As Sete Fontes

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Capítulo V: A Fonte do Galo

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     Quando Perfeuto se sentiu um pouco recuperado saiu do seu acocho, pôs-se de pé e marchou por um caminho que passava por longe donde ficara a pia. Os dous companheiros compreenderam que ele não lhes ajudaria mais aquela noite, assim que desceram e foram cumprir co ritual de dar de beber e mais beber eles. Aquela fonte nascia no meio dum chão cheio de cachos de pedra. Tanto Dom Narciso como o Alcaide pensaram que aquela fonte estava bem descuidada, ou melhor dito esnaquiçada; acordaram-se de que o Perfeuto lhes dissera à primeira que ele tivera ali uma canteira, e aos dous se lhes veio à cabeça se ele teria algo que ver com aquela desfeita, e se isso explicaria a sua fugida nada mais acercar-se ao lugar. Sabendo que não poderiam satisfazer a sua curiosidade, pois a ver quem é capaz de fazer falar ao Racha-Pedras, esconderam a pia e marcharam cada um por seu sítio.
     Dom Narciso, enquanto caminhava, ia pensando no que se passara enquanto estavam lá em riba no alto do Castelo da Rainha Loba. No do cabelo dourado não quis pensar mais porque cuidava que era fruto da falta de sono ou do seu sentidinho, que às vezes colhia para onde não devia. Mas além disso, a ele parecera-lhe ver um cavalo subindo polos penedos arriba, e isso ainda que pareça difícil não é impossível, pois toda a gente sabe que esses animais podem subir escadas e alpendres bem inacessíveis. Por conseguinte a imagem, que ademais durara pouco, não lhe parecera desatinada de todo; polo menos não até que viu como cavalo e cavaleiro com espada, logo de chegar ao ponto mais alto do penedo, desapareceram como por arte de magia. Narciso achegou-se àquela rocha para comprovar se polo lado de atrás, como ele pensava, lhes seria fácil baixar e esfumar-se tão asinha como o fizeram..., nem que os sumisse uma bruxa! Portanto arrimouse à rocha e até trepou por ela pisando polas marcas que sobem derredor a jeito de escada. Desde arriba pôde ver que o único sítio polo que se podia aceder ao alto da rocha, e baixar dela, era por onde ele acabava de escalar; qualquer outro acesso era, para qualquer animal, fora os pássaros, impossível. Por conseguinte a desaparição do cavaleiro e mais do seu cavalo eram um mistério. E quando já ia baixando e descartando a imagem como absurda e irreal, tudo uma ilusão, descobriu que o cavalo deixara na rocha as suas pegadas, pois logo não fora um sonho...! "Mas que estou a pensar... as pegadas na pedra...!" "Pois tampouco há de que se estranhar" diriam os de Penacova; toda a gente é sabida que o Santiago do Cavalo Branco subia e andava polos penedos adiante a perseguir e matar mouros. Isto, que a Narciso lhe parecia impossível, não era conto nenhum para os vizinhos de Penacova, que todos desde mui pequenos sobem ao alto de quando em vez para apalpar as pegadas com forma de ferradura que seguem a dar fé da sua história. Ora, não se atrevem a ir contando-o por aí a qualquer; ademais... "isso se passou antigamente" frase esta que serve para referir-se tanto ao que aconteceu nos tempos do reinado da Rainha Loba, como ao que aconteceu na infância dos habitantes de mais de sessenta anos.
     O forasteiro, com um sorriso de ironia nos beiços, caminha pola aldeia pensando que estas gentes têm que ser bem ignorantes para se referir a um tempo tão recente co qualificativo de "antigo" O forasteiro gaba-se da sua superior formação intelectual que lhe permite estabelecer essa diferença. O que o forasteiro não conhece, ou quiçá sabe mas não entende, é que desde esse "antigamente" ainda que só passaram cinquenta e tantos anos, passaram vários séculos de História. Nesse curto espaço temporal produziram-se tais mudanças, e a tal velocidade, que o tempo não se pode já medir de jeito tão simples como faz o forasteiro. E mais não é preciso aludir à Teoria da Relatividade para o entender; baste-nos um simples exemplo que mostre o desenfreio do ritmo de tal mudança; isto é: a transformação do arado de pau, também chamado romano, no arado vertedeira do tractor.
     Escusado é dizer que Dom Narciso não era conhecedor da realidade histórica, ou fantástica, depende onde se queira pôr o acento, de Penacova, e agora estava a pagar por isso; por conseguinte, temendo-se que aquilo ia de mal a pior, afastou-se da rocha e volveu ao campinho onde estavam os outros dous para aguardar que o Perfeuto ressuscitasse. O Alcaide estava adormecido à beira dum piorno e Narciso deitou-se olhando para o céu; e numa dessas viu que uma luz saía do alto do castelo e se ia cruzando o amplo pano estrelado caminho do Zebreiro onde desapareceu. Aquela visita fez mui feliz a Narciso, que cuidou que se tratava da sua amiga que afinal ainda andava polo espaço celeste e viera-o saudar de novo. Na verdade, aquela noite a sua estrela fizera uma travessia mui estranha; apesar de que as suas noções de física não iam muito mais lá da Lei da Gravidade, Narciso intuía que aquilo não podia ser tal; como podia uma estrela viajar tanto espaço em tão pouco tempo? Ademais, primeiro subiu mui alto e depois foi baixando mais a modo. Aquilo, somado ao do cavalo, confundira-o tanto que fechou os olhos e escutou em silêncio, e então ouviu cousas, mas tampouco fez caso. Como ia ele dar creto aos berros duma cabra ali no meio do monte...? De noite, e com tantos lobos quantos sempre tem havido... Não podia ser, não podia ser. As gentes de Penacova não falavam muito da cabrinha de ouro, e não porque pensaram que era uma história ridícula, senão porque todos e cada um deles mantinha a secreta ambição de topá-la e fazer-se rico... "E tu que farias se a encontrasses...? Sabes que há-de ser entregue a um museu..." "Homem, pois eu —os pequenos sempre com soluções à mão— meteria-a numa saca e pensariam que levava batatas" Mas Narciso não conhecia das grandes aspirações dos vizinhos da pequena Penacova, e tentou pensar noutra cousa para aboujar os berros do animal e nem sequer abriu os olhos para comprovar se havia tal chiba ou era outra dessas alucinações que emanavam do ar daquele estranho lugar. Aquilo não podia ser, não podia. E deste jeito também evitou ter que ser testemunha da chegada dos de Pexeirós. Os de Pexeirós subiram até ao alto do castelo para matar a Rainha Loba. Aqueles eram vales ricos mas à faminta rainha nada lhe chegava e cada dia tinha que comer uma vaca; e até ao alto tinham que levar-lha; só que os de Pexeirós aquela vez levaram-lhe a morte, e assim o refere o cantar:

Matastes a Rainha Loba
Fidalgos de Pexeirós
Matastes a Rainha Loba
Fidalgos ficastes vós

     E esta é a razão pola que os de Pexeirós ficaram livres da paga do conde. Todos os demais tiveram que a pagar até não há muito... perto de há cem anos; ora bem, os de Pexeirós não volveram soltar um real. E logo quem raios serão esses de Pexeirós? E eu que sei, serão os de Ameixinhas... Mas Narciso ignorava também aquela história, o que o fazia vulnerável, não por ignorá-la, senão por não pertencer à comunidade que lhe daria sentido, e não lhe ficou outra que fechar os olhos e ao mesmo tempo evitar ver aquela ringleira de vacas, todas ruivas elas e galhadas, que subiam polo lado dos campos arriba. Eram as vacas que ao longo dos tempos foram subindo para ser devoradas pola Rainha Loba. Mais tarde, enquanto caminha de volta para as obrigas, no seu caso são pequenas ainda que não fáceis de aturar, que lhe traz a luz do dia, Narciso não pára de cavilar naquela luz prateada que navegara todo o céu aquela noite; não podia ser, não podia ser... e tentou todo o dia esquecer-se do assunto.
