Política lingüística

 

(Texto íntegro)

 

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1. POLÍTICA LINGÜÍSTICA, DEMOCRACIA E BUROCRACIA
    
     Nom é de estranhar que em matéria de política lingüística —tanto polo que se refere ao manejo dos assuntos polos órgaos administrativos como no que di respeito ao comportamento dos particulares— seja o nosso país testemunho e objecto de erros, inconseqüências e malentendidos a eito. Desinformados e malinformados, funcionários adventícios e demagogos insolventes nunca de antes interessados polos problemas da fala, vírom-se amiúde empurrados polas circunstáncias a adoptar atitudes decisórias nesse eido, com o conseguinte desarranjo da consciência popular.
     Nos conflitos lingüísticos, por exemplo, que se produzem nos lugares onde coexistem diferentes comunidades idiomáticas, nom procede classificar os opinantes em bons e maus, em anjos e demos, em justos e injustos. Normalmente, opta-se por este ou estoutro partido por motivos que podem fundar-se em razons históricas ou sentimentos pessoais, mas nom por bondades ou maldade do beligerante, categorias que nom possuem capacidade para ordenar compreensivamente esta classe de liortas.
     Pode excepcionalmente dar-se o caso de que a cobiça de poder, a soberba demoníaca ou a fraqueza para ressistir mefistofélicas ofertas de prosperidade mundana, movam ánimos e finjam ideias. Mas quem dispom de tam penetrante e seguro aparelho radioscópico para fulminar um diagnóstico dogmático sobre alheias cavidades morais?
     É, pois, prudente —e especialmente num político— abster-se de ajuizar conformemente a umha ética normativa o proceder dos mais e procurar umha postura lógica ou pragmática para argumentar sobre o valor das teses em presença, supondo no interlocutor e mesmo no dogmático que nos condena sem diálogo, a boa fé que subjectivamente justifique a sua discrepáncia dialéctica e até a sua pontifical excomunhom.
     Porque já temos falado nestas mesmas colunas da anomalia que subjaz na história da língua galega, que é realmente umha história clínica. A certa altura, um elemento exógeno —quer dizer, estranho, a deriva natural do fenómeno lingüístico— ingressa no desenvolvimento do idioma e este começa a padecer umha série de carências, excrecências, parálises, deterioros, empobrecimentos e atrancos que o tornam doente. Encorado no ámbito do mundo rural, deixa de cobrir as necessidades da vida pública de maior quantia e, mesmo quando no próprio eido agrícola se introduz algumha melhora técnica, o campo semántico correspondente é servido pola língua que fala o introdutor da melhora, o que significa que o progresso nom fala galego e que este está a ramo de converter-se num corpo de signos a extinguir.
     Assi, quando os esforços dos galeguistas conseguem algumha forma de reconhecimento oficial para o galego e os políticos nom galeguistas —com algumha rara salvedade— assumem teoricamente o galeguismo lingüístico —até o ponto de que se crem em estado de prescindir das mesmas autoridades históricas—, chega-se a umha conjuntura tam afectada polo passado de menosprezo e doença da língua do pais, que tanto a sua posta ao dia como instrumento comunicativo total quanto a necessária convivência com a língua oficial castelhana, apresentam inevitáveis dificuldades que só umha política lingüística clarividente pode defrontar.
     As discórdias som próprias de todo regime democrático, se entendemos por discórdias nom as cruentas e virulentas contendas viscerais, mas as discrepáncias dialécticas e conceituais indispensáveis para o avanço da vida e a melhora das cousas perfectíveis. A jugulaçom administrativa da dissidência, pois, é absolutamente incompatível com um sistema liberal, ainda que esse liberalismo, como todo liberalismo viável, esteja equilibrado polo ordenamento jurídico dos contactos entre as opinions em jogo.
     O esmagamento da heterodoxia em nome de umha sedicente ortodoxia —que só teria sentido numha concepçom teocrática do Estado— pode ser um ideal do totalitarismo. Mas no mundo ocidental —o mundo do cristianismo e do humanismo— tal prática supom umha forma de regresso ao despotismo obscurantista. Quando algumhas vozes ingénuas ou simples reclamam a fogueira ou a paulinha para os praticantes do rito divergente, em nome de umha unidade burocrática que se contempla como divina verdade revelada, está-se-lhe erigindo um monumento ao fanatismo absolutista.
     E se nom se professa um unitarismo teocrático, senom um pragmatismo indiferencista que sacraliza umha fórmula que se confessa convencional, entom o sacrifício do insubmisso é mais friamente descriminatório, porque nom está interiormente explicado por umha firme crença transcendente.
     Tanto polo que se refere à necesidade de ordenar a coexistência em Galiza das duas línguas oficiais quanto à de restaurar e corroborar a estrutura do galego —nom nos saímos nestas consideraçons do direito positivo vigente—, o espírito do sistema jurídico do que o poder é administrador exige canais para a liberdade, e nom diques para a iniciativa social.
     Se o Estado —do qual é um órgao a Administraçom autonómica— está ao serviço da sociedade e nom é um Leviathám que mantém a sua ordem engolindo os indivíduos, procede um equilíbrio entre o poder e a liberdade favorável a esta última. Nom vaiamos construir um galego de ossamenta tam rígida que pese sobre a nossa vontade com autoritarismo insuportável. A ordem que as chancelarias necessitam arbitrar para a sua linguagem administrativa nom pode ser um taravelo que feche toda a possibilidade de entrar ao cidadao discrepante no recinto sagrado. Onte foi o labrego, hoje é o escritor quem fai a língua. Nom o encadeemos impondo-lhe os grilhons da fórmula transitória do diploma administrativo.
[La Voz de Galicia, 2 de Xaneiro de 1988]


