Diário Comboio

 

"Berta"

 

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     Chegar à Escravitude foi como um recreio nas horas do colégio, o descanso para tomar a merenda e jogar com as amigas. Chegou um meio-dia de Outono fermoso e melancólico como deve ser qualquer dia de Outono. Berta baixou do comboio e aspirou fundo o odor do seu novo lar, deu-lhe a bem-vinda um cheiro a húmido, a fungo. Mas estava demasiado cansada para recriar-se naquele plácido estado de ánimo, tinha um monte de tempo por diante e naquele momento só desejava deitar-se, atirar-se nalgum lugar mole e dormir.
     Meteu as malas na sua nova casa e o cheirume húmido deixou-lhe passo a outro mais rançoso, o cheirume da escuridade, da claustrofobia. Nom se importou. Estava tam destroçada da viage que a sua mente nom podia abstrair mais que um pensamento: dormir. Depois de duas horas de sono estava renovada, com forças. Ergueu-se e mirou ao seu redor assustada, sem saber por onde ia começar. Antes de que a deseperaçom lhe ganhasse a batalha entrou em acçom, umha actividade febril que lhe impedisse a mais mínima fraqueza. Abriu todas as janelas da casa e deixou que os raios cor-de-laranja do atardecer tingissem os ocos, que deixassem cair a sua cor entre as caixas de embalage que a ameaçavam desde cada canto. Depois procurou a aparelhage de música e puxo um disco de Miles Davis, subiu o volume e deixou-se deslocar no tempo. Era-lhe fácil agora mover-se de diante atrás no tempo, fugir e regressar sem esforço. O tempo deixara de ter segredos para ela, fora capaz de dominá-lo com umha vontade férrea. Os amigos desesperavam-se perante a sua fortaleza, nom acreditavam, nom podiam compreender a sua determinaçom. Só ela sabia que dominar o tempo era só o prego ardendo das situaçons desesperadas, o fio a ponto de romper. Começou a desempacotar as caixas sem orde, arrancando os papéis de embalage, as fitas adesivas, até que deixou à vista todas as suas pertenças. Sentiu-se estripada. Viu todos aqueles objectos como se as vísceras da sua vida saíssem à superfície e começassem a sangrar, como umha hemorragia imparável dos seus anos. Mirou os livros que comprara, os discos, os objectos típicos adquiridos nas escassas viages, os úteis de qualquer cousa, as ferramentas de cozinha, os bosquejos que um dia quigérom ser quadros...Nom era fácil ver-se totalmente despida, ver a sua existência como pedaços de carne palpitantes espargidos pola casa. Sentiu que nom era capaz de voltar a pôr orde.
     Na Escravitude Berta fora um acontecimento, custava-lhe passear polos caminhos porque a rapaziada do lugar a perseguia esperando umha explicaçom. Soubera por acasos impossíveis que os vizinhos estavam alvoroçados, que lhe supunham maus amores e que nom lhe agoiravam nada bom morando como morava na casa de um suicida. Berta buscava a soidade dos lugares mais apartados e ali apareciam a Sra. Engrácia ou o velho Vicente que tentavam ganhar-lhe a partida à desídia dos reformados. Maldizia o dia em que decidira viver na Escravitude crendo que era o lugar perfeito para o esquecimento; as gentes aproximavam-se dela e assediavam-na com requerimentos sobre o seu passado. Mas aprendeu que nem sempre havia maldade nas suas perguntas, que nem sempre se tratava dumha ánsia insám de amanhar-lhe a vida aos demais; as mais das vezes tratava-se da curiosidade lógica dos que vivem com as únicas novidades da climatologia. Aprendeu a compartir a parte inócua da sua vida e alimentar assi os dias de aborrecimento dos povoadores da Escravitude:
     —Eu morava em Madrid.
