O Senhor Argis

 

(Texto íntegro)

 

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     O vento batia forte nas janelas como se fosse uma noite de trovoada invernal, ainda que estávamos no mês de Abril assim o não parecia. O senhor Argis teimava em lembrar tempos da sua estadia no Mosteiro mas sua dona achava não ser o momento mais indicado! O Ricardo sim agradava das histórias... Vila Velha estava cheia de gente, vieram todos os tios do Ricardo.
     Antes de eu chegar, estivera ali meu irmão Jesus, vaia como era ele, tinham-lhe muito apego... Era um rapaz atrevido. Se precisavam cepar árvores no jardim, lá estava "o rapaz" para o fazer com determinação... Contavam-me —ele já se tinha ido quando eu cheguei— que incluso se tratava com o Abade que era como um Deus naquela altura... Meu amigo, qualquer se falava com o senhor Abade!!

     "Para se matar dum carvalho em baixo... Mira que responsabilidade tinham os putos curas. Qualquer se fiava, como para lhes confiar um filho pequeno, malandros!" A mãe do Ricardo zangava-se.

     Bom, tampouco era para tanto, o rapaz subia às árvores como um gatuno, trepava que dava encanto vê-lo! Mas trazia pistola e tudo, os padres facilitaram-lha, já sabes, tinham medo a que alguém vingara algumas ações que tiveram cometido lá pela altura da guerra civil, acho eu?

     Mas eu não queria estar ali nem a tiros, meu filho!! O nosso tio que morava com eles, bom fazia de religioso civil, digamos... magoava-se da nossa rebeldia. "Que tipos estes, não faço carreira deles." E com efeito, uns gajos é que éramos!

     E o vento ainda batia mais forte do que tinham anunciado os homens do tempo... E até a neve chegou de súbito, sem anúncio. Acaso já ninguém a esperava. O mês de Abril tinha começado com altas temperaturas e a gente esquecera que ainda era cedo para pôr os coiros ao sol!

     Vila Velha é uma excepção no país imediato, quando noutros lugares semelhantes os miúdos escasseiam, nesta aldeia há cinco. Abundância absoluta com cinco vizinhos habitando o lugar... Há seis casas, mas numa delas já não existe gente.

     Ricardo e mais a senhora Couceiro tinham ido ao país juntos pela primeira vez, casaram fazia uns dias e andavam na procura de conhecerem as famílias de ambos os dous. Coincidiram em Vila Velha com o senhor Argis e sua dona, tios do Ricardo. Ainda que ele fala a língua do país fá-lo com sotaque argentino, conseqüência dos quase cinqüenta anos de emigrante nesse país do Sul da América. Estudara nos seus anos moços com os monges do Mosteiro.

    
—E deu-lhe no peito!
     E depois de vinte anos na Argentina compreendi que ainda continuavam a se lembrarem daquela minha frase de quando andávamos a jogar no futebol e de súbito passou uma senhora e a bola bateu-lhe em todo o peito... E a mi se não me ocorreu outra cousa que dizer a já famosa frase... "E deu-lhe no peito!"
     "Sim, contaram-no-lo uns antigos companheiros dele que foram à Argentina, que engraçado!" Disse a dona do Argis, mas em castelhano.

     Ricardo sempre escutava com muito agrado as histórias de seu tio da Argentina, assim é que o diferenciava dos outros sete tios maternos, nove em total contando a mãe e ao próprio contador de histórias. Três varões e seis fêmeas.

     Mas quem me mandaria a mi emigrar à Argentina? Faço-me essa pergunta ainda hoje uma e outra vez, e uma e mil vezes não acho resposta. Eu nos meus anos moços andei estudando, além do Mosteiro, em todas as aulas que davam cá mestres particulares... Durante alguns meses assisti às aulas que oferecia um professor lá em Vila Maior. Muitos medos passava ao regressar para casa nas noites fechas!! Névoa, chuva e até trovoadas ! Um amigo do lugar arranjava-me uma facha de palhas à que lhe prendia lume e assim chegava à casa. Andara na procura de uma preparação acadêmica para me apresentar às "oposições" que naquela altura da história, após a Segunda Guerra Mundial, havia para "factor" da Renfe... Os caminhos de ferro eram a única saída proletária que ficava naquela Espanha famélica e atrasada, falta de liberdade até ao infinito... Mas que cousas! Nem conta nos dávamos. É triste, mas é assim.
     Ricardo procurava de seu tio histórias duma época da que ele ignorava avondo. Quiçá têm contribuído à mitificação a sua ausência nos anos da criança... Quando miúdo, as irmãs mais jovens do Argis, as tias pois do Ricardo, contavam cousas formosas e belas dele, sem dúvida magnificadas na imaginação das duas jovens, Júlia e Carmo. "Este rapaz é igual que seu tio da Argentina... É hábil como ele..."