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II. POLÍTICA LINGÜÍSTICA: O GALEGO ADMINISTRATIVO

     Se nom o concebemos como um Leviathám devorador —o Estado oriental da Antigüidade ou o Estado totalitário da Modernidade—, o conjunto do aparelho administrativo que constitui o poder público deve estar ao serviço da sociedade, e nom ter esta ao seu serviço. Mas é evidente que para cumprir os seus fins, o Estado necessita regular a sua actividade, com objecto de dotá-la de umha estabilidade mínima que lhe permita funcionar com eficácia. Se nom é um Estado transpersonalista com fins que transcendam aos dos próprios indivíduos que o constituem, que é o caso do Estado-Leviathám —quer dizer, se considera esses indivíduos como cidadaos no sentido moderno e nom como vassalos no sentido antigo—, o Estado deve nom só respeitar, mais ainda proteger a espontaneidade da sociedade esforçando-se por evitar que os regulamentos administrativos sejam ou cheguem a ser opressivos para aquela en quanto lhe imponham umha norma de conduta que caia no dirigismo porque a vida popular resulte deformada polo funcionamento da maquinária oficial.
     Hai que reconhecer ao Estado a capacidade legal para regulamentar a sua actividade, mas a finalidade que assi licitamente se persegue é a melhor marcha dos assuntos públicos, da qual o governo é um mero gestor. Nom cabe, pois, contrariar desde o poder o interesse social sem que o governo se convirta em tiránico.
     Estando reconhecido como cooficial o idioma galego dentro da comunidade autónoma, e ainda recomendada à autoridade governativa a tarefa de promover o uso e a prosperidade do nosso tesouro lingüístico, resulta evidente que aquela autoridade tem que dispor de um instrumento de certa fixeza para a sua actividade burocrática. E dado o estado de deterioro em que o galego chegou até nós, a autoridade ha decidir, prévios os ajeitados assessoramentos, que normas regerám a linguagem que ha empregar no uso interno burocrático e quando se dirija à cidadania.
     Com a particularidade de que reconhecida, como nom pode ser menos de reconhecer-se, a liberdade da língua literária para procurar o seu canal e a dos professores de galego para chegar a mínimos de razoável acordo, nom é procedente que a normativa oficial permaneça indiferente de modo indefinido ao desenvolvimento da realidade lingüística no mundo literário e docente. Deve, polo contrário, reflectir ao seu tempo os consensos que amadureçam na língua real, para nom erigir em princípio a asfíxia da cultura popular por um processo de desconfiança na capacidade do povo para resolver naturalmente os seus próprios problemas.
     Assi que umha Administraçom verdadeiramente preocupada da eficácia da democracia no plano da língua, utilizará para a confecçom dos documentos oficiais a normativa que julgue oportuna a autoridade competente, e seguirá atentamente a evoluçom dos usos lingüísticos no campo da literatura e do ensaio pedagógico, para introduzir oportunamente na linguagem burocrática as reformas que pareçam aconselháveis, a fim de avançar para soluçons harmónicas que podam ser assumidas polas diferentes instáncias implicadas.
     Namentres que umha Administraçom que nom tenha fé nas soluçons concertadas, continuará confiando em que os recursos coercitivos directos e indirectos do poder acabarám por reduzir a zero toda discrepáncia e toda crítica, e que escritores e professores, vivos ou mortos, terminaram por aceitar a postura oficial, os vivos por nom serem capazes de suster indefinidamente a sua incómoda postura de independentes marginados, e os mortos porque, como já ocorrera em 1984 no país de Orwell, serám ajeitadamente reconvertidos à norma burocrática polos técnicos estatais especialistas em rectificaçons históricas.

