Trás o jantar cos membros do
júri, como manda a tradição, Camilo dedicou-se a andar passeando solitário polas ruas de Barcelona.
Sentia-se
feliz. Os membros do júri felicitaram-no por tão brilhante trabalho e, naturalmente,
deram-lhe a máxima qualificação. Agora só lhe faltava encontrar uma revista
galega que lhe ajudara a dar a conhecer os seus descobrimentos. Mas não
hoje, hoje não queria pensar... hoje queria sentir... como fazia quando
andava lá por Penacova com Rafael a primavera passada... Rafael... que seria feito
dele? Não volveram a falar desde o dia em que se despediram em Santiago quando
Rafael o fora levar ao aeroporto. Teria que lhe telefonar... e porque não
agora que tinha tempo? Após a dissertação tinha umas semanas de descanso e
ainda não planeara o que fazer com elas. E enquanto se enchia de imagens da sua
Barcelona natal, ia pensando no que gostaria de fazer nessas duas
semanas. Pensou que gostaria de ver a gente de Penacova... A Manuel e a sua
mulher Aurora, e lembrou aquele rebite encarnado que lhe vira a ela colgando do
pescoço... daquela não podia falar mas se a visse agora havia de lhe
perguntar polo seu significado... também gostaria de ver ao Ciro e
dizer-lhe
que era todo ouvidos, que lhe podia contar todas as histórias de pias que desse
lembrado... E que seria feito daquele moço, cos seus sonhos de escapar lá a
Canárias...? E a tia Maria? Seguirá podendo apanhar nas suas verças...? E o tio
Serafim? Toparia quem lhe abra a forja...? E, claro, as três moças do maçadoiro...
sim, definitivamente queria ver às do maçadoiro, a ele amolara-lhe não poder ter
falado mais durante aquela fase da sua investigação, mas assim são as
cousas. Agora podia volver e arranjar tudo... explicar-lhes porque estivera tão calado. E
enquanto anda ele com aquelas evocações, as imagens do passado vão-lhe
entrando misturadas com as que lhe regala a cidade que se move ao seu
redor enquanto ele anda... que formosa é esta Barcelona... e enquanto
revive as lembranças nasce nele a imagem duma gesta florida da primavera de
Penacova que se mistura coa dum formoso lagarto de porcelana... Se pudesse colher
e dobrar o mapa da Ibéria... e juntar Penacova com Barcelona... E ele
pensava que aquela era uma ideia mui original que se lhe acabava de ocorrer a
ele... como se nota que passara pouco tempo em Penacova! Ele marchara antes do
Agosto e nunca escutara aos que cada ano a finais desse mês têm que se
pôr ao volante para irem a Barcelona de volta: "Ai, quanto quilometro inútil
polo meio... se se pudesse dobrar o mapa... com uma alancada já chegava!"
Mas ele, sem nada saber disto, aquele dia ia dobrando o mapa e saltando de
Penacova a Barcelona com toda a facilidade. Ainda que o que ele fazia
era uma superposição que lhe permitia andar polos dous sítios a um tempo, e
ele ia escolhendo dum e doutro, criando assim o seu mundo ideal... Um mundo no
que ambas as duas realidades tinham plena razão de ser; onde nenhuma é
pior nem melhor, senão dous mundos irmãos... e pensando naquilo, e sentindo
a imensidade dos seus universos, foi-se na procura dum telefone. Falou co
Rafael, que muito se alegrou de o escutar. E quase sem aperceber-se sequer já
estava no aeroporto de Santiago de novo...
Mesmo parece que foi ontem quando me vieste trazer ao aeroporto e
logo vai lá um ano...
E polo que me contaste, para ti não foi mal aproveitado...
Não tenho queixa, mas conta-me agora de ti, que ainda não me contaste
nada...
