Um velho escritor

 

[Texto íntegro]

 

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     O velho caminha com a olhada extraviada no horizonte. É uma manhã fria do mês de Outubro. O ano está sendo abundante em chuvas, o tempo meteorológico anda algo virado segundo os cientistas. Afirmam que acontece assim pela suba da temperatura da terra... Gases nocivos, experimentos militares, etc..
     O "Passeio do Mar", chama-se assim por onde o velho escritor caminha, é uma rua que transcorre paralela à praia da vila marinheira que o ficcionista escolheu para passar os últimos anos da sua vida. É muito popular entre as gentes, quase todos pescantins... Nunca antes tiveram uma personagem tão popular na vila.
     As gaivotas voam perto do mar, o caminhante observa-as parado, arrumado à balaustrada que separa a praia do passeio... Uns rapazetes correm detrás duma bola de futebol pela areia, gritam, bulem. Quando passam à altura do homem solitário saúdam-no:
     —Olá, " Senhor de Queixomariu"!
     —Como lhe vai? —pergunta outro.
     O velho saúda-os com a mão e guarda silêncio.
     O mar está bravo, as ondas rojem com violência. Os rapazes, como imantados por aquele homem misterioso, amável como um cavalheiro do século dezoito, recolhem a bola e caminham com ele. São cinco rapazes muito alegres.
     —Senhor, como descansou hoje?
     O velho, sorrindo, olhou-o de cima abaixo e articulou as primeiras palavras:
     —Bem... Muito obrigado homem! Tão decrépito estou?
     —Nem falar! —Exclamou outro rapaz arregalando os olhos—. É que o passamos muito bem com as histórias que vossa mercê nos conta. Essa linguagem na que nos descreve as cousas é "trangalhosa" !
     —"Trangalhosa"? Quando eu era jovem diziam "fachendosa", "Guai"... claro que eu nunca gostei dessas palavras vulgares e alheias do nosso... Mas tudo muda.
     —Como é que se faz chamar "Senhor de Queixomariu" se os livros tem-nos assinados com o seu nome verdadeiro? —Inquiriu outro rapaz que ainda não falara antes.
     O velho perdeu a olhada no espaço infinito, umedeceram-se-lhe os olhos e guardou silêncio uns instantes.
     —É uma história de amor, meu caro, muito bela. Aconteceu há muitos anos... Quiçá cinquenta... Já choveu desde então.
     —Certo! —Assentem os rapazes.
     —Eu era um espírito rebelde morando em Madri. Vinte anos antes cometera um erro grave na minha vida. Ficara marcado...
     —Que erro? —quase perguntaram todos à vez.
     O "Senhor de Queixomariu" passeia agora acompanhado dos rapazes que desfrutam dum dia sem aulas.
     —Porque vivi vinte anos da minha vida sem viver de verdade, por esse motivo. Acaso com vinte e dous anos tinha eu que aguentar com uma situação de cadeia? Com uma mulher que ademais me não queria? Mas a história bonita aconteceu após aquilo...
     —Conte, conte...
     —Quando para mi a vida não tinha sentido no interior, no espírito... Nisso que se não vê mas dói muito!
     —Que lho digam ao Xavier! —Exclamou o rapaz mais jovem do grupo—. Está namorado da filha da professora de "matracas"!
     —Isso não é mau —continua o velho— sempre que a filha das "matracas" consinta!
     Os rapazes soltaram a rir a gargalhada.
     —Já sei que a mãe da moça não é outra que a professora de matemáticas! Mas voltando à história que nos ocupa dir-vos-ei que quando a vida para mim apenas tinha importância, incluso buscava a morte, não me apreciava a mim próprio, e isso é o mais terrível que lhe pode acontecer a um ser humano.
     O escritor faz uma pausa para colher alento, observa uns segundos o mar bravo, toca-se a longa barba com a mão esquerda e segue falando:
     —Mas quando tudo semelhava derrota, amargura, desilusão... Uma noite tépida do mês de Maio, acho que foi no mês das flores, decidi entrar num desses locais de baile nos que tocavam orquestras, vós já não acordais isso... E ali sentada numa cadeira, com outras moças, estava ela! A cara de Rosália, a nossa santinha.
     —Mas Rosália não podia ser-se, caro "Senhor de Queixomariu"! —Disse todo alvoroçado o rapaz mais jovem—. Nessa altura já tinha morto...
     O velho soltou a rir, os cativos também e uns contagiaram nos outros... O "Senhor de Queixomariu" teve que sentar num dos bancos que há no passeio, não podia mais, o riso fadigou-o.
