O feche indefinido

 

(Texto íntegro)

 

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Para Xoán Ignacio Taibo      

     «Encontrar o repouso na perfeiçom é o sonho de aquele que se esforça por atingir a excelência; e o nada nom é também umha forma de perfeiçom?». (Thomas Mann)






I

 

     As primeiras moradas viam-se, por fim. Viajávamos de férias com a intranquilidade de chegar de improviso; embora fossem último de Junho, nom deveriam dar-se problemas de alojamento.
     Ao entrarmos nas primeiras ruas um vulto pujo-se diante do veículo. «Virom a minha filha?», perguntou. Olhamos a sua face vencida, de mulher a consumir-se, a sofrer umha derrota. O vestido, negro, dava-lhe ar entre espantalho, personagem sinistra e anjo desamparado.
     Reconhecim-na. Era Almaviva, dona de «A Confortadora», onde nos alojáramos nos últimos veraos.
     «Pois nom. E logo aconteceu-lhe algo à Encarnaçom?, respondim.
     Nom pareceu inteirar-se. Houvo um instante de silêncio, de indecisom.
     «A minha filha foi-se com o demo. Andam juntos por aí. Se os encontrarem, digam-lhe que tem a porta aberta a todas as horas. E que me devolvam o meu home. Ela entenderá»; respondeu ao cabo.
     E largou.






II

 

     Paramos no primeiro bar. Ali servia Alberto, outrora moço de «A Confortadora». Saudei-o. Entre os dous nascera umha certa amizade. Contei-lhe o caso da Almaviva, com tom de incredulidade. Dei a entender que suspeitava o acontecido, bem supunha quem podia ser o demo em questom. Porém, ele adoptou umha atitude séria. Afirmou que algo havia, nom era brincadeira.
     Comunicou-nos que fechara o estabelecimento e andava assim, a errar, a procurar a filha. Alberto indicou onde hospedar-nos. Ofereceu-se a comentar-me aquela história, pois ali estava empregado quando sucederam os feitos, demasiado frescos. A comoçom ainda durava.
Eu fiquei assombrado.
     Ao irmos em direcçom ao hotel passamos ao pé de «A Confortadora». Na porta da antiga estalagem um cartaz punha «Feche indefinido».
Ao dia seguinte fum dar com o Alberto, ansioso por saber.






III

 

     «A Confortadora» era dos estabelecimentos populares da vila. Um edifício antigo, de pedra, com fachada sóbria. Pola sua estética e cêntrica situaçom nom passava desapercebido.
     Além de acolher hóspedes, dispunha de bar-restaurante. Nele costumavam parar pola manhazinha os obreiros enquanto aguardavam o autocarro. Os pescadores eram também assíduos, antes de sair botar as redes no primeiro lance da sardinha. Os dos arrabaldes e aldeias escolhiam-no para acoutar-se, contactar, conviver.
     Almaviva abria. O resto da jornada, Ambrósio, seu home, dedicava mais tempo para os clientes. Também fechava, por vezes de madrugada.
     A maioria dos quartos alugavam-nos a gentes que passavam temporadas longas. Contodo, ficavam sempre alguns livres. No verao os forasteiros obrigavam a colocar o rótulo de «completo».






IV

 

     Umha fria manhá de Novembro a Almaviva, ao elevar a persiana do bar deu com umha face, apoiada no vidro. Intimidou-se. Um arrepio perpassou-lhe polo corpo.
     Abriu. Aquela figura entrou. Tranquilizou-a. Com uns modais de grande educaçom pediu um café e umhas torradas.
     Apareceram clientes habituais. Transcorreu umha boa miga até que perguntou se ficava algum aposento desocupado. Mostrou-lhe os que havia. Elegeu e deitou-se, após entregar a documentaçom. Dixo nom saber quanto tempo pararia, umha temporadinha. Pagou um mês adiantado. A mulher reagiu satisfeita, nom era normal a antecipaçom de cartos.
     Olhou o bilhete de identidade. Aquele home moreno, de 26 anos, uns 190 centímetros, atlético, forte, com face serena, era Clássico Mammom Iglésias. Parecia dessas pessoas que vendem muito caras as suas derrotas; umha personagem com físico atractivo, palavra fácil e convicente. Fazia-se o interessante.
     Foi bem aceito por todos. Era mais bem reservado, embora quando se punha leriasse a eito, com ocorrências engenhosas, cheias de intençom, sempre persuasivas.
     Atingiu rápida popularidade. Conseguiu quebrar a barreira de afastamento que as gentes da vila mostravam para com os de fora. No fundo era diferente. A sua pessoa tinha algo inexplicavelmente inquietante. Em poucas semanas converteu-se quase num líder.
     Destacou por êxitos no jogo. Era exageradamente supercticioso. Mostrava umhas artes originais.
     Pouco falava de si. Explicava, a ser-lhe pedido, que estava na vila por conselho médico. Deram-no de baixa na mina em que laborava. Quando curasse iam-no destinar a um emprego mais levadeiro. Era difícil crer que fosse mineiro. Contodo, mais difícil conceber que mentisse.
     Demonstrou grandes saberes. Tinha a ponto resposta para qualquer interlocutor. Só rejeitava temas religiosos. Considerava-os «patranhas para amansar as boas gentes e explorá-las melhor». Mas respeitava quem achava neles explicaçom às suas questons vitais. Afirmava serem «invejáveis», apesar da sua «pobreza intelectual, falta de criatividade e conformismo narcisóide; passarám como simples, ignorantes, inúteis mentais». Isso dizia. «Nom há Deus, e a existir é um covarde», dizque comentou um dia. Sustinha que cada quem crê no que lhe convém.
     Os clientes do bar nom professavam em excesso. As tarefas habituais, das quais nom queriam complicaçom, aceitavam-nas por tradiçom. Eram progressistas, tolerantes. Tratavam de evitar esses temas e faziam por congeniar com ele, como se temessem o poder chegar a faltar-lhes a sua presença.
     Destacou também pola sua facilidade para com as mulheres. Algumhas gabaram-se de relaçom com ele. Mas Clássico jamais presumira de tal. Ninguém chegara a presenciar, fora dos lugares comuns, que andasse com algumha. Nunca se viu em liortas por saias, apesar de ter provocado mais de umha.