     —Madrid (...) umha grande cidade, a capital (...) eu estivem em Madrid quando a guerra (...) si, ali a gente nom sabe nada (...), aprendem-no todo nos livros (...) e depois nom sabem tocar as cousas.
     Berta aprendera a escuitar ao velho Vicente sem desesperar com os seus silêncios. Dera-se conta de que as pausas eram a sua forma de estruturar as ideias, de pôr orde. Nom era fácil quando a memória se che virava louca e começava a misturar os actos do passado, os do presente, e os dos sonhos. Por isso tinha que parar-se cada pouco e deixar que os pensamentos se assentassem e seguir o fio da conversa.
     —Trabalhava numha empresa de congelados. Eu fazia-lhes a contabilidade, levava as contas. Era difícil porque vendiam muito e levava-me muito tempo.
     —O tempo, sempre o tempo (...) O tempo nom é tam mau como dim (...) nom, só há que saber usá-lo (...) nom há que escapar dele.
     O tempo há que saber usá-lo, pensou em Marcos. Marcos que lhe reclamava um pouco mais de vida. Ao fim, só lhe estava reclamando tempo. Mas ela nom o tinha, gastava-o todo em tentar quadrar umhas contas que nom quadravam para ter um salário a fim de mes e fazer-se a ilusom de que levava umha boa vida. A Marcos escapava-se-lhe a sua concepçom das cousas, nom percebia como podia preferir a possessom ao gozo, como sacrificava as horas para poder aumentar os zeros na sua conta . Ele nom entendia que essa era a compensaçom por todas as vezes que pediu e nom lhe dêrom, por todas as vezes que lhe negárom a capacidade de possessom. Ela podia conseguir o mesmo que qualquer um dos seus companheiros, um carro mais potente, umha televisom mais grande, um quadro mais caro...E Marcos no meio sem poder quadrar a Berta apaixonada que o enlouquecia polas noites com o frio da sua conta, a Berta mimosa que o acariciava polas manhás com cara de menina pura com as garras que lhe saiam quando falava do tempo. Nom podia conformar-se já mais com sobras, nom podia seguir mendigando os minutos de respiro que ela se dava.
     Explicara-lhe a Marcos que ia passar o seu tempo de soidade à Escravitude e Marcos ficara como um animal ferido, umha besta imobilizada. Berta iria-se viver para umha povoaçom desconhecida, com gentes desconhecidas, num tempo desconhecido; e ele, na cidade. O amor começou a dar-se-lhe a volta, sentiu que o tempo com Berta fora umha perda, um mal investimento; e entom véu o reverso, um ódio fundo que o ensurdeceu:
     —Que passa connosco, nom serviu de nada o tempo que estivemos juntos, acaba assi, sem mais?
     —Se queres pago-che umha indemnizaçom.
     —Tudo o reduzes a dinheiro-surdo para a ironia-, tudo na tua vida o reduzes a dinheiro. E tudo o que figem por ti, o que agüentei, o que te esperei?
     —No nosso contrato nom havia cláusulas que falassem de sacrifício.
     —Falas como umha contabilista, és gélida, nom che afecta nada. Da igual que seja o feito mais dramático, tu estás alheia. Nom serás capaz de saber nunca tudo o que che dei.
     —Si, deche-me o que che sobrava de amor e paixom, e deche-mo a mim porque fum a que se cruzou no teu caminho.
     —És injusta.
     —Sou sincera. Quero-te. E vou-me porque esta cidade vai-me matar.
     Depois Marcos fora-se e aos dous dias visitara-a para desculpar-se. Levara-lhe um poemário de Kavafis e umha última oferta:
     —Deixa-me ir contigo.
     —Nom, nom quero mais sacrifícios por mim. Aqui tês o teu trabalho, a tua gente, a tua vida. Reclamarás-me tudo o que perdas.
     —Seis meses som muito tempo para estares só.
     —Seis meses som a minha vida.
    

