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Capítulo III: A Fonte da Cunca

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     Apesar do descanso, que bem merecido tinha, Narciso seguia meio arrelado das costas; custava-lhe um nada endireitar o martirizado sarriço, e o coiro da parte alta do corpo seguia encetado em vários sítios. Mas não era essa terrível dor física a que trazia o homem revolvido, não, o que lhe remexia nas suas entranhas surdia da escuridão que ainda sentia rebolir lá dentro. Narciso sabia que tinha de seguir aquela andaina, mas não sabia para onde se devia dirigir. Foi assim como se decatou de que lhe chegara a hora de soltar aquele temão que até agora levara. Não, a Narciso já não lhe valiam as forças para o pinho, polo que quando naquela primeira noite desta terceira lua nova trataram de se pôr ao caminho, o Narciso recuou da dianteira e situou-se atrás da roda esquerda.
     O Perfeuto Racha-Pedras dum brinco apoderou-se da dianteira, decatando-se assim ele, e anunciando co seu gesto, de que lhe chegara a ele a rolda. Desde a Fonte da Cunca até a Veiga, onde encontrarão o quarto manancial, tudo será baixar. O Racha-Pedras terá um fácil começo, aqui no alto, e até passar do Penedo do Leão a pendente não será nada pronunciada, o que lhe ajudará a começar com bom pé a sua andaina.
     Aos três homens lhes amargava ter que deixar aquele recanto da Cunca. É esta uma fonte singular, à que quiçá seria mais adequado chamar fontes, porque sai em duas cochas separadas, mas à que toda a gente se refere como fonte porque ambas têm idêntica água. Ambas as duas de pedra, uma quadrada e a outra circular, mas as duas com água de idênticas propriedades. Precisamente polas qualidades que se lhe atribuem recebe o seu segundo nome: Fonte da Fame. Todo aquele que sofre por falta ou merma de apetite não tem mais que beber um golo destas águas e aí mesmo se lhe abre, e as ganas, por mui bico-furado que um for, são mais grandes que nunca. Dar-lhes aos cativos de beber destas águas de quando em vez está considerado o melhor remédio contra os maus hábitos alimentares que costumam ter as crianças. Já se sabe que a água toda desgasta: "a água lavra o caminho, e não como o vinho, que sabe no focinho". Ora, o desta fonte sai-se dos lindes do comum. Um jeito de comprovar os poderes destas águas é botar um coiro duro nelas e aguardar; de ali a um pedaço o coiro começa de amolecer e vaise pondo esbrancujado como se estivesse entrecozido. Para os de Penacova este método, sendo objectivo e portanto livre do efeito da possível sugestibilidade, é a evidência definitiva das qualidades medicinais destas águas. Porque a gente de Penacova, que não é parva, bem sabe que depois de subir desde a aldeia até o alto caminhando, vem-lhes a fome até às pedras, e por isso a cousa podia ser enganosa. Ora, co método do coiro, que há-de ser de jamão bem curado, não fica dúvida nenhuma.
     Para maior deleite desta riqueza transparente construiu-se uma mesa cos seus bancos de pedra e até uma forninha para poder assar ali se se quiser. Ora que, na frescura daquele monte, como comer de seco não há, e o que mais presta é o jamão co pão centeio. A mesa e a fornalheira são bonitos adornos de pedra, e atraem às gentes de fora se por ali ligara que viessem, que por certo não é este o caso. Estes três homens da pia foram os únicos visitantes forasteiros em subirem lá acima durante a corrente primavera, e quem sabe se os últimos.
     Contudo, eles, após o seu descanso e logo de saciar a sede da pia, colheram o andante para o Sudeste, caminho da Veiga. O Perfeuto vai na cabeceira, e os outros dous detrás de ambas as rodas. O Alcaide vai sumido numa quase inexistência, ambos os outros, embebidos lá nas suas cousas, não lhe fazem muito caso. Por um lado Narciso parece como se hoje andara algo ausente; e o Perfeuto, em contraste, vai bem esperto e ágil, mesmo semelha que o espírito que lhe falta aos seus companheiros ele lho tirara. Salta por cima de carpaços, uzeiras, carquejas e mais tojos, ou o que se ponha por diante, com um passo bem ligeiro. Os outros dous fazem o que podem, ora mais que ajudar dir-se-ia que ainda o freiam, mas o Perfeuto não se apercebe e segue coa sua marcha acelerada rodeira abaixo. Ao Perfeuto Racha-Pedras havia mui poucas cousas que o frearam, ele era homem botado para diante. Nisso ele não saíra a seu pai, que era acovardado e pouco homem. Ainda quando viera o tremor da terra lá polo ano sessenta e nove, creu que eram os ladrões que lhe andavam às voltas coas entradas da casa para lhe roubar o dinheiro que aquele mesmo dia fizera coa venda duma almalha. O homenzinho sentou na cama e tremendo como um junco, marelinho, ali ficou diante da sua mulher envergonhada, até que um vizinho, trás ouvir os berros, lhes acudiu. Mas o Perfeuto não herdara aquela habilidade do seu pai de se pôr amarelo e de tremer; ele era tudo o contrário, um homem acendido e de prontos bravos. E ainda que aquela raça que ele tinha não lhe vinha mal a cotio, alguma que outra vez também o metia nalguma leia.
     De rapaz ele já se tinha por valente e outros mais velhos não se atreviam a importuná-lo. E bem leda que se sentia a sua mãe, mesmo se lhe enchia a boca ao falar no valor do seu filho. Era aquela uma mulher de falar fácil e sem cancelas, e às vezes dizia mais do que, se quadra, era adequado. Dês que o Perfeuto foi garoto, logo de cumprir nove anos ou dez, ela via nele a um homem; e foi por aquele então quando começara a dizer, diante de quem for, que agora na sua casa já havia um homem, mas que o tivera que parir ela. O coitado do marido, que não era tão coitado, pois por diante calava e fazia que ria a broma mas logo depois seica lhas fazia pagar caras... que ele bom tampouco não che era..., não era, não, que ia ser, senão que lhe perguntem ao Perfeuto polas marcas que as vergalhadas da correia do seu pai lhe deixaram muitas vezes no lombo... Claro que muito tempo isto não durou porque o Perfeuto fez-se homem asinha e repunha-se cara ao pai, que pouco a pouco se foi apoucando; mas antes de se fazer o rapaz grande muita malheira lhe meteu o seu pai. Contam os vizinhos que uma vez até o atou com uma corda como se fosse um animalzinho, bem rente para que não pudesse burlar as vergalhadas, e depois brigou nele até que um vizinho lhe acudiu e lho tirou... "Mas tu seica viraste tolo, deixa o rapaz que ainda vais fazer uma desgraça!" A mãe do Perfeuto muitas vezes nem se decatava, mas tampouco pensava ela que aquilo fosse tão mau... "A poder de golpes aprendem até as pedras". Por consequência o rapaz teve de aprender asinha a se defender. Praticava muito malhando noutros rapazes da aldeia, um pequeno lugar perto de Ginzo. Isto trazia os vizinhos quase sempre de mal coa família. A dizer verdade a família do Perfeuto Racha-Pedras nunca se levou bem de todo co resto dos vizinhos do lugar. O pai do Perfeuto, ao que lhe diziam Hermínio, o pobre já morreu, viera casar ali coa Balbina, a que foi a mãe do Perfeuto, Deus os perdoe. O Hermínio já trazia com ele a alcunha de Racha-Pedras quando veio aqui casar, e assim lhe ficou a este filho mais velho. Diz-se que a alprecha lhe vinha dum avó, quem também se tivera que valer da sua manha coas pedras para ganhar um jornal aí nas canteiras do Montefurado, co que seica o Perfeuto guarda muita semelhança; ainda que isto mui em contra da Balbina, que sempre se arranja para lhe encontrar parecido cos dela. Ora os da gente dela vinham tirando a ruivos e de olhos garços, enquanto que o Perfeuto, e mesmo o seu pai, eram morouchos e de pêlo algo crencho. Ele polo que for, esta família nunca assentou completamente, e de quando em vez levantavam o voo e marchavam. Passaram muitos anos em Alemanha e alguns outros em Barcelona. Às vezes retornavam como se fossem ficar na aldeia para sempre de vizinhos e de ali a nada preparavam a bagagem e... bota-lhe um cão ao rastro! Foram tendo filhos e deixando-os por aí espargidos num sítio e noutro trabalhando, enquanto eles seguiam coa sua movedela de cá para lá até que morreram os velhos, que tanto ele quanto ela nunca o foram; morreram sendo mui novos. Os filhos partiram o capital, que andava meio à poula, e aqui só volveu o Perfeuto para se encarregar da vida dos Racha-Pedras; e assim foi como ficou coa lavrada, e mais coa alcunha da família.
