Para a história da ordenaçom jurídica da autonomia galega

 

(Texto íntegro)

 

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I
Um projecto de Estatuto

     As ilusons e desilusons que o a advento e a curta vida da segunda república espanhola suscitárom nos ánimos dos que éramos moços naqueles afastados dias, tenhem, por suposto, notável semelhança com as que observamos ao nosso redor —protagonizadas por gentes que agora tenhem a idade que nós tínhamos daquela— os que atingimos a velhice, e com ela o advento e a vida infantil de um regime, a democracia, estranhamente homólogo daqueloutro que tamém era, ou queria ser, democracia, mas que nom se chamava assi de nome próprio, porque o nome mais próprio de república o agarimava com a sua ressonáncia superior.
     Como agora, os tempos caracterizavam-se, sobretodo —e isto é o corrente nos novos regimes— por um proído de substituiçom institucional. Ainda que, claro está, nom faltassem exímias vozes independentes, o coro geral das classes momentaneamente poderosas, instaladas no aparato político —no governo ou na oposiçom— entoava o hino da negaçom, do cámbio de signo. De jeito que o fluxo irresistível da dialéctica política conduzia a adoptar como fórmula para organizar a nova vida a substituiçom pola sua contrária em todos os aspectos, da fómula vigente no regime anterior.


FEDERAL E QUASE-FEDERAL

     Como agora, contra o centralismo reinante, se propugna o autonomismo geral, daquela pensava-se no federalismo como forma do Estado. Verdade é que, quando se elaborou a Constituiçom, um destacado chefe político logrou convencer à maioria dos deputados, no último momento, de que nom era correcto proclamar a república federal em ausência do Presidente do Governo, e decidiu-se avisá-lo, ou aprazar a sessom —nom me lembro—, com o que houvo tempo de reflexionar, e ao fim a república nom foi federal, senom «federável». E como o actual Estado é, segundo dim, «quase-federal», a verdade é que os velhos nos sentimos novos, porque nos parece que volvemos a viver os anos 30, e que esta Monarquia tem um ar que relembra aquela República.
     O caso é que, na etapa pre-constituinte, a voz do povo, é dizer, a voz dos vozeiros do povo, anunciava com seguridade profética a República Federal, já que a Monarquia fora unitária. Por isso, o primeiro projecto de Estatuto Galego que se elaborou naquel momento começava com estas palavras: «Galiza é un Estado libre drento da República Federal Española».
     Mas, ao cabo, nom houvo república federal, e houvo que redactar outro projecto de Estatuto. De por parte, o aludido tinha carácter oficial, pois era, ou pretendia ser, obra de técnicos. É o Estatuto chamado do Seminário de Estudos Galegos, pois esta entidade encarregou a sua elaboraçom ou assumiu a sua redacçom.


TRADIÇOM E DOCUMENTAÇOM

     A História tem como fonte própria o documento escrito. E os que presenciámos certos acontecimentos afastados no tempo e comparamos as nossas lembranças dos feitos com o rasto documental sobre o que os recontruem os moços historiadores, nom podemos menos de abrigar as mais prudentes dúvidas cartesianas a respeito da exactitude das visons históricas que nom nos é possível confrontar com as nossas lembranças.
     Recentemente lim nalgum artigo periodístico umha referência aos autores daquel projecto de Estatuto, entre os que se destacava a figura de Alexandre Bôveda, moço economista, membro destacado do Partido Galeguista, julgado e condenado a morte pola sua resistência ao movimento militar e político iniciado em 1936 e que produziu o derrubamento do regime republicano. Meritórios historiadores, baseando-se na literatura disponível, dam a nómina completa dos autores daquel projecto, que teriam sido Valentim Paz Andrade, Alexandre Bóveda, Vicente Risco, Luís Tobio e Ricardo Carvalho. E mesmo algum, ao sublinhar o carácter democrático avançado do projecto —«anteproyeito» no original—, declara que, sem dúvida, a mao de Bóveda, Tobio e Carvalho impuxera o parecer na Comissom, destes membros da mesma, o que, até certo ponto, fazia o texto incompatível com os postulados políticos de algum dos integrantes da mesma Comissom que nom podem ser outros que Paz Andrade e Vicente Risco. Aparecem estes dous senhores caracterizados, pois, de um jeito que naqueles tempos, e sobretodo para o caso de Paz Andrade, futuro senador democrático nas eleiçons de 1977, mereceria discussom ou matizaçom.
     Mas o que procede rectificar desde logo é que a mao de Alexandre Bóveda se impuxesse para nada na redacçom desse Estatuto. Nom houvo tal imposiçom de maos, porque Bóveda nom participou em absoluto na confecçom do «Anteproyeito», o mesmo que Risco e Paz tampouco intervírom. Os únicos responsáveis do texto som os dous homes cujos nomes se citam em último lugar na relaçom.