[La Voz de Galicia, 28 de Xaneiro de 1988]


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III. POLÍTICA LINGÜÍSTICA: A POSTA E A RESPOSTA OU O IMORAL E IMPOSSÍVEL

     Houvo um tempo em que no nosso país todo o mundo se manifestava convencido de duas cousas no que respeita ao idioma: que, de acordo com a Gramática de Menéndez Pidal, existia umha língua galego-portuguesa à que pertencia a nossa fala, e que a estabilidade e reforma da mesma na nossa terra, que era de desejar, nom se poderia fazer de outro jeito que do jeito mais natural, quer dizer, mediante o ensaio e prática em livre competência das propostas possíveis. Os expertos ou políticos que se ocupavam no assunto, falavam de recomendar formas (nunca de impô-las), e de que o processo normativo teria de verificar-se segundo as regras do mercado livre e a selectividade natural. Lembro exemplos desta postura liberal em boca de pessoas que logo se coaligárom para concertar umha fórmula imperativa e excluinte. Cada um pode fazer da sua ampla capa o estreito saio que lhe acomode.

    Inimigos do povo

     Mas hoje (quando, mesmo em matéria de religiom, se estima improcedente e arrogante falar da `única verdadeira') obrar baixo o suposto de que fora do Decreto 173/1982 nom hai possibilidade de salvar-se, e que som inimigos do povo (como na religiom inimigos de Deus) aqueles que professam umha opiniom diferente parece querer negar a licitude da discrepáncia.
     E este é o princípio em que se funda o regime representativo e parlamentar vigente. O governo resulta da actividade do poder algebraicamente somada com a de quem a el se opom. E um governo que nom tenha quem legalmente se lhe oponha, é inconcebível no sistema reinante. Este governo nom pode sonhar com esmagar a dissidência. Ao Estado nom lhe é dado renunciar a alternativas de governo que garantam a continuidade do próprio Estado.

     Direito natural

     Se houver (que nom creio) textos legais que consagrassem a licitude da réplica à política no poder ou que penalizassem a conduta opositora, estaríamos fora do ordenamento constitucional e do mesmo Direito natural. Tais textos careceriam de força moral. Se, por inexperiência dos legisladores ou por um excesso de autoritarismo residual dos mesmos, se deslizassem inadvertidamente no Direito positivo, nom cabe dúvida de que procederia subsanar anomalia semelhante.
     Em matéria de uso da língua —como de qualquer outro bem comum—, teriam que derrogar-se as disposiçons que ignorassem os princípios da liberdade legítima na eleiçom de alternativas e que tratassem de forçar umha única soluçom dogmática e coercitiva para os problemas postos. Umha cousa é que o grupo que alcançou democraticamente o poder governe conformemente à sua opiniom. Outra, que pretenda raer para sempre da face da terra toda a opiniom contrária. A experiência nos di que isto último, além de imoral, é impossível.

