Quem voltasse àqueles tempos de garoto

 

(Texto íntegro)

 

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"E que fazes por aqui tão de manhã, Jorginho?"

"Vim às cereijas, senhor António."


Eu andaria então pelos seis anos de idade. Naquela altura em Vila Velha havia muitas cerdeiras, ainda é hoje que me pergunto que é que lhes teria acontecido? Anos mais tarde disseram-me os entendidos do lugar que viera uma peste e morreram todas. Mágoa, eu é que me consumia, de miúdo, por aquele fruto vermelho, tão redondinho ele. Que belas imagens guardo daquelas polinguinhas todas cheias de bolinhas tão requintadas.

"Quem fora pega, senhor António, para poder abondar todas aquelas madurinhas que há no cimo!"

"Carácio, Jorginho, aguarda que com aquele lareiro que tenho lá de quando andamos nas castanhas havemos de sacudir mais uma."

Achávamo-nos no Fundo da Fonte. É um lameiro que os de Ferreirinho têm lindando com os eidos de Sangunhedo. Há uma corredoira que faz de regato quando as chuvas do inverno e à outra beira já é Sangunhedo, do concelho de Sárria.

Que desiludido estava eu por não ser um pássaro e assim abondar as bolinhas vermelhas!

O senhor António guardava nas vacas, era o pegureiro da casa de Ferreirinho. Acompanhado dalgum neto ou ele sozinho. Era eu ainda um rapazete imberbe quando ele finou mais ainda assim tenho muitas boas lembranças daquele homem. Bom amigo dos garotos, que para ser Vila Velha um lugar tão pequeno éramos uma cheia deles. Coetâneos meus que estão ainda vivos são o Carlos de Carreira, Queixomariu, Ricardo Aveiro, os dous de Petres, também o Daniel e o Tonho de Ferreirinho, já finados os dous. Ainda havia uns cinco ou seis, mas eles já eram moços, e outros tantos mais novos. Quando nos juntávamos nas devesas a jogar a pelota fazíamos duas equipas sem qualquer problema.

"Quando eu vim casar para Vila Velha, Jorginho, havia muita fome, naquela altura a gente trabalhava no campo só pela comida, e ainda bem se eras bom trabalhador, porque se assim não acontecia rejeitavam-te!! Que tempos, e após a República estiveram a passar-se cousas terríveis. "Lembro que o senhor António dizia aquilo entre soluços. Com efeito, cousas terríveis. "Viera por cá o Pequeninho do Íncio pedir-nos os votos... E como lhe não ias votar? era ele tão boa pessoa. Não queria despesa alguma por curar na gente pobre. Após aquilo que lhe acontecera a ele tínhamos muito medo, tiravam à gente das casa pelas noites, levavam-nos à Valinha e aí se achavam pelas manhãs a vários mortos."

"Quem era o Pequeninho do Íncio?" Perguntei à minha mãe em chegando à casa.

"Abençoado seja o senhor. Quem é que anda a contar-te nessas cousas meu neno?"

Eu fiz-me o parvo e continuei com a pergunta.

"Era o médico do Íncio, amigo do teu avô em paz esteja." Eu não acordei a meu avô, seica morreu quinze dias antes de eu nascer, por isso me asignaram o seu nome. "Ao pobrinho assassinaram-no os falangistas e depois não conformes ataram-no à cauda dum cavalo para que todo o povo o olhara morto, assassinos; mas essas cousas não é bom que tu as saibas, meu anjinho." E minha mãe colheu-me no colo e apertou-me forte a ela.

"Sou, sou, Sevarino de Albartiom!"

"Mas este pequeno toleou... vaia estrúcia na que deu."

A minha mãe não compreendia o muito que eu ficara impressionado com a visita dum maluco que por aquelas terras andara. Era uma mestura entre medo e admiração. Contaram-se tantas cousas daquele homem que eu estava impressionado.

Isto tinha lugar numa noite de inverno fecha de todo. Já morávamos na casa nova, que começara meu pai a construir no ano em que eu vim ao mundo. Mas ainda lembro a lareira da casa velha, todos arremoinhados a carão do lume e os maiores a contar contos. O senhor José de Carreira estivera na guerra de Cuba, contava histórias muito medonhentas.

A tampa da panela dançava empurrada pela fervura, os cachelos estavam presto... Na tijola fazia-se a fogo lento um apisto de tomate, cebola e pimentos... Quanto eu gostava, e ainda gosto, daquele prato tão simples e tão rico.

