O "galego" frente ao "português", ou a lógica social da diferença

 

(Texto íntegro)

 

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Introdução

     Deve ser a idade, mas continua a instaurar-se em mim um são cepticismo, e ele que me salva dum silêncio auto-imposto. Não pretendo ter a Razão: só aqueles que lhe dão importância de mais às suas ideias refusam confrontá-las com outras; daí talvez que os que defendemos a unidade do galego-português sistematicamente não sejamos convidados a confrontar ideias nos foros oficiais de debate sobre a língua na Galiza. Hoje, por cepticismo, recolho o convite a ocupar um lugar testemunhal neste volume. Só quero clarificar que não podo aceitar a gratificação oferecida, pois já recebo do Estado Espanhol mais do suficiente pola minha função. Confio em que depois da leitura deste texto, se proceder, se compreendam melhor as minhas palavras.
     Quisera falar da definição do objecto "língua" na Galiza. Em 1932, Francisco Fernández del Riego escrevia o seguinte nas páginas de A Fouce - periódico galego, revista publicada na Argentina:

"Mais, anque o traballo d-uns poucos desleigados trate d-ilo, non se borrará dos beizos que a mamaron, a fala que empregou iste pobo por mais de dez séculos, que é a que falan i-entenden 42.000.000 de galegos, portugueses e brasileiros; non pode morrer un linguaxe que tén unha literatura esgrevia e nomes que son orgulo do entendemento humán" (Fernández del Riego 1932, p. 4).

     O texto, escrito durante a segunda república espanhola, reclama a unidade linguística galego-portuguesa. Opiniões semelhantes de intelectuais galeguistas eram habituais até há poucos anos. Hoje Fernández del Riego é presidente da Real Academia Galega, instituição que consagra legalmente a suposta independência linguística do galego a respeito dos outros falares galego-portugueses. Que aconteceu nestas décadas na Galiza? A mudança sociolinguística mais veloz jamais registada? Ou, desde os inícios do projecto culturalista do grupo Grial, a consolidação de ideologias linguísticas hegemónicas que sustentam a criação do galego como "língua" independente, no quadro dum estado monárquico que impede constitucionalmente a secessão das suas partes?
     Um argumento frequente é que a falta de estudos sobre os falares galegos nos impedia conhecer a "realidade" da língua, isto é: a suposta independência estrutural do galego. Porém, os estudos filológicos recentes não podem (polo seu próprio desenho) demonstrar tal independência. Certo é que há mais dados sobre a situação sociolinguística da Galiza (incluindo, de maneira importante mas ignorada, análises micro-sociolinguísticas das variadas práticas comunicativas diárias); mas este conhecimento não invalida o princípio de que a delimitação das línguas segue a ser uma construção teórica.
     De facto, após tantos estudos, desde a própria posição circunstancialmente hegemónica da filologia galega se postula a relativa unidade estrutural do galego-português:

"Dans une perspective strictement linguistique, nous pouvons admettre que le galicien et le portugais parlés aujourd'hui constituent pratiquement une seuele et même langue abstand" (Fernández Rei 1993, p. 111). [1]

