Silêncio! Umha nova leitura de um texto rosaliano

 

(Texto íntegro)

 

m2carvalhocalerosilencio.html

     Na ediçom príncipe de Follas Novas figura, como derradeiro do primeiro «livro», um poema que, transcrito literalmente, di assi:
               ¡Silencio!
     A man nerviosa e palpitante ó seo,
As niebras n'os meus ollos condensadas,
Con un mundo de dudas nos sentidos
Y-un mundo de tormentos n'as entrañas;
     Sentindo como loitan,
     En sin igual batalla,
Inmortales deseios que atormentan
     E rencores que matan.
Mollo n'a propia sangre á dura pruma
     Rompendo á vena inchada,
Y escribo... escribo ¿para quê? ¡Volvede
     O mais fondo da yalma
     Tempestosas imaes!
Ide a morar c'as mortas relembranzas;
Qu'a man tembrosa n'o papel sô escriba
Palabras, e palabras, e palabras!
¿Da idea á forma inmaculada e pura
     Donde quedou velada? (1).

     Eu figem umha ediçom de Follas Novas por encargo do Padroado «Rosalia de Castro». Coa ajuda da senhora Lídia Fontoira, esforcei-me por lograr umha leitura acurada, que, no entanto, por decisom daquel Padroado, apareceu na impressom desprovida de aparato crítico.
     Eis a minha leitura do referido poema:

               ¡SILENCIO!
     A man nerviosa e palpitante o seo,
as niebras nos meus ollos condensadas,
con un mundo de dudas nos sentidos
i un mundo de tormentos nas entrañas,
     sentindo cómo loitan
     en sin igual batalla

inmortales deseios que atormentan
     e rencores que matan,
mollo na propia sangre a dura pruma
     rompendo a vena hinchada,
i escribo..., escribo..., ¿para qué? ¡Volvede
     ó mais fondo da ialma,
     tempestosas imaxes!
¡Ide a morar cas mortas relembranzas!

¡Que a man tembrosa no papel só escriba
palabras, e palabras, e palabras!
Da idea a forma inmaculada e pura
     ¿dónde quedóu velada? (2)


     Agora dispomos de umha ediçom de Folhas Novas sem aquela limitaçom, quer dizer, com aparato crítico. Nela, o poema que nos ocupa aparece transcrito assi:

               Silêncio!
     A mam nerviosa e palpitante o seo,
As niebras nos meus olhos condensadas,
Com um mundo de dudas nos sentidos
I um mundo de tormentos nas entranhas,
     Sentindo como loitam
     Em sin igual batalha,
Inmortales deseios que atormentam
     E rencores que matam.
Molho na própia sangre a dura pruma
     Rompendo a vena inchada,
I escribo... escribo..., para quê? Volvede
     Ó mais fondo da ialma,
     Tempestosas images!
Ide a morar c'as mortas relembranças!
Que a mam tembrosa no papel só escriba
Palavras, e palavras, e palavras!
Da idea a forma inmaculada e pura
     Donde quedou velada? (3).

