Para umha leitura de Folhas Novas

 

(Texto íntegro)

 

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l. INTRODUÇOM

     O achegamento a umha obra como Folhas Novas está sempre cheo de riscos; o primeiro deles advém de escrever um discurso sobre os múltiplos discursos que sobre Rosalia se fixérom, o outro existe se pretendemos conferir-lhe ao nosso discurso um valor universalizante do que nós queremos ficar à marge.
     É a nossa umha leitura «individual», o fruto de um diálogo enormemente gratificante com a própria obra rosaliana, e é precisamente desde essa consciência de ser umha «Ieitura individual» que nos atrevemos a fazer algumhas interpretaçons e a sugerir questons, se cadra pouco ortodoxas.
     Do que si estamos certos é de que só umha obra de grande intensidade como a que nos ocupa, só umha poetisa universal como Rosalia, pode produzir umha tal variedade de discursos críticos. Estejamos ou nom de acordo —total ou parcialmente
— com alguns deles, a sua existência mesma di-nos da importáncia da sua autora —se falarmos em termos valorativos— ou da riqueza expressiva, da capacidade encantatória do discurso rosaliano.
     Queremos brevemente contextualizar o livro objecto da presente ediç
om, de aí os apartados dedicados à vida, cronologia da obra e a Cantares Galhegos; logo a seguir pretendemos dar umha espécie de «Iinhas de leitura» sobre Folhas Novas, sem intençom de esgotá-las todas e, repetimos, com um critério moi persoal. Queremos tamém fugir de qualquer tipo de intepretaçom biografista, primeiro porque achamos que nom existem elementos que desde o ponto de vista literário a justifiquem, e segundo, porque moitas vezes tentou-se reduzir a obra de Rosalia a um reflexo da vida da própria autora, como um jeito de limitar o valor e a importáncia universal, profunda —e esta si literária— do texto em si. Isto nom quere dizer que neguemos «a priori» tal possibilidade; moitos já a tenhem ensaiado, e umha reconstruçom biográfica a partir dos textos, o mesmo que umha leitura psicanalítica «séria» da obra da escritora seriam de grande interesse, embora, por enquanto, isso esteja fora das nossas procupaçons.
     Partimos da consideraçom do texto como umha unidade onde intervenhem variados factores, variados códigos, cuja inter-relaçom e inter-dependência configuram o próprio texto; descodificá-los significa compreender o texto como totalidade, significa (re)criar o texto sabendo que este existe no momento em que eu, leitor, ou «consciência ledora» que diria Eduardo Lourenço, me apróprio del.
     Finalmente, e ainda que nom seja um tema tratado neste prólogo, sabemos que Rosalia transcende a sua própria obra e adquire um valor social, cultural e político que num contexto de literatura nom normalizada como a galega tem enorme interesse; e é essa importáncia junto com a literária, a que levou a umha mitificaçom da autora, explicável, mas nem sempre justificável, e é a que ainda fai esperar moitas leituras, desde diferentes perspectivas que, se falam, e isso em primeiro lugar, da pervivência e vitalidade, e mesmo das contradiçons, da nossa cultura.


II. NOTÍCIA BIOGRÁFICA

     O 24 de fevreiro de 1837 nace em Santiago de Compostela Maria Rosalia Rita de Castro (
1), filha de Dona Tareija de Castro Abadia, natural das terras de lria Flávia, solteira e de família afidalgada, e de Dom José Martínez Viojo, clérigo, e natural de Ortonho.
     Os primeiros tempos da sua infáncia pasou-nos Rosalia em Ortonho e logo despois em Padróm, anos importantes pois que Ihe permitem conhecer directamente a realidade de umha Galiza rural, precapitalista, submetida a umha profunda crise, padecendo umha aguda e secular explotaçom política, económica e cultural. Este conhecimento condiciona, em boa medida, os posicionamentos persoais e literários da nossa escritora. Esse mundo rural sempre presente na poetisa galega irá-lhe fornecer, aliás, temas e recursos literários que se evidenciam na sua obra.
     Por volta de 1853 Rosalia está com a sua nai em Santiago. Ao que parece, e assi é admitido polos seus biógrafos, Rosalia freqüenta a «Sociedad Económica de Amigos del País», instituiçom de tendência liberal e ilustrada, o mesmo que o «Liceo de la Juventud», no que ela vai completar a sua educaçom. É nesta cidade onde a jovem Rosalia entra em contacto directo com a intelectualidade galega, daquela radicada em Santiago: Aguirre, Pondal, Rodriguez Seoane, Fernández Araciles...
     Cremos que deve ser sublinhada a estadia compostelana de Rosalia, pois aqui começa, ou continua, umha formaçom que supera a da média das mulheres do seu tempo e onde, aliás, o contacto com os intelectuais, a maioria deles de ideas progressistas e avançadas, viria a conformar definitivamente a personalidade da escritora, marcando os rumos das suas tendências ideológicas, o que é de vital importáncia para umha mulher que, como de resto as mulheres da sua época, estava obrigada a um permanente auto-didactismo. 
     Em 1856, Rosalia vai para Madrid, viage que Francisco Rodríguez (2) relaciona com umha vontade de «viver pola sua conta», à que, se cadrar, viria a somar-se um desengano amoroso. Com todo é preciso sublinhar essa vontade de independência que é clara em Rosalia, nem sempre conseguida, mas sempre manifestada. Ali publica La Flor, o seu primeiro livro e com este motivo, como repetidamente assinala Carvalho Calero, conhece a Manuel Murguia, com o que viria casar em 1858. Este matrimonio vai unir já para sempre o nome de ambos os escritores, os dous imprescindíveis para entendermos o ressurgir político e cultural da Galiza no séc. XIX. Se Rosalia demostrou sempre umha decidida vontade de dedicar-se à literatura de um jeito profissional e total, e nom meramente episódico, topou em Murguia a comprensom do polígrafo e patriarca das Letras Galegas que procurou sempre favorecer a ediçom da obra da escritora; mas tamém é verdade que se é preciso fazer justiça a Dom Manuel Murguia polo empenho demostrado no apoio que como escritora deu à sua mulher, nom é menos verdade que foi tamém el o que criou os primeiros elementos para umha mitificaçom-tergiversaçom da própria autora, pois sobrevivendo em bastantes anos à sua mulher encarregou-se da ediçom dos seus livros, eliminando o que bem Ihe pareceu, engadindo o que creu oportuno e fazendo até desaparecer correspondência da escritora que hoje seria valiosíssima para reconstruir a sua personalidade humana e literária. Manuel Murguia empenhou-se sempre, talvez com boa vontade, em dar umha determinada image de Rosalia, image sobre a que se levantou o mito actual.
     A partir do matrimónio, Rosalia vai tentar simultanear o seu papel de nai e esposa com o de escritora, o que nom deixaria de criar-lhe dificuldades e mesmo tensons. Nom se pode dizer que a vida de Rosalia decorresse na tranquilidade e serenidade de umha vida apazível e sem problemas, ou com os problemas só derivados do oficio de escrever, que nom som poucos para umha mulher da sua época. Sucessivos acontecimentos sociais, familiares e literários irám acumulando desgraças na sua vida, sem que podamos excluir, e hai razons literárias que o justificam, umha influência desses acontecimentos nas tintas sombrias e pessimistas, no grito de raiva e impotência, que a sua obra vai adoptando conforme passam os anos até a sua morte.
     A sua relaçom matrimonial com Murguia tem sido calificada de problemática polos seus biógrafos e que resume F. Rodríguez quando fala de um matrimónio intelectual e de umha relaçom «na que todo o máis pesou un afecto que endexamais cuallou en paixón» (3), afirmaçom que se cadra vai a ser dificil de acompanhar de provas documentais que a justifiquem, e que talvez nem interesse moito num plano estritamente literário, mas nom devemos esquecer que determinados elementos de orde biográfica som integrados como códigos ideológicos na produçom textual, sem que isso nos tenha que levar obrigatoriamente a umha interpretaçom biografista ou psicanalítica em relaçom à persoa Rosalia de Castro que pudesse minguar ou distrair-nos do valor literário que a sua obra comporta.
     Os problemas sucedem-se na vida de Rosalia: vários partos e a morte prematura de dous filhos: Adriano, falecido mui novo, e Ovidio, morto cando prometia umha brilhante carreira como pintor.
     Contínuas viages por Castela, Estremadura, Múrcia; residências em Santiago, Corunha, Padrom e talvez Lugo, irám forçando o desarraigo da escritora, ao tempo que despertam o amor e comprensom dos feitos galegos agudizando o seu olhar penetrante da realidade que a circunda.
     A revoluçom do 68, na que moitos tinham postas grandes esperanças, Rosalia entre eles, fracasa; os problemas económicos e com editores e crítica som contínuos; o cancro vai-na conduzindo à morte e ao seu redor vai medrando e incomprensom e intoleráncia da sociedade para com a escritora, que se dermos crédito a González Besada, soubo romper moldes e superar tabus.
     Todos estes acontecimentos achegam a nós o perfil humano de Rosalia e podem-nos fazer comprender melhor o esforço que supuxo um trabalho literário que realizou com entrega apaixonada.
     Mulher e escritora por vocaçom, persoa comprometida com o seu país, Galiza, e com o seu tempo, Rosalia de Castro morre na sua casa da «Matança» em Padrom o 15 de julho de 1885. Menos de seis anos teriam de transcorrer para que o 25 de maio de 1891 os seus restos fossem trasladados do cemitério de Adina ao Panteom de Galegos Ilustres, na igreja de Santo Domingo de Bonaval em Santiago de Compostela; aí começa publicamente a grande cerimónia da mitificarom daquela que um dia escrevera: «Paz! paz ti es mentira! / Pra min nom a hai!». Mitificaçom que nom imos discutir e que mesmo comprendemos, mas que levou com freqüência a um ocultamento e manipulaçom da sua obra que nos dérom essa image de umha Rosalia «chorona», «coitada», «eterna sofridora», «costumista», «folclórica», «santinha», etc., visom errada e parcelar que nega umha das obras criativas mais extraordinárias que a literatura europea do séc. XIX nos deu.