     Na casa mais próxima de Berta vivia Paco. Fora-se-lhe apresentar um dia e ela nom fora capaz de reagir. Mas depois houvo outras visitas. Com Paco sentia-se bem, sentia cada acto como necessário, como importante. Passavam muitas tardes juntos. Paco ajudava-lhe a instalar-se e ela acompanhava-o nos seus trabalhos tentando nom entorpecê-lo. Topava-se bem com Paco porque nom perguntava; compreendesse ou nom, ele nom perguntava. Esperava que ela falasse, e às vezes, nem sequer esperava. Estava ao seu lado sem pressa, sentava-se com um pedaço de teia em que começava a pintar, depois cosia e fazia roupa.
     —A mim a gente da Escravitude perdoa-me porque estou condenado.
     Falava da sua enfermidade sem medo nem pena, mas falava dos médicos com raiva. Estava cansado de que o mandassem de um lugar a outro a tirar-lhe sangue para depois dizer-lhe o que já sabia "tanto podes viver muitos anos como morrer numha semana".
     —Como se houvesse que estudar seis anos para saber que a morte chega quando quer.
Berta escuitava-o falar, produzia-lhe sossego tê-lo perto, era como umha espécie de áncora que te mantém no porto sem saber da sua força.
    

     Era de noite e umha mulher nova nom devia passear por umha cidade grande só. Rebelar-se contra essa lei era correr o risco de umha violaçom ou um assalto. Berta estava convencida dos seus actos nom estarem provocados pola rebeldia, caminhava só por Madrid porque necessitava esses momentos de calma na madrugada, desses momentos em que o tempo deixava de ter importáncia. Trocavam-se os papéis e era ela a que dirigia as suas horas, também era ela a que dirigia os seus passos e nom deixava que nengum medo lhe roubasse o prazer do desconhecido, assi que caminhava por qualquer rua madrilena a qualquer hora da noite sempre que o seu coraçom o solicitasse. E umha noite tivo a má sorte de pagar a violaçom dessa lei implacável, receber a navalhada dalgumha alma desesperada em busca da salvaçom numha fugida para adiante, e condenar-se aos quartos dum hospital durante meses.


     Berta aprendera a viver na Escravitude quando conseguiu aceitar que naquela vila a vida privada reduzia-se ao interior do cérebro. Aprendeu a deixar a porta aberta da sua casa sem medo, a receber visitas a qualquer hora, a consolar e escuitar. Talvez a soidade fora isso, um viver para fora sem dor nem pranto e um viver cara dentro agonizando. Recordava a primeira vez que falara com a Sra. Engrácia, a bruxa. Aparecera na sua casa com cara de horror a avisá-la da sua iminente morte se nom ia ver um médico. Lembrava a raiva que se apoderara do seu corpo virando-a cega. Depois fora a calma, e a decisom de converter-se também a essa vida calma da Escravitude. Nom poderia viver esquecida, assi que compartiria aquilo que lhe parecesse inócuo, pedaços da sua vida que flutuavam polos arrabaldes da sua alma. Aprendeu que na Escravitude as palavras sempre tinham um significado engadido, que nom importava o tema ou o sentido, o importante era sentir-se acompanhada, sentir-se parte desse conjunto imaginário que os convertia em povo, em grupo. Só seres como Paco se podiam livrar dessa maquinaria, seres que tinham do seu lado a desgraça. A soidade só era desculpada se havia um bom motivo, um mal que pudesse sumir o solitário na desesperaçom. Os vizinhos respeitavam Paco porque lhes dava lástima. Berta nom sentia lástima, odiava esse sentimento e desfigera-se dele. Sentia por Paco um carinho inexplicável, um carinho fruto da admiraçom. Admirava-o pola sua claridade, porque era capaz de falar-se da maneira mais crua que escuitara. Admirava-o porque nom fugia e esse feito servia-lhe a ela de espelho côncavo, devolvia-a reflectida dada a volta. Ela que nom sabia apenas mais que fugir: de Marcos, de Madrid, do tempo que fora o seu inimigo. Desprezava-se por nom ser capaz de enfrentar-se. Fora à Escravitude porque pensara que naquele lugar isolado se apartaria também dos seus pensamentos, se esqueceria das palavras inúteis que tratavam de consolá-la. As palavras converteram-se num cárcere opresivo, numha cadeia com a que se dava cabeçaços cada vez que escuitava "nom te preocupes, tudo vai sair bem". Palavras inúteis. Nada ia sair bem, nem mal. Nada ia sair. "Nom te preocupes, estaremos contigo sempre". Mas ela queria estar só, nom voltar a escuitar essa frase, preocupar-se, preocupar-se infinitamente porque a sua vida se convertia numha corredoira enlameada em que era incapaz de avançar. E foi-se à Escravitude para ganhar o direito a preocupar-se, para ficar sem forças, para deixar de agüentar. Nom te preocupes, tudo vai sair bem, tês que ser forte e agüentar. Foi-se à Escravitude para deixar-se derrotar, para que a vencesse o tempo e a tristeza.


     Os médicos tardárom meses em diagnosticá-la. Umha navalhada no fígado nom deveria ser difícil, uns pontos e todo arranjado. Mas começárom a fazer provas temerosos dalgumha enfermidade inominável, dalgum mal que nom se podia enfrentar de cara. Dêrom tantas voltas o dia que lhe comunicárom o seu cancro que temeu ser vítima dalgum erro médico. Mas nom, o seu cancro vinha de muito atrás, havia muito tempo que a doença lhe invadira as veias e começara a enfraquecê-la. Umha leucémia implacável que só se curaria com tratamentos caríssimos em cidades caríssimas.
     Berta deixou de escuitar no mesmo momento que ouviu a palavra cancro. Essa palavra nom era umha enfermidade, era umha condena. O barulho posterior, adjectivos inúteis que pretendiam prepará-la para o pior. Berta escuitou a palavra cancro e a morte apareceu-se-lhe como umha patada na cara. Tinha trinta e dous anos e via como a morte estava a ponto de arrebatá-la. Primeiro a tormenta, depois a calma.

 

 

 


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