     Quando à noite seguinte chegou à Fonte do Galo, onde deixaram a pia, fez tudo o possível por não olhar para o céu. Narciso já não podia confiar no que lhe diziam os seus sentidos; e ele não estava ao tanto do brilho prateado que podem soltar os martelos, enquanto dão voltas polo ar até chegar ao alto do Penedo do Leão para avisar aos compatriotas da presença de intrusos nos seus domínios. Só lhe ficava não olhar para nenhures enquanto aguardava; e assim fez. Depois dum bocado sentiu pegadas que se achegavam a ele; era o Alcaide, a cotio o derradeiro em chegar; miraram um para o outro e escusaram-se as palavras, sabiam que era cousa deles dous tirar a pia daquela fonte que parecia, apesar das suas frias águas, ter escaldado ao Perfeuto. Cumprindo co ritual de apagar a sede da pia deram-lhe de beber por última vez naquele triste manancial e puseram-se ao caminho. O Alcaide, sem dizer nada, agarrou-se ao pinho, ali era terra chã e não parecia que fosse difícil guiar aquele carro. Dom Narciso colocou-se na roda esquerda como era o seu costume ultimamente, e começaram a chouchar para onde as estrelas lhes indicavam o caminho. A poucos metros donde estava a Fonte do Galo, que se identificava pola presença de cachotes de granito espalhados por ali adiante sobre um terreno lamacento que no meio formava uma poceca, apareceu o Perfeuto. Saiu de detrás dumas gestas floridas. Encolhido, coa olhada no chão, e sem dizer nada, foi-se colocar detrás da roda que ficava livre. Naquele instante Narciso sentiu uma grande ternura para o seu companheiro e olhando-o por debaixo da copa da pia disse-lhe num tom que a Perfeuto lhe transmitiu tranquilidade e mesmo o arrolou como a um neno no berço: "Um dia chegaremos a ser nós outra vez". Mal rematou aquela frase que saíra quase ela soa pola sua boca, Narciso pôs-se a analisar o seu conteúdo e pensou que lhe teria que ter dito outra cousa, que aquilo que lhe saíra polos beiços parecia raro... chegar a ser nós outra vez... que raios andaria pola sua cabeça? Horamá abrira a boca, oxalá não tivera dito nada ou tivera pensado em que dizer antes de falar; agora já era tarde para mudá-lo. Contudo, a Perfeuto tanto lhe tinha o que quiseram dizer as palavras juntas ou por separado; ele abraçara a música que lhe levavam e sentira-se por primeira vez irmanado co cura.
     Na dianteira o Alcaide sentia o peso da soidade que como uma névoa vasta sempre anda ali diante; agora entendia a escravitude do pinho, na roda, se te vês mui apurado ainda podes endireitar um nada as costas, mas o pinho não se deixa soltar assim como assim. Que pouco gostava ele de que o jungissem tão apertado! Ele não é que ele fosse amigo de não fazer alianças, que as fazia, mas reservando-se sempre o direito de poder rachá-las ou safar-se delas. Ele sempre foi claro com isso, e ninguém poderia dizer que ele era um mau governante. Ele nascera para político, já o diziam em casa... "Este vai-che-nos sair ministro... olhai pra aí a manha que tem para livrar-se do trabalho!" Sim, era certo que ele sempre convencia à sua mãe para que lhe deixasse escolher tanto à hora do trabalho como na mesa. "Assim leva as boas talhadas, não é burro não, o condenado". Mal teve idade convenceu a seu pai para que movesse tudo o que havia que mover, e coa ajuda do abade, o fizessem alcaide. E assim foi, mal rematara o serviço militar e já tinha a vara do mando. Mui contente estava ele, e que feliz fez à sua mãe, e ao pai encheu-o de orgulho. Ele seria um bom governante e ao mesmo tempo levaria a sua talhada. Ainda agora se acorda de quando asfaltou a primeira estrada,... "Bota fino o chapapote que o que há dá-se bem gasto" E o contratista fazia-lhe caso e apertava a bilha do alcatrão para que rendera mais; havia que ter contente ao Alcaide, que senão a próxima obra se quadra não lha dava. E assim a estrada ficara igual de bonita, só um bocadinho mais delgada. E o peto do Alcaide, ao que por aquele então ainda não chamavam Rebenta-Ruas, medrava. Ele não é que quisesse roubar ao Concelho, não, não, livre-o Deus. Sucedia que ele era tão bom administrador que sempre lhe sobrava, e claro, depois já não podia volver a investir o já gastado, e tinha de ficar com ele. E certo é que um concelho como o de Os Mouros precisa ter um alcaide que não vá por aí parecendo mal; isso, compraria boas roupas, que vestir bem é parte do seu trabalho. Ele ia por aí adiante representando ao concelho e tinha que ir elegante. Homem..., o que sobrara da estrada era algo muito para o meter em trajes! E se fizera uma granja...? Um bom alcaide tem que saber de negócios... e que melhor jeito de aprender que montar um negocio próprio? Assim demostrará a todos o empreendedor que é, e renovar-lhe-ão o cargo.
