Ao Daniel de Ferreiro, meu amigo...

 

(Texto íntegro)

 

v2monchodefidalgoaodanieldeferreiro.html

     Lembras-te, Daniel? Os macacos andam com a boca aberta e não há problema! Metemo-lhes um tição ardendo... Daniel era o meu colega de jogos infantis, seus brinquedos eram meus brinquedos. Quantas desventuras, meu amigo. Lembras-te? Quantos quilômetros andamos aquela vez seguindo as rodeiras estranhas numa manhãzinha fria e molhada, possivelmente num mês do inverno, mas daqueles invernos de tamancos e sobretudo de linho. Aqueles sim eram invernos frios! E lá nos fomos pelo caminho da Poça até chegarmos ao Agro e as rodeiras daquela máquina infernal seguiam o caminho ocupando-o e até ultrapassando-o, como um corpo voluptuoso que não entra no trajo... O cheiro da combustão inundava o espaço e gostávamos dele! E passamos o Agro e entramos no monte desde o que se olham vários povos da outra banda do vale... Cousinho, Abeledo... E de súbito num recanto da corga que já entrava nos limites do Cousinho nossos olhos quase que ficam sem pálpebras...
     —Deus, que é aquilo?
     Era um homem montado num aparelho estranho... Tinha umas rodas traseiras enormes, para nós eram gigantescas. Nossas apreciações dimensionais ficavam ultrapassadas.
     —Bota fume!
     O Daniel exclamou indicando com o dedo "fura-bolos"... Os dedos tinham seu nome, o senhor Antônio de Ferreirinho ensinara-nos a denominá-los "cientificamente": pequenino, medianinho, pai de todos, fura bolos e mata piolhos!
     O senhor Antônio de Ferreirinho era um grande tipo, certamente seu filho retrocedera na escala humana com respeito a seu pai. Foi um grande amigo dos miúdos de Vila velha.
     A chuva apertava, a névoa mais espessa fora-se lá detrás do Cotarelo, quiçá naquela altura da manhã estaria chegando a Sárria.
     —Em Sárria sempre há névoa, não se pode madrugar para ir à feira!
     Dizia o senhor Antônio.
     E o homem montado no estranho aparelho seguia seu caminho, ruidoso e monótono. As rodas gigantescas iam abaulando naquele caminho estreito e ziguezagueante. Alguns homens seguiam à máquina também admirados do fato de que "sessenta cavalos" mecânicos foram tão ruidosos!
     Aquele é que foi o nosso primeiro encontro com os tratores, com efeito, uma novidade. E após aquela fugida de Vila Velha havia que regressar! Lembras, Daniel? Eram tempos nos que os pais que tinham a possibilidade, além de lhes dar aos filhos chouriços, ovos, manteiga... também lhes davam vinho com açúcar, afirmavam ser ele bom para a "anemia"! E tu bem dele que engolis-te, mas não lho tomes a mal, eles faziam-no com boa fé. Mas tu ficas-te bêbedo para a vida, além desse mal que te atacava sem piedade... Agora é que aproveito para que desde arriba me escuses o meu pânico àquele mal estranho que che fazia tremer daquele jeito, que medo passava!
     E havia que regressar a Vila velha, o homem da máquina lá ia caminho da Matança e nós éramos tão miúdos que nossos pais andariam na nossa procura. Como naquela outra vez que lá nos marcháramos seguindo a linha de alta tensão que havia chegar à França... Asseguram que umas vezes é para trazer e outras para levar energia elétrica. E assim é que deve ser! Lembras-te?
     —Em chegando àquela montanha vê-se a França! —alguém de nós comentara—. Boa asneira.
     A um e a outro lado do caminho havia árvores que soltavam água com as suas canas penduradas como se fossem guarda-chuvas. Giestas gigantes em giesteiras escuras lembrava-nos a incerteza, o medo, o lobo ou quem sabe! Já ficava longe o rugir do trator, o monótono rugido daquela primeira máquina que nós tínhamos descoberto apenas se ouvia. Eu já não lembro bem como terminara aquela nossa aventura da perseguição do trator? Porém se tu recordas conta-lho a meu pai e desculpa-te em meu nome.
     Há macacos onde tu estás? E porquê aquele nosso medo aos macacos?