     Fernández Rei continua a destacar que, contudo, do ponto de vista "estandardológico" já existiriam duas normas distintas. Na realidade, existem mais (v. Alvarez Cáccamo e Herrero Valeiro 1996). Porém, a lógica dita que este facto não invalida o reconhecimento explícito da relativa unidade estrutural galego-portuguesa. E se esta relativa unidade existe agora, é incoerente argumentar, como se faz às vezes, que já não existia no período medieval.
     Por que, portanto, a ênfase posta na dimensão da "elaboração" dum estândar galego, quando estruturalmente pertence à mesma língua que o português? Por que a defesa duma Língua Própria para a Galiza, quando já nos podemos reconhecer na portuguesa, da que o galego faz parte?
     Parto das seguintes assunções —acho que incontestáveis— para propor que a concepção hegemónica (mas não a única) sobre a língua na Galiza actual precisa, ainda e sempre, ser debatida:
     (1) O estabelecimento das fronteiras entre as línguas é sempre uma construção dos linguistas. O mesmo se pode dizer, obviamente, da delimitação dos dialectos, mas o "dialecto" não está directamente conectado com projectos dirigidos de construção identitária.
     (2) A relação entre fala e escrita é arbitrária. Portanto, qualquer sistema escrito e ortográfico é em princípio adequado para representar qualquer forma de fala.
     (3) Na Galiza actual, quaisquer das propostas de língua formal (a institucional diferencialista e a pro-reintegracionista) estão mais próximas entre si do que qualquer delas o está dos falares comuns, altamente hibidrizados e irregulares. A maior fronteira estrutural e simbólica dá-se portanto entre as falas (e escritas) codificadas, por uma parte, e as falas coloquiais pola outra.
     (4) Em todas as sociedades de classes a língua escrita e formal é um instrumento simbólico cuja apropriação, regimentação e gestão serve interesses grupais. O papel do controlo da língua na hierarquização social está recolhido mesmo em textos basilares da sociolinguística nada "militante" ideologicamente (p. ex. Haugen 1966).


(1) O estabelecimento das fronteiras linguísticas entre variedades próximas é uma abstracção

     A primeira tarefa do linguista no estudo das "línguas" é construir o próprio objecto de estudo, domesticando a difícil glotodiversidade em base a um bom número de critérios, todos eles tão científicos como acientíficos. Do ponto de vista estrutural, portanto, é tão legítimo afirmar que o galego faz parte da língua portuguesa como que o galego é uma língua independente do português. Reparemos, porém, que, mesmo para destacados dialectólogos, esta segunda opção não é caso.
     Mas a questão não radica em tomar partido (sempre ideológico) a respeito da caracterização do galego: a verdadeira questão radica na coerência na aplicação dos critérios de distinção entre variedades linguísticas. Neste sentido, certas comparanças com outras situações linguísticas são esclarecedoras. Por exemplo, aqueles que defendemos que os falares galegos e portugueses fazem parte duma única língua também defendemos que os falares catalão, valenciano, minorquino e outros fazem parte da mesma língua. [2] E vice-versa: aqueles que compreendem a unidade relativa da língua catalã ao longo de três estados, deveriam em boa lógica assumir a unidade relativa da língua portuguesa ao longo de vários estados e continentes.
     Por semelhantes critérios de coerência, aqueles que postulam a existência da "língua galega" deveriam em boa lógica defender a existência da "língua valenciana" ou da "língua minorquina", em pé de igualdade com a língua catalã. Essa coerência é o mínimo que se pode exigir dum linguista. Dia após dia constato que fora das fronteiras da Galiza a questão se compreende muito bem, enquanto na Galiza actual a incoerência intelectual amiúde toma formas difíceis de justificar em termos estritamente académicos; inevitavelmente, surge então como explicação dessa incoerência a lealdade a diversos interesses políticos.