III. CRONOLOGIA DA OBRA

     O «Rexurdimento» literário do galego começa por ser um renacimento basicamente poético; por diferentes causas que nom vem agora ao caso analisarmos, umha prosa galega que responda às necessidades de umha língua de cultura só surgirá com plenitude na geraçom «Nós»; por isso nom é de estranhar que, como é habitual em todos os escritores galegos do séc. XIX, a obra de Rosalia seja em galego, no fundamental da sua produçom poética, e em espanhol no que respeita à prosa. Com carácter simplesmente indicativo damos a continuaçom umha relaçom dos livros publicados por Rosalia, assinalando a data de ediçom (4).
1875
1858
1859
1861
1863


1866

1867
1880
1881


1884
1916
La Flor (poesía)
Lieders (prosa)
La hija del Mar (prosa)
Flavio (prosa)
A mi madre (poesia)
Cantares Galhegos (poeia)
El cadiceño (prosa)
Las Literatas (prosa)
Ruinas (prosa)
El caballero de las botas azules (prosa)
Folhas Novas (poesia)
El primer loco (prosa)
El Domingo de Ramos (prosa)
Padrón y las inundaciones (prosa)
En las orillas del Sar (poesia)
Conto Galhego (prosa)

     Cantares Galhegos e Folhas Novas, precedidos cada um deles de um prólogo em prosa da autora, som, junto com o Conto Galhego aqueles que desde a perspectiva da literatura galega nos interessam.
     Talvez for conveniente recordar que os primeiros textos de Rosalia em galego forom publicados com anterioridade a Cantares... no «Album de la Caridad» e no «Museo Universal».


IV. «CANTARES GALHEGOS»

     Em 1863 aparece o primeiro livro de Rosalia em galego, que é o primeiro livro poético do Ressurgimento inteiramente escrito na nossa língua.
     O volume está dedicado a Fernán Caballero, e nós chamaríamos a atençom para as razons que, em expressom de Rosalia, motivaram essa dedicatória: «Por ser mujer y autora de unas novelas (...). (...) por haberse apartado algún tanto (...) de las vulgares preocupaciones con que se pretende manchar mi país» (5). Três razons que vam nortear o quefazer literário da nossa poetisa: a condiçom feminina, o papel do escritor e a preocupaçom pola escrita, ou ainda o «rol» da mulher e a sua relaçom com o ofício de escrever e finalmente umha teima, nunca deixada de parte, pola problemática da sociedade galega.
     A seguir a esta dedicatória vem um prólogo em prosa da autora, extremadamente lúcido e claro onde aparecem as razons que a levaram a escrever este livro e o público ao que, desde a perspectiva da criadora, el está dirigido. Umha leitura atenta do mesmo, assi como a do primeiro poema, som de umha grande ajuda para determinar os códigos ideológicos (no sentido que a semiótica dá ao termo), assi como os temáticos, e subseqüentemente os estilísticos que configuram o discurso de Cantares Galhegos.
     Rosalia é moi clara neste prólogo quando afirma e que aliás umha análise mesmo que nom for moi exaustiva corrobora: «Cantos, bágoas, queixas, sospiros, seráns, romerias (...) todo esto me atrevim a cantar neste homilde livro pro desir umha vez siquera (...) ós que sim razóm, nim conocemento algum nos despreçam, que a nosa terra é digna de alabanças, e que a nossa língua nom é aquela que bastardeam e chapurram nas mais ilustradíssimas províncias cumha risa de mofa». Afirmaçom radical de compromisso, resposta irada a umha situaçom de domínio e opressom que tem estigmatizado com escárnio à sociedade galega, e a todo o que levar o adjectivo de galego.
     Consoante com esta intencionalidade expressa no prólogo, o livro apresenta-se-nos hoje, no dizer de F. Rodríguez como umha «defensa desde dentro
—identificación, pois,— dos valores de uso dunha cultura e dunha socieadade da que se expoñen —noblemente, pero sen paternalismo— as condutas típicas colectivas, a conciência especifica, facendo desto matéria de literatura culta» (6).
     O primeiro poema «Has de cantar... », e como já dixemos, serve a maneira de prólogo poético; aí estám os elementos básicos para a comprensom dos restantes 35 poemas: Rosalia apresenta-se como a voz da colectividade, e polo tanto com certo sentido épico; nesse contexto o conflito de classes nom aparece:

«Buscai-me rapazas
velhinhas, mocinhos
Buscai-me entre os robres
Buscai-me entre os milhos
nas portas dos ricos
nas portas dos probes,
que aquestes cantares
a todos respondem.


