Quase toda a verdade sobre os Outeiros do Inferno

 

(Texto íntegro)

 

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                                                                                Para Aurora Marco e Francisco Pillado Mayor

SR. MILHÕES.— Há, efectivamente quem diga que estou doido, mas nunca a minha lucidez foi maior. O senhor acredita que eu esteja doido? De resto o que é loucura e o que é o juízo? Simples pontos de vista e mais nada. O doido pode seguir à vontade o seu sonho, sem que ninguém se meta com ele. Tem quem lhe dê de comer, de vestir e calçar nos manicómios.
                                                  (Raúl BRANDÃO).

TROFÍMOV.— E quem o sabe? E que é o que significa morrer? Talvez o homem tenha cem sentidos e com a morte pereçam só os cinco que conhecemos, enquanto os outros noventa e cinco continuam a viver
                                                  (Antom CHÉKHOV)



Personagens.

Belisa................. adolescente
Diogo.................. adolescente.
Martinha.............. adolescente



E também:

Manolo de Roças e Pedro Cangalho.
Os do Guerrucho.
Os Caçadores.
Os Mascarados.
Os Vizinhos.



Quando se ilumina o cenário observam-se os três Outeiros do Inferno. Ao pé deles, a Pia e mais a Cova dos Mouros. Os três protagonistas estám adormecidos e acordam lentamente. Reagem com cansaço e decepçom, com atitude de resignaçom e claros gestos que fagam compreender ao auditório a sua preocupaçom. Movem-se e pesquisam, tencionando encontrar umha saída.