(2) A relação entre fala e escrita é inerentemente arbitrária

     As implicações ideológicas e políticas das opções escritas na Galiza escapam ao âmbito deste testemunhal relato. Herrero Valeiro (1993) revisa em detalhe estas questões; um panorama do contínuo de sistemas escritos (que vão do português padrão até ao espanhol padrão, passando pola norma institucional e outras) pode-se achar também em Alvarez Cáccamo e Herreiro Valeiro (1996). Deste ponto de vista, o uso da ortografia portuguesa (como a presente) para expressar-se em galego (como estou a fazer) não só é perfeitamente válido, mas é a consequência lógica duma concepção unitária da língua como nível superior de abstracção. De novo, os "reintegracionistas" (e lamento, por efectividade argumental, ter que auto-atribuir-me qualquer etiqueta) não somos unitaristas só com o galego: também compreendemos a utilidade da escrita unificada para todas as variedades do espanhol, catalão ou inglês no mundo [3] Na prática, a grafia portuguesa é instrumental para o reconhecimento do galego por outros lusófonos e lusógrafos como, precisamente, galego-português, não como espanhol da Galiza. A escrita institucional do galego não é encarnação do diferencialismo a respeito do espanhol, mas, sem dúvida, a respeito do português padrão. Eis a questão, sobre a qual voltarei.
     De novo, quem defenda a diferença escrita do galego deveria também em toda lógica aceitar uma norma diferente para o espanhol do Caribe, ou para o inglês de Irlanda, e, sem dúvida, para o valenciano, com uma ortografia supostamente "fonémica" espanhola: yo por jo, yens por gens, bach por vaig, etc.
     Um argumento comum contra esta reivindicação da coerência é que os galegos devem preocupar-se polo seu idioma, não polos outros. Como não falamos minorquino, valenciano ou barcelonês, diz-se, não devemos posicionar-nos. Levando esta postura até as suas consequências, aqueles que acreditam na independência ortográfica baseada nas diferenças de fala deveriam sentir que estão a trair a sua ideologia linguística quando, por exemplo, se lhes requer escrever espanhol padrão num volume editado em Sevilha, ou catalão padrão num volume editado nas Ilhas Baleares.
     Em resumo: só na medida em que concebamos as relações entre fala e escrita através da óptica da ortografia espanhola, e da sua mítica e suposta "representação fonémica" da fala, aceitaremos o débil argumento de que a escrita institucional galega actual "reflecte melhor" o galego, ou de que um estudante galego "não saberia pronunciar" o idioma com a ortografia portuguesa. Visto que inerentemente nenhum sistema gráfico pode "reflectir" nenhum falar, ambas opiniões são sem-sentidos evidentes.
     Argumenta-se amiúde a dificuldade que suporia o ensino da ortografia portuguesa. Esta opinião, pedagogicamente, não se sustém: qualquer criança adequadamente instruída é capaz de aprender qualquer sistema escrito para representar o idioma (e, obviamente, de cometer erros nele) [4]. Falta por demonstrar que a causa das "erros" seja a ensinança dum sistema "complicado": as mesmas pessoas que aborrecem da estrangeira escrita portuguesa levam os seus filhos a custosas escolas a aprenderem a caótica ortografia inglesa. [5] E, sobretudo, falta por demonstrar que o objectivo verdadeiro do sistema educativo nos regimes democráticos seja, efectivamente, a alfabetização universal, e não a selecção social por meio do suposto da alfabetização universal.


(3) Na Galiza actual, a verdadeira fronteira linguística dá-se entre variedades formais regularizadas e falas coloquiais hibridizadas e castelhanizadas

     Eis o fundo da questão, com a que nos aproximamos das relações entre a especialização sócio-funcional das variedades linguísticas e os padrões de estratificação social. É falacioso (mas politicamente produtivo) argumentar que as normas dominantes se aproximam mais da "fala do povo" porque surgiria dum interesse das instituições planificadoras polos "Falantes". Seria longo expor como na construção actual do galego como "língua" se dá, precisamente, uma de-simbolização sistemática do que eram (e são) marcadores linguísticos tradicionais de identidades galegas: os fenómenos como o sesseio, as nasalações, ou as variantes lexicais e morfológicas "lusistas", estão estigmatizados e desaparecidos da fala pública, num pulcro processo que lembra a desinfecção maciça, a purificação étnica e a consagração dum corpo destinado à Transcendência. O resultado é uma fala pública aparentemente neutra e neutralizada que na prática se torna no sinal de identidade das elites bilíngues (Anderson 1983) que dirigem sempre os processos de "recuperação" dum idioma.