AUTORIA

     Luís Tobio, entom moço jurista de grandes esperanças, estava encarregado da Biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade de Santiago. Ali concorria eu regularmente, e naquel lugar, com umha calefacçom precária, lograda mediante umha rudimentária estufa, pois a Universidade nom dispunha de calefacçom central, Tobio e mais eu, inteiramente sós, sem outras ajudas nem consultas pessoais, elaboramos o nosso Estatuto. Se o fixemos por iniciativa própria ou por encárrego do Seminário, nom poderia dizê-lo agora. Talvez Tobio o saiba.
     Mas que Bóveda, Paz e Risco nom tivérom nada que ver com o assunto é tam certo como que Compostela está entre Sar e Sarela. Nom houvo «comissom» como a que figura na ediçom de Pontevedra do histórico documento. Os cinco indivíduos em questom jamais se reunírom, e ainda que as suas firmas figuram ao pé da «exposizón presentada pola poñenza encarregada de redactar o Anteproyeito de Estatuto de Galiza», tal informe, que é um estudo fiscal, foi obra exclusiva de Bóveda, como o articulado foi obra exclusiva de Tobio e Carvalho. Sem dúvida estimou-se conveniente, desde umha consideraçom formalista, arroupar com umha «poñenza» nominal o trabalho que Tobio e Carvalho, como juristas, e Bóveda como economista, fixeram.
     Até aqui as minhas lembranças. Se cadra, Tobio e Paz Andrade estám em condiçons de completar ou matizar alguns aspectos do caso. De todos os jeitos, os dous mencionados licenciados em Direito fôrom autores exclusivos daquel projecto —ou anteprojecto— de Estatuto, que ficou invalidado pola aprovaçom de umha Constituiçom da República que impuxo canles novas às autonomias.
     A tradiçom é mais fidedigna do que a documentaçom em muitos problemas históricos. Eu, depois de ter lido que estivem presente em actos a que nom assistim, ou que outros escrevêrom livros ou palavras que eu escrevim ou dixem, desconfio muitíssimo das verdades documentais. Como os distinguidos historiadores que se tenhem ocupado no assunto questionam, mui prudentemente, a verdade oficial a respeito das percentages de aceitaçom plebiscitária do Estatuto de 1936, estám devidamente preparados para acolher estoutra pequena rectificaçom dos documentos escritos a propósito da autoria do Estatuto do Seminário. Este foi obra exclusiva de Tobio e do que suscreve.
     Ainda que o decorrer do tempo e o debilitamento da minha memória borrárom na minha mente os pormenores da confecçom daquel texto, dado que o meu colega era maior do que eu em idade e experiência jurídica, podo conjecturar razoavelmente que a sua pegada foi mais profunda que a minha na obra comum. Obra que nom tivo transcendência prática, já que a racionalizaçom do processo autonómico foi feita em 1931 na mesma Constituiçom, o que trouxo consigo a invalidaçom como utópico do nosso prematuro Estatuto.