     Com nostalgia lembrava ele agora aquela época em que só tinha que convencer aos de arriba para que o deixassem seguir sendo alcaide. Que bem se estava sem essa trangalhada das eleições! E o caras que lhe saíam... Nos seus começos tudo fora como a seda, nem se tinha que preocupar por esses indivíduos de barbas que depois mais adiante lhe começaram a fazer a vida impossível. Barbudos e mulheres, não queres caldo... duas cuncas. Ai, mas para que se queria ele lembrar dessa parte dos barbudos e das da saia, que por certo não gastavam? Ele queria que só se tivesse gravado na sua cabeça aquela primeira época do seu mandato, quando ele ordenava e mandava com total liberdade, essa sim que era maioria absoluta. E mira que lhe durou anos, os mesmos que lhe durara a granja..., não, que a granja ainda lhe dura, embora a traga trespassada. Que doce lembrança a daquela estrada tão negrinha como o pez! Mágoa que por culpa dos camiões da pedra que baixam de Penacova se enchesse toda de buracos. E que culpa ia ter o alcaide de que se fizera uma canteira lá no alto? Ele só lhes dera a permissão requerida. E claro, ei-los a pedir que lha governasse... esta gente não entende de orçamentos fechados! E ele bem que lho explica a quem o quisser saber. Mas eles, venha que dá-lhe coa devandita estrada, e ao final teve que acabar solicitando um orçamento novo e arranjar-lha. Olha que não lhe chegava bem como estava... de terra batida lha tinha que ter deixado, como esta pola que andam hoje eles e a pia, e nem conta se dariam. Quanto mais lhe dão mais pedem, é o conto de nunca acabar, e agora com isso da liberdade e de tantas trapalhadas a alguns subiram-se-lhe os fumos à cabeça.
     Com estes monólogos do pensar andava o Alcaide entretido e não lhe rendera tanto a jornada como em dias passados. Isso fez-lhe sentir-se mui bem consigo. Ele pensava, a julgar polo que vira cos que lhe precederam, que o tempo se lhe faria eterno ali só naquela dianteira, ora não foi tal. Ao menos esta primeira noite a cousa se passou a escape. Andaram um bom pedaço, estavam agora atravessando já a Missa para depois baixar pola Alobada para o Castelar, onde lhes aguarda o sexto e penúltimo manancial desta andaina. Arrimaram a pia e mais o resto das cousas a um penedo que havia não muito longe do caminho e foram-se. Antes de se separar definitivamente Narciso olhou para a rocha e pareceu-lhe que tinha lã; lã? Que raro, e depois pensou que não podia ser e foi-se como quem não vira nada. E o certo é que aquele penedo podia ter algo de lã, não em vão se chamava "o penedo de se ranhar as ovelhas". Mas Dom Narciso, que não sabia nada de pastoreio, polo menos com esta casta de ovelhas, e escamado polo da melena dourada da outra noite, não se deixou arrastar polo que bem podia ser real. Marchou embora. Os três marcharam, e o dia não tardou em inundar os vales todos de luz.

* * *

     Hoje Nuestra Región, que nos oferece toda a sua portada em galego, põe uma nota, no interior, protestando polos comentários que alguns cidadãos, apoiados por certos programas de rádio, andam a fazer sobre o estilo jornalístico deste diário. Parece mentira que nesta altura, depois do muito que eles levam feito, e demostrado, tenham que se ver na obriga de redefinir quem são, e de reiterar a seriedade que os caracteriza; porque Nuestra Región é um jornal sério que tem ido atingindo cada vez maiores quotas de compromisso social e cultural. Um jornal que nos últimos anos tem incrementado notavelmente a sua sensibilidade em prol da conservação do nosso património, como exemplo baste ver a portada do diário de hoje...
     ...Claro, senão nas notícias da televisão quando disseram: "a imprensa galega por inteiro saca hoje, 17 de Maio, Dia das Letras Galegas, as suas portadas em galego", figura-te o mal que ficaria se tivessem que dizer: "a imprensa galega, com excepção de Nuestra Región, saca hoje, 17 de Maio, as suas portadas em galego". Isso ficaria muito feio; e por culpa da frase essa fazem o esforço como os outros, e logo então!
     A alguns intelectuais diz-se que esta frase, que já se está fazendo tradicional e se repete cada dezassete de Maio, isto é, uma vez ao ano, lhes parece uma redundância. Vejamos: "a imprensa galega saca hoje, 17 de Maio, as suas portadas em galego" —Homem pois a mim não me parece raro,... a imprensa galega não as vai sacar em chinês... —Pois eu digo-che a ti que aqui há algo que não me... a ver que te parece estoutro: "a imprensa espanhola saca hoje, 17 de Maio, as suas portadas em galego" a que se ouve muito melhor? —Não che digo que não, não obstante tampouco pode ser, porque não toda a imprensa espanhola saca as suas portadas em galego —Pois também vais ter razão... a ver logo assim: "a imprensa espanhola na Galiza saca hoje, 17 de Maio, as suas portadas em galego. —Olha, a mim parece-me bem, mas para já com tanta imprensa espanhola que me vai estourar a cabeça. —Eu não sou quem de fazer isso... se por mim fosse já podia dizer até: "a imprensa galega saca hoje, primeiro de Abril, as suas portadas em castelhano" —E a que vem isso do primeiro de Abril? —O primeiro de Abril todos os burros vão onde não devem de ir. —Ah já, o dia das pulhas! Pois aqui burros não faltam. —Não ho! Também cho digo, aqui há muitos e bem deles...
     São estes pensamentos dialogados que, se bem que revelam a bidimensionalidade da personalidade dos galegos, não servem para sustentar a tese que ultimamente está a ganhar prestigio nas melhores universidades da Península e que vai em favor de postulados sobre a bidimensionalidade da personalidade na gente das nações que se vêem submetidas ao avassalamento por parte doutras culturas mais poderosas. Ora bem, nos postulados originais destas teorias, que cada dia estão mais na moda, supõe-se que o monólogo dialogado se levaria a cabo nas duas línguas que representam a ambas as culturas. Isto é, que a pessoa alternaria, de jeito sucessivo, as duas línguas, a própria e a assumida como própria, que estarão em constante luta até a pessoa morrer, e diz-se que logo disso as línguas seguem na sua polos cemitérios.