(4) Nas sociedades de classes, a língua escrita e formal é um instrumento de domínio das elites

     Enunciado assim, este argumento provavelmente provocará rechaço a ser compreendido. Mas é exactamente assim como deve ser enunciado, e o rechaço a compreendê-lo é mais um sintoma da prematura agonia do pensamento crítico no estado espanhol nos últimos vinte e cinco anos. Desde a "revolução filológica" ocidental (Anderson 1983), o duplo mecanismo dos regimes democráticos tem sido a extensão da alfabetização como miragem de igualdade, complementada com o controlo dos itinerários de circulação da produção cultural. O que está em jogo é a distribuição do capital simbólico (Bourdieu 1977, 1982, 1990) gerado polo controlo da língua e da cultura, não isento às vezes de precioso capital económico na forma de prémios, subvenções, prebendas e outras formas ainda menos benignas de cleptocracia.
     Desta perspectiva, as classes em pugna ficam definidas especificamente polo seu papel estrutural na sociedade. Bourdieu fala assim de "elites económicas" que controlam os recursos materiais, "elites técnicas e científicas" que produzem o saber, "elites políticas" que gerem estes recursos, "elites intelectuais", e "elites artísticas". O termo "elite" é suficientemente transparente, pois refere grupos específicos e identificáveis, que representam sempre uma fracção mínima do corpo social.
     A Língua é, portanto, um recurso simbólico e material em poder das elites. Talvez, frente ao poder dum avião F-18, o poder da Língua não seja tão fundamental. Mas numa cultura logocrática como a nossa a palavra permeia toda actividade social. Bourdieu assinala que as relações entre as anteditas elites nem sempre são harmoniosas, pois podem ter interesses sectoriais distintos, e, por isso, podem reproduzir-se lutas e dissensões no seu seio ou entre elas. Mas, frente às grandes maiorias desapossadas do controlo dos recursos, as elites seguem a desfrutar do papel estrutural de, basicamente, perpetuar-se no seu próprio proveito.
     Para uma melhor compreensão deste quadro de análise, é fundamental incidir na noção, também de Bourdieu, de mercado linguístico. O mercado linguístico é aquele âmbito social onde a língua legítima cobra o seu valor de troco como ponto de referência para a obtenção do capital simbólico. Assim, a língua padrão, o standard, é tanto uma norma quanto um estandarte da nova identidade. Igual que os trocos comerciais estão baseados no valor do padrão económico (a moeda comum, teoricamente respaldada polas reservas de ouro), os trocos simbólico-culturais estão baseados no valor da língua legítima. A perícia nesta língua legítima hegemónica, nos estilos hegemónicos e, sobretudo, no discurso hegemónico (aquele que, por exemplo, salienta a função da Língua Própria para construir a identidade dum "povo" dentro duma ordem política dada) outorga constantes benefícios. Por contra, o desvio nos usos desta norma e desta linguagem, mesmo se estes usos são tolerados, priva os grupos e indivíduos dissidentes destes benefícios tanto simbólicos quanto materiais.
     Também na Galiza, na pretensa consagração do galego institucional como padrão de troco, está em jogo a conformação dum determinado mercado linguístico. Mas, dada a subordinação da língua institucional ao padrão espanhol, o mercado linguístico do galego na actualidade não pode deixar de ser o âmbito do próprio Estado Espanhol. Simbolicamente, o galego é já uma forma legítima mas distinta do Espanhol. O reconhecimento actual na capital do Reino da literatura feita por galegos é amostra precisamente desta subordinação estrutural, pois é só na medida em que "o galego" seja parte "do espanhol" que a literatura da Galiza pode ser reconhecida. Experiências culturais como os encontros Galeusca de associações de escritores em galego, basco e catalão (não em espanhol, nem em português) não são evidências da fortaleza literária e cultural dos países respectivos, mas, por contra, da assunção e defesa (ideologicamente arroupada de "nacionalismo") do mercado linguístico "Espanha".
     Devemos clarificar, porém, que o mercado linguístico não é apenas o âmbito de valorização social da escrita: valorizam-se também outras formas de expressão, incluindo a comunicação oral. Por exemplo, tipicamente os falares galegos não são legendados nas televisões de âmbito estatal porque "se entendem", enquanto o andaluz de Huelva não leva subtítulos ainda que para muitos (como eu próprio) seja dificilmente compreensível: galego e andaluz são assim situados no mesmo plano a respeito do padrão Espanhol. Por isso mesmo, na televisão galega "dobra-se" o português de Portugal e Brasil, vistos como "estrangeiros", mas não o castelhano ou o andaluz, vistos como galegos, quer dizer, também espanhóis.
     Por fim, a construção dum mercado linguístico é sempre um processo dirigido por grupos previamente privilegiados. Por acaso as elites que estão a dirigir a construção do galego como língua legítima representam o protótipo do falante rural monolíngue em galego? A resposta negativa é óbvia, e as implicações sociais também: só aqueles que possuem o controlo prévio dum código simbólico de prestígio (o espanhol) podem efectivamente levar a cabo a tarefa privilegiada de moldar outro código simbólico de (menos) prestígio (o galego institucional). Esta é a função estrutural das "elites bilíngues" de que fala Anderson, e é puramente propagandístico argumentar que a construção duma Língua é beneficiosa para os falantes, a maioria dos quais nem sequer saberá nunca quem é o presidente da Real Academia Galega ou o seu Conselheiro de Cultura.