     O Perfeuto leva o pinho com tanta celeridade que aos outros dous até lhes custa dá-lo seguido. Dom Narciso já caiu num fachonco um par de vezes, e para o pouco que pode ajudar coa carga tampouco vai ir a mata-cavalos. O Alcaide, já farto de ter que correr, sentou dum brinco na traseira do chedeiro e vai ali trás da pia fazendo de contrapeso, que como é costa abaixo não vem mal de todo. O Perfeuto segue baixando caminho do Penedo do Leão, alheio aos andares dos que vêm na traseira; leva a cabeça algo quente de tanto pensamento descontrolado que lhe traz a soidade do pinho. As suas lembranças andam aos brincos, escolhendo algo aqui e algo acolá para lho trazer à cabeça, e isto causa-lhe muito desassossego. Porquê não será capaz de ver com clareza certas cousas que pensa que lhe têm passado. Como essa imagem persistente que se lhe apresenta subitamente e não dá tirado do sentido. Vê a sua irmã com cinco ou seis anos, deitada no patamar do vizinho... acochada num saco como se fosse um cãozinho, assim ali a dormir. Ele teria então sete anos, se os tinha, e não entendia mui bem o que se passava em casa; como é que a Esperança estava ali a dormir na escada dos vizinhos? Agora enquanto puxa do pinho apercebe-se do mal que tiveram de passar de meninhos... e a pobre Esperança sempre com tanto medo... ela escondia-se quando pensava que o seu pai lhe queria bater, e depois ele fechava-lhe a porta e deixava-a fora toda a noite. E a mãe? Porquê não lhe acudia à meninha? E o Perfeuto vai lembrando como a sua mãe gostava da aguardente, e às vezes tinha-a visto deitada no escano co garrafão ao lado, parecia estar dormida mas o certo é que estava borracha. Pobre Esperancinha! —pensa agora o Perfeuto, enquanto lembra aquela vez que a sua mãe não estava, diz-se que fora visitar a um primo que andava para morrer, ou algo assim lhes disseram a eles— O caso foi que a sua mãe passou uns quantos dias fora da casa. Durante aqueles dias eles passaram muita fome, fome e medo. Houve vezes de o seu pai marchar para fora e não volver no dia, nem para o seguinte; alguns dizem que tinha uma amiga lá na Ribeira, e que aproveitava a ausência da mulher para ir onda ela. Ele quando o pai marchava, como era algo tacanho, deixavalhes tudo fechado com chave e os coitados não tinham nem um zarapulho de pão para levar à boca. Recorriam a tudo, alguma vez escondiam batatas no palheiro da erva ou no combarro da lenha, assegurando-se de que o pai não as pudesse topar, senão... Ainda assim, havia vezes nas que passavam o dia quase inteiro sem comer; em mais duma ocasião tiveram os dous meninhos que baixar caminhando até ao rio e varrer a roda do moínho para fazer umas papinhas ou uma bica do testo e não esmorecer.
     Mentes estas dolorosas lembranças andam aos pinotes na cabeça do Perfeuto, ele fecha os olhos e segue andando sem muito controlo, e não se apercebe de que se saiu da rodeira e vai polos tojos abaixo, como levado do demo, nem sequer sente as picadelas nas canelas. Dom Narciso segue pola rodeira, e tem que botar uma carreirinha aos poucos para não despistar-se dos companheiros. O Alcaide continua sentado na traseira do chedeiro, vai agarrado aos dous estadulhos de trás com ambas as mãos, e tudo lhe cumpre para não sair disparado polos brincos que dá o carreto. Desde a rodeira, o Narciso vê como a cabeça do Alcaide sobe e baixa como se se movesse aos saltos, e assim é, leva o cu como um pandeiro, mas dali não se move..., vá, que o levem! Narciso olha para o Racha-Pedras e quase se estremece, ele já se viu primeiro naquele pinho e conhece a força coa que é capaz de te manejar como um bonifrate; ele sabe da ligação coa que te jungem essas sogas invisíveis. Durante uns momentos ao Narciso vêm-lhe ganas de ir lá e botar-lhe uma mão, mas as aguilhoadas de dor que lhe chegam desde a parte das omoplatas fazem-lhe engrunhar o focinho e desistir de tal ideia. Ademais ele já o levara a sua jeira, e agora tinha que deixar andar; afinal ele não sabia bem para onde tinha que tirar, e nem sequer daria andando ao passo do Racha-Pedras. Portanto decidiu, em total conformidade coas maçaduras do seu corpo, seguir pola rodeira. Isso sim, sem tirar os olhos de acima do Perfeuto. Aquele Perfeuto alheio ao seu entorno mais imediato, olhos fechados, canelas que não sentem o sangue que sai das tantas picadelas dos tojos, sem ouvir os gemidos do Alcaide que como um mostrengo segue a ser lançado arriba e abaixo no chedeiro. Aquele Perfeuto seguia o seu andar cara ao Penedo do Leão como um meninho que não sabe ter controlo, ou que realmente não o tem. Quando chegou ao pé do penedo parou, olhou para o céu e viu a Estrelinha do Luzeiro, como se lhe quisesse piscar o olho, e sem sequer reparar se os outros vinham detrás ou não marchou-se. Os outros dous fizeram outro tanto e ali ficou a pia arrimada à base das pedras. Narciso foi o último em se marchar, em parte polo bocado que teve que andar desde a rodeira ao penedo.