II
Estatutos e autorias

     O nutrido volume consagrado à história contemporánea da nossa terra, que vem de publicar a editorial Galáxia, é obra de um especialista bem acreditado, X. R. Barreiro Fernández, em quem devemos salientar duas qualidades que parecem óbvias num historiador, mas que no Antigo Reino de Galiza e Moderna República da Confusom, onde Ia Xunta governa a Puebla, distam de ter incontestável vigência. Num país no que os limites entre o galego e o castelám, o galeguismo e o castelanismo, o cientifismo e o politicismo, som tam inestáveis e borrosos, a severa formaçom técnica e a capacidade de julgamento objectivo dos feitos nom som, desgraçadamente, património universal dos advocados ou afeiçoados aos estudos ou aos relatos históricos. Mas agora nom se trata de aplaudir a um historiador sério nem a umha obra séria de história. Ainda nom dispuxo o que suscreve de tempo para ler acougadamente o livro aludido. Mas, ao folheá-lo para lhe dar a bem-vinda, achou algumhas referências a pessoas que conheceu bem e das que o tempo e, às vezes, a paixom política vai desfigurando a fasquia, assi como a feitos miúdos nos que desempenhou um miúdo papel. Os que passámos o sarego da senectude, armazenamos lembranças que em ocasions nos constituem em testemunhas nom dignas de desestimaçom no processo da história, se esta quer ostentar o seu legítimo carácter de registo do passado, e nom se desvirtua convertendo-se em mero instrumento propagandístico de umha determinada ideologia.
     No entanto, o mais honrado historiador pode ser embaucado polo carácter parcial ou insolvente dos documentos que maneja, e a declaraçom testifical pode completar ou rectificar a sua visom de feitos ou pessoas. Se disponho de tempo e humor para isso, arrumarei algumhas apostilas que podam colaborar a umha mais estrita caracterizaçom de acontecimentos ou personages.
     Na página 297 do livro que vem de publicar, o autor mencionado inserta um período que julgo necessário transcrever. A minha recensom é umha interpretaçom textual, e nom umha mera reproduçom, porque resulta evidente que o texto está viciado, ao menos, por duas gralhas importantes. Eis a minha leitura:

«0 proxecto do Seminário de Estudos Galegos elaborado
en maio do mesmo ano pola Sección de Ciéncias Sociais
e Políticas do Seminário e, dacordo coas últimas notícias,
elaborado case exclusivamene polo Profesor Carballo Calero
segundo el sostén, constaba de 41 artigos».

     Emendei a pontuaçom, seguramente perturbada na imprensa, e restituim o segundo do original, trabucado num seguindo no livro de estampa. Está-se a falar do primeiro projecto de Estatuto de autonomia de Galiza publicado nos tempos da segunda República espanhola.


AFIRMAÇOM INFUNDADA

     Ora, a afirmaçom que se atribui ao dito professor —que naquela data nom o era—, segundo a qual el seria o redactor quase exclusivo do documento, resulta infundada.
     As últimas notícias às que o historiador se refere, devem de ser as fornecidas aos leitores deste jornal polo firmante do presente artigo, noutro publicado nestas mesmas colunas o dia 27 de janeiro do ano que decorre.
     Neste artigo explicava-se que nem o desgraçadamente morto Alexandre Bóveda, nem o felizmente vivo Valentim Paz, nem o sempre discutido Vicente Risco, aos que se vinha atribuindo intervençom na redacçom daqueles quarenta e um artigos, tinham colaborado com umha soa vírgula em nengum deles. As firmas eram em documentos dados à publicidade, de pessoas que nom participárom na confecçom dos mesmos, constituem um fenómeno bem conhecido.
     A realidade foi que os autores do «Anteproyeito» —que assi se intitulava, num galego ao uso daquel tempo— fôrom exclusivamente dous moços juristas, dom Luís Tobio Fernández (daquela às vezes Luís Tobio e Fernandez-Veiga) e um servidor dos leitores deste artigo, que nom era outro que o firmante do mesmo.
     Devemos entender que este último redactor do documento, segundo o artigo jornalístico do passado janeiro, foi o que elaborou quase exclusivamente aquel ordenamento jurídico, porque nom contou senom com um colaborador, contra o que, fundados no texto de umha ediçom, afirmavan os historaidores? Mas se essa é a interpretaçom autêntica da passage do livro citado, muito me temo que, fora do contexto constituído polo artigo da Voz que contém «as últimas notícias», qualquer leitor entenda que me atribuo a quase exclusividade da redacçom daquel histórico documento, relevando a um plano mui secundário a colaboraçom de quenquer que seja. Mas do meu artigo Um projecto de Estatuto nom se deduz semelhante conclusom.