     E lá marchei ao exame para "factor" a Madrid... Mas sem qualquer esperança, quem tinha padrinho baptizava-se, quem não ficava fora da pia!! E eu não tinha padrinho... Lá também foi um palerma desta comarca que eu conhecia... ele afinal lograra encaixar de "factor" na Renfe. Mas a tudo isto, meu cunhado, o marido da minha irmã Lola, já estava morando cá na casa. Casaram e apesar dum primeiro intento de emigrarem para o Brasil afinal ficaram na casa de herdeiros.

     Teu pai, porém, andara já nessas terras de Deus ou do Cáucaso que tanto gostava ele de lembrar. Passado o tempo um sabe agora o porquê ele dizia que aquelas gentes os tinham acolhido de bom grado. Mádia leva!! Um discutia com ele: " como é que iam acolher-vos de bom grado se fostes invadi-los?" Com o passo do tempo e acontecido o que teve lugar na Chechénia, república caucásica, terminas compreendendo que certamente eram inimigos dos russos já naquela altura.
     Que cousas! Lembram? Da outra vez que estivemos cá andavam a ciscar bombas acima do Iraque e agora andam a deitá-las na Sérvia. Semelha que quando nós vimos a Europa alguém tem que guerrear!
     Eu já tinha passado pela tortura do exame para "factor"... Os nervos fugiram e a tranquilidade do que já nada tem que perder regressaram a meu ser. Lá fui à Estação do Norte para informar-me da saída dos comboios para a Galiza... E como caído do céu apareceu teu pai com aquele dinamismo endemoninhado que contagiava e que a vezes os que andavam a seu carão sentiam o complexo de eles serem tartarugas... Trazia duas malas, numa um presunto curadinho e chouriços... Ele ia para o pirineu, lá numa cadeia estava um irmão seu preso a causa da política, já vês, que motivos políticos nem vaia que morto! Só porque lutara no bando contrário a Franco! Em fim, que para lá ia com uma carta de Muñoz Grande, o General que os tinha mandado na frente de Rússia... E também uma carta da Duquesa de Alba.

     "Que engraçado, nada tinha ouvido eu nisso! Nada me tinha contado... E isso que sim me relatava histórias da Divisão Azul, ainda há pouco tempo li nos jornais sobre o cemitério de "Nogró", não lembro se assim é como se escreve?"

     O Ricardo sente a curiosidade dum miúdo, toma um golo de vinho de colheita própria e faz um silêncio indicativo...

     Foi segundo ele muito simples, no mesmo compartimento do comboio que os levava para Madrid, pelos vistos em Valladolid montaram duas senhoras muito lindas... Ele naqueles anos convém não esquecer que regressara da guerra em Rússia, já sabes, era jovem e bom moço, além de falangueiro. O caso é que deu de provar chouriços àquelas senhoras, elas gostaram do antigo combatente em Rússia e vinham a ser empregadas qualificadas da Casa de Alba! Assim chegados a Madrid elas corresponderam a meu cunhado com um convite onde lhe apresentaram à Duquesa!
     "Muito tendes rido com aquela história da comissaria, não é? Que coincidências passam, eh? Vaia cousas"...

     Cala, cala! quando chegáramos ao comissariado... Tínhamos ido denunciar um tipo que nos fizera uma asneira boa... "Como é que disse que se chama você?" Ele estendeu o bilhete de identidade e fizeram-nos esperar um bocadinho... Seica andavam na procura dum sujeito que coincidia em tudo com teu pai!! Ainda bem que naquela altura ter sido soldado da Divisão Azul era um privilégio, assim que aos poucos estávamos livres.

     O facto foi que quando andávamos na busca de alguém que nos informasse da saída dos comboios, um indivíduo muito requintado ofereceu-se e ainda depois tomáramos umas cervejas num bar, e claro, faltava avondo tempo e o sujeito oferecera-nos passagem com reserva e tudo! Assim que confiamos algo nele. Deixamos as malas naquele bar e fomos arranjar algumas cousas. Mas após um tempo o meu cunhado soltou um mata Deus e eu fiquei temeroso... Temi que algo mau lhe acontecera!
    