     Rosalia quere desfazer a image negativa de Galiza que existe fora das suas fronteiras, onde, a sociedade mostrada-proposta é aquela de base profundamente rural e pre-capitalista, onde os possíveis, e existentes, confiitos permanecem acochados sob um sistema de relaçons humanas, caracterizadas polo sua desinibiçom, e integradas num cosmos no que a natureza estrutura e constitui um eixo em torno ao qual giram harmonicamente todos os elementos: dos paisagísticos aos humanos.
     Nom é que Rosalia desconheça os problemas, os conflitos, a explotaçom existente nessa sociedade, e provas nom ham de faltar nesse livro, mas, ao que nos parece, a sua superaçom vê-se como possível, e até simples, naquel contexto de optimismo que reforça a image positiva que de Galiza se quer dar.
     Diríamos que, sabendo o que se quer, tendo um ponto de referência seguro, até mesmo a possibilidade da denúncia é mais simples. Os problemas existem e a soluçom seria um retorno a essa comunhom do home com a natureza que salvaria da queda à sociedade que Rosalia vive e vê.
     Nessa proposta, Rosalia assume a poesia como «consolo», numha idea de pendor romántico que a autora consegue ultrapassar largamente; assi a poesia fai-se para que

« (...) vos console
no vosso sufrir;
nos vossos tormentos,
nos vossos pesares.
»

     Sabendo qual é a soluçom Rosalia irá denunciando as situaçons de opressom e injustiça, e assi irám-se combinando ao longo do livro os poemas nos que se nos fai a proposta rosaliana —que poderíamos marcar como temática positiva—, e aqueles outros nos que se manifesta o que impede, o que pom atrancos, à serena comunhom do home com a natureza, à integraçom pacifica do home no mundo. Essa denúncia fará-se quer de jeito violento e cru como em «Castelhanos de Castilha» quer, e isto na maioria dos casos, através da ironia; neste caso estariam textos tam conhecidos como «Dixo-me nantronte o cura» —onde se pom em causa a moral sexual dominante—, ou «Sam António bendito» —onde se analisa o matrimónio como instituiçom alienante, posto que del depende a sobrevivência económica e nom pode ser em conseqüência umha opçom livre.
     O tema central, Galiza, irá-se articulando em diferentes subtemas, que mostram de maneira parcelar, mas coerente, a sociedade ideal que se pretende e os atrancos que impedem a sua concretizaçom.
     E estes códigos para-literários levam a umha escolha de recursos técnico-estilísticos e viceversa; é através destes que descobrimos aqueles. Estes recursos som os que melhor permitem reconhecer os temas propostos e evidenciar os códigos ideológicos subjazentes. Por isso os poemas de Cantares Galhegos constroem-se como glossas de cantigas populares integrando os ritmos que tradicionalmente se consideram como próprios do povo e da sociedade rural: muinheira, pandeirada, formas onomatopeicas, estruturas de romance, repetiçons, registo coloquial da língua (repare-se na abondáncia de diminutivos)...
     Podemos assi dizer que, mesmo que o modelo imediato de Cantares fosse o Libro de los Cantares de D. Antonio de Trueba, tal e como a autora afirma no prólogo, a conceiçom de aquel é moito mais ambiciosa, conseguindo, no nossa opiniom, umha integraçom dos diferentes códigos que assegura a pervivência do livro como obra literária inqüestionável.