Belisa.— Nada, nom hai maneira de sair de aqui.
Martinha.— Se entramos, tem de haver saída.
Belisa.— Isso pensava eu também. Mas, depois das voltas que dei, estou convencida de que é impossível sair. Tu que dizes, Diogo?
Diogo.— Eu nom o sei. Nom quero desesperar. Mas nunca me vim em nada igual. Um lugar tam pequeno como este, aonde entramos com toda a facilidade, e agora nom damos saído. E o pior é que nom há portas, nem paredes, nem nada. Todo parece aberto. Vemos o que há no exterior, mas nada, nom podemos sair. Parece incrível.
Martinha.— É mesmo incrível.
Belisa.— Nom foi boa a ideia de virmos.
Diogo.— Eu creio que sim foi boa. Escuitara tanto falar deste lugar aos meus avós que tinha enorme curiosidade.
Martinha.— Eu também, os meus pais contavam-me contos polas noites. Os Outeiros do Inferno! A Cova dos Mouros! A pia dos Mouros! Eram enigmas que queria desvendar. O mistério que envolvia este lugar fazia com que esperasse há muito tempo a ocasiom de conhecê-lo.
Belisa.— Mesmo na escola nos comentárom as estórias deste lugar, certamente. Pois já o conhecemos! E bem vemos que é umha chatice. Nom há maneira de sairmos de aqui.
Martinha.— Haverá, já o verás.
Belisa.— Levamos um dia enclausurados. Ou talvez mais. Mesmo perdim a noçom do tempo. Isto é terrível!
Diogo.— Nom desesperes, Belisa.
Belisa (Amargurada.).— Como queres que nom o faga? Os meus pais e os meus irmaos seguro que andam à minha procura, eles sim devem estar desesperançados.
Diogo.— Nada ganhamos com estas luitas entre nós. O que temos é que procurar umha saída.
Belisa.— Já a buscamos, Diogo. Que fizemos onte? Até que caimos rendidos.
Diogo.— Melhoremos a nossa estratégia!
Belisa.— Que estratégia queres num lugar como este? Que mais podemos? Há algo em que nom tentássemos....?
Martinha (Atalhando. Outro ritmo.).— A culpa é tua Diogo! De nom ser por ti nom estaríamos agora neste apuro.
Belisa.— Isso é certo.
Diogo (Zangado.).— Como podedes pensar isso? Eu...
Martinha (Atalhando de novo.).— De nom ser por ti nom viríamos.
Diogo.— Eu nom vos obriguei.
Belisa.— Foste tu quem insistiu em virmos aqui.
Diogo.— Vós aceitastes rápido, também ansiávades vir, mas nom vos atrevíades a fazê-lo sós. Isso dixestes. Acaso já o esquecestes?
Martinha.— És um provocador!
Belisa.— Sim, olha em que nos meteste!
Diogo.— Eu nom tenho a culpa!
Belisa.— Sim que a tens!
Diogo.— Mas, que fizem eu para que estejades as duas contra mim?
Martinha.— Porque se nom fosse por ti nom estaríamos aqui. Provocador, és um provocador!
Belisa.— Enganaste-nos!
Diogo.— Belisa, como podes dizer isso? E tu, Martinha, podes-me explicar em que consiste essa provocaçom em que tanto insistes?
Belisa.— Deixa-te de lérias! Há que sair de aqui.
Diogo.— Respondede ao que vos perguntei!
Martinha.— Falar contigo é perder o tempo.
Diogo.— Como dizes isso?
Martinha.— É o que sinto.
Diogo.— Nunca se perde o tempo falando....
Belisa (Desesperançada, interrompendo-o.).— Eu o que quero é sair de aqui!
Diogo.— E eu também.
Belisa (Fora de si, ameaçante.).— Quero sair, quero sair, quero sair de aqui.....!
Diogo.— E pensas que o vás conseguir assim, só gritando e ameaçando-me a mim?
Martinha.— Se nom vinhéssemos nom estaríamos assim. É culpa tua, culpa tua.
Diogo.— Mas quigemos vir os três. Os três anelávamos conhecer este lugar.
Belisa (Dando voltas.).— Quero sair, quero ir para a minha casa.
Martinha.— Isto nom tem jeito. Só tu tens a culpa, Diogo, só tu.
Diogo.— Teremo-la os três.
Belisa.— Os três nom. Martinha tem razom: a culpa é tua. (Muito agitada.) Eu quero sair de aqui, quero ir para a casa!
(Instante de confusom e luita. Transiçom.)