     Só que aquele não era o Penedo do Leão; ao se saírem da rodeira vieram bater um pouco mais ao Leste e aqui onde chegaram não é o Leão senão as Fatigas. Se tivessem levantado a vista para a beira do penedo teriam visto um buraco na parte baixa da peneda que lá no alto assoma a jeito de solaina ou corredor. Desde abaixo aquele parece um simples furado na rocha, algo no que alguém passou o tempo, golpe vai e golpe vem na pedra. Às vezes no monte a gente, e ainda mais se anda um só e nem sequer tem com quem falar e muito menos jogar à porca, não dá passado o tempo e acode a cousas que o distraiam. Ora que se um se atreve de subir acima, e se tem o poder para o fazer, porque se precisa poder e manha para dar posto o pé do outro lado do furado, então o que vê é algo mais que um cocho que atravessa o penedo. Dizse que há tempo, quando estes montes andavam cheios de gado, os moços se dedicavam a ver quais deles eram capazes de subir e quais não; ainda estavam também os que não se atreviam de o tentar. As moças, de andar ali co gado, não se dedicavam a essas competições, ademais levando saia, tampouco parecia bem ensinar assim as pernas. Algumas seica subiam quando não havia homens por ali ao seu redor, então refuciam as saias para a cintura e brincavam polos penedos arriba.
     Quando se chega arriba, à primeira um esquece-se de olhar para o buraco, desde o alto avistam-se tantos vales e regatas e lugares... que um fica por um instante descolocado. Parece como se de súbito um estivesse noutro sítio. Depois, quando já se começam de distinguir os lindes do conhecido... ali anda A Boulhoeira, e Penalapa; por acolá fica Bande; ali o monte do Castro, e a Rousia, e o Larouco; lá em baixo anda a Límia, e... agora é quando um repara no buraco; e aí vem a surpresa que realmente desconcerta o curioso. O penedo não debalde se chama das Fatigas, quiçá pola sua feitura a jeito de carrelas ou fatigas de pão apoleiradas umas em riba das outras. O buraco está dentro do que semelha uma silhueta humana afundada na pedra do alto. A um supor, vem sendo uma marca como a que deixaria o corpo que se deitara na neve cos braços apegados, só que a marca está feita na pedra e portanto o que a lavrou fez algo mais que deitar-se na dura rocha; ora, também é mais pequena que os corpos da gente de agora. Seica diz-se que naquele lugar sacrificavam a gentes noutros tempos mais antigos, e que o buraco se fez para que por ele decorrera o sangue do que era ali cuinchado até que estinhava, e a lenda não diz mais nada. Por ter-se desviado da rodeira, os três homens amanhã terão que ir um nada de través, pois de passar polo Leão ninguém os há-de livrar.

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     Uma leda nova fez-se pública ontem nas páginas de Nuestra Región; na secção de ecos de sociedade informa-se-nos de que o senhor aquele adinheirado, sim, esse que anda a querer fazer uma obra benéfica e que se vê obrigado a demorá-la e demorá-la, pois seica topou uma moça e anda o homem mais feliz que um aparvado. Ele já fora casado mas agora, por razões que o jornal não entra a detalhar, morava só. Diz-se que até parece mais novo, para aí vinte anos, agora parece o pai da moça e não o avó, como antes. O que conta é que ele agora namorou e é feliz, e o demais são-che lérias. Desde o jornal mandam-lhes os parabéns a ele e a essa beleza que vai apegada a ele tal que uma lapa.
     Num apartado no que o jornal recolhe notícias de há cem anos, lê-se como este diário fazia público o anúncio da próxima corrida de lobos que se está a preparar lá nos montes do Zebreiro, que ficam na freguesia de Penacova, bem ao sul desta província, mesmo nos lindes do Couto Misto. Também se diz que os vizinhos de Penacova andam já a reparar em se as paredes estão prontas para a corrida; a eles o que lhes importa é que venha muita gente e liquidar a uma boa cheia de feras, que por ali não as precisam. A notícia estava escrita num castelhano ortopédico que não desmerece do que Nuestra Región usa na actualidade.

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     Aquela noite, quando se juntaram os homens da pia, olharam-se por um instante e mesmo semelhava que se quiseram botar a falar, mas não fizeram tal, e seguiram calados; calados como eles são. O Perfeuto pensou que quiçá teria gostado de dizer que sentia tê-los desviado do caminho, mas as condenadas das palavras não só não saíam senão que se tornavam para adentro e faziam-no rabear; faziam-no sentir torpe e parvo como um meninho, felizmente aquilo não durava muito. Cada vez que isto sucede ele põe-se da cor da cereja e com essa pujança colhe o pinho e arranca sem esperar por ninguém. O Narciso quis dizer que aguardara, "...que te ajudamos" mas calou; ademais cumpriam-lhe as forças para dar andado. O Alcaide, sem imutar-se, meteu uma carreirinha, e dum brinco saltou ao carro, tomara-lhe gosto a ir sentado e que o levassem. Narciso apurou o passo e foi a correr ao seu posto e arrimando o seu esfolado ombreiro fez o que pôde. Numa ocasião em que se parou o carro, Narciso aproveitou para lhe meter um empurrão ao Alcaide e botá-lo abaixo. Pilhara-o descuidado e fê-lo cair ao chão como um saco. Ergueu-se pronto e resmungando colocou-se na roda que lhe tocava. Aquele estrume polo que agora cruzavam, que havia já tempo que teria agradecido que o gadanhote o roçara, transportou ao Perfeuto a outra noite passada em que ele e outro rapaz, andariam nos treze anos, lhe entraram a roubar os coelhos a uns vizinhos da aldeia do lado. O Perfeuto, afeito a ter-se que desfazer da fome, aprendera logo a dar co jeito de topar comida. E naquela corte dos Carrascos havia mais coelhos que os que puder haver hoje na melhor granja. Eles foram-se lá de noite quando os dous velhos dormiam e arramplaram co que puderam dar apanhado, quatro coelhos polo menos bem levaram. Aqueles dous velhos, aos que a dentadura já não lhes defendia grande cousa, eram de pouca ração, e os coelhos inçavam e inçavam que não havia quem os dera controlado. Por conseguinte, quase lhes fizeram favor, porque aqueles velhos orgulhosos, que se tinham por ricos, não queriam vender o que tanto lhes sobrava. Aquela noite o Perfeutinho, como lhe chamava a sua avó, andou às apalpadelas, às escuras pola corte adiante, na procura daqueles bichos que fugiam como raios; nas mãos levou bem picadelas dos tojos, mas valer a pena... quem sabe, se calhar valeu-lhe. Agora enquanto cruza o Zebreiro e se pica nas canelas quase quer arrepender-se das mais das cousas que fez; mas já se sabe... ele era novo, e o juízo não lhe chegava... quem não ia desculpá-lo?
     Uma vez entre ele e outro, igual era o mesmo que lhe ajudou no dos coelhos, convenceram a uma velha que andava canda eles no monte co gado, de que eles tinham um remédio para curar as verrugas. A pobre da velhinha, que em inocente não tinha quem lhe ganhasse, disse que sim, que os deixava que o tentaram, porque estava já mui farta de padecer por causa daquelas verrugas que tanto lhe afeavam as mãos. Já até se oferecera ao São Bentinho. Um deles pegou na mulher para que parara enquanto o outro, trás queimar no lume um cacho duma polaina, lhe ia pingando o plástico derretido no coiro verruguento. Os berros que a mulherzinha meteu aboujaram até os penedos que os fizeram ressoar aqui e acolá, chegando até à aldeia, e diz-se que dês que ela faltou, anos mais tarde, os berros se volveram a escutar alguma vez. Às vezes o Perfeuto sente-os de noite na cama e acovilha-se coas mantas pola cabeça, mas os berros persistem e não se marcham até que se cansam. Porquê lhe tardara tanto em vir a ele o juízo? Todas as lembranças parecem desagradáveis, e ele devece por agarrar-se a algo que seja mais prazenteiro. Como aquela vez que se emborcalhara com uma moça no lameiro.