V. «FOLHAS NOVAS»

V.I. Um prólogo útil e umha estruturaçom nom arbitrária

     Em 1880 aparece Folhas Novas, sobre o que a crítica se tem manifestado praticamente unánime em considerá-lo como o mais importante contributo de Rosalia à literatura universal. A maioria dos poemas aí incluídos fôrom escritos, segundo a própria autora, uns dez anos antes (1867-1870 para Poullain; 1870-71 para Murguia, datas que recolhem Carvalho Calero e outros autores). Livro escrito, pois, num momento de madurez persoal e intelectual e que reflexa a intensidade com a que Rosalia viveu sempre a criaçom literária.
     O livro leva, além do prólogo em espanhol do político Emilio Castelar, outro da própria Rosalia intitulado «Duas palavras da autora». Ainda mais do que em Cantares Galhegos este prólogo converte-se em fundamental para conhecermos a poética rosaliana e as preocupaçons sociais e literárias da sua autora que se reflectem em todos os seus livros e já, moi especialmente, em Folhas Novas.
     Nessas «Palavras» fala Rosalia da condiçom feminina e da relaçom da mulher com a arte, utilizando para isso um discurso fortemente irónico; ironia que, ao nosso entender, deve ser considerada e que moitos leitores e críticos nom tenhem apreçado, pois que de lê-lo literalmente estaríamos perante umha contradiçom entre a teoria e a praxe poética; devemos lembrar que, sintomaticamente, o texto com que se inícia o volume é o «Daquelas que cantam as pombas i as frores», para nós prova mais que suficiente para demostrar que é como irónico que temos que ler o correspondente parágrafo do prólogo. Lembremos ainda que a ironia era um recurso utilizadíssimo em Cantares e vai-no ser tamém em Folhas Novas.
    Fala logo a seguir da relaçom que hai entre este livro e o anterior em galego; para isso sinala circunstáncias de orde persoal que podem condicionar umha determinada visom da realidade. Cantares seria um livro de juventude, esperançado, mentres que Folhas Novas seria um livro de madurez, tingido de pessimismo, ou melhor ainda, de cepticismo e impotência perante a impossibilidade de transformaçons e melhoras persoais e sociais.
     Noutro parágrafo desse texto extende-se Rosalia nas "consideraçons sobre a relaçom que existe entre o autor e a sociedade na que vive, o que em definitiva pom o problema do compromisso. Rechaça-se o encastelamento do poeta, o seu refúgio na torre de marfim desligado do entorno, porque isso é, mesmo idealmente, impossível. Mas tamém se afirma a criaçom poética como umha experiência individual; é, como mais adiante teremos ocasión de ver, o trabalho poético como acto radicalmente solitário, ao tempo que solidário.
     Um dos momentos mais comovedores, polo sua sinceridade e realismo, é o que se lhe dedica aos problemas da mulher galega; problemas derivados do feito da emigraçom que Rosalia analisa nas suas causas de tipo económico e político e nos resultados tamém de orde económica, social e persoal que o doloroso éxodo produze na mulher.
     Por último, e como já fixera em Cantares, e que de resto é freqüente encontrarmo-lo noutros escritores galegos do XIX, fai-se umha referência explícita à língua e as razons que motiváram o seu emprego; idea extraordinariamente clara defendendo a validez do galego para calquer tipo de discurso poético. Hai ao mesmo tempo, umha confissom, sem falsa modéstia, do significado extra-literário de Cantares, que motivou tamém a realizaçom deste livro: «N'era cousa de chamar as gentes à guerra e desertar da bandeira que eu mesma havia levantado».
     Rematado este prólogo organizam-se os textos em cinco «Livros»: «Vaguedás», «Do Intimo», «Vária», «Da Terra» e «As viudas dos vivos e as viudas dos mortos».
     Existem aqui duas questons que nos parece conveniente clarificar: a denominaçom escolhida polo autora de «Livros» e os títulos que cada um deles leva, com o significado que isso pode ter para a compreensom da obra e a estrutura da mesma.
     No texto dito poético, na obra artística em geral, nada e gratuíto; cada elemento, seja da orde que for, nel incluído nom responde ao acaso, antes polo contrário, devemos encontrar na sua presença umha marca textual que nos remete para os significados da mensage veiculada e que, considerados no seu conjunto, nos permitirám descortinar os códigos temáticos e ideológicos que subjazem e se evidênciam no discurso.
     Por outro lado, na língua literária as relaçons significante-significado nom som idénticas às que se estabelecem, ao mesmo nível, na língua comum. Polo próprio carácter do discurso poético um significado de um determinado significante pode, pola sua vez, converter-se em significante de outro(s) significado(s) e assi, numha espécie de «mise en abyme» carregar de possibilidades a língua literária. Deste jeito, polos suas qualidades conotativas, essa língua especifica que é a literária apresenta-se-nos como portadora de variadíssimos níveis de significaçom conferindo umha ambiguidade ao texto, que é marca de literariedade.
     Por isso, se Rosalia intitula «Livros», e nom, por exemplo, «Partes», a cada umha das divisons que estabelece em Folhas Novas, para nós, desde que, como leitores, nos apropriamos do texto, essa denominafom deixa de ser casual para constituir umha marca textual significativa que se integra numha aprensom globalizante do livro constituído como um todo.
     Ora, a denominaçom «Livro» parece querer indicar umha unidade em si mesma, um produto artesanal-literário, e isso obriga-nos, no caso que nos ocupa, a umha leitura individualizada de cada um deles, embora como integrantes de um conjunto maior, «Folhas Novas», que os priva de uma existência totalmente independente.
     Ainda noutro nível, o micro-cosmos representado por cada um desses cinco livros (el será casualidade serem cinco?) sugire-nos a possibilidade de ter querido a sua autora dar-nos cinco micro-cosmos que somados dariam o cosmos único e total que as Folhas Novas representam.
     Embora tenhamos presente que estamos a teorizar num terreno escorregadiço pensamos que esta divisom em «livros» nos pode levar a pensar que em Folhas Novas a intençom da sua autora (considerada como instáncia literária) foi a de nos dar um fragmento de realidade (poética), senom a sua totalidade, para oferecer-nos a possibilidade de umha leitura que transcende o «eu» e que fosse aplicada com um valor universal.
     Tomando agora os títulos que encabeçam cada livro devemos lembrar que, se a estruturaçom em livros nom é gratuíta, menos ainda o serám esses títulos que os identificam. Títulos que, na nossa opiniom, obedeceriam a essa ideia que da estruturaçom em «livros» deduzíamos: a de Folhas Novas como livro que quere abranger um universo totalizante e globalizador.
     Por isso achamos que os títulos, mais do que estarem em consonáncia com o significado(s) dos poemas sob o seu epígrafe reunidos, a maneira de «palavra-tema» que nos guie na sua leitura; mais do que isso, respondem às linhas de leitura que em Folhas Novas se podem estabelecer e desenham, eles cinco, um eixo de estruturaçom do livro que, de ser admitido, daria-lhe umha coerência maior àquela que de umha primeira leitura se pode desprender, relacionando-se tamém assi com as ideas expostas no «Prólogo».
     Sugerimos, pois, como possível esta leitura e a estrutura que de aí se deduce:
     «Vaguedás» (vaguedade): o que nom se pode definir, o que nom tem limites ou contornos precisos, ou o que é o mesmo, o real por construir.
     O escritor perante o «caos» (o impreciso) como um deus criador de umha realidade que no texto se reconhece. É, simbolicamente, o estado inicial prévio a existência (criaçom), existência que será o delimitado, o tangível, o definido.
     Sintomaticamente esta parte situa-se no início do livro, o que é tamém umha razom para a nossa hipótese.
     «Do Intimo!»: Presença da subjectividade. A poesia é acto radicalmente solitário. É do eu e do silêncio que ela surge. Hai, poís, neste título umha afirmaçom da soledade como experiência imprescindível para o acto da escritura.
     Mas, como afirma F. Rodríguez, neste «livro», «(os poemas) aparecem diversificados no seu emisor, é dicer, máis difíceis de conectar co eu do autor nunha relación direita» (7). Quer dizer, sendo solitário, o acto de criaçom é tamém solitário poís só a realidade vivida no eu-criador pode, e deve, chegar ao eu-receptor, criador tamém, estabelecendo-se nesse espaço a comunicaçom e afirmando deste jeito o carácter solidário da acçom criativa.
     «Vária»: Moita da crítica existente sobre Rosalia tem sinalado este título como respondendo a umha indefiniçom dos poemas. Segundo estas afirmaçons,
desprendería-se que cada um dos outros «livros» seriam coerentes (?), respondendo o título a um único tema que seria desenvolvido como subtemas em cada poema, o qual sería difícil de demostrar.
     Dessa maneira, o livro III de Folhas Novas seria como um saco sem fundo onde poder meter todo, umha espécie de «pêle-mele» com um título ambíguo, posto ao acaso e sem contido semántico ningum, veja-se senom o que a respeito deste «livro» di o critico C. B. Poullain: «No se puede negar, pues, el aspecto desordenado, invertebrado incluso, de este libro, que la propia autora reconoce al titularlo Vária. Es posible que Rosalía ha colocado aquí todos los poemas que no podían integrarse en los demás libros, renunciando a toda tentativa de «composición» que a la fuerza había de fracasar» (8).
     Ora, achamos que a afirmaçom anterior é difícil de manter, porque, como justificar entom que, curiosamente, seja este livro o que contenha um maior número de poemas (42)? (O mesmo Poullain cita seis poemas referidos ao tema da mulher seduzida e abandonada e que, engadimos nós, unidos a outros, deste ou de outros «livros», que tratam o tema amoroso poderiam constituir por si sós um único «livro», e nom dous menos extensos.
     Por outro lado, «Vária» nom é um termo vazio de significado e reconhecendo o carácter conotativo da linguage poética, e desde que incluído no livro, deve ter um valor, que vai além do puramente gratuito e ocasional.
     Isto nom quere dizer que Rosalia tivesse que ser necessariamente consciente deste significado, mas o que si interessa é o que a mim como «consciência ledora» isso me pode dizer; corresponde-me a mim, como leitor individual, determinar em que medida um dado elemento, esta ou aquela marca textual, intervem no processo de produçom textual.
     Seguindo com o nosso fio argumental, «vária» tem o significado de «múltiplo», «diverso»; quer dizer, a totalidade. Assi o título do III «Livro» estaria ligado com aquel sentido globalizador ao que antes aludíamos, isto é: múltiplas parcelas da realidade estám aí enunciadas e duas irám-se desenvolver nos dous «Iivros» seguintes.
     «Da Terra»: Este é um título que oferece menos dúvidas e fala-nos da relaçom do eu com o mundo; do eu como ser social ao que a autora aludia no «prólogo»: «(...) menos pode o poeta prescindir do médio em que vive e da natureza que o rodea, ser alheo a seu tempo...»
     «As viudas dos vivos e as viudas dos mortos»: É este já de por si um título bem explícito. Se por um lado seria umha conseqüência daquel «vária» do que falámos, por quanto as preocupaçons aí expressas, a realidade aí manifestada, é a da ausência, a nom-realizaçom afectiva, o problema social e individual da emigraçom; por outro lado, está intimamente relacionado com o significado que Ihe demos ao título do livro IV e que nom precisa de ser demostrado.
     Desta maneira, sugerimos que os títulos, relacionados polo seu significado e integrados na orde que a autora Ihes deu, constituem um eixo estruturante de Folhas Novas. Estrutura da que, aliás, podemos deduzir a formulaçom implícita de umha teoria da criaçom literária. Em esquema seria como segue:

1. — Movimento inicial: o caos
    — Definir a realidade (que é imprecisa)
    — A escrita como método de conhecimento
    — O «eu» perante a realidade e a escrita
Livro I
«Vaguedás»

2
. — O «eu» como sujeito criador
    — Interiorizaçom da experiência
    — Vivência subjectiva
    — A escrita como experiência solitária

Livro II
«Do Intimo»

Livro III
«Vária»

3
. — A universalizaçom
    — O poeta criador de umha realidade total
    — A realidade múltipla


—————————

4
. — Parcelaçom da realidade
    — A poesía como acto solidário
↓              
Livro IV                  Livro V

«Da Terra»  
  «As viudas...»