Malandro de tipo! Imos lá, estou certo de que as malas já têm dono...
     Assim foi, quando chegamos ao lugar onde as deixáramos guardadas disse a senhora:
    
As malas levou-as o senhor que estava com vocês... Disse que mudaram de idéia!?
     Que contrariedade, o meu cunhado lamentava, mas como era que lhe acontecera a ele aquilo após dos quilômetros que andara polo mundo?

     "Era uma noite fecha, não se via um burro a três passos! Já não lembro que mês do ano, nem tampouco o ano... Eu teria onze, quiçá dez anos e os relógios marcavam possivelmente as onze da noite... Era inverno, disso lembro-me."

     Pois menos mal que te lembras de algo
—disse o Argis sorrindo.
     "Saíamos das aulas que oferecia naquelas datas o senhor abade da paróquia... D. José. Um padre muito rígido com as normas da igreja oficial, um conservador administrativo, mas boa gente! Franco teria os anos que agora tem o chefe do Estado, ou quiçá menos. Bom, tampouco é que eu seja mais velho que Matusalém mas já choveu... Como ia dizendo, a noite fecha, não se via nada, quando regressávamos para Vila Velha, ao passar Noilám ouvimos o lobo uivar lá na cima das penas... As penas eram umas lajes que havia à parte de cima do caminho, lugar polo que os miúdos arrastávamos o cu imitando um esqui pela neve... Isso desapareceu com a construção da pista."

     Ainda lembro eu, antes de me marchar para a Argentina já baixávamos nelas...
     "Bom, logo sabes do que falo. O lobo seguia uivando, a mi tremiam-me as pernas... O lobo fero, o dos contos à lareira, o come-homens estava agora ali, à beira do caminho... Pobre lobo, quem inventaria aqueles contos tão criminosos para um animal tão nobre? A cada momento ouvia-se mais forte o lobo... No grupo íamos meu irmão, algum vizinho próximo à sua idade que agora não lembro, o Luís da Caseta e também um homem maior que não recordo... E eu, claro, o que mais medo tinha."

    
Agora não vos ides, ceamos na minha casa e quando se tenha ido o lobo já vos marchareis disse o Luís.
     "Deus te escute, cavilei eu polo baixinho... Mas não foi preciso, os alaridos do lobo eram imitações do Manolo de Caseiro que sabia que àquela hora saíamos das aulas noturnas e quis desfrutar do medo alheio."

     Aquela noite o senhor Argis dera por concluída a reunião, ia-se cedo à cama, após as notícias enfiou para o quarto que ocupava naqueles dias... O Ricardo ainda continuou algum tempo na cozinha... Uma dependência ampla, com cozinha de lenha e de gás, além de fazer as vezes de comedor, despensa e até sala de honra... Lembrou aqueles anos da sua infância, estudava, agora na sua memória, nos Salesianos, tinha só quinze anos, quiçá menos, já morava em Madrid... No colégio dos Salesianos organizaram uma excursão à serra, além de terem passado primeiro pelo Vale dos Caídos para honrarem a obra de Franco. Daquela estava vivo, e bem vivo! Mas Ricardo não reparava em política, ainda mais, tinham-lhe atemorizado com a desgraça que suporia a morte do "Generalíssimo".

    
Poderia haver guerra!
     Se havia guerra voltariam os "escapados", os "fugidos" , quem sabe! O fim do mundo... Mas Franco morreu e o fim do mundo não teve lugar, felizmente.

     O Ricardo era um menino camponês, resultava um chis estranho a sua existência entre outros moços da urbe. Ele era rude nos jeitos, astuto nos jogos pela experiência que lhe tinha dado a dureza do meio, na aldeia. Era capaz de fabricar um brinquedo de pataca ou uma carretilha com duas tábuas... Isso impressionava nos meninos da urbe, afeitos à inutilidade dos que recebem tudo feito.