     A cozinha dos pais do Daniel achava-se naquela altura à esquerda uma vez que se tinha traspassado a porta de entrada do prédio. Um recinto amplo precedia à porta da cozinha, desse mesmo passadiço partia a escada para o andar superior assim como uma porta que conduzia para as cortes... A cozinha era típica, chamavam-se "econômicas", ignoro o porquê? Havia uma janela que dava para o horto.
     E ali estávamos, Daniel, os dous sozinhos e de súbito descobrimos que tínhamos medo, ou melhor dito, eu ia-me para minha casa mas tu para não ficares só inventas-te aquilo dos macacos:
     —Não te vás, aí fora há macacos e podem-te comer!
     O pânico invadiu-me e fiquei em silêncio, lembro que estávamos pintando com uma caneta nos azulejos brancos da própria cozinha, os que faziam de mesa. Mas tu deveste contagiar-te do meu medo que exclamas-te então:
     —Mas como andam sempre com a boca aberta, metemo-lhes um tição ardendo se entram na cozinha.
     Grande tipo aquele, mas também muito maluco o Daniel, segundo era ele de bom assim era de tolo, mas não merecia o final que o destino traidor lhe tinha assinado... Não é que acredite muito nisso do "destino" mas se o há, com o Daniel "passou-se" da raia!
     Era um dia cinzento, quiçá de outono ou quem sabe, é possível que de primavera, a "senhorita" andava nervosa, algo se passava pela sua cabeça que o ar estava carregado de partículas elétricas! A "senhorita", assim nos obrigava a que a chamáramos, era a mestra da escola, em paz esteja, afortunadamente para os miúdos daquelas terras!
     —Demo de bicha, malhou nele como se fosse um cão ao que arrebatar uma peça de caça! - assim é que falou o Daniel.
     Ele foi o meu melhor defensor, minha melhor testemunha para demonstrar que era inocente...Que não faria o rapaz para que a "senhorita" malhara nele até que o sangue lhe chegara aos pés? Mas eu nada fizera ainda que possa resultar impossível de crer... Aquelas mestras ao serviço da causa franquista e também, não esqueçamos, ao serviço da causa castelhanista mais radical e absolutista... Por falares em galego o mesmo che rompiam um dedo da mão que che abriam a cabeça como fizera a "senhorita" comigo...Eu apenas tinha onze anos e Daniel estava ali também para comprovar a crueldade dos servidores do ministério da educação espanhol. Mas eis o triste, a atitude dos inocentes "súbditos"; submissa e até considerando-se eles próprios os culpáveis... O que faltava.
     Se a vês lá, Daniel, dá-lhe recados da minha parte! Diz-lhe que afinal a verdade sempre chega, ainda que seja tarde, mas chega... Triste consolo, pois a verdade também chegou para as tribos índias da América, mas avondo tarde. Que digo, como vás tu estar no mesmo lugar, ela não era boa, se realmente Deus é justo não a terá enviado ao mesmo lugar que a ti, tu és bom, melhor, eras. Mas quem sabe, já vês que pelas alturas políticas há muita corrupção e ao melhor Franco tem aí montado um grupo de pressão, vai tu saber!!
     Faço-me a pergunta de se Deus será "castelhano" porque na Galiza seus "ministros" sempre exercem como se Deus ignorara que os galegos também somos da "bezerra"... Não sei o que significa essa expressão mas meu pai sempre a usava:
     —Nós também somos de "Deus como a bezerra"!!
     E meu pai era homem de muito mundo, sabe-lo... Um dia disse:
     —Jorginho, agora que te vás do ninho como um pássaro, a esvoaçar polo mundo, cumpre-me avisar-te dos problemas que podes vir a ter se te não comportas, meu filhinho. Sempre pacífico, sempre educado. Arreda-te da farfalha. Desconfia do muito requintado sem fundamento, - ainda o estou escutando, com aqueles olhos sempre vivazes e a espreitar.- Assim como a Terra gira à volta do Sol, a verdade sempre chega a seu destino.

Moncho de Fidalgo (José Ramom Rodrigues Fernandes)


 

 

 


logoDeputación logoBVG © 2006 Biblioteca Virtual Galega