     —Certo, meu filho, certo. Mas não era ela, a poetisa, era seu rosto; a cara duma mulher galega, eu dei em lhe chamar "menina". Ela foi quem me chamou "Senhor". Desde então faço-me chamar assim...
     Os rapazinhos ficaram em silêncio algum tempo como adivinhando o amor, quiçá a quantidade de amor que o "Senhor de Queixomariu" ainda guardava para a sua musa.
     Foi o escritor que rompeu aquele silêncio embaraçoso:
     —Então comecei a viver com uma paixão intensa a vida... Íamos de passeio, simplesmente caminhando já éramos felizes, estávamos muito namorados. E não vos conto mais porque depois ides copiar-me a história todos para um exercício de redação e a professora de literatura vai-vos suspender!
     —Conte, conte... Faça o favor.
     —Não copiamos...
     —Não nos deixe assim!
     —Tem que nos contar...
     O velho ficou mirando para o único rapaz que não disse nada. As ondas furiosas rompem o silêncio. O rapaz baixou a cabeça e cravou a mirada no chão.
     —Acaso, meu caro, a história repete-se? Anima-te, se agora a menina que amas te não corresponde, luta por ela. Logo sempre poderás dizer que não ficou pela tua culpa...
     O rapaz ergueu a olhada para o "Senhor de Queixomariu" e sorriu com aquela cara de anjo que dão os anos da juventude.
     —Lutarei, senhor, lutarei até o final...
     —Assim gosto eu dos homens!
     —Senhor —o rapaz triste, que já deixara de está-lo, voltou a estar triste— você lutou até o final?
     —Lutei, lutei.
     —Valeu de algo? —perguntou o mais pequeno.
     —Valeu... Parte da minha criação literária floresceu após ter conhecido a "menina"... Antes daquilo apenas cinco livros publicara. Ela foi a minha musa, foi para mim tudo. Perguntardes-vos onde está? Já falaremos nisso.
     Passados os cinco primeiros meses, ou assim, ela fez a descoberta duma minha situação, não gostou dela e deixou-me.
     O "Senhor de Queixomariu" pôs-se triste, voltou a olhada para o mar, tocou-se a barba e fechou os olhos com força.
     —O que é que era isso que ela achou?
     —É longo de contar, a ela sim que lho expliquei com detalhe... Algum dia saberdes o que é ter medo, angústia de que alguém a quem amardes vos deixe! O amor é certo que se baseia na sinceridade, e a gente conta as cousas segundo as vê... Contudo existem tantas sensibilidade, percepções diferentes, que sei eu, meus caros: "C´est la vie..."
     E o pior de ter medo é que ninguém o perdoa!
     —Que injusto... Até Pedro por medo negou a Cristo e foi santo, porquê ninguém o vai perdoar? —Enfureceu o rapaz que leva umas calças azuis e um casaco branco.
     —Mas isso depende das alturas, meus amigos, na terra os humanos somos quiçá mais ingratos. Eu naquela altura desejava que ela tivera também um "pecado" semelhante ao meu para demonstrar-lhe que lho perdoava. Mas ela era pura, estava limpa de "pecado", e quando digo pecado estou a construir uma metáfora.
     —Senhor —interrompeu o rapaz mais alto dos cinco—. Não podemos aceitar que se martirize assim você! Ela seguro que não era uma santa, não existe isso!
     —Ai, meus rapazes! Se vós conhecérais a "menina", é uma santinha, minha cara. É uma beleza comedida, oculta nos seu jeitos moderados e nas suas estritas e doces expressões.
     —Meu senhor, quanto tempo faz que a não vê?
     —Vexo-a todos os dias nos meus sonhos. Está presente na minha literatura, leio o publicado após daqueles anos e está comigo, ela mora em mim, na minha obra. Todas as noites me visita porque todas as noites releio nos meus livros.
     Após aquele encontro dos rapazes com o "Senhor de Queixomariu" decorreram algumas semanas, quiçá meses... Os garotos perguntavam-se onde é que andaria o seu amigo, voltavam pelas tardes ao passeio marítimo aguardando notícias até que um dia olharam passar um séquito funerário... Os pequenos arremoinharam escrutando:
     —Deve ser um morto importante, vai o alcaide e tudo!! —Exclamou um dos rapazes.
     Certamente, as câmaras da televisão faziam milagres! Todos os políticos se penduravam agora dos méritos daquele velho escritor marginado noutros tempos por ele ser-se um radical da língua! —Dizia-se nas cofrarias oficiais...
     Os sacerdotes cantavam canções de enterramento à vez que pediam pela alma do nosso ilustre Senhor de Queixomariu.

 

 

 


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