     Como se vê, difere esta leitura da minha nos seguintes extremos:
          1. O que para mim é o título do poema, é para a nova ediçom o primeiro verso.
          2. Hai várias discrepâncias polo que se refere à pontuaçom.
          3. A ortografia empregada é distinta.
     Do primeiro extremo falaremos logo. O terceiro carece de relevância. Digamos algo sobre o segundo.
     Das emendas que eu figem ao texto de Rosalia, nom som aceitadas pola nova ediçom as que vou indicar:
          a) A supressom da vírgula que na príncipe segue a batalla. A nova mantém-na.
          b) A vírgula que segue a matam, que na príncipe vai seguido de ponto. A nova mantém esse ponto.
          c) A vírgula que segue aos pontos suspensivos (reticências) depois do primeiro escribo... A nova ediçom omite-a.
     Na ediçom nova aparece um ponto depois de pura que nom está na príncipe nem na minha.
     Ora, todas as variantes que aquela introduz nisto parecem-me um retrocesso no que di respeito à leitura crítica do poema.
     Com efeito:
          a) A vírgula de batalha isola o verbo loitam do seu implemento deseios. Melhor era a pontuaçom do original, que, encerrando entre vírgulas «en sin igual batalla», dava a este complemento circunstancial um carácter parentético explicativo que permitia ao verbo saltar sobre aquel para assumir o seu implemento depois da interrupçom marcada polo ajeitado descenso da entoaçom. Mas vírgula trás batalha e nom trás loitam nom corresponde ao sentido.
          b) Se colocamos um ponto depois de matam, temos um conjunto de versos formado por ablativos absolutos e frases subordinadas participiais ou gerundiais que carecem de verbo regente. É evidente que matam é o último elemento de umha prótase, e com molho começa a apódose. Nom se pode cortar o período em matam, que depende de molho e o seu coordenado escribo.
          c) O segundo escribo nom cómpleta o sentido do primeiro escribo depois de umha momentânea interrupçom. O segundo escribo repete o primeiro depois da reticência, nom o complementa. Hai justaposiçom, pois. A vírgula está indicada.
     Quanto ao ponto que segue a pura, que nom existe na príncipe nem na minha, isola o sujeito forma do seu verbo quedou, co qual a frase «Donde quedou velada a forma inmaculada da idea?» resulta fragmentada. O primeiro fragmento deixa à parte o sujeito, e o segundo contém o verbo, o predicado nominal e o advérbio relativo-interrogativo. Evidentemente, esta emenda a Rosalia e a mim mesmo, se nom é umha gralha, é inadmissível.
     Voltemos ao extremo 1. Trata-se de umha emenda ao meu texto que consiste em colocar como primeiro verso do poema a palavra que eu coloco como título. O prologuista da ediçom nova defende assi a emenda do editor:
     «Neste texto hai umha diferença importante entre a ediçom que utilizamos (vid. 5) e a ediçom facsímil de Folhas Novas, RAG, Corunha, 1982. A primeira coloca «Silêncio!» como título do poema enquanto a segunda situa-o como primeiro verso. Tendo em conta que no «livro» no que o poema está incluído, nengum texto leva título (este seria logo umha excepçom), e tendo em conta tamém que ao nom ser ediçom crítica a leitura de Carvalho e Fontoira nom se documenta, preferimos a da ediçom facsímil» (4).
     Ora, a composiçom é umha «rima», que, tanto na ideia como na forma, reproduz esquemas becquerianos. Metricamente, trata-se de umha silva arromançada, na qual se combinam versos de onze e sete sílabas, segundo o cômputo espanhol (dez e seis, respectivamente, conforme o português). Que se incluísse neste esquema um verso de três (duas) sílabas, seria totalmente discordante, e nom hai em Folhas Novas nengum exemplo que abone tal licença, à qual, polo demais, nom se lhe vê finalidade estética. Que sentido pode ter um verso solto de tam pouca substância prosódica, que converte em impares os versos rimados de um romance? Isto seria muito mais anormal que a presença de um poema intitulado num conjunto de poemas nom intitulados, tanto mais quanto que este poema é o derradeiro de umha série, e pode, pola sua posiçom, levar um signo especial que reforce o seu carácter clausurante. E mais tendo em conta que esse título define em certo modo o resultado das meditaçons sobre a essência da poesia que constituem em parte o contido do livro primeiro de Folhas Novas: a inefabilidade dos conceitos.
     Assi que, polas razons apontadas, nom considero admissível nengumha das emendas que se fam à minha nesta nova ediçom do poema. Polo que se refere ao ponto ultimamente discutido (o que arriba enumeramos como 1), para o caso de que a minha argumentaçom nom convença ao ilustrado prologuista, acrecentarei que na fé de erratas da ediçom
príncipe, e tamém, portanto, da fac-símile —que el, sem dúvida, nom consultou—, aparece indicado que «¡Silencio!», da página 20, deve escrever-se «¡SILENCIO!», com versais, como os restantes títulos dos poemas de Follas Novas (5). O que já é concluinte.
     Se passamos da fixaçom do texto à interpretaçom do seu pensamento, devo dizer que tamém considero errónea a leitura que o prologuista defende. Segundo el.
     «O poema abre-se com a constataçom desse estado inicial, que é tamém desejo (o silêncio). E aqui seria oportuno lembrar umha idea que nortea boa parte da poesia moderna —quer no discurso poético, quer no crítico—: a poesia como surgindo do silêncio e a el regressando; umha conquista dolorosa daquel estado inicial em que a cisom do home e o mundo nom se tinham produzido.
     O poema vai-se logo centrar sobre a actividade da escrita:

i escribo..., escribo..., para que?