Diogo.— Pior será se continuarmos a discutir entre os três. Será melhor trabalharmos para procurar umha saída.
Martinha (Seca.).— Parece-che pouco o que tempo que perdemos já para encontrá-la?
Diogo.— Haverá que buscar melhor.
Martinha.— Mas, onde?
Diogo.— Aqui, é claro. Aqui é onde temos o problema. Devemos sair.
Belisa.— É claro que devemos sair. Mas, como?
Diogo.— Revisemos todo de novo, em algo devemos ter errado.
Martinha (Surpreendida. Indica.).— Olhai. Aí vem gente. Vamos pedir ajuda.
(Orientam-se os três para o mesmo lugar. Gesticulam. Chamam.)
Belisa (Angustiada.).— Parece que nom nos ouvem, que estrano!
(Insistem nos gestos.)
Martinha.— Som o Manolo de Roças e Pedro Cangalho, devem vir da feira de Vilar.
Belisa.— Nom importa, o único que quero é que nos ajudem.
(Continuam na mesma. Chamam-nos polo nome, gesticulam, armam um pequeno escándalo para tentar serem o centro da sua atençom. Pouco a pouco a intensidade decresce. Até que desaparece por completo. De novo decepcionados e rendidos.)
Diogo.— Isto é incrível, incrível. Nom acredito no que está a acontecer.
Belisa.— Como é que nom nos fariam caso?
Martinha.— É que nom nos vírom!
Belisa.— Como nom nos iam ver?
Diogo.— Eu estou com Martinha. Também acho que nom nos vírom. Nem nos ouvírom, o que é ainda mais estrano!
Belisa.— Como nom nos iam ouvir, com a que armamos?
Diogo.— Pois nom, nem sequer olhárom para aqui apesar de passar mesmo à beirinha.
Martinha.— Seguramente que nom, tens razom. Nom prestárom nengumha atençom para aqui, nom é normal, depois da que montamos.
Diogo.— Portanto, já sabemos mais umha cousa.
Martinha.— Sim, que de fora nem nos vem nem escuitam.
Diogo.— Mesmamente, isso é o que parece.
Belisa.— E nós de aqui nom damos saído.
Diogo.— Mais outra certeza, e podemos falar por experiência.
Martinha (Desassossegada.).— Como vamos fazer?
Belisa.— Isto tem de ter algumha saída!
(Os três começam a procurar, cada um ao seu modo, por todo o contorno dos Outeiros do Inferno. Por vezes entram na Cova dos Mouros, examinam a Pia minuciosamente, indagam em cada Outeiro.)
Martinha.— Nada, eu rindo-me! Confesso que nom sei o que fazer.
Belisa.— Eu também nom sei onde mais se pode procurar.
Diogo.— Nem eu.
(Sentam-se os três. Derrotados. Instante de silêncio. Transiçom.)
Martinha.— Ocorre-se-vos algo?
Diogo.— Nom, a mim nada se me ocorre.
(Belisa levanta-se. Investiga nos Outeiros).
Martinha.— Oh Belisa, que fazes?
Belisa.— Qual será o Outeiro do fogo, qual o da água e qual o do ouro?
Martinha.— E quem o sabe?
Diogo.— Nom acreditarás nessa história!
Belisa.— Pois sim, para isso vinhem.
Martinha (Espantada.).— Para isso vinheste?
Belisa.— Sim, para dar com o Outeiro do Ouro. Isso de que quem o encontre vai ter sempre dinheiro aos montes, tanto que nom vai saber o que fazer com ele, é algo que vale a pena tentar.
Diogo.— Olha a cobiçosa!
Belisa.— Mas tranquilo, Diogo, porque repartiria. Contigo também, apesar deste entruido em que nos meteste.
Martinha.— Imaginades-vos que um destes imensos Outeiros se convertesse em ouro e que todo fosse para nós os três?
Belisa.— Teríamos para tirar da miséria a toda a vizinhança.
Diogo.— E para trazer os que estám fora.
Martinha.— Sim, o Quim e a Sara do Couto, que só venhem nos veraos da Alemanha, onde trabalham os seus pais...
Diogo.— E os Trabas, e os do Souto Velho, e os das Ánimas, e os da Lousa... todos perdidos pola Suíça, pola França, por Londres...
Belisa.— E eu poderia fazer que vinhessem os meus primos da América, que nom conheço; e os seus pais, que nunca pudérom regressar.
Diogo.— E eu compraria umha bici ao meu irmao Daniel.
Martinha.— Há tantas cousas...!
Diogo.— Com certeza, tantas!