     Tudo começara como um jogo de rapazes, andar às emborcalhinhas campo abaixo. Primeiro botava-se um e depois o outro e assim iam rodando até o fundo tendo tino de não bater coa cabeça numa pedra das do caminho. Que bem o estavam a passar, riam-se como tolinhos, e a subir arriba e aos rolos outra vez para abaixo. À primeira ele aguardava a que ela chegara ao fundo para logo ele botar-se; mas pouco a pouco foi adiantando a sua saída até irem quase juntos. Tal foi assim que agora iam quase apegados e os seus corpos alguma vez se roçavam; isto começou de o acender e numa das vezes pilhou à moça por baixo e ali mesmo a forçou sem atender as suas súplicas. A verdade é que a ele custava-lhe entender como se passara tudo, ele não tinha planos de botar-se assim à rapariga, ele teria quinze anos e experiência em como aturar certos pulos, pouca, ou nenhuma. Ela era do tempo dele mas aquele dia sentira-se avelhentada, como se alguém de súpeto lhe roubara a sua infância; roubara-lha e escondera-lha para sempre num sítio secreto; um sítio ao que ela já não daria jamais chegado, o sítio onde se guardam os sonhos, um sítio para o que ela tem já o caminho borrado. E desde agora em diante terá que ver mui bem com quem anda, e velar-se mais dos homens, forem desconhecidos ou não. Quando ele rematou aquele jogo, ao que já só ele jogava, liscou de ali asinha e deixou-a só, deitada na erva à beira dos salgueiros. Este fugir a correr seguia sendo o modo de actuar do Perfeuto, liscar e não olhar para trás. Se aquela vez tivesse torcido a cabeça e mirado, teria visto como as bágoas caíam em fio polas meixelas da Ana, e talvez o sofrer dela reflectiria no dele, a modo de espelho que obriga a deixar que a luz fure pola menina do olho; e quiçá...
     Mas não, ele era teimoso naquele seu jeito de dar a volta e bulir asinha; nisso guardava parecido co jazer familiar, acovilhar o lixo que não praz contemplar e desaparecer; e acordar num sítio novo, um sítio limpo. Onde um é um desconhecido e nada nem ninguém tem a habilidade de reflectir cousa nenhuma. Ai, que bem se respira o ar que não sai das ventas das conhecias! Mágoa só é que esta ficção não dure, e sem um o querer sequer logo essa familiaridade das cousas fá-lo volver a um ao seu, volver ao rego, e não há maneira... só fugir de novo aprazará o ferro ardente nas carnes curtidas, só fugir te leva a um lugar onde tu ainda pensas que podes descobrir um eu novo, o teu eu livre, o verdadeiro. Mas o Perfeuto não planeia as suas escapadelas, não, a ele apresentam-se-lhe como a única alternativa possível, e portanto sem uma possibilidade real de eleição. Logo então para que lhe iam servir os remorsos, se ele era inocente, vítima dum capricho do destino que o maneja? Não, o Perfeuto não mirava para trás, detrás só concebe sombras, sombras e mais sombras, e as vezes os berros da velhinha à que queimaram a mão co plástico ardendo. Que bem se sentia ele quando se achegava à fria pedra da pia para escondê-la no escuro. Aquela pedra não lhe reflectia nada negro dele, e ali junto a ela não sentia os berros que o faziam tapar-se pola cabeça no leito, entrementes a sua mulher, que é algo coitada, não diz nada quando sente que ele se converteu em novelo e quiçá até ande a tremer.
     Ela cala. A Virtudes depreendeu a estar no seu sítio, a ouvir e engolir sem dizer nada. Ela sente algo de mágoa quando o vê assim, a boa mãe que leva dentro gostaria de acarinhá-lo e ao passo frear o desacougo que lhe causa o sofrimento alheio. Ela, como o resto das mulheres, foi bem ensinada para curar dos demais... com mensagens, que como agulhas, se lhe foram espetando desde pequeninha: "Cuida ali do teu irmão, que fica só... Limpa-lhe os mocos ao pequeno, que lhe chegam ao focinho... Faz-lhe a cama ao teu primo, que senão não dorme a gosto à noite... Lava-lhe o pano das mãos a teu tio, que é solteiro e não tem quem o governe... Cose-lhe as calças ao outro... Leva-lhe tantinho leite ali a tal ou qual... Vai por tantinha água fresca à fonte para que almoce teu pai"... E quando foste medrando a cousa não melhorou senão ao revés... Ir a seitura, e andar lá brigando como eles, ao limite do teu poder, depois volves à pressa para lhe ajudar à tua mãe co jantar... levar tudo à mesa, e mais servi-los, e a retirá-lo todo, e esfregar bem a louça coa água fria que primeiro hás de ir procurar à fonte... e agora corre ao poço enquanto eles botam a sesta aí na sombra da figueira; e tu ainda tens tempo de lhe pôr sabão a uma tina de roupa... e vamos, deluva bem as calças contra o lavadoiro de pedra para que amoleça... esfrega duro e bule asinha em rematar, não vês que já chama por ti tua mãe...? A correr para as leiras que a seitura já volveu começar... e tu vais e sentes-te bem porque lhe adiantaste o trabalho a tua mãe que cos pequeninhos não dá feito... e toda a tarde andas na sega e à noite volves para a casa malhada como o que mais... e volta a ajudar coa ceia... e a acomodar os porcos e as vacas... e eia, a carrejar água e lenha para amanhã, que ainda não há butano para cozinhar... e ajuda a tua mãe a deitar os pequeninhos e se ainda te sobra tempo, que não ganas, repassa essas meias que tem comesto o calcanhar... E pouco a pouco o fitar que descobre onde é que se te precisa vai-se alargando e alargando até que te excede, abrange tal que em ti não cabe... tanto, que sai de ti e se mete nos demais... e eles, conhecedores disso, tirarão dos fios invisíveis e porão em marcha a marioneta em que te tens convertido, e ti afanarás-te em cuidar de tudo e de todos e dos que estarão por vir... E vais-te vendo no que eles te devolvem, no que te manifestam,... e ti queres-lhes agradar e até te pintas os beiços de encarnado... Pensas em todos e te esqueces sempre de alguém, de ti... não tens tempo de olhar-te no espelho da tua alma e ver ao ser humano que também tu levas dentro, que sofre, que sente, o que trazes tão descuidado e que quer dizer que não,... ou que sim, ou o que lhe dê na gana... Mas a Virtudes tardará muito, demasiado, em contemplar-se neste espelho e segue sem poder ver nela nada, e cala, e segue velando na noite até que ele enfim se destapa e ronca forte. A Virtudes faz tudo o que for preciso com tal de não enraivar ao seu homem, tudo é pouco se com isso se pode evitar o peso da sua mão. Ele é muito forte, e não é que o faça por mal, que nem sequer se apercebe do sofrer dela. Ele não se apercebe de nada.