     O mais problemático parece ser encontrar uma denominação para estes tipos. O monólogo precedente não encerra dificuldade visto que se trata dum caso galego-galego, isto é, que tem como língua própria o galego, e como língua assumida como própria o galego; mas como já dissemos este caso-exemplo não nos serve para apoiar a hipótese da bidimensionalidade. Ora bem, aos que têm como língua própria o galego e como língua assumida como própria o castelhano, ponhamos por caso, poder-se-ia um referir como "gastelhanos", por aquilo de pôr primeiro a raiz da língua materna. Por outro lado, para os que têm como língua própria o castelhano e como língua assumida como própria o galego... é verdade, esses não existem. E que me diz dos que procedendo de fora destas terras, de Terra Ancha por exemplo, tomam o galego como língua assumida como própria? Ah, já percebo! É diferente, nestes casos o galego nunca desloca no seu ego mais interno à língua própria, que seguem sempre a saber qual é, por muito que amem o galego... Por certo este colectivo vai em aumento! Curiosamente este grupo e o dos gastelhanos aumentam a um ritmo similar. —Pois olha que seria muito bom que viessem mais desses para cá. —Isso, ora... o que fazemos cos gastelhanos? —Pois que se decidam duma vez, que a vida não lhes vai durar sempre e vão-se ir para o outro mundo coa retesia. —Eu sei dum que estando já às portas da morte resolveu o assunto e despachou ao curinha que o atendera toda a vida e quis que lhe administraram os últimos sacramentos em galego... "coitado, te perdió el sentidinho" Frase que, em boca da sua mulher, mostra o domínio gastelhano no que se movera o moribundo até o momento da lucidez final... E quando chegou o novo sacerdote tranquilizou-os a todos... "não se preocupem vocês que tem a minha absolvição, e Deus já lhe perdoou" —E é que isto de ser crente é um negócio feito... vais e arrependes-te no último momento e já está, a recolher benefícios como se fosses um santo toda a tua vida...!

* * *

     Quando os viageiros da noite retornaram junto à pia, Dom Narciso fê-lo cos olhos fechados para não ter que ver a lã que não podia existir, mas a curiosidade foi mais forte que ele, o que não é milagre nenhum, e com dissimulo passou a mão como cofiando o baixo ventre do penedo. Em realidade ele só buscava tentar a dura pedra para que as visões não se burlaram mais dele. O sentir sedoso entre as pontas dos dedos fez-lhe estremecer e retirou a mão bem asinha. Agora, enquanto iam baixando pola esquerda do Jungal e as Ribeirinhas, para as touças do Castelar, ia pensando naquele mole apalpar que topara no penedo. Lã não podia ser. Seguro que são musgos, quem sabe como é o tocar do musgo? Sobretudo com esta humidade que põe tudo tão meloso. Quanta gente vistes por aí acarinhando os penedos, e menos cos olhos fechados...? De seguro que eram musgos que neste tempo estão verdes e amantinhos. Com aquela conclusão tranquilizadora deixou a questão.
     Aquela noite Perfeuto parecia menos encolhido, desde a penúltima jornada o seu aspecto tinha-se humanizado bastante. Enquanto o Alcaide seguia co pinho às voltas, hoje não parecia que lhe foram tão bem as cousas. O terreno colhera um nadinha de inclinação mas a ele parecia não lhe ajudar muito. Ele andava que parecia um rabioso a quem ninguém lhe fizera nada. Mas sim que lhe fizeram, sim. Se Perfeuto e Narciso souberam polo que ele tivera de passar. Ele nascera para alcaide, isso ninguém o discute, e agora já não o era. Isso não podia ser, é essencialmente erróneo que se lhe frustre a um homem a sua vocação assim, sem mais explicações. E tudo por culpa dos das barbas. Olha que lhe iam bem as cousas a ele sem democracia. Mas nada, houve que se adaptar e não ficou outro remédio. Ora, a que as mulheres vão ao concelho e ainda por cima levem calças, a isso não se dava adaptado. E por culpa disso teve que deixar a alcaidia. Não, não foram justos com ele; depois de tantos anos cumprindo no seu posto vão e dão-lhe uma patada. E ele mira que se esforçou por adequar-se ao que fosse preciso. Ninguém poderia dizer que ele fosse um reaccionário. Houve que escolher partido para meter-se, pois vamos, ao que a Deputação me mande, que para isso são os que me dão os orçamentos das obras. Que depois é preciso mudar e meter-se noutro partido mais grande, pois que não se fale mais. Se é preciso ainda se compra outro fato. Não será por falta de casacas... E mira que ele era um alcaide agradecido, ele é certo que o chefe da Deputação fizera muito para lhe ajudar a ele a manter o seu posto vitalício de alcaide d'Os Mouros; mas ele também lho pagara. Isso ainda se pode ver hoje: "Edifício Multifuncional José Luís Bande", "Avenida José Luís Bande", "Praça José Luís Bande"; esta última com estatuazinha do tal J. L. Bande e tudo, uma cabeça de pedra à que o alcaide se refere como o busto de Bande. Por causa da cabeça esta já se têm montado algumas liortas:
     —E quem diz que é esse da cabeça de pedra?
     —Um tal Agusto de Bande.
     —E que faz a cabeça dum de Bande aqui nos Mouros? Eles têm o seu próprio concelho.
     —Não, homem, não —veio o terceiro em discórdia— que não se chama Agusto, nem é de Bande. Este é o busto do senhor Bande, o chefe da Deputação.
     —Mira, pois não se chamará Agusto nem será de Bande, mas daqui digo-che eu que não é, e mais olha onde o foram pôr... no meio da eira da Festa, de espantalho.
     —É que esta já não é a eira da Festa, agora chama-se Praça José Luís Bande.
     —E dá-lhe cos de Bande, pois já podiam fazer as praças no seu concelho e pôr ali as cabeças.
     —Mira que sois pesados vós co de Bande também...
     —Pesado é ele, que é de pedra, que senão...