Belisa.— Melhor: penso que antes de os trazer iria eu lá, para conhecer aquelas terras da América.
Martinha.— Nom haveria problema, tanto ouro ia dar para viajar e para o que se quigesse. Para todo.
Diogo.— Para todo e ainda para mais!
Belisa.— Que bonito é sonhar.
Diogo.— Custa bem pouco, e pode-se tirar muito benefício clarificador e encorajante.
Martinha.— O sonho sempre antecede algo grande. Talvez o encontremos. Procuramos de novo?
Belisa.— Procuremos, sim. Que outra cousas podemos fazer? Confundiremo-nos dez, cem, um milhar de vezes. Mas algumha vez acertaremos. Como nom fazemos nada é neste imobilismo.
Diogo.— Mas, há que se saber mover. Nada adianta esbanjar as energias.
Martinha.— A procura sempre é positiva.
Belisa.— Isso mesmo penso eu.
Diogo.— Porém, de que vale que encontremos todo o ouro do mundo se nom podemos sair de aqui?
Belisa.— Isso também é certo.
Martinha.— Quiçá urgisse mais o Outeiro do Ar. Dizem que quem o encontre poderá viver sempre do ar, que nom precisará alimentos, nem água para sobreviver. E que estará sempre farto (Com intençom.) e com a melhor figura.
Belisa.— Bem pensado, algo disso pode que haja. Fixai-vos o tempo que levamos aqui, já dormimos polo menos umha noite, e eu nom tenho nada de fame. Nem sede.
Diogo.— Pois eu também nom, nem me lembrei!
Martinha.— A mim acontece o mesmo. E se estivéssemos no bom caminho?
Belisa.— No bom caminho de que?
Martinha.— Da senda desse Outeiro, é claro.
Diogo.— Mas, para quê o queremos? De que nos vale nom ter fame se estamos atrapados?
Martinha.— Mas polo menos nom passaríamos fame.
Diogo.— E de que vale isso?
Belisa.— Entretanto, poderíamos encontrar umha saída, ou que alguém nos resgatasse.
Martinha.— Como nos vam resgatar se nom nos vem?
Diogo.— Nom o sabemos. Esses dous que vinham da feira nom nos vírom, com certeza. Mas pode que venham outros e que sim nos podam ajudar. Nom podemos desesperançar.
Belisa.— Com efeito, a esperança é o último que se perde, nom é?
(Escuita-se, de fundo, o barulho de umha junta de bois.)
Martinha (Muito atenta.).— Escuitades o mesmo que eu? Parece que alguém venha do monte.
(Investigam os três.)
Belisa.— Já os entrevejo. Parecem os do Guerrucho. Devem andar a cortar os pinheiros no Monte Alto, algo lhes escuitara de que o tinham traçado.
Diogo.— É claro. Por isso levárom os bois.
Belisa.— Polo que fosse, tanto tem. Vamos chamá-los!
(Novamente gesticulam e gritam. Até que, como na vez anterior, decai a intensidade e voltam a ficar rendidos. Sentam-se, muito decepcionados. Instantinho de silêncio. Transiçom.)
Diogo.— Nada, isto nom tem jeito, é inaudito. (Silencinho. De repente parece acordar e fala contente.) Sabedes o que estou a pensar?
Belisa, Martinha (A umha.).— Que pensas?
Diogo.— Que quiçá fosse melhor que aparecesse o Outeiro do Fogo.
Martinha (Decepcionada.).— Ah, é isso? Pensei que seria algo útil.
Diogo.— Útil, sim...
Belisa.— Aqui nom está frio. Para que queres o fogo?
Diogo.— Para queimar todo. Assim arderiam também os entraves que entorpecem a nossa procura, esses entraves que nos retenhem mas que nom se deixam ver. E poderíamos sair.
Martinha.— Fogo purificador... Fogo renovador...
Diogo.— Com efeito, flamejar vivificante, transformador. Um bom lume a tempo pode salvar muitas cousas.
Belisa.— Deixai-vos de lérias. Aqui estamos no meio do monte e o fogo de um incêndio é só pobreza, ruína, catástrofe.
(Escuitam-se dous disparos.)
Martinha (Assustada.).— Que foi isso?
(Instante de tensom. Diogo e Belisa respondem, gesticulando, que também nom sabem. Os três à espreita.)
Belisa.— Já, já sei. Parece-me lobrigar uns caçadores.
(Indica. Martinha e Diogo observam na mesma direcçom e assentem.)