V.II. A interrogaçom sobre a «Palavra»

     Um aspecto que chama poderosamente a atençom em Folhas Novas é o de mostrar um interrogar-se/interrogar-nos sobre a própria poesia, manifestando a preocupaçom de Rosalia por determinar a sua funçom a respeito daquilo que escreve e da própria maneira de escrever. Quer dizer, Rosalia elabora de umha maneira explícita umha «meta-linguage literária» que visa aspectos tam diferentes como a sociologia da produçom ou a inutilidade (em sentido espirituralista ou económico) de toda e qualquer escrita.
     Essa preocupaçom rosaliana da que estamos a falar, nós imo-la topar de um jeito especial na poesia moderna. Em efeito, a arte actual pom em causa princípios que se chamavam eternos
—e pór em causa esses cánones eternos é subverter um sistema de valores, considerados eles tamém como eternos— princípios que nom eram senom umha maneira de integrar na orde burguesa umha actividade que se define polo sua radical tentativa de libertaçom.
     Ora, se a poesia nom imita a realidade senom que a trascende, porque a cria, é preciso tamém alterar aquel discurso que nos falava da imitaçom e opor-lhe um discurso/outro que ao nom poder ser submetido a regras, acaba por produzir em nós, leitores-destinatários do texto, a inquietude do contingente, que nom pode ser circunscrito a esquemas de representaçom pre-existentes.
     E se Rosalia puxo em causa tantos aspectos da realidade, mesmo poética, por que nom ia fazê-lo no cerne mesmo do problema, na própria actividade e no próprio código da escrita?
     O primeiro texto onde topamos com este problema é, significativamente, aquel com que se inícia o volume:

«Daquelas que cantam as pombas i as frores,
todos dim que tenhem alma de mulher.
Pois eu que n'as canto, Virxe da Paloma,
          ai!, de que a terei?
» 

     Aqui Rosalia questiona um aspecto relacionado com a própria sociologia da produçom: o «rol» da mulher escritora. Esta interpretaçom pode-se manter se fixermos umha análise histórica considerando o momento que Rosalia vive e o papel que nel tem a mulher; papel subsidiário em moitas actividades políticas, sociais ou culturais.
     Ora, seria interessante perguntarmo-nos se para além de umha primeira leitura fortemente ideologizada, pode existir um sentido/outro que mantenha ainda hoje a ambigüidade, o «mistério» que o texto ainda conserva. Trata-se de «democratizar a orde fálica», ou será tamém umha pergunta, talvez a si mesma, negando a existência de umha escrita feminina?; a arte como actividade libertadora definirá-se em termos de identidade sexual?... É umha questom em aberto que nom deixa de ser sugestiva.
     Noutro texto, a autora interroga-se sobre o próprio título do livro:

«Folhas Novas!, risa dá-me
esse nome que levás
»

     Com esta exclamaçom, chea de amarga ironía, carrega-se de possibilidades significativas um título, já de por si plurívoco, que aumentando em ambigüidade ganha em rendimento literário. Desta maneira o título mesmo do livro situaría-se numha linha de contradiçom freqüente em Rosalia e da que mais adiante falaremos.
     Por último haveria que sinalar neste apartado de um dos textos mais intensos e carregados de significado de todo Folhas Novas, aquel com que se encerra o Livro I, e que começa com a palavra «Siêncio!» (9).
     O poema abre-se com a constataçom desse estado inicial, que é tamém desejo (o silêncio). E aqui seria oportuno lembrar umha idea que nortea boa parte da poesia moderna
—quer no discurso poético, quer no crítico—: a poesia como surgindo do silêncio e a el regressando; umha conquista dolorosa daquel estado inicial em que a cisom do home e  mundo nom se tinham produzido.
    
O poema vai-se logo centrar sobre a actividade da escrita:

«i escribo..., escribo..., para que?»

     A escrita é umha actividade que poderíamos definir quase como fisiológica (antes dixera-nos: «rompendo a vea inchada») e posta perante um interrogante que visa o conceito de «utilidade»; utilidade «mercantil», mas tamém utilidade espiritual ou teológica.
     E a continuaçom vem o desejo expresso:

«Que a mam tembrosa no papel só escriva
palavras, e palavras, e palavras!
»

verso este último que é clave, pois nel a repetiçom leva-nos a entrever um desejo de escritura que podemos definir como «automática»;  mas ao mesmo tempo, essas «palavras» que vam ser escritas, umha vez que as «tempestosas images» desapareçam, é umha palavra branca, umha espécie de «grau zero» da escrita que o mestre Alberto Caeiro enunciou como a «metafísica de não pensar em nada».
     E o poema remata com umha pergunta que nega o conceito tradicional, aristotélico, do belo como categoría eterna e imutável que define a obra de arte:

«Da idea a forma imaculada e pura
       donde quedou velada?
»

     Pensamos que este texto define por si só toda umha poética, poética que nas suas dúvidas e vacilaçons nega toda umha tradiçom anterior e nom só galega —que, aliás, seria moi fraca— abrindo passo aos problemas-terrores nos que a criaçom artística, seja ou nom poética, do séc. XX está imersa. Poemas como este nom encontramos na literatura galega nem na europea com moita freqüência, pois só os grandes poetas tivérom esta clarividência que tam forte se fai em Rosalia.
     Em conclusom, pensamos que este interrogar-se sobre a própria palavra poética, esta espécie de meta-poética que Folhas Novas nos propom dam-lhe ao livro umha modernidade que se resiste a perder e situam-no em lugar destacado dentro das literaturas do seu momento.