Conclusões

     As argumentações expostas são bastante singelas, quase auto-evidentes, e só o crescente cognicídio pode ocultá-las na forma duma glorificação das políticas linguísticas. A articulação entre interesses e práticas das elites explica os lamentáveis factos que se dão quando numa sociedade inteira, como na galega na actualidade, o Estado (quer dizer, a Xunta de Galicia) se apropria dos recursos para a promoção duma só forma de escrita e duma exclusiva visão duma questão aparentemente "científica" como é a forma, identidade e futuro do idioma. Contra os próprios postulados da "liberdade de expressão" democrática, entre as minorias escreventes da Galiza na actualidade tal liberdade na prática não existe. Não é exagero nem procede dum enfebrecido espírito de dissidentes clandestinos constatar que hoje na Galiza há processos administrativos abertos contra professores por oferecerem e praticarem uma concepção reintegracionista do idioma; que nos círculos intelectuais existe uma forte estigmatização do "lusismo"; que as condições da imensa maioria dos prémios literários (exageradamente remunerados ou não) excluem aquelas pessoas que, na sua livre criatividade, não optam pola norma institucional; ou que nos supostos centros de saber da Galiza, as Universidades, justo quando conclui o século democrático, pessoas intrinsecamente totalitárias (abandeiradas de qualquer nacionalismo) arrancam ou deturpam sistematicamente cartazes redigidos em português, galego-português ou galego reintegrado, como se queira chamar. Tudo isto não é um exagero, nem é anedotal, mas também não é casual: pois a outra forma de pensar e de agir, a isolacionista, a que melhor exemplifica o nacionalismo linguístico, não só não é reprimida, mas é a favorecida polas instituições.
     Obviamente, seria hipócrita pola minha parte dar a entender que o meu discurso crítico sobre a Língua se deve a que estaria em jogo o meu destino ou o de outros estabelecidos "reintegracionistas". Eu sou funcionário do Estado, professor de Linguística: é fácil reclamar coerência quando o Estado te retribui quase 300.000 ptas. ao mês pola duvidosa façanha de reproduzir pedacinhos de saber nas aulas universitárias. Mas há muitas pessoas mais jovens para quem obterem um legítimo lugar de sobrevivência no mundo do ensino, da criação ou da cultura depende de que não se posicionem, no seu discurso ou na sua prática, como "lusistas". E isto é um facto, não outra alucinação dos incompreendidos.
     Desenganemo-nos: Nem as línguas são vitais, nem o "galego" é vital, nem o "português" é importante. Mas quando as isoglossas que dividem "línguas" se fazem coincidir por interesses grupais e sob escusas científicas com as fronteiras políticas, não ganham uns e perdemos outros: perde sempre o raciocínio. Porque, no fundo, a verdadeira isoglossa do oeste da Península Ibérica é a que passa entre o Reino borbónico de Espanha e a República de Portugal. Eu, quase sempre contra quase todos os estados, não desejo particularmente recolocar essa isoglossa política ao leste da Galiza para integrá-la em Portugal (mas tampouco me escandalizaria). Eu desejo simplesmente ignorar essa falsa linha imaginária e, dentro da lógica do capital de que sou cúmplice, inserir-me, com as minhas crescentes limitações, num amplo âmbito linguístico e cultural lusófono, lusógrafo e universal onde por fim a maioria dos privilegiados trabalhadores da palavra dum país tão pequeno como a Galiza podamos reconhecer-nos na nossa humana mediocridade, longe das pompas culturais onde diversos grupos endogâmicos dilapidam periodicamente dinheiros necessários para combater a miséria (sim, a miséria) dos desempregados.