     A escrita é umha actividade que poderíamos définir quase como fisiológica (antes dixera-nos: «rompendo a vea inchada») e posta perante um interrogante que visa o conceito de «utilidade»; utilidade «mercantil», mas tamém utilidade espiritual ou teológica.
     E a continuaçom vem o desejo expresso:

Que a mam tembrosa no papel só escriva
palavras, e palavras, e palavras!

verso este último que é clave, pois nel a repetiçom leva-nos a entrever um desejo de escritura que podemos definir como «automática»; mas ao mesmo tempo, essas «palavras» que vam ser escritas, umha vez que as «tempestosas images» desapareçam, é umha palavra branca, umha espécie de «grau zero» da escrita que o mestre Alberto Caeiro enunciou como a «metafísica de não pensar em nada».
     E o poema remata com umha pergunta que nega o conceito tradicional, aristotélico, do belo como categoria eterna e imutável que define a obra de arte:

Da idea a forma imaculada e pura
     donde quedou velada?

     Pensamos que este texto define por si só toda umha poética, poética que nas suas dúvidas e vacilaçons nega toda umha tradiçom anterior e nom só galega —que, aliás, seria moi fraca— abrindo passo aos problemas-terrores nos que a criaçom artística, seja ou nom poética, do século XX está imersa. Poemas como este nom encontramos na literatura galega nem na europea com moita freqüência, pois só os grandes poetas tivérom esta clarividência que tam forte se fai em Rosalia.
     Em conclusom, pensamos que este interrogar-se sobre a própria palavra poética, esta espécie de meta-poética que Folhas Novas nos propom dam-lhe ao livro umha modernidade que se resiste a perder e situam-no em lugar destacado dentro das literaturas do seu momento».
     Mas nom hai no texto rosaliano expressom algumha de desejo de umha escritura «automática», nom hai nengumha exaltaçom mallarmeana ou suprarrealista da palavra em liberdade. Rosalia nom quer dizer: «É desejável (ou «eu desejo») que a mia n só escreva palavras». Quer dizer: «É lamentável (ou «eu lamento») que a mam só escreva palavras». Nom anuncia anacronicamente (bretonianamente) a escritura automática, mas exprime romanticamente (becquerianamente) a impossibilidade de que as palavras revelem a forma imaculada da ideia. Outro poema rosaliano de semelhante contido reafirma a nossa interpretaçom:

La palabra y Ia idea... Hay un abismo
entre ambas cosas, orador sublime.
Si es que supiste amar, di: cuando amaste,
¿no es verdad, no es verdad que enmudeciste?
Cuando has aborrecido, ¿no has guardado
silencioso Ia hiel de tus rencores
en lo más hondo y escondido y negro
que hallar puede en si un hombre?
          Un beso, una mirada,
suavísimo lenguaje de los cielos;
un puñal afilado, un golpe aleve,
expresivo lenguaje del infierno.
          Mas Ia palabra en vano
cuando el odio o el amor Ilenan Ia vida,
al convulsivo labio balbuciente
          se agolpa y precipita.
¡Que ha de decir! Desventurada y muda,
de tan hondos, tan íntimos secretos,
Ia lengua humana, torpe, no traduce
          el velado misterio.
Palpita el corazón enfermo y triste,
languidece el espíritu, he aqui todo;
          después se rompe el frágil
vaso, y Ia esencia elévase a lo ignoto».


(1) Biblioteca de «La Propaganda Literaria» / Follas Novas / versos en gallego / de / Rosalia Castro de Murguia / precedidos de un prólogo / por / Emilio Castelar / De venta / Madrid / La Ilustración Gallega y Asturiana / León, 12, principal = Habana / La Propaganda Literaria / O'Reilly, núm. 54 / 1880 (Aurelio J. Alaria, impresor, Estrella, 15, Madrid), pág. 20.
(2) Rosalia de Castro / Poesías / Cantares Gallegos / Follas Novas / En Ias Orillas del Sar / Ao cuidado de / Ricardo Carballo Calero / e / Lydia Fontoira Suris / 3.ª edición / Patronato Rosalía de Castro (Impreso en Artes Gráficas Galicia, S. A., Segovia, 15, Vigo, 1982), pág. 173.
(3) Rosalia de Castro / Folhas Novas / Ediçom crítica de E. Souto Presedo / Prólogo de F. Salinas Portugal (Imprime Venus, Artes Gráficas, S. A., A Corunha, 1985), pág. 20.
(4) Ed. cit., pág. XXXIII.
(5) Ed. príncipe (e fac-símile), pág. 272.
(6) Ed. nova, págs. XXII-XXIII.
(7) Ed. minha (Poesías), págs. 384-385.

 

 

 


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