V.III. Códigos ideológicos

     Nom imos nós aqui fazer formulaçons teóricas sobre a literatura «engagée», nom imos ainda falar do autor e a realidade social na que vive, ou fazer umha análise de tipo sociológico sobre Folhas Novas.
     Mas é óbvio que tratando-se de umha autora que tem um valor além do estritamente literário, e polo tanto susceptível de ser enfrentada desde presupostos sociais e políticos; tendo presente aliás que, de manter-se a actual situaçom na que a cultura e a sociedade galega se encontram, este aspecto se converte sempre em referência obrigada, queremos nós tamém focá-lo tendo presente que numha perspectiva semiótica, o texto é o produto da interacçom de variados códigos onde o ideológico está sempre manifesto, quer se trate de textos Iíricos, dramáticos ou narrativos.
     Além, pois, do aspecto sociológico, extra-literário, devem-se analisar e interpretar os diferentes «significantes ideológicos» que nos permitam umha melhor e mais completa comprensom do texto.
     Nom seria preciso que Rosalia afirma-se explicitamente no prólogo a relaçom do poeta com a sociedade: «menos pode o poeta prescindir do médio... »; nom seria precisa, dizemos, essa afirmaçom para sinalarmos o código ideológico que conforma o discurso de Folhas Novas. Mas tamém é verdade que ao fazer esta afirmaçom tam explícita, Rosalia, como mulher escritora, toma partido numha polémica, actual daquela como agora o é, mália a sua inutilidade. E tomando partido nessa falsa dicotomia da arte comprometida e a arte polo arte, ou arte pura, nom fai senom evidenciar o seu posicionamento ideológico, nom literário, em prol de umha sociedade mais justa, em contra da explotaçom, de solidariedade com os oprimidos e de identificaçom com a terra. E essa toma de postura persoal deverá integrar-se significativamente no seu livro.
     Na abordage literária de Folhas Novas interessa-nos estabelecer esse código ideológico analisando para isso o discurso abstracto, os signos do código temático e os conotadores (o signo significante de um outro signo).
     No já citado artigo do professor F. Rodríguez fai-se umha análise neste sentido de um jeito que, embora a sua brevidade, parece-nos, em linhas gerais enormemente lúcido.
     Para nós, Rosalia parte de umha observaçom, de umha análise dos feitos constatáveis; mostra, pois, a situaçom objectiva e de aí tira umha conseqüência. Se observarmos, moitos dos poemas do livro centram-se em torno ao que poderíamos chamar a «anécdota» e rematam assumindo, através do discurso abstracto, umha toma de postura, por parte de Rosalia (veja-se como exemplo o poema «Tembra um nena no húmido pórtico»).
     Nom importa que nós leitores coincidamos ou nom com as soluçons propostas, importa si que o texto evidência umha recusa da passividade, umha necessidade de resposta.
     Na sociedade que Rosalia transparenta nos páginas de Folhas Novas dá-se umha loita de classes que tam bem estuda em «A Justícia polo mam»: explotaçom e domínio; explotaçom e domínio que se extendem à sociedade galega, e aquí manifesta o compromiso com o seu país.
      A autora pom, ademais, em causa umha moral que reprime e condena a liberdade individual o que a leva a denunciar instituiçons alienantes como o matrimónio.
    Outros elementos a citar seriam o da complicidade da Igreja num sistema de explotaçom, as instituiçons judiciárias ao serviço do poder e da ideología dominante, a reivindicaçom da afectividade («As viudas dos vivos...» é um exemplo evidente)...
    E as soluçons apontadas para estes problemas som várias, contraditórias até. Mas nom podemos esquecer o momento histórico de crise no que Rosalia vive.
     Utilizam-se recursos estilísticos para evidenciar esse código e assi as repetiçons que aparecen no poema «Este vai-se aquel vai-se» demostram como a emigraçom nom é um fenómeno individual, é umha tragédia colectiva. Neste mesmo poema, na nossa opiniom dos mais interessantes para advertir essa transparência de codigos ideológicos, o carácter colectivo da emigraçom vê-se tamém no próprio eu lírico, nom marcado como masculino nem feminino e ao utilizar a interpelaçom a umha segunda persoa (Galiza em sentido colectivo) evidência-se a identificaçom do sujeito que fala no texto com o problema tratado.
     Penso que neste apartado cabem algumhas matizaçons ao que sobre Rosalia escreveu no seu dio o professor J. Alonso Montero (10). Por ser um dos críticos que tenhem focado Rosalia desde umha perspectiva sociologica, queremos, como diziamos, matizar algumhas das suas opinions que achamos som por vezes inexactas.
     Ao mencionar um poema como «Tembre um neno...», di Alonso Montero: «La lucha contra una lacra social no es tarea humana, porque Dios parece haber dispuesto los acontecimientos asi» (11).
     A contundência desta afirmarom pensamos que é exagerada. Em primeiro lugar, o imperativo-desiderativo «Esperemos!» com que remata o poema é suficientemente ambíguo como para nos pôr na dúvida de objectivar essa esperança da que Rosalia fala. Que imediatamente antes dixesse: «Todo passa na terra» nom fai deduzir necessariamente que isso leve implícita a existência de um além regido pola vontade de Deus. Em segundo lugar o verbo «passar» tem duas acepçons: «transpor»: o que nos poderia fazer pensar nesta vida como tránsito para outra nom-terrenal, e «acabar», com o que a esperança que logo se anúncia poderia ser realizada na terra.
     Lembremos ainda, e numha relaçom inter-textual, que no poema da «Justicia pola mam» tamém se utiliza o verbo «esperar» em um sentido que nom demostra umha visom teológica do mundo. É precisamente da ambigüidade deste verso onde nasce a sua força.
     Falando desse poema tam citado e discutido, de umha violência difícil de imaginar num escritor do séc. XIX, «A justícia pola mam», hai, na interpretaçom do crítico aludido várias questons discutíveis.
     Alonso Montero comete, na nossa opiniom, um erro metodológico: situar a Rosalia de Castro como sujeito do poema. Mas nada dentro do próprio texto pode sustentar tal afirmaçom. Achamos que se comete o erro moi extendido de confundir o sujeito Iírico de um texto com o autor responsável do mesmo. Isto leva, em boa lógica, a umha leitura «biográfica» do poema: «El poema tiene, por encima de todo, un acento individual: es Rosalia la que ha sufrido estos golpes» (12). Assi estabelece-se umha escala significativa: o importante é o carácter individual e, subsidiariamente, através de umha abstraçom, o problema colectivo: «el hombre limpio es ultrajado por los hombres de bien» (13).
     Deste primeiro erro que denominámos metodológico derivam as interpretaçons que nom achamos inteiramente correctas.
     Na sua linha argumental deduze Alonso Montero que Rosalia «Intuye perfectamente la radical falsedad del mundo —que es el burgués— pero ni aqui ni en ningún otro texto sospecha realizable una ordenación distinta» (14). Nós pensamos que é precisamente aqui, neste texto, onde Rosalia estabelece umha análise mais intelectual do que intuitiva. Vejamos se nom:
     Identificam-se os responsáveis, nom um responsável individual, senom colectivo, umha classe talvez?

«Aqués que tém fama de honrados na vila»

(repara-se que se utiliza o plural gramatical).
     Analisa-se a sua actuaçom e o resultado dessa actuaçom (usa-se um verbo que indica violência: «roubar»).
     A explotaçom a que se ve submetido o sujeito leva-o a umha animalizaçom («cal loba»), pero que nom perde a sua humanidade, procurando umha empatia com o leitor («meus filhos... meus anjos!...»). Mas, ao mesmo tempo dá-se umha animalizaçom do opressor («raposos»): o opressor foi posto ao mesmo nível que o oprimido, desmitificou-se, perdeu o seu estatuto de superioridade, e já sabemos que num sistema de dominaçom é preciso que o ser alienado interiorize o esquema de domínio polo que a nível subconciente o dominador será algo tabu, intocável.
    No momento em que opressor e oprimido estám no mesmo nível (lobos e raposos) é quando é possivel a subversom da realidade opressora, através da violência. Mas repare-se que nom é umha resposta individual, pois hai consciência de ser umha acçom colectiva e nom umha simples vingaça persoal:

«eu, neles; i as leises, na mam que os ferira».

     É evidente que Rosalia nom podia fazer umha análise mais científica da realidade, e isso nom só por razons históricas, que tamém haveria, mas, ante todo porque talvez entom o texto perdesse o seu estatuto de literário e fosse integrar outro género como o do panfleto.
   Por último, e para rematarmos com as interpretaçons de Alonso Montero, convém vermos como el apresenta o tema da emigraçom, melhor como el vê o tema da emigraçom em Rosalia.
    A este respeito escreve: «Rosalia se limita a registrar el doloroso éxodo, pero ella (...) no increpa, no se rebela, no señala responsables, no insinúa los motivos del mal» (15). Sorprende-nos um pouco esta afirmaçom. Já falámos algo a propósito da última parte do poema «Pra Habana!», o que começa «este vai-se i aquel vai-se», mas analisemos alguns dados:
     Já no prólogo a autora di: «A emigraçom i o Rei arrebatam-lhes de contino o amante, o irmam, o seu home...», quer dizer, explicitam-se umhas causas e sinalam-se umhas conseqüências, mas nesse mesmo poema, «Pra Habana!», enumeram-se novamente as causas que levam à emigraçom, causas económicas, e polo tanto políticas que geram umha situaçom que afecta a toda a colectividade galega: 

«Vendêrom-lhe os bois
(...)
Vendêrom-lhe o carro
i as leiras que tinha
»

     É a Galiza pre-capitalista a que está em crise e a emigraçom é o resultado do estabelecimento da sociedade capitalista, colonial. Mas essa emigraçom nom vai resolver nada, quer dizer que refugando os resultados, refuga-se a mesma orde sócio-económica que desemboca naqueles.
      Rosalia opom a essa, outra sociedade, e para conseguir o cámbio existe o recurso da violência, que é justiça. Já falámos da «Justicia po-la mam», mas tamém noutros poemas ve-se isto; assi em «Para uns negro» remata-se com umha sentença aparentemente salomónica:

«Nha nai: farei-lhe bem a quem cho fixo.
Meu pai: vingança pidem os teus ossos
».

E é que da justiça divina, que é volúvel, pouco se pode esperar. Nom é que Rosalia renegue de Deus, mas pom-no em causa:

«—Bom Dios, ajudai-me— berrei, berrei inda...
Tam alto que estava, bom Dios nom me oira
»

ou

«—Fiade-vos em Dios e nom corrades.
Dios!, quem sabe se o hai?
».

     Pensamos que os exemplos aqui aduzidos som bem significativos de quais som os códigos ideológicos que evidênciam os poemas incluídos em Folhas Novas e que podeíamos resumir como umha denúncia da injustiça, a necessidade de cámbio, a defensa de umha sociedade pre-capitalista da que hai consciência que está em crise; todo isso num mundo em que a superestrutura religiosa de raiz alienante é posta em causa sendo, aliás, fonte de contradiçom.