     Que novinhos casaram! Ela cumprira os dezasseis, e ele já viera de Alemanha, com aquelas cadeias de ouro que por aqui ninguém levava, alguns chamavam-lhes chocalhos polo desconforme do tamanho, e ela deixou-se engaiolar. E a cousa vai indo, e a Virtudes sempre alegre, e até sente que ele a ama, e quem sabe, talvez ele, ao seu jeito, sim que a ama e não o sabe sequer. Este homem sabe tão poucas cousas, e às vezes as que sabe nem pode exprimi-las; se alguém lhe oferecera um canistrelo de palavras que ele pudesse ir escolhendo e gastando sem temor a ficar em branco. Mas que bem se sentia ali onde a pia, muda pedra centenária que como ele ouvia e calava. Aquelas duas noites que lhes levou ir das Fatigas ao Leão fizeram-se-lhe a ele mui curtas, quiçá porque o pedaço não era mui grande, ou porque os outros ajudaram mais, ou porque... que sei eu! Ele como for, o Perfeuto encontrou-se no pé do penedo sem decatar-se do esforço que lhe custara. De aqui em diante, e até baixar a Currelo, por debaixo da Cabana, a pendente vai ir medrando e a cousa não lhe vai ser tão voluntária; mas isso não será agora, e que bem que a Estrelinha do Luzeiro aguardara a que chegaram até o Penedo do Leão para apagar-se. Agora sim, agora havia que marchar. O Perfeuto e mais o Alcaide marcharam primeiro.
     Dom Narciso, deixando-se levar polo cansaço e a tentação que lhe oferecia o sítio, sentou no chão e estirou as costas magoadas contra o penedo. A frescura da pedra fez-lhe chegar um alivio lá mui adentro, depois desfechou os olhos e viu no céu uma luz cintilante que vinha direitinha ao alto do penedo no que ele estava recostado. Trás do sobressalto inicial Narciso pensou que se tratava duma estrela que antes de que rematasse a noite ainda queria que alguém a vira botar-se. Ora Dom Narciso, como tantas outras vezes, não podia estar mais enganado. Pois ainda que ele o ignorava, aquele penedo, o do Leão, era o sítio ao que chegavam os martelos que do Castelo da Rainha Loba se lançavam. Os penedos da Rainha Loba custodiam a outra beira de Penacova, eles lá ergueitos. Se o Narciso tivesse querido, ou se sequer tivesse manifestado algo de interesse, as gentes de Penacova poder-lhe-iam ter contado... que agora já não se passava, mas que em tempos as gentes que moravam pola zona do Leste, como estavam os mais altos e de tudo se apercebiam primeiro que ninguém, quando viam que se achegava o inimigo, lançavam um martelo que ia dando voltas polo ar e atravessava todos estes vales até bater no altinho do Penedo do Leão, e deste jeito avisavam a todos os moradores do Zebreiro. As histórias não dizem nada de que os martelos se usassem para avisar do outro lado também. Semelha que os perigos vieram sempre por esse lado, o da Límia, o de...onde agora fica a Castela... e nunca polo da Raia. Como quer que fosse, o dos martelos caiu em desuso e agora já só sobe a gente lá aos penedos da Rainha Loba para ver o mundo desde o alto e para colher cacos de olas de barro escachadas polas mãos dos nossos antepassados. Pouco a pouco estas gentes que habitavam todas e cada uma destas fragas foram reduzindo os lugares onde assentavam, e de sete passaram a quatro, e logo à última juntaram-se todos no que hoje se chama Penacova. Prova disto são os nomes que ainda se usam para designar a estes montes. Há para aí três sítios distintos que recebem o nome de Cemitério, lá no meio do monte, e se ali cavas, saem os ossos dos que foram os nossos antepassados. Outro sítio chama-se a Igreja, e outro pertinho a Missa, e assim se poderia seguir até aborrecer a um santo. Ademais a estas cousas já ninguém lhes dá importância, e como ia um cura perder o seu santo tempo escutando essas parvadas? Narciso era um homem pragmático, e de martelos, por aqueles tempos, só entendia quando os via debuxados ao lado duma fouce, ou se ligava que tiver que trabalhar com eles para fazer algum arranjo na casa. Não, a Dom Narciso chegava-lhe com pensar que aquela fora uma estrela que chegara ao fim da sua viagem polo espaço celeste e que a ele lhe tocara ver a sua derradeira luz. Se Narciso tivesse sido um homem mais religioso, quiçá teria visto a silhueta dum santo que desde o céu o iluminava para lhe ensinar o bom caminho. Ora Dom Narciso era parente dos ateus, e portanto um romântico, um sonhador, e aquele dia marchou contente.

* * *

     No apartado de ecos de sociedade conta-nos Nuestra Región, como parece que o senhor adinheirado, ao que não estaria mal de todo que chamássemos Benigno, visto que outro nome não lhe temos e esse não parece casar mal coa sua pessoa, organizou uma viagem de noivos para ele e a sua amiguinha polas terras do Caribe... "Olha lá como gosta de passear o peneireiro ..." mais dum ainda há-de estourar pola inveja, como se o velho lhe tivesse a culpa. Homem, casar diz-se que não casaram por não sei que miudalho de uns papéis que ainda tem assinados coa sua mulher, Hortênsia. Polo que dizem, à rapariga tanto lhe tem casar como não... se vê que o dela é um amor cego, ou sabe Deus se não tem outras manhas para ir mungindo o velho. Ou porventura o Benigno, que parvo de tudo não há-de ser, pois mirai para aí como juntou riquezas onde outros juntaram fomes, não se acaba de fiar das intenções da mocinha e vai-lhe fazendo lérias e concessões mas sem passar polo altar, nem assentar no livro sequer, não for que depois ela se lhe marche, pois não seria a primeira vez que isso se passa. Afinal, cada um negoceia como sabe, ou co que pode. E quem não te diz a ti as cousas que eles não cavilarão para os seus adentros? O jornal manifesta o seu contento pola felicidade do senhor Benigno e só lhe magoa que não casara, e a poder ser na Igreja. E é que já se sabe que Nuestra Región lhe tem muito 'aquele' ao fulano. A que ainda vai resultar que este caráfio de Benigno lhes unta a fraldiqueira? Tanta graxa que lhe dão..., já cheira!

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     Esta noite Dom Narciso chegou em primeiro e teve tempo para reviver a sensação prazenteira que lhe deixara a noite passada, nunca antes vira ele tão próxima, nem tão intensa a luz duma estrela. Dom Narciso, apesar das suas revelações interiores, ainda não tinha achado acoito nos seus adentros mais profundos, mas semelhava-se-lhe a ele que ultimamente tinha melhores habilidades para captar a boa essência das cousas... Quando chegaram os outros dous, a um tempo ainda que por caminhos separados, ele já estava de pé direito onde a pia e preparado. O Perfeuto vinha sério tal que capador quando está coas mãos na massa. O Alcaide, como sempre, nem se sabe. Pola calada, como era o seu costume, ocuparam os seus postos, e só a voz de Narciso rompeu o cerco do silêncio: "Ânimo companheiros, que seguimos costa abaixo!" O silêncio dos outros devolveu-lhe a Narciso as suas próprias palavras. Puseram-se ao caminho, a costa abaixo era algo de bimbarreira nalgumas partes e os dous de atrás em lugar de puxar tiravam polas pontas do sedenho, e assim freavam algo a carga, não fosse esmagar ao de diante. Ali seguia o Perfeuto, tratando de manter a calma entrementes se lhe vinha o mundo em cima. Igualzinho que sentira quando chegara à Alemanha, sendo ele já rapazolo. Daquela, sofrera polo silêncio que amuralhavam todas aquelas palavras em língua estranha. Ele estava afeito aos falares da sua língua conhecida, que quando lhe entrava nos miolos não maçava como sim o faziam aquelas palavras alemãs. Por sorte aquela estadia durara só uns anos, não muitos, ora que a ele lhe pareceram bem longos. De ali foram a Barcelona e aquilo era outra cousa. Ele seguia sem entender as palavras, mas as melodias do catalão eram-che menos estranhas e não lhe faziam estourar a cabeça.