O reencontro fora intenso, tal que de parentes se tratasse, e depois de
visitar Compostela, aquela mesma tarde volveram às terras do Deza onde Camilo gozou duma familiar acolhida. Logo planearam uma visita a
Penacova. À primeira não estavam mui certos de se o deviam fazer, eles já não
eram quem foram, e talvez também já ali as cousas andavam doutra maneira...
porque não deixar tudo como está, e reter aquela lembrança tão suave e doce que
ambos conservavam? Camilo tinha outros sítios que visitar, lá pola
Fonsagrada onde moram os da sua gente pola parte de seu pai, e podia adiantar a sua
marcha... Mas não há-de ser tal... e puseram-se ao caminho para o outro dia à manhã.
Quando iam subindo pola estrada d'Os Mouros, mesmo em chegando a
Ameixeiras, avistaram a um grupo de gente toda junta na beira do
caminho. Rafael conduzia devagar e puderam ver como de dous em dous se iam
metendo todos na taverna. Pararam o automóvel e, danados pola
curiosidade, entraram no bar eles também,... afinal de contas, era um lugar público
e ninguém lhes ia dizer nada, ainda que aquilo parecia uma reunião... um
conselho, diria a gente. Ficaram de pé direito na esquina do balcão,
perto da porta. A gente, alguma sentada e outra de pé, olhava para um homem que
tinha agora a palavra e começava a falar...
Pois eu peço-vo-lo deveras a todos... e já vos digo que a candidatura
está aberta... e eu seria mui gostante de que alguém de Ameixeiras se
unisse a ela... já há gente de Penacova também apontada, e de Fontearqueira, e
de todos os lugares, se me apuras até de Penalapa levaremos gente... já
só ficais vós para as listas estarem completas, e mais estarmos todos
representados...
Um homem de uns sessenta e tantos anos falou então, e parecia
representar bem o sentir de todos, porque todos acenaram coa cabeça ao
que ele dizia, ...e disse que não se devia estranhar se a gente semelhava
um bocado remissa, mas que já escarmentaram muito... e não precisamente na
cabeça dos outros... que eles tinham os seus reparos para fiar-se da política...
Eu compreendo o que me dizes, Severo, e não te falta razão
nenhuma, contudo tens que admitir que todos nos equivocamos, e que de não ser
assim não se precisariam as segundas oportunidades...
E o orador seguiu a falar das segundas oportunidades e do muito que
aprende a gente quando não sabe o que tem e o perde... e assegura-lhes que se
o apoiam não se vão arrepender... A Camilo e a Rafael parecia-lhes que aquele
homem falava com sinceridade, e perguntaram-lhe ao de detrás do balcão
quem era "É o velho alcaide, que se quer apresentar outra vez"...
E o orador seguiu a falar, mesmo semelhava que tinha pressa por sair eleito outra
vez,... e que certo era, ele tinha assuntos pendentes que resolver, assuntos que
estavam à sua espera e ele já não via a hora de poder começar... à Fonte
ser-lhe-ia devolto o seu caudal, ainda que ele mesmo tivesse que abrir o buraco
coas mãos e fazer um muro de contenção... e ademais tinha ele outras
contas que saldar e havia de ir pouco a pouco até pagar por todas; e com essa
esperança seguia a falar, e a gente a interpelar. Rafael e Camilo
foramse embora e não ouviram como rematava aquele meeting, no que o orador, que estava a
deixar medrar a barba ou talvez se esquecera hoje de se barbear, se empregou a
fundo para colocar a sua mensagem dentro das cada vez mais atentas cabeças da
gente.
Camilo e Rafael chegaram a Penacova, e em vez de
meter-se para a aldeia decidiram dar uma volta co automóvel polas pistas, primeiro foram
caminho de Penalapa e ao passarem A Tapada colheram o caminho que polas Lamas do
Baio leva à Travessa; ali pararam e saíram do auto, estavam no pé do
Castelo da Rainha Loba. Sentiram um bouchear intermitente que vinha de lá do fundo
das carvalheiras. Atraídos pola sua natural curiosidade, caminharam por um
carroucho estreito entre os carvalhos e foram ter a um lugar onde havia cachotes de pedra escangalhados. Ali nascia o boureio e não tardaram em
dar co responsável, um homem de mediana idade que semelhava estar a fazer
uma escultura, ou algo parecido. A eles surpreendeu-lhes que aquele homem, em
vez de começar por uma grande rocha e ir tirando o que lhe sobrasse,
parecia fazer ao revés, e andava a juntar cachotes e fazendo-os casar uns cos outros e
mais com um plano que parecia consultar lá dentro da sua cabeça. O
homem nem reparou neles, e continuou a colher e a provar pedaços de pedra nos
ocos que faltavam. Eles olharam um pouco para aquele pedreiro que parecia
cego para tudo menos para aquelas pedras e os seus martelos, e só descansava
para botar uma olhada lá para os montes da Rousia, ou cara aos vales da
Límia, com um olhar que mostrava que ele também tinha outras contas por pagar.