     Nevara, brincaram, jogaram futebol e caminharam pelas pistas nevadas do parque florestal. Ele metera o golo da vitória da sua equipa, que contente! E agora voltava a Cercedilha... Mas acompanhado dum espírito bom. Duma menina de olhos grandes e belos, com ele ia agora uma alma étnicamente gêmea, uma seleta cidadã do dez por cento! Ele é que inventou o princípio do dez por cento... aqueles que pensam, duma banda, e na outra os que caminham segundo as instruções da televisão, são aqueles que usam o cérebro só para debuxar banalidades num mundo possuído pelo dinheiro e a injustiça. Mas a "Jóia" é, como ele próprio, do dez por cento.

     Daquelas lembranças da primeira visita a Cercedilha apenas guardava num recanto de seu cérebro quatro cousas, um bosque de árvores e uma paisagem nevada... Da última viagem sim achou uma nova sensação. Nestoutra visita os parques guardavam poesia nos bancos, os cantos dos pássaros converteram-se em sons musicais de belo ritmo... As ruas estreitas e encostadas da vila guardavam semelhanças com cidades míticas... Tudo naquele dia acontecera dum jeito formoso.

     O Ricardo fazia repasso das surpresas que tinham acontecido na sua vida nos últimos dous anos... Considerava-se uma pessoa feliz, agora sim tinha sentido a sua existência. Uma vida carregada de possibilidades futuras e um passado para se não deixar influir por ele, para tirar ensinança dos erros e aproveitar a sabedoria dos factos acontecidos. Como quem vai polarizando-se só de eletrões, ou protões, segundo eles interessarem... Acaso seja o "Karma" do que falam os budistas, enfim. Ricardo estava com novos pulos, muito animado, afinal a luz ia-se fazendo no seu caminho.

     Todos tinham enfiado já para a cama, o tempo piorara... No silêncio da noite agora o antigo estudante dos Salesianos de Atocha em Madrid, o viajante em Cercedilha, primeiro naquela altura e depois com a Couceiro fazia apenas uns meses folheava papeis arquivados, entre eles uma primeira carta para a senhora Couceiro, a Jóia, assim é que lhe chamava:

     "...Minha Jóia, pouco é que che tenho que contar hoje, terminei de ler um livro português onde a personagem central fala com o retrato da sua defunta mulher... de António Tabucchi... Uma chamada de telefone, algumas notícias da Galiza, esse país onde a marginalidade reina para aqueles espíritos mais críticos e livres do momento. Enfim, esqueçamos agora os reaccionários e procuremos a felicidade no nosso mundo que é alheio felizmente às camarilhas de poderosos... O nosso mundo é o do dez por cento, ou ainda do cinco por cento... Mas o futuro foi sempre duma minoria... Aquela teoria das massas é falsa, na realidade são guiados por um feixe bem pequeno de líderes!!

     Também li uma entrevista que publica o "El País" ao líder galego onde se fala do cavernícola que é a igreja na Galiza... Contrária à consciência do povo galego, negando o direito elementar do uso da língua própria.

     Um dia que se vai e eu lembro agora tempos também idos, eram dias crus de inverno, agora parece-me que já não faz tanto frio como daquela! Bom, o caso é que os "carambelos" que penduravam dos beirados eram de dimensões consideráveis, agora os não vejo quando vou pela terra.

     Aproximam-se os dias da matança dos porcos da ceva, nós matávamo-los ao redor do Natal, e já está aí !! Depois meu pai continuava de "matachim" pelas aldeias próximas quase dous meses mais... Hoje é o dia 21 de Dezembro, mas o "matachim" já não está com nós, deixou-nos no passado Maio... Tu seguramente dirás que é o que eu vou dizer dele, mas podo-te afirmar que outro assim não nascerá em Vila Velha nos vindoiros cem anos, aliás ele nascera em Castelo de Loureiro... Originário dos Bastiáns e os Queixomariu...

     Eu pelas manhãzinhas ia correndo do meu quarto, dormia com meu irmão, ao colgadoiro da roupa que havia no comedor, ali estava o seu casaco de coiro de vaca, nas suas algibeiras ele sempre guardava uma cheia de doces para mi, das ceias de farra que eram as "matanças". Que lembranças daquelas manhãzinhas de inverno!"

     O Ricardo dormitava despreocupado do que se passava no mundo. Sua dona já erguera como sempre o fazia, antes que ele.

     Agora vestia calças de Domingo anos setenta, penteava-se ao espelho, guedelha longa e negra... Escutava a balbúrdia da gente que se encontrava no andar inferior da casa de Vila Velha. Estava a se arranjar para ir ao moínho... O tam tam dos trebelhos aqueles moendo no sonho do Ricardo fazia na imaginação uma cena quase realista, bom, quiçá surrealista!