     Sem esquecer-nos do Vertedouro Incontrolado Municipal J. L. Bande. Se bem que aqui a cousa não está nada clara tampouco, acontece como coa eira da Festa. Não, se o do vertedouro está mais claro que a luz do dia, que desde quase a Fontecova já se vêem branquejar as máquinas de lavar, as neveiras, e toda clase de refugalhos e trapalhadas porcalheiras inclassificáveis que ficaram antiquadas para a vida moderna, e que já não servem mais que para se desfazer delas. São-vos estes seres mecânicos nada fáceis de apodrecer; alma não terão, mas custar, custa-lhes morrer uma boa cheia de tempo, e enquanto agonizam levam por diante não só a paisagem senão a vida toda do monte, e a do rio Eiroá, que baixa entusiasmado desde o alto do Zebreiro para chegar à Golpelheira e ver-se assim acurralado por latas oxidadas, tijolos esnaquiçados, canhotas de castanheiros menosprezadas depois de arrancadas nos soutos queimados... O rio Eiroá, onde noutrora moíam os moinhos, e o pão cozia nos fornos graças a esta água que baixava até a beira d'Os Mouros. E que culpa tinha o alcaide? Ele não era o que deitava ali todos esses cadáveres da industrialização; e mais esses reganhudos que não lhe querem bem sempre lhe estavam atacando por culpa de que a gente botara ali o que já não lhe fazia jeito, ou não queriam. E que lhe ia fazer ele? Não quereriam que se pusesse ali de guarda noite e dia. Mas esses insaciáveis não pararam aí, não; eles dá-lhe com que a Golpelheira não era nenhum vertedouro e que por conseguinte era responsabilidade do Concelho mantê-la limpa. E ele vai e não se lhes ocorre outra cousa, porque diz-se que não pôde ser ninguém mais que eles, que plantar ali um cartaz na beira da estrada que baixa de Penacova? E não se lia "Proibido deitar lixo" não, que esse tão sequer ainda podia ter quiçá ajudado; não, o que se lia no devandito cartazinho era "Vertedouro Incontrolado Municipal José Luís Bande", e houve que o tirar, e eles ei-los a o pôr outra vez, e uns a o tirar, e outros a o pôr... E não houve outro remédio que chantar lá um guarda dia e noite para parar-lhes os pés a esses... Quando alguém depois vinha ali a lhe fazer o funeral à sua Westinghouse, após quinze anos de fiéis serviços, ficava confundido, pois eles não contrataram a enterrador nenhum, nem pensavam que ninguém assistiria a estes últimos ritos.
     —Olhe! —dirigindo-se ao guarda— aqui é onde se deixam as cousas que já não valem?
     —Ai, eu não diria tal, olhe que algumas ainda lhe estão boas! Que não todas as que vêm ficar aqui são velhas...
     —Quero dizer que se poderia eu deixar aqui esta máquina de lavar que já não entrefuga lá mui bem e...
     —Pois com efeito, deixe você o que quiser, ou melhor dito, o que não quiser.
     —E logo você para que está aqui? Se não é muito perguntar...
     —Eu? Pois para que uns vândalos, que seica são do que não há, não chantem aqui o cartaz de Vertedouro.
     —Mas olhe..., e logo isto não é um Vertedouro?
     —E eu que sei! A mim disso ninguém me disse nada, eu estou aqui pra vigiar por se ligaram de vir os do cartaz esse... e agora despida-se da sua lavadora e deixe-me que tenho muito que fazer... que se isto segue assim ainda vou ter que me repartir entre aqui e a praça do Bande, que seica esses já ameaçaram com que não voltam a fazer um cartaz novo e que no lugar do cartaz vão colocar o cabeção de pedra que dizem que iria mais acorde cos despojos urbanos do vertedouro, que não é tal, por certo.
     —E por causa disso o vão fazer ir a você até lá a Bande?
     —Não mulher, não, que vão fazer! Marche, marche tranquila, que a sua máquina de lavar não vai estranhar nada aqui.
     —Pois logo, até outro dia, e perdoe.
     Que a gente se confundisse quanto quiser, mas ele tinha que mostrar o seu agradecimento ao chefe da Deputação. Também é certo que ele aqui desde o seu posto no Concelho lhe ajudava a arrecadar os votos que tanto precisava o seu patrão para o partido. A ver quem ia de casa em casa a repartir boletins na véspera das eleições! Ai, é que o Bande não pode estar em todas as partes...! Pois que vão os alcaides! E ele ia, que ademais assim ia mantendo o forno quente para as Municipais, que eram as que realmente lhe coziam a ele o pão. A ver quem fazia as promessas, de aldeia em aldeia, de casa em casa... "se me votas fago-che um poço para regar a leira toda" "Pois nem que eu fosse um parvo, voto, voto, inda que depois caia nele e afogue, e hei levar à mulher e o filho" "Leva também o tio velho que para votar vale qualquer" "Mas olhe que ele não lhe serve para nada... está tolheitinho e não se pode mover" "Pois o levais num cesto desde o carro até a mesa eleitoral"... E assim de casa em casa, ninguém sabia o duro que era o seu trabalho. Não era Rebenta-Ruas a alcunha que lhe ligava a ele não, a ele teria-lhe ficado muito melhor o de Casalandreiro, porque nisso consistia o seu trabalho em época de eleições, sempre de casa em casa. E depois ter que os convencer de que ele representava a melhor alternativa, a única alternativa possível de eleição. Por sorte contava coa ajuda do pároco de Vilarinho, que sempre teve claro o que era ser um homem de sotana, ainda que a leve emporcalhada, e organizava magustos ou o que for preciso à hora dos meetings dos outros, e assim ninguém se apercebia nem que se apresentassem. Quanto trabalho para ao remate perdê-lo todo. Às vezes ter que improvisar discursos, e à medida da situação, porque liga de estar ali na taberna algum mais duro de roer. Como aquela vez na cantina de Penacova... já tinha pago o vinho de todos os presentes, já apertara bem as mãos e lhes dera os boletins de voto, já estava a cousa quase pronta e chega o Manuel e lá se foi tudo prò nabo. Ele não vai o mui... e se lhe ocorre perguntar-me que por quem me apresentava....? "E tu de que partido vens sendo, se não é muito perguntar?" Essas foram as palavrinhas exactas que o Manuel lhe soltara, e assim ficaram gravadas nos miolos do Alcaide. Justamente agora quando já era escusado, quando já estava tudo meio bem atado, ter que andar coa política. Mas eu, que daquela ainda era de centro, dei-lhe uma resposta bem atinada: "Mirai, eu sou de centro, porque no centro é onde melhor se está" A julgar polas caras que o guichavam dir-se-ia que aquilo não fora mui convincente; sobretudo a do Manuel, com aquele meio sorriso como dizendo "pilhei-te...!" E agora que me lembro dele... daquela o Manuel gastava algo de barba também. Então o orador que levo dentro, o que sempre convencia à minha mãe para aquilo das boas talhadas, saiu ao resgate: "Mirai, para que me entendais todos vou-vos pôr um exemplo que nem precisa das palavras... Se um de vós está, ponhamos por caso, a cortar fatias no jamão, donde vos parece que tirará melhores talhadas, polas bordas ou do meio? Claro que sim! No centro está sempre o melhor, no jamão e em tudo!" Ao Manuel mudara-lhe a cara, em vez do sorriso tinha agora uma enruga na testa, mas não era de enraivado, não, era como se dissesse "estou pensando"... e de repente o sorriso outra vez na face, agora, quando a cousa volvia ir bem e todos se mostravam satisfeitos e calmos, outra volta que vai ele e diz: "Mui escolhido o exemplo; mas agora responda-me a mim também: se passar por onde um rio e ligar de cair, onde quer melhor ir parar... a uma borda ou ao meio?" O que mais lhe doera foram os comentários dos outros: "Homem, caralho —dissera o tio Rua, que eu já contava com ele— se caires na borda ainda te podes agarrar mesmo que só for a umas ervinhas, e esgardunhas para fora; ora bem, se caíres no meio ainda te podes afogar" A taberna encheu-se de risadas, que desde fora podiam escutar até as mulheres... O Manuel deu meia volta, como boi que vence ao outro na chega, e pediu uma cerveja desprezando assim o seu vinho. E ele ter que aturar aquelas burlas depois de lhes ter pagado o vinho e tudo... Claro que depois quando fora de casa em casa tanto o Rua quanto os outros asseguraram-lhe que votariam por ele... ali na taberna, pois claro, tiveram-se que pôr do lado do do lugar, mas... "não se preocupe você, pode contar co nosso voto" "então pra que ríeis?!"