DOUS REDACTORES

     O senhor Tobio Fernández era mais velho do que eu, e levava-me, polo tanto, alguns anos de adianto na sua formaçom jurídica. Pessoa de esclarecidos dotes intelectuais, a amistade fraternal que nos unia era compatível com um constante aprendizado pola minha parte do meu companheiro de trabalho. Assi que, ainda que, dado o tempo decorrido desde entom, nom lembro detalhes da nossa colaboraçom, nom cabe a menor dúvida de que o texto nom pode ser «case exclusivamente» obra minha, ainda que tampouco pudo ser «case exclusivamente» obra sua. Eu entom tinha pulo davondo para redactar Estatutos, e a minha energia juvenil, talvez desaforada, nom me permitia confinar-me no papel de amanuense. Mas de ambos redactores, como dixem, Tobio era o mais autorizado, o mais competente, o mais velho. Assi que, no conjunto da obra, a el tivo que corresponder-lhe a cárrega principal. Convém que nom se creia que eu dixem nem escrevim nunca outra cousa. Porque no meu artigo de referência indicava que, ainda que o decorrer de meio século borrara na minha mente os pormenores da confecçom daquel texto, no entanto, dado que o meu colega era maior do que eu em idade e experiência jurídica, podia eu conjecturar razoavelmente que a sua pegada foi mais profunda que a minha na obra comum.



III
Epílogo ou apêndice em 1985

     Agora que alguém julga de interesse reproduzir os artigos anteriores, publicados originariamente em 1981, considero necessário fazer algumhas pontualizaçons —realmente, umha só pontualizaçom—, para focar com mais precisom um extremo importante.
     Num desses artigos, aparecido em La Voz de Galicia o 27 de Janeiro do citado ano, indicava eu a possibilidade de que Tobio e Paz Andrade —pois Bóveda e Risco já morreram— estivessem em condiçons de completar ou matizar a minha informaçom sobre alguns aspectos do caso.
     E, efectivamente, acho algo interessante a esse respeito num artigo de Luís Tobio publicado no Cuaderno número 5 do Laboratorio de Formas de Galicia. Esse Cuaderno apareceu em 1978. Portanto, antes dos meus artigos de La Voz. Mas —ainda que eu colaboro nesse mesmo Cuaderno— ou nom lim ao seu tempo o artigo de Tobio, ou esquecim-no quando escrevim os meus. Porque se nom fosse assi, teria recolhido os dados que Tobio fornece.
     O meu companheiro na redacçom do «Anteproyeito» escreve:
     «Un grupo de traballo formado por Alexandre Bóveda, Ricardo Carballo Calero, Valentín Paz Andrade, Vicente Risco e máis eu deu remate en tempo récord a un anteproieito de Estatuto para Galicia, que foi o primeiro que se pubricou na nosa Terra e tamém, segundo teño entendido, o primeiro da sua caste aparecido en España. Prá preparación dese anteproieito —máis ben diríamos «modelo»— cada membro do grupo de traballo apresentara por escrito os seus puntos de vista e suxerencias verbo do tema, téndose feito unhas veces de maneira esquemática e outras, como no caso do Risco, de xeito mais desenrolado e longo. En Santiago, Carballo Calero e mais eu resumimos e arranxamos todo o material deica chegar à redacción dun texto curto e craro que foi logo revisado e aprobado polos demais membros da Sección e polo Seminario, e pubricado en Santiago como aportación aos estudos e traballos que andaban a se facer daquela cara a autonomia da nosa Terra. Pouco despóis pubricábase en Pontevedra unha Exposición presentada pola ponenza encarregada de redaitar o devantido anteproieito en que se espuña o xeito cómo fixera o seu labor e outras consideracións».
     A cita, ainda que longa, vale a pena de ser feita, porque, segundo ela —cousa que eu nom lembrava, nem lembro—, Alexandre Bóveda, Valentim Paz Andrade e Vicente Risco tivérom algumha intervençom na elaboraçom do nosso «Anteproyeito», nom poque participassem na redacçom, que foi obra exclusiva de Tobio e Carvalho, mas si porque sem dúvida, efectivamente, como membros de umha Comissom que —como se vê— funcionou mais realmente do que eu cría, enviárom «por escrito os seus puntos de vista e suxerencias verbo do tema». Entendo que Bóveda e Paz «de maneira esquemática», mas Risco «de xeito mais desenrolado e longo».
     Nom seria satisfactório que estas manifestaçons de Tobio nom tivessem cabida numha segunda ediçom dos meus artigos, porque sem dúvida enchem um oco dos mesmos, reflexo de outro oco da minha memória. Com esta salvedade, deve entender-se confirmado o resto do manifestado por mim.

 

 

 


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