V.IV. Um discurso do feminino

     «El patrimonio de la mujer son los grillos de la esclavitud», escrevera Rosalia em 1858. Isto quere dizer que desde moi nova, e a biografia persoal e literária de Rosalia assi no-lo demostra, a escritora é consciente das cadeas que no séc. XIX atam a mulher e a confinam a um «rol» secundário, em funçom do varom.
     É verdade que a problemática feminina vai-se modelando, evoluíndo, ao longo da sua obra, mas tamém é verdade que nom podemos deixar de parte este aspecto da obra rosaliana se pensarmos que Folhas Novas se inícia com um poema onde se questiona esse «rol» da mulher escritora, como aliás já indicámos, e remata com um «Iivro», o V, todo el centrado no problema da mulher. Por isso importa-nos estabelecer como ao longo deste volume se vai construindo um discurso do feminino sem cuja comprensom o significado desta obra ficaria, quando menos, deficiente.
     O mais evidente nesse discurso talvez seja a presença dos «eu» femininos como sujeitos da maioria dos poemas; ou personages femininos como elementos protagonistas, ou importantes, de moitas das «histórias» que som poetizadas. Hai, pois, umha afirmarom do eu feminino que nos importa.
     Mas, onde talvez seja mais interessante analisar o feminino como objecto do texto, talvez seja, repetimos, na presentaçom que se fai da sexualidade da mulher; a sua concretizaçom, vivência melhor, na instituiçom do matrimónio; a possibilidade-necessidade, ou talvez fatalismo, da transgressom. Em definitiva, a análise do desejo, que se relaciona tamém, e como já foi dito, com os códigos ideológicos de Folhas Novas.
     Todo discurso opressor sobre a mulher que se construíu ao longo da história acaba levando sempre ao terreno da sexualidade, por ser aí, como actividade —definidor— essêncial do ser humano onde se dam as contradiçons mais evidentes da mesmidade feminina. É aí, nesse esporo da realizaçom sexual, onde esses discursos, falsamente libertadores, situam o «complexo de castraçom», a «inveja do falo», a «neurose feminina», polo que a liberdade proposta situaria-se na conquista de um espaço masculino, em lugar da afirmaçom da própria femineidade. Dessa maneira moitos dos discursos que falam da libertaçom feminina nom fam senom aprofundar numha relaçom de domínio, na mulher como carência, quando em última análise a libertaçom tem que passar necessariamente por umha libertaçom do desejo, e o desejo funda-se na rede da afectividade-erotismo do que se constitui em energia.
     Assi temos que sublinhar que, começando Folhas Novas por umha questom que afecta directamente ao papel da mulher, questom à que nom se dá resposta, o papel da mulher vai-se situar precisamente no problema da afectividade, que encontra no matrimónio como instituiçom a sua negaçom mais absoluta e o esporo onde surge o conflito. Rosalia apresenta todas as contradiçons que incidem na relaçom da mulher com o outro, seja o home, ou seja o mundo, que significativamente foi modelado pola masculinidade.
     Hai, assi, uns «Bos amores» (existe a possibilidade de um desejo livre), mas esses bons amores som, nas actuais estruturas, impossíveis, polo que aquilo que prevalece som os «amores cativos», amores que produzem ansiedade, inestabilidade e que polo tanto é preciso desterrar porque

«Mais val morrer de friagem
que quentar-se à sua fogueira
».

     Quando se dá um problema social como a emigraçom, se bem que el incide negativamente na sociedade galega, no plano económico, e que pode traer problemas ao que se vai —o home—, tamém é certo que a sua existência nom fai senom agudizar o papel secundário da mulher e a obrigaçom assumida de reprimir o seu desejo. O problema está nos que se quedam

«E tés coraçons que sufrem
longas ausências mortás,
viudas de vivos e mortos
que ninguém consolará
».

     Mas como se ve logo noutros textos, o problema central (a ausência, carência efectiva) nom impede o home a se realizar sexual-afectivamente (veja-se o poema «Que Ihe digo?»).
     A mulher tem interiorizado um papel dependente do home, mas essa submisom, em cuja aceptaçom alienante a mulher pode topar um falso prazer, quando determinados elementos sociais variam, introduzem um elemento inesperado, entom surge o conflito, agudiza-se a contradiçom; daquela, a mulher verá como a aceptaçom do seu «rol» nom Ihe pode dar felicidade (veja-se o poema «N'é de morte»).
     Por isso a mulher deve alterar o seu «status» dentro da orde social para adquirir a sua liberdade. Mas enquanto essa orde social nom for alterada, a libertaçom individual vive-se socialmente como transgressom, e nom faltam textos onde isso se manifesta.
     Nesta situaçom, o matrimónio é o lugar onde se evidênciam as estruturas opressoras da mulher:

«Do direito, do rivés,
matrimónio, um dogal es
»

e a estrutura familiar impede a mulher sair dessa tea de aranha da dominaçom:

«—Mais a que assi querer sabe,
nom deve ter pai n'irmam
nim home, si é que é casada;
nim filhos, si acaso é nái
».


Mas subsiste essa instituiçom, símbolo da estrutura patriarcal e machista da sociedade,

«mais casarei... pois no inverno
nom ter quem lhe a um quente os pés...!
».

E ela existe interiorizada, como o demostram os versos citados, mentres isso ocorre existirá esse «Bos amores» como impossibilidade, e permanecerám como únicos possíveis os «amores cativos», negaçom do desejo da mulher.
     Quer dizer, ao longo de Folhas Novas, hai toda umha linha temática que pom de relevo a importáncia que o feminino tem em Rosalia, assi como evidência um código ideológico que se define em termos de solidariedade com aquelas das que se poderia escrever umha «sencilha
por colectiva como dolorosa por oprimidas epopéia».
     Pretender que Rosalia submetesse o problema da mulher a análises dos nossos dias seria ignorar o momento histórico e cultural no que a escritora vive. Reduzir a problemática a um feminismo sentimental seria cair na cegueira de umha leitura chea de preconceitos e ignorar elementos que tam claramente nos falam através dos textos da visom intelectual que Rosalia tem do problema.
     Por último, afirmar como fai Poullain que «Lo único que se puede afirmar (...) es que la visión pesimista del amor que aparece en toda la obra rosaliana no es una invención de la escritora, sino que refleja de algún modo su experiencia personal» (16) é pretender reduzir a poesia de Rosalia, e por extenso toda poesia, a um repertório de «anécdotas» biográficas (nem sequer se fala do autobiografismo como género), carácter biográfico para o que nom temos elementos quer de carácter textual, ou outros, para podê-lo delimitar; é reduzir a actividade literária ao carácter de «confissom», presupondo no leitor umha vorazidade mórbida cujo prazer residiria nom na comunicaçom através da palavra, senom na contemplaçom desde fora, numha espécie de «voyerismo» reles que negaria toda e qualquer especificidade do acto literário criativo da produçom, e do acto, tamém literário e criativo, da recepçom.


V.V. A contradiçom como tema

     De Folhas Novas dixo certeiramente Carvalho Calero que é umha obra «chea de contradiçons e o que essas interrogaçons nos ponhem de manifesto é umha visom da realidade como algo contraditório». 
     Rosalia pom-se no límite do abismo e desde ali interroga-se, interroga-nos sobre um real que se Ihe/nos escapa. A linguage rosaliana situa-nos perante a contradiçom de um mundo que ao se transformar perde as referências, umha ruptura das balizas que cercando-nos davam seguridade à existência; um mundo no que os deuses e os heróis morreram e o home navega, na sua soledade, por umha linha de sombra na que a palavra se converte em grito.
     A poesía, como forma de conhecimento do real, resolve-se a nível temático na dúvida, na sucesom de interrogantes cujo desfechamento, cuja soluçom, leva o eu a vertige da escuridade mais completa, da soledade intensa. Essa soledade —que no seu extremo mais radical atinge a saudade— e o abismo que simboliza a morte conforman os pilares da visom da vida que Rosalia nos dá em Folhas Novas.
     A realidade do mundo é —já o dixemos— contraditória e entre o eu e o mundo existe tamém umha relaçom contraditória. As cousas existem porque estám aí, pero nom se sabe nem de onde é que venhem, nem aonde nos podem conduzir; ou talvez venham do caos para acabar no abismo, e o home, polo menos o home ocidental, vive esta relaçom de forma dramática. Obrigado a interrogar a Esfinge para superar os límites do mistério, sabe da inexistência de respostas, porque a resposta a dúvida essêncial é a permanência na dúvida, a existência da dúvida mesma:

«Cando penso que te fuche,
negra sombra que me asombras,
ó pé dos meus cabezales
tornas fazendo-me mofa
»

—escrebe a autora no celebérrimo poema da «Negra sombra»—, mas ninguém pode definir essa negra sombra, porque defini-la seria dominá-la. Ao identificá-la desapareceria a razom da inquietude, da angústia, a razom mesma da existência

«Luz e progresso em todas partes..., pero
          as dudas nos coraçôs,
e bágoas que um nom sabe por que correm,
e dores que um nom sabe por que som
»

e a negatividade de nom saber, transformar-se em positividade, por que é esse nom saber o que justifica a existência da mesma poesia. Porque se soubermos, se chegarmos a esse espaço que garda a Esfinge, teríamos conquistado o lugar do silêncio, estaria de mais a nossa presença, e polo tanto nom haveria lugar para a existência da poesia como modo de conhecimento.
     E o passo do tempo nom serve senom para agudizar essa contradiçom, por isso esta situa-se entre o passado e o presente. O passado era seguridade, era o tempo dos deuses que diria Heidegger, era o saber, e o presente é essa ausência de saber, embora ansie aquel momento anterior, que em Rosalia aparece simbolizado pola nenez:

«Por que, minha alminha,
por que ora nom queres
o que antes querias?
».

A nenez é o tempo mítico e mágico no que existiam os deuses, no que a cisom do home e o mundo nom se tinham ainda produzido; mas sabe-se da impossibilidade do regresso, todo corre para um abismo perante o qual, e por um momento, a escritora se parou.
     A contradiçom leva mesmo ao estranhamento, a ser «estrangeira na sua pátria» com o qual a contradiçom acada o límite da nossa relaçom com os outros, incluída a paisage.
     Aquel tempo passado, como espaço simbólico com referência ao qual se agudiza a contradiçom do presente, nom volta; a sua procura, a «recherche», é impossível. O engano de um pretenso regresso deve-se afastar, como o demostra o símbolo do cravo.
     Nom é o dor presente, a ausência dos deuses no aqui e agora, o que produze dor, é a consciência da impossibilidade de recuperar aquel tempo mítico a que leva ao horror, ao «espantada o abismo vejo»;  por isso precisa-se umha saída, e esta saída está no abismo, no mais obscuro de umha profundidade insondável, na morte, no aniquilamento total.
     Mas a morte tamém é vivida como um sentimento-acçom contraditórios. Morrer para viver?, excessivamente complexo para a nossa sociedade, por isso a morte é contradiçom numha perspectiva sociológica quando ela é acto livre de quem a ela se entrega:

«por que chamam crime
ir em busca da morte que tarda
».

Mas tamém a morte, a sua possibilidade, é um estádio mais, que por desconhecido inquieta, e mesmo sugere-se a dúvida de que a soledade continue nesse novo estádio:

«i ali onde o corvo pausa
soia enterrada está
».


Por isso a morte é um desejo ambivalente: atrai e repele a um tempo (sublinhe-se a persistência e intensidade com o que o tema do suicídio está tratado em Folhas Novas) e Rosalia abeira-a ao longo de toda a obra, com umha força tal que consegue desassossegar-nos e trasmitir-nos a nós tamém a contradiçom que na sua escrita formula, contradiçom que, curiosamente, atinge tamém um aspecto extra-literário: o deste livro no contexto da literatura galega e europea do século XIX.


V.VI. Conclusom

     Mesmo que poda resultar tópico, moitas cousas mais poderiam ser ditas, todas importantes, sobre esta obra e a sua autora.
     Folhas Novas coloca a Rosalia fora das correntes literárias imperantes nom só no Estado Espanhol senom tamém em Europa.
     Em moitos aspectos Folhas Novas situa-se nos proximidades do discurso simbolista finisecular, abre perspectivas do que será a poesia do séc. XX. Rosalia anovou aspectos métricos importantes, soubo recolher o contributo que o romantismo transmitiu à poesia moderna, passa pola literatura realista do seu momento, mas, e sobre todo, na sua «anormalidade» (el nom é tamém «anormal» a literatura galega?) é demostrativa de um discurso radicalmente renovador e persoal, que por si só pode consagrar definitivamente a sua autora.
     Pouco importa que o processo mitificador-assimilador de Rosalia leva-se a leituras enormemente parcelares e até malintencionadas; como di Carvallo Calero: «é evidente que Rosalia pertence à literatura universal, mais pola sua poesia «metafísica» que pola sua poesia «folklórica», essas duas direcçons do seu pulo poético som igualmente autênticas, e nom podemos considerar nengumha como accidental e episódica se nom queremos mistificar historicamente o que Rosalia foi» (17). O que nós deduzimos desta afirmaçom do crítico rosaliano é o carácter plurívoco do seu discurso; abrangê-lo na sua totalidade significa a necessidade de um achegamento nom-dogmático e des-preconceituado ao próprio texto, na certeza de que o prazer da sua leitura é umha aventura apaixonante.
     O que nós pretendémos aqui, e asi o sinalávamos no inicio deste prólogo, foi oferecer a nossa leitura, umha leitura individual e selectiva que sem pretensons de universalismo nós assumimos.





—————————— NOTAS ——————————



(1) Seguimos nesta «Notícia biográfica» a R. CARVALHO CALERO, o mais importante estudioso da vida e obra da nossa escritora, na sua História da literatura galega contemporánea, Edt. Galáxia, Vigo, 1975/2ª, p. 143-234.
(2) RODRÍGUEZ SÁNCHEZ, F., «Achegamento a unha Rosalia sen mistificacións» in A Nosa Terra. Extra n.º 1 (Rosalía Viva), Vigo, 1984, p. 25-32.
(3) Ibid., p. 26.
(4) Transcrevemos o quadro que aparece em POULLAIN, C. H., Rosalía Castro de Murguía y su obra literária, Editora Nacional, Madrid, 1974, p. 11.
(5) Para as citas de Rosalia utilizamos a ediçom Poesias, ao cuidado de R. Carvalho Calero e ydia Fontoira, Patronato Rosalía de Castro, Vigo, 1982/2.ª. Adaptamos ortograficamente o texto sem alterar a língua original fixada nesta ediçom.
(6) RODRÍGUEZ, F., Ob. cit., p. 26.
(7) Ibid., p. 28.
(8) POULLAIN C. H., Ob. cit., p. 19.
(9) Neste texto hai umha diferença importante entre a ediçom que utilizamos (vid. 5) e a ediçom facsímil de Folhas Novas, RAG, Corunha, 1982. A primeira coloca «Silêncio!» como título do poema enquanto a segunda situa-o como primeiro verso. Tendo em conta que no «livro» no que o poema está incluído, nengum texto leva título (este seria logo umha excepçom), e tendo em conta tamém que ao nom ser ediçom crítica a leitura de Carvalho e Fontoira nom se documenta, preferimos a da ediçom facsímil.
(10) ALONSO MONTERO, J., «Rosalia de Castro: compromiso, denuncia, desamparo y violencia» in Realismo y conciência crítica en la literatura gallega, Edt. Ciência Nueva, Madrid, 1968.
(11) Ibid, p. 75.
(12) Ibid, p. 78.
(13) Ibid, p. 78.
(14) Ibid, p. 78 (o sublinhado é nosso).
(15) Ibid, p. 75.
(16) POULLAIN, C. H., Ob. cit., p. 132.
(17) CARVALHO CALERO, R., Ob. cit., p. 185.


 

 

 


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