     E ele contava e recontava, e antes de se abrirem as urnas para o reconto ele já sabia o que sacara. Chegava-lhe com contar os que trazem as furgonetas... "Quantos carregastes já?" "Dezasseis de Fontearqueira —incluindo o do cesto—, dezanove de Lourelos, quinze de Penacova e quatro de Ameixeiras" "Mecagoe nos de Ameixeiras que sempre me fazem igual... vão seguir sem as luzes públicas outro par de aninhos mais, a ver se aprendem...!" "E ti quantos levas?" "Oito de..." E assim ia um por um até rematar o conto. Bom, então tenho já cento quarenta e sete justos, se as contas não me falham. Isto de contar os carregados nas furgonetas era, e segue a ser, um método fiável e por conseguinte usado; e não só polo Alcaide, os dos outros partidos não ignoram que ali dentro dos carros se fazem repartições. E poucos são os que se atrevem a contar o que ali se passa, e quando o fazem fazem-no tarde demais...
     —Sim homem sim, quando fôramos co Mulas, bom, tu não foras que já votaras, pois tal como cho conto, tirou-me o voto e rompeu-mo em pedaços, se não foi certo que não veja mais a luz do dia.
     —Qual voto?
     —O que levava da casa, e isso que o trazia bem guardado; mas ele coa teima: "ensina-mo a ver se vale", e eu de burra...
     —Ai raio o nunca parta! Olha ti o galopim; e tu ficarias danada, não sim?
     —Pois logo não ia ficar, como querias que ficasse... a fé, que fiquei rabiosa!
     —E logo depois tu não fizeste nada?
     —Eu? E eu que ia fazer, eu não sei ler nem cousa nenhuma, e pra não parecer que não me apercebia nem donde soprava o ar pois não tive outro remédio que meter o que ele me dera.
     —Olha lá o languiceiro, e isso que che é sobrinho e tudo; não, se esse tem-che boa saia, parece um alpavarda e depois mata-as calando!
     —Ai, digo-te que aquele dia quase estouro co reganho, e eu que queria votar o que me dera a tua rapaza, e vai o fada...!
     Pois como iam deixar escapulir a uma e enfastiar a recontagem? Assim deste jeito era muito mais fácil...! Por cada burro seu molho, e a cousa não falhava. Porque na verdade isso dos inquéritos à saída da escola, onde está agora o colégio eleitoral, e também se velam ali os mortos, não se sabe mui bem porquê, mas não funciona. Por muito que os profissionais do jornalismo se esforcem por o fazer bem, não che é nada...
     —Mire senhora, você já votou?
     —Sim, senhora, já votei.
     —E poderia dizer-me você, se for tão amável, para quem votou?
     —Olhe, você tem que perdoar mas a mim disseram-me que o voto era secreto.
     —Sim que o é, o voto é secreto.
     —E mas vai você e pergunta-mo; e logo não vê que se lho digo a você já não é secreto?
     —Pois tem você razão, e perdoe.
     —Não há de quê, mulher, não há de quê...
     E o certo é que o voto não era secreto, que ia ser! Aqui toda a gente sabe para quem vota toda a gente. E a Conceição tem vários filhos com barba, e filhas dessas que não levam saia, e escusado é que lho diga à jornalista porque toda a gente o sabe...todos fora a jornalista, claro. "Se não saís destas eu já não vou votar mais, que já canso de andar arriba e abaixo, eu e dous mais no autocarro eleitoral" No mundo tradicional que vai dentro da cabeça das gentes desta terra, este não é jeito de guardar os segredos, aí expostos ao público em caixinhas de vidro. No mundo tradicional, que mais de um levamos dentro, os segredos, se os houver, nunca deve de saber-se que existem, senão não se dão guardado.
     Em resumidas contas, que ao Alcaide não se lhe escapava nenhum voto sem contar. E antes do fecho das mesas já ia encarregando a ceia num bom comedeiro da Límia para ele e os seus sequazes. Ali comerão e beberão à fartura, mas antes de que comece a ceia, ou cousa nenhuma, ele repartirá-lhes as pagas, cada um polo que carrejou. Porque ele era bom pagador, e pontual, antes de sair os resultados já tem os homens pagados. Ele era um homem de palavra, e cumpridor. As mais das cousas que os outros lhe apunham não eram tal, ou eram miudalhos sem importância. E esses condenados que tudo têm que saber. Mira que foram descobrir o da retenção dos votos por correio; pois ninguém lhe fora lá co conto e mas eles souberam-no. Mas já não podiam fazer nada, depois de retidos tanto tempo já não contavam. E é que o voto por correio também tem esse defeito de não ser secreto. Mas eles não os abriam, de isso não podiam acusá-los... "de quem vem este?" "Este vem de fulana ou sicrano..." Pois a escondê-lo. Mas não é certo que os abrissem sem permissão, isso são tudo calúnias que lhes levantam os outros ...esses, esses sim que... E ademais isso das retenções são miudezas comparado coas intenções dos nossos rivais, que mesmo se lhes lê na cara que se pudessem... cuinchavam-nos! Eu com eles a sós não me queria topar, e menos no dia das votações... e a alguns das furgonetas já lhes fizeram recuar... não, digo-te eu que são de caralho virado... felizmente por aqui dos novos não se faz caso, gente nova e lenha verde só faz fumo. Tão sequer, a conta dos anos ainda lhes vamos ganhando, e eles, ainda por riba, assim que vão servindo vão-se marchando às cidades, e a cousa ia indo; mas numa dessas vão e sacam um representante no Concelho, e ainda por riba uma mulher... o que me faltava...! O Alcaide, travado polo mau génio daquela lembrança, parou de súpeto e disse-lhe aos outros que já chegava por aquela noite, que ele já estava canso e que as noites não se acabavam num dia, polo que... E ao olhar para o Perfeuto lembrou-se de todos os homens indomesticáveis cos que se tinha ele topado ao longo da sua andaina polas freguesias do concelho quando ia pedir o voto. Perfeuto estaria canso e abatido mas ainda levava na face aquele ar indomável. E vai o Alcaide e soltou-lhe:
     —E tu de que raios estás feito?