Camilo e Rafael admiraram a habilidade que parecia ter nas suas mãos, depois
marcharam. Debateram-se entre dar a volta e ir buscar o automóvel ou baixar
polo monte abaixo até chegar ao meio de Penacova. Decidiram deixar o
seu veículo para mais tarde, e foram-se caminhando até às casas. Primeiro foram
dar uma volta polo lugar. Eram muitas as lembranças guardadas e agora também, por ambos os dous, prezadas, ainda que algumas não fossem tal
quando as viveram. A Camilo amolou-lhe não dar visto as três moças do
maçadoiro e até quis ficar sentado ao pé da casa da escola, enquanto
Rafael ia visitar o Manuel, mas aquilo não estava bem, e resignando-se a ser lembrado
polo seu silêncio, marchou co seu amigo a caminho do fundo da aldeia.
Recebeu-os a Aurora, o Manuel andava no monte... "chega este tempo e não
há quem pegue nele em casa... tem tanto labor do que botar mão... hoje
foi amorear tantinha erva, ao passo que levou o gado para o monte... como
lhe vai amolar não os ter visto... se não fosse tão longe davam-me ganas de ir na sua
procura...!" A eles também lhes amargou não ver o Manuel, mas
conformaram-se com ver a Aurora, e perguntaram-lhe que tal iam as vacas, e
se levaram para o matadoiro a bezerra da Marquesa ou a criaram... "Já, homem, já; onde ela vai! E mais, muito lhe amargou ao meu homem
ter-se que desfazer dela..." disse-lhes Aurora com uma fala carregada de saudade.
Marcharam. Passaram por diante da casa do Serafim e botaram uma olhada para o corredor... Não viram a ninguém, o ferreiro não estava sentado
no seu escano ao lado dos jornais que lhe juntara o seu neto Daniel este
último ano. Deram-lhes ganas de subir e bater, mas decidiram seguir, e ao reparar na porta
da forja, viram que estava aberta; lá dentro um homem soprava as brasas
ardentes nas que já se estava a temperar o ferro. Aquele homem não era
o Serafim; era um homem muito mais novo que ele, um homem que agora deixava descansar os foles e com as tenazes sacava o reluzente ferro e
com força começava a bouchear nele. Com cada golpe, sua estrela de
faíscas que se funde e esvaece no espaço que o rodeia. Aquele homem era o Narciso,
ainda que eles nunca o saibam, e enquanto seguem o seu caminho Rego arriba,
vão escutando como os bateres do martelo deste novo ferreiro se misturam cos
ecoares duma canção... aquela melodia faz-lhes lembrar o velho ferreiro, e
como então tampouco agora entendem o que diz a letra... e marcham. Mas não é de estranhar que a não entendam, o próprio Narciso, que a
canta, tampouco acaba de saber o que quer dizer. A melodia segue-lhe a lembrar as
cantigas que de pequeno lhe ensinava sua avó, ora na poesia intui-se uma força
nova, uma força que em lugar de amolecer o seu espírito vai fazendo-o resistente, tão rijo como o próprio ferro no que boura. E enquanto
golpeia decata-se de que o ferro reluzente mais que relha parece espada, e nesse
instante entende o sentido da sua canção... e com mais força, se
couber, golpeia agora enquanto vai calculando se haverá relhas de avondo para
desterrar o selvagismo que assola a Terra.
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