Ninguém põe em causa que, no início do
século XXI, os Estados Unidos constituem uma indisputada potência
hegemónica. Tal condição tem encontrado, no entanto, uma categórica
confirmação trás os atentados do 11 de Setembro de 2001. Ao amparo
destes, Washington tem levado ao extremo com a dramática
benevolência do sistema das Nações Unidas as suas já tradicionais
estratégias de agressiva intervenção, tem conseguido um franco
fortalecimento da sua maquinaria militar, tem propiciado um planetário
retrocesso em matéria de direitos e liberdades, tem alentado a
adopção de impresentáveis fórmulas de má resolução de conflitos
de longa tradição e, para além de todo o anterior, tem imprimido um
novo impulso a um processo, a globalização capitalista, impregnado de
explorações, exclusões e desigualdades.
Para muitos especialistas a hegemonia norteamericana destas horas
mostra, porém, um traço inédito, na medida em que se desenvolve de
forma homogénea, e por vez primeira na história, em todos os terrenos
importantes: o da política, o da economia, o da cultura, o da
tecnologia e o dos factos militares. Nenhuma potência do passado pôde
exibir tal condição. Assim, e por exemplo, o império espanhol nunca
esteve em disposição de ostentar no século XVI um claro predomínio
tecnológico, do mesmo jeito que o império inglês sempre teve de
enfrentar, no XIX, a contestação, não precisamente menor, que
proporcionavam competidores como a França, a Alemanha e, com a passagem
dos anos, os Estados Unidos.
A condição referida de modo nenhum quer dizer, como poderia parecer,
que faltem os problemas no horizonte da hegemonia estadounidense. O
propósito destas linhas é, precisamente, examinar esses problemas com
o olhar posto em sublinhar que em nenhum caso se trata de obstáculos
menores. Antes bem, identificaremos um feixe de factos que, a fazer-se
valer determinados desenvolvimentos, podem provocar a erosão dos
alicerces da hegemonia que nos ocupa e, talvez, cancelar o seu vigor.
A primeira ameaça que pesa sobre a condição de primazia dos Estados
Unidos é a derivada da delicada situação social interna da maior
potência planetária. Não deve esquecer-se que no trânsito entre os
séculos XX e XXI os Estados Unidos são a principal maquinaria
produtora de pobreza do Norte desenvolvido. Entre os seus habitantes
contam-se nada menos que 46 milhões de pobres, 52 milhões de
analfabetos funcionais e 40 milhões de pessoas que mal vivem longe de
qualquer classe de assistência social. As cifras mencionadas parecem
chamadas a crescer, aliás, ao amparo das políticas neoliberais que
abraça quem em Janeiro de 2001 deviu presidente dos Estados Unidos:
George Bush filho. A situação obriga, naturalmente, a perguntar-se
pelo futuro e a não fechar o horizonte, de modo nenhum, a convulsões
sociais. Com carácter provisório, porém, revelam-se duas
circunstâncias importantes: se, por um lado, até o momento o sistema
político e económico norteamericano tem conseguido enfrentar, mal que
bem, os problemas correspondentes à custa, claro, de formidáveis
exclusões e marginalizações , pelo outro parece inegável que a
maioria dos pobres que nos ocupam forma um lumpenproletariat pouco
organizado e incapaz de articular um projecto de contestação e
mudanças. Mesmo assim, e como quer que muitos dos estudos que se
interessam pelos problemas que alcançam à hegemonia estadounidense
costumam identificar, sem mais, ameaças externas, convém é que
salientemos que o edifício sobre o que se tem construído essa
hegemonia mostra fendas importantes que podem se traduzir, com a
passagem do tempo, em surpresas.