     —De pedra, eu estou feito de pedra... e tu porquê o perguntas, manteigueiro do caralho?
     O Alcaide marchou mal-humorado, manteigueiro ele? Que caraino acredita esse Racha-Pedras que ele é...? Maldição, porque é que sempre se tinha ele que topar com esses seixos no caminho? Perfeuto também marchou, e Narciso ficou só por uns instantes. Ainda havia vagar para a rompida do dia, e a ele chegava-lhe bem o tempo. Arrimou-se à boca da pia e viu como a lua cheia bailava lá dentro dela, no bambear das ondinhas que ainda havia na água. Assim com aquela tanta luz, parecia-lhe que a pedra fora perdendo o grisalho e cada vez estava mais amarelada... como se se misturasse o dourado coa cor das avelãs. Uma cor que lhe outorgava à pia um esplendor que ele nunca tinha visto. Pensou que seguramente seria polo efeito daquelas águas que sempre a mantinham húmida. Narciso não queria cavilar no assunto; ele tinha a mente jogando às adivinhas,... de que estaria feito ele...? Se o Perfeuto estava feito de pedra, e o Alcaide de manteiga,... de que se supõe que estaria feito ele? Seguro que de algo intermédio. Por mais voltas que lhe dava não se lhe ocorria nada. E pôs-se então a pensar em matérias das que ele gostaria estar feito. De pó das estrelas, ou da luz delas, ou de... Não, isso não valia porque ele sempre ia escolher materiais que lhe fossem gratos, ou nobres. Faria algo diferente, tentaria imaginar os materiais dos que quer o Alcaide quer o Perfeuto pensariam que estava ele feito. Até lhe saiu em forma de diálogo:
     —E eu Perfeuto, de que crês que estou feito eu?
     —Tu? Tu... de queijo.
     —Porque o dizes?
     —Porque és brando mas ainda se te pode tragar, não como ao repugnante esse da manteiga, que te anoja o bandulho.
     —Queijo! Bom, a mim não me desgosta o queijo, contudo... que classe de queijo? Duro, brando, de vaca, de ovelha, de...?
     —Um queijo calado, assim é como deverias ser, que os queijos não falam.
     Mas a ideia de ser de queijo não acabava de ser do seu agrado; a ver o que pensava o Alcaide...
     —E tu, Alcaide?
     —Eu, quê?
     —De que pensas que estou feito eu?
     —Tu? De hóstias amoreadas umas em riba das outras.
     Não, aquilo não lhe estava a dar a sensação que ele andava a buscar. Deitou-se no chão e agora olhava para a lua que desde o alto do pano negro da noite dependurava, e ficou calado. Os braços estirados no chão, os joelhos dobrados —E tu, lua, de que pensas que estou feito? Enquanto aguardava olhando para o céu, por uns instantes os dedos entretiveram-se enredando nas ervinhas do chão e mais na terra. —Não me vais dizer nada, eh? E Narciso sentou e viu como por debaixo das unhas assomava a terra húmida e negra... de terra! Eu estou feito de terra, de terra e de todas e cada uma das maravilhas que há nela, de terra, da minha Terra... E marchou contente cantarujando aquela melodia dum cantar que de neno lhe entoava a sua avó, e que a ele agora se lhe juntava com um verso que não acertava a saber donde lhe viera... E cantarujou:

Leva a terra com ele
sem ele sabê-lo...
Naaarará...narará
narararaina...
Leva a terra com ele
sem ele sabê-lo...

     Quem sabe, quiçá as cantigas da sua avó encerrassem alguma mensagem que ele nunca se parara a decifrar, e que agora ao se lhe misturarem com aquelas rimas ele sentia cobrarem um sentido verdadeiro, um sentido que não descobrira enquanto cavava na horta da reitoral em Ameixeiras. Talvez tampouco a sua avó sabia destas mensagens das músicas, mas cada quando que ele as escutava, ou as cantava, faziam-lhe sentir-se outro, faziam-lhe sentir que era o Narciso que ele queria ser, o que ele era realmente e não dava sido de todo... sem poder ver com clareza quais eram as silvas que o prendiam. Se calhar isso de misturar a terra e o céu dentro dum não sempre dá bom resultado... Narciso sonha com encontrar uma estrela que possa escutar os seus nararainas sem ter de subir-se ao céu, sem ter de renunciar à terra, da que está feito.

* * *

     Os dous agentes eram para os de Penacova dous forasteiros semelhantes a outros muitos que tinham cruzado já antes polo lugar. Alguns de passo para a Raia e outros buscando informação acerca da Rainha Loba; estes últimos sempre rematavam subindo aos penedos do Castelo para embrulhar no seu pano das mãos algum queixil, aparentemente humano, e metê-lo no bolso do seu gabão.
     Estoutros forasteiros chegaram hoje ao lugar com uma boa sensação. Começavam a gostar de respirar tão livremente como o podiam fazer naquele lugar, enchendo os seus pulmões uma e outra vez como se quisessem oxigenar-se; certo é que donde vêm eles tampouco está o ar mui poeirento que se diga; ora isso sim, há muitos automóveis. E ali não havia automóveis, ou se os havia estavam guardados ou andavam por aí nas estradas, longe daquele paraíso. Ainda que o trabalho seu ia devagar, eles começavam a se sentir cómodos. Ia como tinha que ir porque ali era assim, em Penacova tudo ia devagar, e não valia que eles quisessem correr, que ademais já não queriam. Quando entravam em Penacova era como se tivessem que botar um freio às suas ânsias profissionais, e até desandar um pedaço do andado antes. Penacova ia tão a modinho que se diz que não chegaram ao presente, ou polo menos não ao presente dos detectives. Penacova andava lá num ponto intermédio entre a era dos martelos da Rainha Loba e a do telefone. E diz-se que às vezes os do lugar topam-se com gente que corre muito, muito mais que eles, e que os passa, e despois vêem-nos lá adiante escangalhados. Também se diz que às vezes vêem, ainda que pareça mentira, outros que vêm ao pra atrás, como aquele que vem de volta. Com estes já não se podem entender...