     O da Alemanha fora muito, ele ainda hoje recorda com terror quando a polícia quase deteve ao seu pai porque o amo dera queixas dele. O seu pai trabalhava numa fábrica de não sei que cousa, ele com dizer-te que quando entravam à manhã pola porta, ainda que fosse no inverno, já se tinham que despir aí mesmo e a suor já lhes começava a cair, era-vos demais, saíam de ali derretidos, não me estranha que todos morreram novos. Ele como quer que fosse o dono daqueles fornos deu conta do Hermínio. A cousa se passou durante um fim-de-semana em que o Hermínio andava a trabalhar nos jardins da casa do seu chefe, como a cotio fazia. E vá casaria que tinha o amo daquela fábrica, só de terreno ao redor poder-se-iam sementar mais de três tegas de pão se o lavrassem, que não era esse o proveito que lhe tiravam. Eles tinham-no todo coberto de erva, e com plantinhas agarradas ao chão perto da casa, e outras mais grandes por aqui e por acolá, e árvores de muitas classes. O pai do Perfeuto cuidava de toda aquela vida nos fins-de-semana: segava a erva e empacava-a com uma máquina pequeninha, apanhava as folhas e metia-as em sacos de papel que tinham folhinhas debuxadas por fora, decotava as árvores quando lhe mandavam... e assim o Hermínio apanhava algo mais de paga. O mau veio quando apanhou mais do que lhe era dado. E não é que ele roubasse ao amo, polo menos na casa não o fazia, ainda que tivesse a falta, que a tinha, não ia ser tão parvo. Não, o que a ele o perdeu foi arrepanhar uns coelhinhos que por ali passeavam. Como ia o homem saber que aos da casa não lhes incomodava que lhe pasceram no seu campo, e lho deixassem todo lixoso... tanto como eles gostavam da limpeza? Até pensou que lhe faria favor se lhos caçava. E que maneira de lho pagar, botando-lhe a polícia, que quase lhe houve de custar um desgosto! Foi assim deste jeito como aprendeu que aqueles coelhos, ainda que não fossem de ninguém, deviam ser respeitados. E ainda por sorte quando chegou a polícia estava ali um de Mogueimes, um tal Servando, que sabia algo de alemão, e foi o que lhe valeu, que senão co balbuciamento de espanhol dos polícias alemães e mais o do Hermínio, quem sabe a que se armaria. Pois claro, contudo e isso, o pai do Perfeuto ficou sem trabalho e uma vez mais encheram as malas co enxoval e meteram-se num autocarro rumo a Barcelona. Todos tão contentes, ali tão sequer poderiam caçar coelhos. Enquanto empurrava na pia o Perfeuto lembrou os muitos coelhos que ele pilhara naqueles montes de Penacova enquanto teve ali a canteira. Apanhou quantos pôde, e assim desquitou-se polos que não pôde papar por culpa dos alemães. Sempre a culpa há-de ser de alguém; grande como o demo e mais não tem quem a queira de gana. Por certo o Perfeuto não sentia nenhuma atracção por ela; e isso que ele fizera das dele, e tinha motivos para querê-la. No dos coelhos fez alguma que outra falcatrua. Por exemplo, ele não diferenciava entre tempo de caça ou de veda, para ele era tudo o mesmo. Ele andava por aqueles montes das fraldas da Rainha Loba e apanhava quanto coelhinho havia. Punha laços a moreias, ainda que estivesse proibido, para ele não o estava. Metia o furão nas toqueiras para que botara ao coelho para fora, e depois com um saco esperava-o na boca da entrada para que se metesse no fardel, e a golpes contra o penedo o matava. Cos laços pilhou teixugos, raposos, javalis, e tudo o que cair neles; a ele tanto lhe tinha com tal de ver algo ali atrapado à manhã. E agora enquanto se acorda disso parece que sente como um amargor na gorja, não gosta de sentir isso e cospe, e o amargor converte-se em carraspeira que se estende por toda a goela e obriga-o a tossir, mas nada, aquilo segue ali. Felizmente a Estrelinha do Luzeiro resgatou-o de ter que seguir a pensar. Chegaram quase a Currelo, mesmo à beira do caminho que une Penacova e Gomesende. Desde este ponto pode-se já adivinhar lá no pé do Laspedo a Fonte de Requeijo, aquele é o seu próximo destino. Não semelha longe já, ainda que eles ignoram o sítio, terão tempo avondo para chegarem antes de que se esgote o que lhes resta de lua. Marcharam, ora primeiro de partir, o Perfeuto tossiu e tossiu, e quase trousa ali a figadeira. O Alcaide já colhera o caminho, e o Narciso demorou-se ali um nada, quedo, afincado na parede dum lameiro; olhou um pedaço para o céu mas vendo que não vinha nenhuma luz a o despedir marchou, marchou co seu andar devagar.

* * *

...Quando os dous agentes, logo de deixar à tia Maria coas suas verças, foram rua abaixo para o meio do lugar, toparam-se com um moço que levava um sacho no ombreiro. Sem saber se vem ou vai, eles achegaram-se a ele e, como sempre, foi o mais velho o que encetou a conversa.
     —Bons dias rapaz, para onde vais?
     —Bons dias... vou pra aí!
     Polo tom do rapaz deduziram que a ele não lhe amargava a conversa. E estavam no certo, em particular quando a conversa era com gentes que vieram de fora da contorna; e eles semelhavam de muito mais acolá.
     —Refiro-me a que se vais a trabalhar para algum lado.
     —Homem, se lhe parece o sacho levo-o assim de atavio no ombreiro... que pergunta...! E ademais, quem o quer saber?
     —Nós vimos de Ourense e andamos tratando de esclarecer um assunto relacionado com uma pia que houve noutrora neste lugar...
     O rapaz sorriu como pensando "olha os chalados estes", afincou o sacho no chão enquanto espreitava o que os outros falavam, depois disse:
     —Olhem que se se vão fiar do que dizem que houve em tempos neste lugar, vão vocês arranjados...! vão, ho, digo-lho eu!
     —Homem, não digo eu que vá crer o que possam dizer as histórias populares, mas o da pia não é conto nenhum, que para isso estão os papéis que registram o feito.
     —Os papéis? Pois vá, como se os papéis soubessem o que vai neles. Se vamos a isso também logo há que crer que o Senhor Santiago andou montado no seu cavalo polos penedos da Rainha Loba adiante matando mouros.
     —Homem...! Não me irás tu comparar uma lenda, ainda que eu disto que dizes nunca ouvi nada, com um feito histórico constatável.
     —Eu não lhe sei mui bem de feitos constatáveis, mas se quer provas suba você ao Castelo da Rainha Loba e veja cos seus próprios olhos as marcas das pegadas do cavalo polas rochas arriba.
     —Homem! Não me quererás tu dizer que crês que o cavalo pôde deixar as pegadas marcadas na rocha?