O segundo grande problema que se adivinha no horizonte da hegemonia
norteamericana adopta a forma, não isenta de paradoxos, da
globalização neoliberal, um processo por muitos conceitos impulsado e
controlado desde empresas transnacionais enraizadas, com toda
evidência, nos Estados Unidos. É ilustrativo como, paulatinamente,
são muitos os economistas que, trás abraçar sem maiores dúvidas o
discurso da globalização capitalista, começam a perceber problemas. O
geral retrocesso dos poderes políticos tradicionais que a
globalização neoliberal implica acompanhado, isso sim, dum
fortalecimento da dimensão militar-repressiva que corresponde a muitos
desses poderes tem feito que se manifestassem alguns alarmes e que,
ante a perspectiva dum caos geral, se assumisse uma relativa operação
de retirada. Ainda que, ao amparo da discussão correspondente, não
falta quem, dentro da lógica da acumulação capitalista, tem lembrado
o papel estabilizador e mitigador de tensões sociais que tem
correspondido a muitos Estados, a defesa do benefício mais rápido e
fácil, que impregna todas as condutas inseridas no projecto da
globalização neoliberal, parece hoje sem freio e pode revolver-se em
contra dos interesses dos que até agora extraíram franco proveito às
práticas correspondentes. E é que, e por regressar à questão que nos
ocupa, não é de modo nenhum evidente que o caos de que fizemos
menção um big bang que afectaria à totalidade do
planeta seja
fácil de controlar e responda, sem fissuras, aos interesses dos
núcleos tradicionais do poder capitalista, e nomeadamente o
estadounidense.
Uma terceira ameaça que pende sobre a hegemonia norteamericana é a que
tem a sua origem na prepotência que inspira muitos dos movimentos dos
dirigentes estadounidenses de agora. Não faltam os historiadores que
assinalam que a maioria das potências hegemónicas do passado perderam
a sua condição, não tanto em virtude da aparição de poderosos
competidores externos como por efeito da sua incapacidade para avaliar
as próprias limitações. Neste caso não é preciso ir longe na
procura de ilustrações desta classe de comportamentos e
consequências: o apoio incontestável que Washington oferece às
políticas criminais desenvolvidas pelo primeiro ministro do Israel,
Ariel Sharon, parece exemplo suficiente dos riscos que os Estados Unidos
enfrentam. E não se trata apenas de que a política de Bush filho e a
dos seus antecessores na presidência seja profundamente imoral: é
que, para além disso, é pouco inteligente, na medida em que gera os
lógicos agravos no conjunto das opiniões públicas, e em muitos casos
entre os governantes, num amplíssimo arco de crise que vai desde
Marrocos até as Filipinas. Bem poderá acontecer que os Estados Unidos
consolidem o seu poder, via repressão, na Palestina e no Afeganistão
à custa de desestabilizar países mais importantes como o Egipto, a
Arábia Saudita, o Paquistão ou a Indonésia. A agressiva política de
Washington em relação com o Iraque assentada no propósito de
fortalecer a posição estratégica de Israel no Oriente Próximo e de
fazer-se com o controlo dum país geoeconomicamente importante parece
chamada a ter, aliás, efeitos parecidos. Agreguemos, para afastar
interpretações precipitadas, que não é estritamente preciso que as
consequências da política norteamericana sejam visíveis em semanas ou
meses: a história, que amiúde é lenta, costuma ser, porém,
perseverante. Ainda hoje se percebem, e com singular fortaleza, as
pegadas da impresentável partição da Palestina acontecida mais de
meio século atrás.
A quarta ameaça que acossa à hegemonia estadounidense é a que se
abrirá caminho se se verificarem aproximações sólidas entre
potências de carácter secundário. Os exemplos que quase sempre se
oferecem como ilustração são os da União Europeia e a Rússia, dum
lado, e a China e o Japão, doutro. Cumpre assinalar que trás os
atentados do 11 de Setembro de 2001 os Estados Unidos procuraram atrair
à Federação Russa, não tanto porque esta última objectivamente lhes
interesasse como em virtude do objectivo de manter a Moscovo afastado da
União Europeia. Num terreno similar não está de mais sublinhar que a
pressão que Washington exerce sobre a China parece ter como
explicação algumas das circunstâncias que agora nos ocupam. Os
Estados Unidos olham intranquilos, sem ir mais longe, a possibilidade de
que Tóquio proporcione o financiamento preciso para construir um
gigantesco conduto que, com origem no Kazaquistão e trás atravessar o
território chinês, remataria no Japão e reduziria muitos dos temores
que acossam a este último por efeito da sua manifesta vulnerabilidade
energética. |