Martinha.— Chamemos por eles!
Diogo.— Para o que vai valer!
Belisa.— Sim, chamemos, assim saberemos se vale ou nom.
(Chamam e gesticulam como nas vezes anteriores.)
Martinha.— Estes escuitam-nos, venhem para aqui!
Belisa.— Sim, venhem, venhem, por fim!
Diogo.— Nom é sem tempo!
(Agora a sua reacçom é de alegria, ao verificar como, com efeito, os caçadores se dirigem para os Outeiros do Inferno.)
Belisa.— Quase nom o podo crer!
Diogo (Que volta a tentar sair.).— Porém, nom podemos sair. Isto continua na mesma!
Martinha.— Oh, os caçadores nom nos vem, (Muito assustada.) nom nos vem.
(Belisa, Diogo e Martinha tentam falar com os caçadores, que se sentárom para comer e descansar dentro dos Outeiros. Porém, eles nom se dam por inteirados. Os três jovens mesmo fingem golpeá-los, apedrejá-los, dar-lhes com paus, mas eles nom se imutam, nada os afecta. Até que se vam.)
Belisa.— Fôrom-se, que desastre!
Diogo.— Nom entendo nada do que acontece aqui. Nada de nada. Isto é mais que incrível. É... é... inimaginável!
Belisa.— Eu também nom tenho palavras.
Martinha.— Nem eu. É, em verdade, excessivo.
Belisa.— Cairia um encantamento sobre nós?
Martinha.— Cairia.
Diogo.— Eu nom acredito nessas cousas. Mas nom sei o que pensar.
Belisa.— Será alguém que se agacha na Cova dos Mouros?
Diogo.— Eu entrei nela umha chea de vezes nestes dias. E nom há nada. Nem ninguém.
Martinha.— Algumha vez eu tenho escuitado falar do Espírito dos Mouros.
Diogo.— Isso nom existe!
Belisa.— A mim contárom-me que aqui, nestes lugares, estám os restos dos Mouros, umhas gentes que habitárom estes lugares há muitos, muitos anos; no tempo dos avós dos avós dos nossos tataravós, mais ou menos. Quando nom existiam naçons nem cousa polo estilo. Nom obstante, nunca soubem de encantamentos.
Diogo.— Os encantamentos só existem nos contos de fadas de tempos muito pretéritos. Nos de agora já nem se fala deles. Essas cousas, nesta altura, só som de mentes muito débeis.
Martinha.— Quem sabe o que é umha mente débil ou forte! O caso é que estamos como estamos.
Diogo.— Eu escuitara que nos tempos da guerra desaparecera muita gente que se vinhera esconder aqui.
Martinha.— Há tantos anos disso!
Belisa (Inocente.).— Olhai, nom reparamos numha cousa: se se chamam Outeiros do Inferno talvez ande por aqui o demo. Isto parece cousa do demo, ou nom?
Diogo (Sarcástico.).— Sim, mais bem umha brincadeira de um deminho.
Belisa (Muito assustada.).— Nom te rias, olha para aí.
(Os três reagem com medo. Surgem uns mascarados que, ao pouco, cantam umhas coplas)
Diogo (Respirando tranquilidade.).— Já sei, estes mascarados estám a festejar o entruido. Deve ser o tempo dele!
Martinha (Magoada.).— E nós aqui, olhando para onte.
Belisa.— Nunca melhor dito.
(Os três tentam somar-se às coplas, entoando o refrám. Algumha faz referência aos Outeiros. Até que os cantos se escuitam cada vez mais longe.)
Diogo (Muito decepcionado.).— Vam-se, vam-se...
Belisa.— Também se fôrom.
Martinha.— Parece estarmos condenados para o esquecimento.
Diogo.— Nom nos vem, nom nos escuitam, nom nos sentem se lhes tocamos. (Pausa.) Nom podemos sair. (Pausa.) E o mais surpreendente: aqui nom faz frio, nom sentimos fame, nem nada, nada...
Martinha (Com intençom.).— Será que se abriu um novo paraíso para nós!
Belisa (Transcendente.).— Espírito dos Mouros, bota-nos umha mao!
Martinha (Com intençom.).— Isso é ter fé, sim senhora!
Belisa (Zangada.).— Pois a ver, esperta, diz tu: que se pode fazer?
Diogo (Entremetendo-se.).— Nom vale a pena mais enfrontamentos entre nós, quando os três partilhamos o mesmo problema!