V

 

     Comportara-se por vezes como pessoa de fácil olvidar. Alguns dias pedira emprestada a chave dupla da pensom. Devolvia-a sempre aginha. Mas a finais de Fevereiro, a seguir a um desses esquecimentos, começou o sucesso que quiçá jamais olvidarám.
     Essa data nom tornou nem devolveu a chave,
     Num princípio pensárom se passava algo. Fôrom chamar. Ninguém respondeu. Forçárom a porta: escuitava-se ruído no quarto de banho. Insistirom. Clássico dixo estar bem: queria preparar umhas cousas com tranquilidade, umha temporadinha. Pediu que le deixassem as refeiçons à porta. Indicou onde estava a chave e solicitou arranjassem a fechadura.
     A primeiros de Março, Abril e Maio pagou pontualmente. Deixou generosas gorjetas. Almaviva achou o dinheiro adiantado ao abrir o bar. Clássico adjuntava notas explicativas.
     Jamais ninguém o viu colher a comida. Mas sempre aparecia consumida. A louça em que o serviam devolvia-a esfregada. Quando entravam no seu quarto achavam-no sempre em ordem. Parecia que a ducha estava a funcionar. Nom obstante, comprovárom com o contador da água nom se movia.
     Autoridades e conhecidos interessárom-se pola ausência. Justificárom que sempre fora um tipo estranho, já se daria a ver.






VI

 

     Encarnaçom cumpria 19 anos o 4 de Maio. Empenhou-se em convidar o desaparecido. Quijo convencê-lo ela própria. Polas 11 da manhá, toda campante, foi comunicar-lho.
     Ao abrir a porta produzírom-se as reacçons de sempre. Almaviva acompanhou-a. Ficou a vigiar desde o corredor. A moça dirigiu-se para o banho, enquanto explicava os motivos da visita.
     De repente ficou calada, a boca meio aberta. Entrou com en transe. A mai contemplou como, sem que ninguém lhe tocasse, as suas roupas começavam a desprender-se, até que ficou nua. Tentou achegar-se-lhe, mas nom se deu movido. Estava como encravada no chao, impotente para agir. Olhava contorcer-se à filha. Viu com umhas pingas de sangue, que interpretou amostra da sua virgindade. Nom tivo forma de aproximar-se. Pretendeu berrar, pedir auxílio; tampouco pudo.
     Depois, Encarnaçom fazia gestos estranhíssimos, pronunciava sons incompreensíveis, expulsava pola boca umha espécie de fumo. Principiou a esquartejar-se. Almaviva foi testemunha de como cada olho da rapariga se deslocava para umha parte do quarto, o mesmo que cada braço para um lugar diferente, e as pernas, os peitos, o coraçom, o estómago, as orelhas e outros membros, que andavam para adiante ou para atrás, por vezes multiplicavam-se ou partiam-se em pedaços. Almaviva nom queria ver aquilo, mas nom dava fechado os olhos, acontecia algo muito superior às suas forças, que nom se dava explicado e contra o que nada podia a sua vontade e anelos de actuar. A moça, que jamais assim se portara, estava em todo momento só. Clássico em ocasions berrava vozes muito distorsionadas.
     Ao pouco todo tornou ao seu sítio. A mai ficou pasmada ao observar muitos duplos da Encarnaçom, cada um a fazer umha actividade. Num instante dirigírom-se todos a ela. Escuitou palavras irreproduzíveis, por estranhas e desconhecidas. Também lhe pediam que jamais se ocupasse da Encarnaçom, quem atingira umha dimensom muito superior aos simples humanos.
     A porta fechou-se de repente, com um golpe fortíssimo, quando a rapariga penetrou no quarto de asseio. Nesse instante, Almaviva recobrou a normalidade. Todo durara meia hora escassa.






