai, meu amigo! E os ossos dela apareceram como ferros à deriva numa construção inarmônica e desastrada. A pouco dá-me um síncope, e naquele instante uma janela abriu-se e começou-se a sentir um ar forte e quente como se uma gigantesca ventoinha empurrara cara dentro todos os turbilhões do mundo...É então quando já perdi o sentido....
    
Eu não lembro nada após a primeira velada com a ruiva de bote. Nem acaso pude contemplar a mais mínima beleza dalguma daquelas meninas que se nos ofereciam a nosso antojo numa sala tépida iluminada com uma luz vermelha de pouca potência.
    
Mas as cousas ainda não ficam aí... Quando nos achamos aterecidos na praia do "Pico da Morte" olhamos lá um sujeito numa barquinha pequena a uns quantos metros da beira, botava chispas!! Nós agachamos detrás dumas penedias e observamos em silêncio o que ele fazia. Primeiro cai-lhe das mãos uma espécie de garrafa e mergulhou-se detrás... Com o frio que fazia a nós ainda se nos gelou mais o sangue. O sujeito fazia esforços em afundar a garrafa, mas ela rejeitava os intentos do indivíduo. Acaso o indivíduo ignorava as leis de Arquímides! Quando ao fim desistiu naquelas manobras estranhas, regressou à barca com a garrafa e é então quando abriu a vasilha e ciscou seu conteúdo no mar, mas como o ar se mexia em direção contrária ao conteúdo, que era uma espécie de cinza, apegou-se ao seu corpo!! É então que o indivíduo jurava mais, cagava-se em tudo! E de novo mergulhou-se na água do mar, tinha que se lavar... Nós trocáramos olhadas de quem não entende nada.
    
—Na puta que te pariu, filho do demo, ainda de morto é que me queres amargar a vida... —o sujeito continuava a dizer asneiras.
    
O filme era próprio de Hitchcock ou ainda de Fellini... Decidimos saudá-lo antes de que lhe dera um ataque ao coração e soubemos que a vasilha era uma urna com as cinzas de seu sogro e tocara-lhe a ele ciscá-las no mar.
    
—Parece que até de morto me persegue!! —disse zangado o tipo aquele limpando-se o corpo.
    
Mas a água do mar já tinha eliminado os restos. Aquele homem contou-nos após, numa cantina bebendo um vinho do país, que o dono das cinzas que ele ciscara no mar tinha sido um criminoso. Regentara uma pousada na beira-mar por onde passavam gentes de bom poder económico... Parece que a sua técnica era matá-los mentres dormiam, logo enterrava-os num horto que seica havia na parte traseira do prédio. A sua mulher cheia de olhar atrocidades decidiu deixar de ser cúmplice.
    
Naquela noite tinham uma parelha de jovens na pousada, o assassino olhava-os com luxúria, observava-lhes nas roupas que vestiam. Haviam de ter boa algibeira, tinham boa pinta. Num descuido do homem, a pobre da senhora deixou-lhes uma nota na cama:
    
—"Vaiam-se embora desta casa, esta noite vão-nos matar."
    
Segundo nos contou aquele senhor, a isso da meia noite, como sempre fazia, dirigiu-se ao quarto dos hóspedes e ao pouco escutou-se um grito... Afinal o morto resultou ser o dono das cinzas que acabava de ciscar....
    
A barquinha levava uma matrícula um tanto estranha...Eu anotei num recanto da memória os números: 666, mas meu amigo Abel assegurava que ele se fixara bem e que a matrícula era 1313...Assim que passados uns dias daquela odisseia fomos ao registo correspondente e nenhuma das duas matrículas figurava na zona do "Pico da Morte". Mistérios duma noite de muito vinho e seguramente que também de"meigas".

 

 

 


logoDeputación logoBVG © 2006 Biblioteca Virtual Galega