     Quando acordou deu-se um duche de água fria contrariando a sua mãe... "Mas como estás tão louco filho... Vai-te dar algo... "

     Eram dias de vagar, a vida percorria seguindo uma inércia estupidamente monótona, dormia-se, fazia-se o amor, comia-se, caminhava-se... Na cabeça do recém casado havia uma confusão amorosa importante, podia-se dizer que pensava em todas quantas formas verbais existem... A vezes não diferenciava se algo estava a acontecer ou era um sonho... Quiçá uma lembrança? Duma cousa estava certo, estava namorado da mulher, disso não havia dúvida.

     O Mosteiro está tal qual, como quando eu estivem morando lá de estudante, bom, temos que considerar que a nós não se nos permitia entrar em todas as dependências... Além de haver duas classes de alunos, os pobre e os ricos... Faltaria mais! Eu era dos que estava lá por esmola, convém não esquecer.
     Acima da cozinha havia dous potes cheios de verdura: feijões e grelos... Uma fonte de louça percorria a mesa, continha chouriços que picavam e outros menos. Também havia ovos, bifes, ervanços... Enfim, eram as treze tocava jantar! O senhor Argis e o Ricardo falavam e falavam... O resto dos comensais opinavam também.

     E logo que santo celebraremos hoje? Isto é vida! Que tempos, quando eu fui para a Argentina olhava aquelas mesas cheias de carne, que riqueza, lembrava-me da fome que deixara cá... Quem me dera a metade do que se atirava para lhe dar aos meus irmãos e pais.
     "...Naquela altura só viviam bem os sacerdotes... "
Disse a irmã do senhor Argis.
     Mádia leva! Bem cho sei eu? E logo claro, ainda hoje estão agradecidos ao regime do Franco... Lembras-te, irmã, quando fomos de visita ao Mosteiro?
     A irmã assentiu com a cabeça, não era amiga de frades nem monjas, e menos de abades e abadessas!

     Quando visitamos a sala de presentes que tinham dado as personagens que por ali passaram... Franco, Fraga... 
     "...E também o primo de meu homem, o dono de Sárria doutros tempos!"

     Mas já morreu, menos mal que também morrem... Só faltaria! Quando íamos percorrendo a sala, o padre Facundo exclamou arregalando os olhos:
     "
—Este hombre está en el cielo. Hizo mucho bien a la causa!"
     Estávamos ante a fotografia do general Franco... Mas já vem, apesar do Mosteiro de ser fundado para educar nele os futuros reis da Galiza, seus moradores de hoje pouco têm a ver com aquela causa... Obviamente não era essa a causa da que falara o padre Facundo!
     Mas quando eu cheguei à Argentina sofri muito, é uma caralhada, chegas da aldeia, tens-lhe medo até ao telefone! Riam-se de mi, gallego arriba gallego abaixo... Havia um valenciano que muito lhe magoava que lhe chamaram galego... "Pero yo no soy gallego...!" Que mal o passava o pobre do rapaz... Bom, no fundo era para insultar a todos os espanhóis, ainda morava Franco no Pardo, que sei eu, olha! Mas lá no Centro Galego tinham muita actividade galega... Havia um de Ponte Vedra, um tal António Medeiro, que mitins dava, mas pouco caso lhe fazíamos, a gente não desejava lios... Ele é que colhia uns cabreios. "...Botam-nos do país, roubam-nos tudo, e acima estes burros de carga andam a defender à Espanha mais que se foram mesmo castelhanos..." Ele criticava aos galegos porque opinava que não deveríamos de ser mais "papistas que o próprio papa."

     "É que não lhe faltava razão, meu caro. Um pode mesmo não opinar por prudência, mas há circunstâncias nas que um silêncio evita-che problemas de identidade..."
O Ricardo era o cafezeiro, e enquanto punha ao lume a italiana opinava.
     Voltando ao Mosteiro, lá estava também um rapaz de Vila Maior, acho que se chamava Luis, também ele era da rapaziada pobre, como já disse, os ricos estavam noutro nível tanto educativo quanto nos serviços de intendência. Comiam melhor, tinham melhores quartos... Com efeito, eles eram os futuros frades do regime. Aquele Luís e eu éramos confidentes das nossas próprias falcatruadas... Contávamo-nos as cousas que nos aconteciam, nossas angustias. Ele estivera de caseiro com seus pais na casa duma senhora: "Casa Grande" de não sei onde... Agora não lembro. Namorara loucamente da menina da casa, filha da senhora... Pobre rapaz, que namoradinho ele estava! Contava-me cousas dela: "...É ruiva como os trigais da agra de Sam Martinho! Tem uns cabelos longos, semelha uma virgem..."
     Já tinham passado uns quantos acontecimentos, alguns valhões também haviam caído nos campos de Vila Velha... Os pássaros da primavera chegaram, estavam revoando os espaços sem trégua. As andorinhas pretas andavam a restaurar os ninhos, a bom seguro cheios de teias de aranhas.