[La Voz de Galicia, 6 de Febreiro de 1988]


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IV. POLÍTICA LINGÜÍSTICA: MEMÓRIAS DUM ESQUELETE

     Aqueles galegos interessados em achar fórmulas conciliadoras no que se refere aos problemas postos pola necessidade de encaminhar a corrente viva do idioma por quenlhes razoáveis, tenhem chegado à crença de que nessa matéria nom procede encomendar o curso das cousas a umha fórmula regulamentar de tipo administrativo, semelhante à das ordenanças municipais que regem os movimentos do tránsico rodado ou o horário de depósito e recolhida de detritos domésticos polo serviço de limpieza.
     Esses galegos interessados nos problemas postos polo estado do nosso idioma, crem que estes som dum carácter mui distinto ao daqueles que surgem da complexidade da vida vizinhal e comercial, económica e circulatória, na qual muitas vezes é puramente convencional, ainda que seja necessário, eleger a banda direita ou a banda esquerda para o trânsito de peons ou carros, e as sete ou as oito da manhã para o abalo de tapetes sobre a rua desde as janelas das casas.
     Agora nom se trata dum problema administrativo, mas si de um problema político, e, portanto, hai que ressolvê-lo conformemente a outras bases, porque se é algo puramente convencional que nos países da Comunidade Económica Europeia circulem os carros pola direita ou pola esquerda, e nengum princípio filosófico está em jogo perante a preferência do sistema británico ou do sistema hispánico, nom ocorre o próprio quando se trata de problemas de identidade lingüística.
     Nom se pode decidir mediante umha ordenança se o laburtano é vasco ou nom é vasco, ou se o valenciano é catalám ou nom é catalám e, conseqüentemente, se deve haver ou nom umha ortografia comum para cadanseu desses dous pares de formas idiomáticas. Essa é matéria política, na qual o fundamento histórico e social é importante, suficientemente importante para que nom se confie imprudentemente o tratamento da mesma ao Concelheiro Delegado de Tránsico ou da Polícia Urbana.
     Nas dificuldades surgidas a propósito de alternativas entre o monopólio administrativo público do ordenamento do idioma e o respeito ao desenvolvimento normal do mesmo na espontánea vida popular orientada —nom comandada disciplinariamente— pola autoridade moral dos utentes distinguidos —escritores, professores e estudiosos—, caberiam, como resumo do aconselhado pola experiência e avaliamento dos eventos e das propostas manifestadas, umhas bases de conduta para os organismos e autoridades competentes que poderiam levar-se a cabo com oportunidade gradual e concretar-se como a seguido se indica.
     1. Literatura. Nengumha descriminaçom será aplicada aos escritores por razons dos usos lingüísticos que se registem nos seus textos. Em conseqüência, no que se refere a subsídios, prémios ou adquisiçom de obras, nom se praticará nengumha desigualdade de trato fundada na normativa adoptada polo autor.
     2. Ensino. Os professores de língua galega nos níveis pertinentes, convirám provisoriamente entre si o método que pareça aconselhável no que di respeito ao enfoque dos problemas postos pola necessidade de organizar a actividade escolar e de nom conculcar o direito à liberdade de cátedra consagrada pola lei. Procurará-se umha coordenaçom que deixe a salvo os critérios científicos concorrentes. Os acordos terám carácter de recomendaçons.
     3. Burocracia. A Administraçom utilizará para a confecçom dos documentos oficiais a normativa que julgue oportuna a autoridade competente e seguirá com cuidado a evoluçom dos usos lingüísticos no campo da literatura e da prática docente, para introduzir no momento adequado na prosa burocrática as reformas que pareçam indispensáveis, a fim de avançar para soluçons harmónicas que podam ser assumidas nas suas linhas gerais polas diferentes instáncias implicadas no caso.
     4. Regulamentaçom. Derrogarám-se as disposiçons e abolirám-se as práticas que eventualmente se revelassem contrárias ao princípio de liberdade legítima e orientadas a forçar umha soluçom rígida e coercitiva dos problemas presentes, ou encoberto à conduta lingüística que discrepasse de um modelo de comportamento inflexível.
     Seria mui negativo para o prestígio dos mesmos —na nossa humilde opiniom— que as esperanças que provocárom, e de cujo cumprimento houvo evidentes sintomas do começo do mandato, fossem relegadas às quendas gregas, por desviaçom fóra do campo de jogo do rodado problema, em obediente execuçom de airadas alarmes exteriores. Quem governa na nossa terra? A nosa terra, nom é nossa? Aqueles que crem representar a tradiçom galeguista e o pensamento de Castelao, nom podem esperar outro porvir que serem empurrados ao cemitério de dissidentes, agora que se esborralhárom os muros que o separavam do camposanto de católicos? Talvez ali, se conservam um olho de vidro, podam escrever a parte prometida e nom realizada das "Memórias de un esqulete"
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[La Voz de Galicia, 12 de Febreiro de 1988]

 

 

 


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