     —Mas... por quem me toma? Como lhe vou eu dizer isso, nem que fosse um parvo! Eu não creio nada de nada, se não me engano são vocês os que andam a indagar sobre alguma dessas trapalhadas.
     O agente que levava a carga daquela conversa começava a mostrar acenos de impaciência. Não podia ser, uma vez mais estava indo a cousa rumo a nenhures e àquelas horas da manhã já pouca gente, quem não andara no seu labor, poderiam topar. Aquele rapaz parecia não devecer por marchar a onde é que fosse, e mesmo semelhava que gostava daquela visita dos forasteiros. Ele sempre ali enterrado na aldeia cos de sempre, tanto quanto ele gostava da gente que souber falar doutros mundos,... mas estes dous pareciam meio parvos, mira que andar interessando-se por essas cousas do passado!
     —Mira rapaz, tu és novo e não aprendeste ainda a ver com clareza a diferença que há entre as lendas propriamente ditas e os feitos históricos.
     —Pois porquê não mo explica você, que parece estar bem informado?
     —Mira, uma lenda é um dito popular que a gente repete e repete de geração em geração, mas sem que exista nada que demostre que isso se passara de verdade, entendes...?
     —Percebo.
     —...E um feito histórico é uma cousa que aconteceu, talvez há também muitos anos, da que temos uma prova irrefutável que demostra que se passou de verdade; compreendes? Vês agora a diferença?
     —Dou-me conta, mas não sei se colhi bem a diferença. Vejamos: segundo você, ante um feito que ocorreu, passar o tempo que passar desde então, se o que assim o viu ocorrer o escreveu num papel, é que a cousa foi certa e se passou de verdade; ora, se o que fez foi gravá-lo numa pedra então é que não foi certo, e pode tê-lo inventado; não sim?
     —Pois vá que tens tu uma maneira estranha de misturar as cousas. Mira, não tem nada que ver uma cousa coa outra; podes crer-me porque é assim, digo-cho eu.
     —Eu poderia crê-lo, mas só porque você o diz, que parece que algo sabe, e tão sequer não é de por aqui; mas se tanto sabe, porquê lhe preocupam parvalhadas sobre uma pia da que por certo eu não ouvi falar na minha vida, e bem pudesse ser uma lenda como a do Senhor Santiago? Quem lhe diz a você que o da pia não é inventado? Porque a mim, se lhe hei-de dizer a verdade, não me lembra nada.
     Naquele momento o detective fez um cálculo rápido e decatou-se de que sem dúvida a pia fora sacada da igreja de Penacova anos antes de nascer aquele rapaz. E que seguramente ele já recebera as águas baptismais na nova. Que era uma pia distinta; mas desta nova cunca, com base de ferros negros e rodinhas, que devem de ser de adorno pois no chão de lousas não roucham, não sabia muito o detective, já que jamais a tinha visto; quando eles olharam desde o átrio para adentro polas vidraças não a viram; claro, co pequena e pouca cousa que é, não é milagre. O que sim imaginaram, e com razão, é que ali haveria, em vez da original, uma pia substituta, por ruim que puder ser. Porque tampouco era o caso que por causa da avarenta natureza dos abades se fosse deixar à gentinha sem baptizar ou sem poder molhar os dedos para fazer o por-la-señal. Mas o detective não sabia como era esta substituta; não sabia da sua cor gris e esbrancujada, como parida polo cimento e mais a areia, o que amiúde faz parecer que a água se enlourara, tingindo-se duma cor arruelada, e daquela à gente dá-lhe reparo meter ali a mão, por mui bendita que for... Para a água como a pedra não há, Deus sabe que fazem um matrimónio perfeito, mas aqui veio um cura e divorciou-as. Mas este moço novo que nem sequer recebera as águas baptismais na pia de pedra, não sabia nada do assunto e tampouco se importava. É como se a água suja que lhe botaram pola cabeça abaixo o dia do seu baptizado lhe enturvara o sentido que lhe teria de vir. Ele já fora ensinado a valorar cousas que valham de verdade. Ele sabe mui bem o que quer e até diz-se que já sabe onde procurá-lo. Qualquer dia colhe a mala e não volve até que o possa fazer como é devido... com um bom carro, bem equipado com aparelho musical, roupas de marca... e o que mandar a moda no momento. Ora que ele já sabe onde ir procurar tudo isso. Tem um irmão em Barcelona, que leva lá já bem anos, e se quadra vai parar onde ele; ou senão vai para Canárias, que seica se ganha bem. Este moço novo só aguarda o momento de partir, mas a paciência já não lhe aguardou, essa foi-se-lhe há anos...
     A gente daqui vê como os seus filhos, passada a primeira infância, lhe são roubados sem poderem eles fazer nada, nada mais que deixá-los marchar cos seus amos e calar. Dentro de pouco, este colherá os seus sonhos e quiçá saia voando. Cambiará o sacho pola pá e a erva polo cimento, e pouco a pouco irá conquistando essas cousinhas que agora tanto anseia possuir. E quiçá algum dia regresse à sua terra, e construirá uma casa. Levantará mui asinha as paredes com tijolos e cimento, esquecendo-se da pedra já para sempre... Mas para isto faltam anos e ele agora tem de ir sachar nas batatas que o que é de Deus não o há-de levar o Demo.
     —Tu és mui novo, rapaz, e ainda che falta muito por aprender, mas a nós já se nos fez tarde e temos que pensar em irmo-nos indo. Ademais, tu não vais a algures com esse sacho?
     —A que algures hei-de ir, ó? A nenhures é a onde se pode ir aqui, que isto não vale nada.
     A olhada do rapaz parecia caída no chão, perto donde afincara o sacho desde o começo da conversa; mas ele não olhava ao chão, nem tão sequer o via, ele mirava longe, mui longe, tão longe que a sua olhada se perdia. Os dous agentes despediram-se dele e marcharam de volta para o seu carro. Ambos os homens foram andando devagar e calados. Calados mas dizendo as cousas coas caras para os que com eles se cruzaram. Ninguém se cruzou. O mais velho levava um gesto que era a mistura da sua contrariedade e a mágoa; algo ambígua lhe resultaria a quem lha vira. Na cara do mais novo, Riba, que poucos mais anos tinha que o rapaz que acabavam de deixar, podia-se ver a dor do que sente o sofrer dum irmão e não lhe pode valer; também há nessa cara um assomo de esperança como emanado dum conhecimento prévio, do conhecimento do que sabe que as cousas podem ser diferentes... Riba não perde a esperança para esta terra, que tão bonita, ainda que estranha, lhe parece.
     O rapaz colhera o sacho e com ele ao ombreiro marchara para... por aí.

* * *

      Narciso seguia sendo o primeiro em chegar cada noite onde a pia, não se sabe se polo desacougo que lhe trouxera a primavera ou porque anda o homem buscando novas luzes ao amparo da escuridão e a soidade. Ele quando os outros chegam, no meio da noite negra, o Narciso já leva ali um bom bocado. Estas últimas jornadas têm sido algo monótonas; de quitado esse tossir que se lhe pôs a Perfeuto na gorja, e que parece não ter pressa de se lhe ir, tudo segue com normalidade. Os vales que andam a atravessar mostram, apesar da escuridão que obriga a adivinhar, uma beleza que reborda por onde quer... tudo florido e coberto duma erva que dá cem nomes à cor verde. Mágoa destas touças de Penacereija que se tornaram de cor preta; quando os homens saíram para fora das carvalheiras olharam-se as mãos riscadas polos tições ardidos, e vendo o cómicos que estavam quase lhes houvera de dar o riso se não lho congelara na face o saber que esses riscos eram o sinal da morte que o lume segara havia poucas semanas. Quem seria o bruto que foi capaz de atentar contra tanta beleza, trocando-a em luto poeirento e cinza.