E pela manhã havia-se de produzir uma das cousas que mais têm marcado a minha vida. Deixava a escola do lugar para me incorporar a uma escola privada na vila de Sárria. Uns problemas, dos que já tenho falado noutros escritos, faziam incompatível à mestra do povo com a minha presença, ao igual que lhes tinha acontecido a outros coetâneos meus. A pergunta seria como é que o povo, a população havia de aturar qualquer capricho ora da mestra ora do senhor abade? A escola era uma ameaça terrível. Falar da "escola" com miúdos, era como falar na cruz com o demo! Não havia de ser a primeira vez mas impunha muito ir à vila para assistir à escola.


"E como vás fazer, lá tens que falar castelhano?" Disse-me o José Luís de Carreira. Já não lembro o que lhe respondi, mas o coração encolheu-se-me um anaco.

Naquela noite pouco dormi, meus pais não me ralharam em nada. Ia-me da casa não só eu, também o pai havia de ir ganhar francos à França para pagar uma dívida.

Pela manhã cedinho minha mãe atirou-me da cama, ainda o teve que fazer quase com violência. Eu me não queria descolar dos lençóis. Ir morar a Sárria e acima à escola, se batiam num como na escola da paróquia que havia de ser de mim!

Faltava meia hora para que o carro de linha regular passara pela Santa Cruz do Oural... Eu ia caminho da paragem, acompanhado da minha mãe, rezando para que o auto-carro tivera um acidente ou que suspenderam a linha... O bom seria que o Jorginho, indefeso ele, não chegara nunca a Sárria. Mas o auto-carro passou e eu fiquei sozinho em Sárria... E segundo minha mãe graças àquela "mestrinha" de Sárria é que eu aprendi a ler e escrever:

"Pois o rapaz tinha onze anos e não sabia pôr seu nome. Essas outras mestras que havia nas escolas públicas de Franco só se ocupavam dos rapazes dos ricos e de aprender-lhes a rezar e cantar o Cara al Sol, malandras."

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Dous quilômetros de caminho, quiçá mais quiçá menos? Mas aquela distância significava na realidade um oceano de lamas ou um porto custoso de lhe acadar o cúmio. Salvada essa distância de corgas fundas e lamas perigosas eis, pois, a estrada geral Lugo Monforte.

"Agora já ninguém lembra a corga da Arroteia nem o lamaçal da Serra... Mas havia que junguir duas parelhas boas de vacas ou de bois para transportar uma carrada de batatas ou qualquer outra mercadoria. Era do que se fazia um carto!" O Nemésio lembrava tempos idos, mas também guardava uma saudade grande daquele isolamento que fazia de Vila Velha um "país" mais livre e autóctone.


Com efeito, aquelas corgas ficaram todas baixo de centos de carradas de pedra que os vizinhos, sem qualquer ajuda, meteram lá.

Grande tipo aquele Nemésio, em paz esteja, o primeiro aparelho receptor de rádio trouxe-o ele:

"Que bem tocam no acordeão estes tipos... Dá gosto!"

Sempre sintonizava emissoras portuguesas para escutar melodias tocadas pelas mãos dalgum virtuoso acordeonista da outra banda do Minho.

"Ainda havemos de ir a escutá-los um dia, eh, Jorginho?" Eu botava muitas horas na sua casa. Ele era o pai de meu coetâneo Daniel Armesto.

"Havemos, ho!"

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Desde o "Coiso Velho" olha-se toda a Cervela. Ainda que o nome da Cervela abrange toda a paróquia, os de Vila Velha chamamos assim só às terras de perto da Igreja. E não só, também se vêem as terras de Vila de Mouros, Barbaím e até Bóbeda e Monforte... Eu guardava nas vacas. Naquela altura andaria pelos quinze ou dezasseis anos. É quando o Manolo do Clemente me propôs para eu ser um dos quatro dançarinos que intervêm na procissão da missa maior das festas da paróquia. Eu estava já nervoso, aquilo de actuar perante tanta gente como se concentrava naquela procissão eram palavras maiores!

"As festas da Cervela já não são o que antanho... Se calhar algum ano juntou-se tanta gente de merendas que todos os lameiros dos arredores ficaram pequenos para as acampadas. Vieram de todas as partes." O senhor Ramiro da caseta também guardava nas suas vacas num eido que linda com o nosso.