VII

 

     Quando a mulher lhe relatou os factos, Ambrósio acudiu rápido ao quarto de Clássico. Reconheceu a voz da filha: Dixo-lhe que estava mui bem, queria ficar em companhia de aquele hóspede. Pediu-lhe que se fosse, que nom os incomodassem, pois estava a aprender muito; mais tarde baixariam juntos jantar e revelariam os seus projectos.
     Obedeceu. Mas o par nom apareceu.
     Ambrósio pensou toda a tarde em entrar naquele quarto de asseio. Algo lhe impedia fazê-lo, apesar dos requerimentos da sua dona. Nom sabiam o que estava a acontecer-lhes.
     Pola noite, depois de fechar, topou-se com força suficiente. Foi amodinho. Entrou ao banho, sem importar-lhe as súplicas da filha. Almaviva ficara no corredor, expectante, a rezar.
     Escuitou-se como um estouro. «A Confortadora» ficou envolta numha estranha lumeira por instantes. Nom causou danos. Foi presenciada por hóspedes e vizinhos próximos. Apagou-se só.
     Almaviva apareceu na rua, sem saber como. Desde esse instante dize nom ver a parte da morada ocupada por aquele quarto. Encarregou construí-la de novo. Ainda andam pendentes de fazer a obra, retrasam-na adrede para ver se volta em si.
     O pior foi que desaparecérom Ambrósio, Encarnaçom, e nom ficou rasto de Clássico. Rastejárom todas as partes sem êxito.
     O 11 de Maio encontrou-se no peirao o corpo sem vida de um home. Achava-se mui descomposto. Dérom-no polo Ambrósio. Almaviva nom o reconheceu, nom o velou, nem assitiu ao enterro.
     Regentou «A Confortadora» até ao 18 de Maio. Essa jornada, ao elevar a persiana do bar viu pegadas ao cristal da porta as fácies de Clássico e Encarnaçom. Abriu para que passassem. Desaparecérom misteriosamente.
     Deixou aberto e começou a errar na procura dos dous. Pola noitinha pujo o cartaz de feche. Pediu aos hóspedes que buscassem outro alojamento. O primeiro de Junho cessou com todo.






VIII

 

     «A maioria dos vizinhos —acrescentou Alberto— interpretamos que Clássico e Encarnaçom foram surpreendidos quando estavam a expressar as suas melhores oferendas amorosas. Polas ameaças do casal, os namorados, temerosos, decidiram fugar-se.
     «Almaviva inventara aquela história como justificaçom face à sua filha. Casos parecidos nom deixam de ser freqüentes, seica.
     «O Ambrósio toleara e tirara-se ao mar. Ela nom o pudera evitar. Quando aparecera na rua vinha de presenciar o suicídio. Ninguém relacionara os feitos da jornada da desapariçom com os que revelara a Almaviva. Todos cremos que perdera o sentidinho.
     «Mas dom Bruno, o cura pároco, assegurou que toda fora cousa do demo. Mesmo acudiu a abençoar a morada. Susteu que Mammom é um dos diabos mais poderosos, até ocupa um cargo de importáncia nos Infernos, umhas das maos direitas do Grande Satanás. Ensinou livros que o confirmavam.
     «Explicou que a forma de apresentar-se nom fora extranha: eram muitas as ocasions provadas que actuara de jeito semelhante. Até saiu a procissom.
     «Levou à vila a um experto bispo e três cónegos. Os visitadores fôrom escuitados com expectaçom. Abarrotou-se a lonja do peixe, onde falarom, por ficar pequena a Igreja. Nunca um tema de curas e demos lhes tivera tanto interesse. Revelárom o significado suposto do ocultamento do Clássico, que escolhese umha moça virgem, o ruído e lume da despedida, a desapariçom do Ambrósio e demais circunstáncias. Todo lógico. Nom havia nada que nom concordasse para eles.
     «A ideia foi-se a impor. Alguns nom acreditamos. Por mais que para nós se diga que o maior triunfo do demónio é fazer que nom existe».






IX

 

     A história ainda hoje, três anos depois, tem vigência na vila. Na «Confortadora» permanece o cartaz de «Feche indefinido». Por certo, a quê lhe viria pôr «indefinido»?
     Almaviva continua a errar. Jornada a jornada questiona a toda a gente. Sobrevive pola caridade dos vizinhos.
     O verao passado voltei a dar con ela, já mais vencida.
     Perguntou de novo se vira a sua filha, que andava com o demo.
     «Mulher —respondim—, ainda com essa léria?».
     «E continuarei. O corpo dá-me que tenhem de aparecer. Um dia destes. Sabem que nom me podem fazer umha cousa assim».
     Falava confiada, com toda a naturalidade, como se as suas palavras fossem a maior evidência. «Vam aparecer», repetia.
     Sempre é melhor, enfim, a esperança.


Jove, Julho de 1988

 

 

 


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