     Bom tempo ao fim! O senhor Argis caminhava com lentidão pela estrada rural que vai de Vila Velha a Frugil, passando por Noilám e ainda outros lugares mais. O Ricardo também ia devagar acompanhando-o no seu passeio de tarde baixa... Desde o "Coiso Velho" já se ve Frugil, também Rubiám e até o Íncio.

     Como são as cousas da vida, olha lá... Há sucessos que aconteceram há muitos anos e porém para a minha memória estão aí à volta! Mas outros semelha que têm sucedido faz um milhão de anos. Quando éramos rapazes íamos muito a Frugil, à casa do nosso tio, melhor dito, à casa da sua dona, pois afinal a proprietária era ela. Aquelas anedotas sim as tenho frescas, corríamos com os outros miúdos por aqueles caminhos de Frugil que no verão dava gosto, mas no inverno estavam cheios de lama. Que calores passávamos lá no Monte, quando chegava a seitura, a sega do pão, trabalhávamos duro mas era uma festa... Cantávamos cantigas populares e depois na noite dedicávamo-nos a nos meter medo uns aos outros.
     Naquele instante os dous, tio e sobrinho, caminhavam à altura do novo cemitério paroquial que se construiu na parte de abaixo do Coiso Velho ou na de cima da estrada que leva à Igreja românica que existe neste lugar, com efeito, a desídia do responsável religioso, obviamente o senhor abade, levou à ruína, ou quase, o monumento por lhe terem inserido um cemitério arredor do prédio. Uma catástrofe.

     Como che ia dizendo, numa ocasião achávamo-nos os miúdos na casa dos tios de Frugil e quando regressávamos para Vila Velha, então vínhamos por um carreiro de a pé, cá onde se acha hoje este cemitério produziu-se um facto incrível, acaso se o não vira, com certeza não acreditaria nele... De súbito uma explosão alumiou todo o montículo que agora estás a olhar e neste mesmo lugar, com a luz daquele fenómeno, já então havia um cemitério tal e como o estás a contemplar agora... Amiguinho, aquilo foi tétrico de verdade. Meus irmãos e mais eu abraçámo-nos e ficamos paralisados, até chegarmos à casa não cruzamos palavra uns com os outros. Só lembro que vínhamos os miúdos, os pais ficaram lá em Frugil... Era uma noite aquela escura e propícia para as meigas! Passados alguns anos atrevemo-nos a falar no sucesso aquele, ríamos e até o atribuímos ao medo que nos atenazava, mas passados ainda mais anos fiquei bem surpreendido ao contemplar isto construído aí.
     O Ricardo olhou de cima para abaixo a seu tio, não acreditava segundo a expressão... Guardou silêncio, virou a cabeça para o cemitério e voltou de novo a vista para o senhor Argis e sorriu incrédulo.

     Já sei que é difícil de crer, mas é assim como cho conto!

     Eu ia muito a Frugil, como disse, e tenho muitas cousas guardadas cá, nesta memória que apesar de ter andado pelos caminhos de Deus ainda as conservo, e é mais, tal semelhe que com o passo do tempo vou recuperando cousas que ficaram adormecidas... Uma delas é uma história que a ninguém tenho contado porque ninguém acreditaria, e acho que tu tampouco acreditarás, mas ainda assim é certo... De Frugil para a Matança há uma cordilheira interessante, quando eu era miúdo acompanhava aos moços com o gado para estes montes que tinham muito de comer para as vacas... Iam tanto os vizinhos dos meus primos como eles próprios, rifavam-se as possibilidades: " imos ver, ou ides com as vacas ou a roçar nos tojos, também tendes a possibilidade de fazer os regos do lameiro do Regueiral"? Não havia dúvidas, todos pediam ir com as vacas para o monte!!