Há pessoas que não haviam de morrer nunca, o senhor Ramiro era um deles, neste caso porque ele falava o nosso idioma como os anjos... Mas, quiçá os anjos não falem, e se falassem teriam proibido a nossa língua por ordem da hierarquia!!

Era a primeira vez que eu ia dançar, e todas as noites havia que se exercitar, fazíamo-lo na reitoral, a casa do cura; mas já não morava nela porque D. José um bom dia decidiu ir-se para Madrid, seica por motivos de saúde. Agora é o pároco de Rubiám que vem dizer missa.

"Traz-nos aquela cadeira... Pom-ma aí. Esta é a Virgem do Rosário... tu, Pepinho, coloca-te mais alá, és a Santa Luzia!" O mestre, o Manolo do Clemente, faz como se as imagens dos santos estivessem em ringleira com uma separação entre eles duns três metros. Cada imagem seria transportada por quatro rapazes e a Santa Luzia por quatro moças. Na noite anterior "vestem-se" os santos, enfeitam-se todos com flores. Os dançarinos levam cada dançante um arco colhido com as duas mãos e todo ele recoberto de flores ou papelinhos de cores. Com estes arcos, em posição de coroa, vão-se fazendo vênias defronte à virgem do Rosário de dous em dous até três vezes... Para depois fazê-las os quatro dançarinos juntos, em ringleira e mirando sempre defronte à imagem da virgem e também três vezes. E assim continuariam outras cenas mais até rematar a procissão.

O mestre esforçava-se comigo já que eu era a primeira vez que ia dançar.

"Bem, bem... O Jorginho é que o faz chusco, sim senhor."

Daquilo não gostava eu porque se louvavam num e se no dia da verdade saía a cousa mal, ia arrepiar.

No final dos ensaios argalhávamos uma pequena "farra", era o pretexto para dançar, de mãos colhidas, com as rapariguinhas... Havia-as da paróquia mas também outras da cidade que se passavam na Cervela uns dias de férias.

Depois daquele ano vieram mais, eu era um dançarino titular. Foram anos incríveis de amores fugazes e sonhos arrumados por imperativo de uma realidade concreta. Mas confesso a minha satisfação.

Os dançarinos iam ataviados com uns "panos" que eram empréstimo de alguns vizinhos que os possuíam, muito escassos já que são peças únicas de até trezentos anos ou mais de existência.

Respeitei aquele dado, mas quando a senhora Filomena de Frugil mo emprestou falei-lhe destarte:
"Eu não posso acreditar..."

"É-che certo como a luz que nos alumia!"

Nos últimos anos importaram-se alguns de Portugal já que são idênticos aos nossos.

O tempo estava firme, não se mexia uma palha. De manhã cedo baixei para a Cervela, ainda havíamos de exercitar-nos um algo no sítio onde a cena teria lugar de verdade. "O dia chegou, Jorginho, tens que dançar para que a gente fique com a boca aberta!" Animava-me a mi próprio.

Quando se escutasse o primeiro foguete havíamos de avançar em formação, todos de uniforme de festa, com nossos panos, chapéus e arcos bem adornados. Também os moços e moças que haviam de portar as imagens dos santos, e também os miúdos para transportar ao São Roquinho e também a Cruz que abriria a procissão.

A orquestra já estava presta.

"Hão de tocar uma moinheira alegre." O mestre também é um dos dançarinos.

"É boa a de Chantada?"

"É boa."

E o foguete rompeu a tranquilidade, meu coração batia a cem... A orquestra iniciou a moinheira, a marcha começava. Ao passar à beira da gente faziam comentários:

"É o Jorginho?"

"É, é!"

"Ala Lugo!" Gritou o Nemésio de Ferreiro com sua expressão favorita. E eu ali com um nó na garganta que me não deixava viver. O murmúrio da gente dava-me confiança e mais ainda porque o mestre era a minha parelha de cerimónia, com ele a meu carão era avondo doado.

Sempre lembrarei aquela música da moinheira de Chantada. Que peça mais bela. O fado me depararia que anos, muitos anos após cá me acho intentando aprender a música da devandita peça. Certamente eu não serei um acordeonista tão bom como o Queixomariu, mas quiçá algum dia possamos tocar juntos nas festas da Cervela; e quem sabe, se calhar o Nemésio de Ferreiro desde a outra banda ainda nos bate palmas:

"Que tipos, como tocam, ala Lugo!"

 

 

 


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