     Notas

[1] Obviamente, "strictement linguistique" deve ler-se como "estritamente estrutural", pois o "sociolinguístico" e o "estandardológico" também são "linguísticos".
[2] Nem a desintegração dirigida da República Federal de Jugoslávia nos últimos dez anos (cujos terríveis efeitos seguimos a viver no momento de escrever estas linhas, Maio 1999) é razão suficiente para cindir a realidade do servo-croata nos dous estandartes simbólicos da "língua sérvia" frente à "língua croata".
[3] As pequenas diferenças entre países são irrelevantes. Do meu ponto de vista, na altura a questão da elaboração do estilo na escrita galega é secundária: não se trata de impor subitamente todos os modismos portugueses, brasileiros ou moçambicanos possíveis mas, pola contra, de exercermos livremente a diferença... dentro do âmbito do português, não do espanhol.
[4] No Japão, por exemplo, ensinam-se e usam-se quatro sistemas de escrita (o knji, os silabários katakana e hiragana, e o alfabeto latino); Japão tem um dos índices de alfabetização mais altos do planeta.
[5] Talvez uma causa mais plausível da suposta dificuldade seja, por exemplo, que o orçamento dedicado à educação e cultura no Estado Espanhol é uma mínima parte do destinado ao exército é à indústria bélica.


     Referências bibliográficas

Alvarez Cáccamo, Celso e Mário J. Herrero Valeiro. 1996. "O continuum da escrita na Galiza: entre o espanhol e o português". Agália. Revista Internacional da Associaçom Galega da Língua 46, pp. 143-156.

Anderson, Benedict. 1983. Imagined communities: Reflections on the origin and spread of nationalism. London: Verso.

Bourdieu, Pierre. 1977. "The economics of linguistic exchanges". Social Science Information 16(6), pp. 645-668.

Bourdieu, Pierre. 1982. Ce que parler veut dire. Paris: Fayard.

Bourdieu, Pierre. 1990. In other words: Essays toward a reflexive sociology. Stanford: Stanford University Press.

Fernández del Riego, Francisco. 1932. "Fiesta sobor da lingua galega". A Fouce - periódico galego 50, p. 4.

Fernández Rei, Francisco. 1993. "La place de la langue galicienne dans les classifications traditionelles de la Romania et dans les classifications standardalogiques récentes". Plurilinguismes 6 (=Sociolinguistique galicienne, ed. por Xoán Paulo Rodríguez Yáñez), pp. 89-120.

Haugen, Einar. 1966. "Dialect, language, nation". American Anthropologist 68, pp. 922-935.

Herrero Valeiro, Mário J. 1993.. "Guerre des graphies et conflit glottopolitique: lignes de discourse dans la sociolinguistique galicienne". Plurilinguismes 6 (=Sociolinguistique galicienne, ed. por Xoán Paulo Rodríguez Yáñez), pp. 181-209.

 

 

 


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