     Dom Narciso odiava esta atitude arrasadora que tinham alguns homens; ele estava bem certo de que eram homens os que prendiam o lume. Ele não dava imaginado, por mais que o tentasse, a uma mulher causando tanta destruição. Para ele estes seres, jungidos mais rente à terra, vinculados a ela pola sua própria realidade cíclica, possuíam uma maior capacidade para suportar pacientemente as incomodidades e a lentidão que impõe a natureza e, por certo, não as via capazes de semelhante violência. E quem sabe? Porventura não lhe falta razão; mas para que serve esta análise, seja certa ou falsa?
     O Perfeuto também anda a pensar por culpa dos tições, ora, as suas cavilações são bem outras. E como não o hão-de ser se aquela vez quase perde o carro por causa do lume...? E que mais tem quem o plantara! Ele precisava despejar os arredores daqueles penedos para poder rachar a pedra. O lume à pedra não lhe faz mal, pois logo quem vai andar levando trabalho a cortar nas carvalheiras e roçar o monte baixo que tanto abunda. Um fósforo faz o trabalho da limpa e depois ele racha a pedra. Sim, o Perfeuto usava com frequência o método da mecha e sempre lhe tinha dado bons resultados até aquele dia no que quase lhe custou um desgosto. Ele, como sempre, punha o lume quando tinha a canteira parada e assim ninguém lhe podia botar as culpas ainda que soubessem bem que fora ele ... "Este lume foi prendido o domingo quando nós não estávamos aqui e por pouco nos arde o compressor, que não é o mesmo..." Alguma vez incluso deixavam que lhes ardesse alguma ferramenta que já não servia ou algum outro ferrancho para dissimular. E claro, a situação ia-se pondo cada vez mais negra, mas ninguém vira nunca cos seus olhos próprios ao Perfeuto co fósforo na rascadeira. Ora, que aquele dia que o lume se larejara tão asinha, houve de o assar como uma sardinha dentro da lata. Ele, para que ninguém o pudesse olhar desde a aldeia, escondia o automóvel arrimando-o bem dentro da rodeira entre a folhatada, e depois subia monte arriba para soltar a chispa. Depois baixava a escape e tinha tempo e tempo para marchar pola pista que sobe para Chão-de-Lamas sem que ninguém lhe pudesse seguir o rastro. Sempre lhe tinha saído o plano à perfeição, mas aquela vez ao raio do fotingo deu-se-lhe por não querer acender, e ele volta que dá-lhe, e o ar que ia achegando o bruar da labareda. Ele começa de se pôr nervoso e olha lá para arriba e vê que as chamas galopam mui à pressa; e ainda que andam retiradas já se começam de sentir os estalos da madeira que se retorce ao ser abrasada. Também se podem já ver pássaros que vão daqui para acolá, magoados por não poder levar nos seus voares as crias pequerrechas do ninho... E ele ali atrapado na folhagem enquanto o inferno anda a baixar. Blasfema como ninguém podia fazê-lo, da sua boca saem palavras que mesmo se poderia dizer que botam lume, mas de nada lhe servem. Não, ele não podia deixar que lhe ardera assim o auto e ainda por riba que se riram e o descobriram; portanto, como um animal rabioso empurrou e empurrou, e coa ajuda do terreno deu separado o veículo dos carvalhetes que estavam destinados às chamas; depois, já no caminho de terra batida, como havia algo de pendente, pôde arrancar o motor sem ter de usar a bateria, que parecia ser a fonte do problema. O Perfeuto liscou dali como um foguete e diz-se que aquela vez aprendeu a sua lição e que nunca mais deixou o carro perto do lume. Ora bem, do lume seguiu fazendo uso, ele não vê nada mau em beneficiar-se duma técnica de limpa que não lhe custa dinheiro nem lhe dá muito trabalho. Mesmo agora, se não fosse porque não vai só, e ademais não está mui seguro de rumo a onde teria que empontar as chamas, já teria usado o seu isqueiro por estes montes. Enquanto anda ele com estas incendiárias lembranças, trata de se acordar de qual foi a última vez que pôs lume. Dês que fechou a canteira já não precisa usar este método para abrir-se caminho, e disto há já uns aninhos, polo que não dá encontrado o que busca na sua saturada cabeça. Com esses pensamentos traz o homem os miolos quentes e não se apercebe de que andam já pola Veiga fora; atrás, pola esquerda, ficou Guriz, e já estão no pedaço do cabo para chegar à Fonte de Requeijo. Quando quis acordar, já estava ali ao pé mesmo do pipel de pedra.
     O primeiro foi apagar a sede que levava e mais ver, enviando os golos com força, se isso que lhe fazia tossir se lhe tirava duma vez da gorja; ora por mais que bebeu o pruício seguiu no seu sítio. Os outros dous homens molharam também um nada e cumprindo o mandato deram água à fartura à sedenta pedra. Que bem sabia aquela água! E com aquele deleite cristalino ali ficaram quedos co seu silêncio. Dom Narciso espreitava o som da água que bulia rego abaixo para ir ao encontro do regueiro que a há-de ir ajudando na sua travessia para o mar. O Perfeuto seguia co seu pensamento posto nos lumes que ele plantara, não acertava com adivinhar qual fora o último monte que fizera desaparecer, ou transformar de verde a preto. Cos dedos ia o homem contando lumes, como seguindo uma ordem cronológica guiada pola sua pobre memória, mas nada, acabaram-se-lhe os dedos e não dá encadilhado à resposta que busca. Enfastiado polo desacougo que lhe causava não poder lembrar, marchou sem despedir-se. Ninguém se surpreendeu. O Alcaide fez outro tanto. Dom Narciso ficou só e em silêncio por uns instantes, depois marchou a modinho e olhando para o céu.

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     No apartado de notícias de há cem anos, recolhe-se hoje em Nuestra Región o da corrida de lobos que se mencionara com anterioridade e que teve lugar o sábado e por certo seica foi um êxito completo. Mais de quinze lobos caíram no buraco, polo que a festa foi a rachar.
     Depois de encarar as animálias para o fojo e obrigá-las a saltar para que fossem topar a morte lá no fundo do buraco, toda a gente baixou para a aldeia e a troula continuou até bem entrada a noite. Ora, como cabia esperar, sobre isto Nuestra Región não oferecia informação, nem comentário. A gente, tanto a da aldeia, quanto a que viera de fora, baixou para o lugar a montar a foliada. A maior parte do tempo passaram-na na corte onde guarda o tio Manuel o boi. É um boi manso, e passa todo o tempo deitado lá num recanto remoendo ou comendo na erva que lhe sobrou no presel; de vez em quando olha para aos bailarins e segue no seu pacífico jazer. A gente dançou ao ritmo dos mesmos instrumentos que horas antes usaram para escorrentar as feras. Toda a gente gozou e se divertiu quanto quis. Houve alguma que levou a roca para dissimular a sua presença na corte, mas ali ninguém fiou.

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