(Instintivamente ponhem-se a procurar de novo, cada um polo seu lado e como melhor lhe parece. Até que se cansam. E sentam-se, derrotados. Pausa, Transiçom.)
Martinha, Belisa, Diogo (Acordando ao mesmo tempo.).— E se o tentássemos entre os três?
(Reagem estranhados perante a reacçom unánime, mas felicitam-se polo acontecido.)
Martinha.— Sim, os três juntos. Para que ninguém desfaga o que fizo outro. Para nom esbanjar energias. Porque os três temos o mesmo objectivo.
Belisa.— Com efeito, o mesmo fim.
Diogo (Rotundo.).— O mesmo inimigo, que nos tem anestesiados neste terrível lugar.
(Procuram juntos, enquanto dizem, primeiro baixo, e paulatinamente subindo o tom "Queremos sair, Queremos sair, Queremos sair....")
Martinha (Assombrada.).— Olhai, parece que abala este Outeiro!
Belisa.— Sim, é certo!
Diogo.— Venha, mais força, mais um esforço!
(Os três concentram os seus esforços. E o Outeiro, com efeito, princípia a ceder. Empurram e golpeam muito decididos, parecem mesmo extenuados, até que por fim o Outeiro quebra e cai umha espécie de rede. Experimentam, e por fim conseguem sair.)
Martinha.— Livres, estamos livres.
Belisa.— A liberdade, por fim!
Diogo.— É certo!
(Entram e saem para verificar que a liberdade é certa. Começam a dançar, a festejá-lo. De repente, Diogo queixa-se de frio. Belisa e Martinha também. E sentem fame. E outras necessidades.)
Martinha.— Acabou o paraíso!
Diogo.— O que dizes? Agora é que começa.
Belisa.— Sim, vamos para a casa. Os nossos nom o vam crer!
(Escuitam um ruido. Reagem acautelados.)
Martinha.— Quem será esta vez?
Voz de Vizinha/o.— Somos nós! Aqui, estám aqui!
Diogo.— Oh, estám à nossa procura.
Voz de Vizinha/o.— Levamos sem parar à vossa procura todo este tempo!
Diogo.— Toda esta eternidade!
Outra voz vizinhal e amical.— Aqui temos comida, roupa...
Martinha.— Por fim o paraíso!
(Diogo e Martinha saem. Fica só Belisa, a mais nova dos três.)
Belisa.— Podo confirmar que os acontecimentos findárom como deviam. (Escuita-se, de fundo, a alegria do reencontro dos vizinhos com Diogo e Martinha, e como questionam polo paradeiro de Belisa e eles indicam para os Outeiros dos Inferno.) Fomos, polo que se diz, os únicos que sobrevivemos os Outeiros do Inferno. Todos os que antes ficaram atrapados perecêrom, seica sem poder regressar. Talvez nos vissem enquanto nós estivemos atrapados e nos pedissem ajuda. Ou mesmo no-la estejam a pedir nestes instantes. Eu nom o sei. (Adianta-se. O resto do cenário fica às escuras. Cesam as vozes e os gritos.) O caso é que os vizinhos fôrom comprovar como se partira um anaco de um dos Outeiros. Aquela porçom de Outeiro esnaquizárom-na e levárom-na todos para a casa, pensando que lhes podia dar fortuna. Nom sei que resultado tivérom. O que sim sei é que desde aquel instante circulam versons muito díspares.
Martinha (Entrando.).— Sim, embora nós contemos o mesmo, cada um relata o que ouve de modo diferente. É um mistério!
Diogo (Entrando.).— E ao sairdes de aqui, apesar de que todos vistes e escuitastes o mesmo, com segurança que se vos mandarem escrever o que aconteceu nom haverá dous relatos iguais. Podedes provar. Eu estou certo.
Belisa, Martinha, Diogo (A umha.).— Esta é, pois, quase toda a verdade sobre os Outeiros do Inferno.
Diogo.— Quase, com certeza, porque sempre há outro quase.
Belisa.— Ou outros.
Martinha.— Por mais que por vezes nom se vejam. Ou se pretendam ignorar.
Diogo, Belisa, Martinha (A umha.).— Por isso, quando vejades algo branco, por muito branco que vos pareça, pensai que é quase branco. Jamais branco de todo. O outro quase, em todo o caso, já o acharedes com a passagem do tempo. Seguramente.
(Pano Final.)


 

 

 


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