     Agora já não me seria possível acertar onde é que está a "Cova da Moura" mas lembro que se acha nessa cordilheira que já che disse que vai de Frugil à Matança. Apenas uma entrada angusta entre duas lajes como meio deitadas, quiçá fazendo um ângulo de trinta graus com respeito à linha horizontal, quiçá menos... Mas quando traspassavas aquela entrada certamente oculta abria-se perante os teus olhos um mundo diferente, como saído dum livro árabe de fábulas. Aos pequenos não nos permitiam passar dentro da cova. Metiam-nos medo os moços: " a Moura pode-vos fazer dano, só quer tratos com os que temos força no arado!" Eu então não sabia por que havíamos ter um arado!

     O Ricardo soltou a rir como se estivesse a olhar um filme cômico. Não dizia nada que pudera fazer compreender a seu tio que não acreditava na história. Mas realmente é que não lhe resultava crível.

     Um dia com outro miúdo da minha idade adentramo-nos na cova sem que os de mais idade se decatassem... Ficamos alelados, meu amigo, havia dentro toda uma cidade. Uns cânticos belíssimos saíam das profundidades sem que lográssemos olhar mais alá, apenas uma moça amorada, mas a nós pareceu-nos muito bela. Fez-nos sinais com uma mão, mas nós saímos da cova como se nos tiver olhado o mesmo demo!
     "Acaso o lar duma família de ciganos? Pois da Moura não me parece aceitável... De ser-se assim transcenderia a nossos dias, e desde logo eu posso-te assegurar que na minha infância também andei nessa cordilheira e nada achei relacionado com os mouros e menos com uma Moura bela que bebera a força dos arados adolescentes!!"

     Os ciganos naquela altura não vestiam com aqueles trajes e com aquelas jóias nem possuíam a beleza daquela moça que eu vi. Posso assegurar que andei alguns anos lembrando-a, namorado como um parvo!
     Uns instantes tio e sobrinho caminharam em silêncio, quiçá para irem assimilando a história da que eram partícipes ambos.

     Bom, sei que há uma história popular quanto à cova, ainda mais, houve coplas à venda pelas feiras...
     " ...Uns meninos do lugar brincando num frio mês de dezembro adentraram-se numa cova do monte, reclamados por um delicioso aroma e uns sons celestiais nunca ouvidos..."

     Assim é que o descreviam nos papéis, lembro de memória porque tive que o ler mais duma vez, era tema de leitura nas reuniões clandestinas do partido.
     "...Os meninos contaram logo na aldeia o sucedido mas ninguém acreditou na sua palavra inocente.

    
—Fantasias! —exclamaram os maiores.
     Mas eu tive a paciência de lhes escutar a sua história —dizia o relator—. Desde então venho todos os dezembros à cova secreta do Marechal... Só eu conheço a sua localização. Os miúdos que me contaram a história pereceram os coitados num acidente quando se dirigiam à escola.

     Lembro que os meninos ficaram impressionados pela barba ruiva do Marechal que os convidou a merendar na sua subterrânea morada, contavam-no com grande alvoroço. As suas roupas antigas, a sua espada e uma voz grave e enérgica mas carinhosa e cálida cativou-os.
     Como não ia eu acreditar na história dos miúdos! Falou-lhes de 1483, de sua resistência aos castelhanos... da Ponte do Passatempo e da sua fortaleza, A Frouseira!

     Quem saiba um mínimo de história proibida compreenderá asinha que uns miúdos não inventariam uma fantasia dum tema destas características:

    
—Credo, credo... Viva o Marechal —exclamaram os miúdos imitando uma estranha voz.
     Queriam vingar o sangue do Marechal. Eu venho todos os dezembros à cova, nunca vi nenhum Marechal, mas sempre percebo um aroma estranho que me desassossega. Não o posso descrever com meu limitado vocabulário de mortal. Precisaria de uma linguagem, como a que seguramente usa o Marechal, para exprimir as sensações que sinto nesses instantes felizes que permaneço na cova.

     Eu sei que um dia o espírito rebelde do Marechal emergirá nesta nossa terra, como o espírito dos grandes homens um dia virão para saudar-nos e anunciar a existência dos perdedores ao mundo inteiro..."

     Aquela história continuava mais e mais... Eu já só lembro esse pouquinho.
    

 

 

 


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