     —Não, que isso do sulfato não está bem, tínheis vós razão dantes, não se deve usar; agora já também o têm descoberto os cientistas, fazei-me caso e parai de botá-los...
     —Olha...! E que queres, que vá eu ali à leira das batatas e espavente os escaravelhos com um folhato...? E logo então para que raios serve se não o sulfato? E agora, que já gastamos o dinheiro...!
     —Mirai, que a celulose não vos é nada boa para a pele, por não falar dos carvalhos, e ademais aqui tendes agua à fartura, devíeis usar os cueiros laváveis como os que se gastavam dantes.
     —E que me mije o meninho no colo...? Porque isso era o que acontecia dantes, agora com estes descartáveis e com tantos adiantos, está uma sempre preparada... e não quererás que volvamos ao da verça em vez do papel higiénico, porque a horta fica longe,... é que dantes era ali o retrete.
     Por sorte a estes que vêm de volta não lhes calha amiúde passar por Penacova, que senão... já não saberiam se seguir ou ficar parados. Às vezes os de Penacova escutam cousas dessas na televisão, mas então fica a cousa no que é... "é película,... fazem-no ver"
     Como quer que fosse, ele aos dous agentes ainda mal não chegavam a Penacova e até o coração lhes começava de ir devagar, quiçá tinha algo que ver coa altitude da montanha que, como diria o outro, não é o mesmo. Ora de certo, quem o sabe? Aquele dia sentiam-se eles muito à vontade caminhando pola rua do Rego abaixo, iam em mangas de camisa e sem gravata. Na mão o bloco das perguntas e na cara um sorriso amigável. Quando chegaram onde a casa do Ferreiro viram a porta da forja fechada e olharam para arriba... a porta do corredor estava aberta, e lá dentro, sentado no escano, estava o tio Serafim, que lhes acenou coa mão para que passassem adentro. O tio Serafim ia algo velho, e dês que já não valia para a forja, que fora a companheira que marcara o latejar do seu coração ao longo da vida, ficava só no corredor ainda que gostara bem de ter companha. Eles passaram e sentaram a petição do ferreiro; Riba sentou ao lado dele no escano, e o seu chefe numa cadeira à direita, quase enfrente do tio Serafim.
     —Olha, olha... então vocês são os forasteiros que andam a visitar este nosso mundo...
     —Pois sim, somos nós...
     E entretanto o mais velho dos agentes dizia isto, olhou para o tio Serafim, que teria bem para aí uns noventa e tantos, e viu que na orelha levava um audiofone. À primeira pensou que era uma fatalidade, mas depois pensou que não era tão má cousa que o tivesse porque é certo que nestas idades quer mais quer menos todos lhe topam a falha ao ouvir, e assim sequer, sabemos que nos ouve. Acrescentou:... e já que estamos aqui, poderíamos-lhe pedir que nos contara o que souber você da pia?
     —Sim, sim eu bem que lia, e ainda leio se tenho o que, escusado é dizer que o que é vagar não me falta. Olhem, trai-me o meu neto os jornais atrasados que vai juntando ao longo do ano, é que ele vive fora daqui e claro, trai-mos quando lhe ligar. E eu leio tudo o que vem neles, até as temperaturas todas do mundo. O outro dia saiu uma carta dum homem que falava disto mesmo, não das temperaturas... senão de se se lia ou se não lia. E publicaram-lha aí no diário, sim, sim...como lho conto, agora um pode mandar as cousas aos jornais e eles publicam-nas e não se passa nada. Não é como dantes, que havia que andar medindo mui bem o que se dizia, quanto mais o que se escrevia... Ora este fulano que escrevia no jornal do outro dia, desses que me guarda o Daniel, penso que era num dos boletins de Agosto, a ver se o tenho... é uma notícia que inda não tem nem um ano...
     O tio Serafim fez ademães de querer buscar na moreia de jornais que tinha ao seu lado no escano e depois disse...
     —Mais não é preciso que o colha, posso-lhes repetir o que dizia..., o que escrevera a carta tinha um nome assim como catalão, é que o Daniel mora em Barcelona, ... não me vem arestora à cabeça como se chamava, ora o que dizia inda não me esqueceu, e isso é o que conta... Pois diz-se que segundo conta o tal catalão que escreveu a carta, que eu não tiro nem ponho, se por mentira veio que por mentira vá... mas segundo o tal... Albert, veio-se-me agora à cabeça, chamava-se Albert, Albert... não sei que mais. O tal Alberte diz que, segundo uns estudos que se fizeram, os políticos de agora deixam muito que desejar a respeito dos seus hábitos de leitura. Que manda...! Poder falar assim dos governantes...!
     E baixando um chisco a voz o tio Serafim acrescentou:
     —...E seica, que olha que eu não sei se o crer, que esse presidente que há agora, esse último que entrou das direitas, é o que menos lê de todos eles. Ele diz-se que a cousa vai a menos e que se isto segue assim, que os livros chegará um dia no que desaparecerão.
     —Pois homem, pois é,... E da pia, que me diz você da pia?
     —Como? Que o que lia? Pois o que podia. Dês que o Daniel me guarda os jornais não tenho queixa, mas antes lia até o que vem nos macetes do tabaco... o que ligasse. O caso é ler algo, para não perder aquele costume, depois de que o tens colhido, claro. Porque também vos direi que aprendido ninguém nasce. E não é assim de hoje para amanhã que um lhe colhe o gosto à cousa. Não, que vai ser. À primeira custa até de manter a vista no carreiro... quanto mais! Vem sendo como o da arada; a primeira leira na que te atreves a ir detrás da rabiça, minha madrinha querida...! Não te quero nem contar como vão ficar esses regos, não há nenhum direito. Ora depois mole e mole a cousa vai-se compondo e uma vez que o sabes fazer já é pra sempre. Esse saber não há quem cho tire, nem o partem irmãos. Pois isto da leitura é-vos o mesmo, é questão de apontar bem co temão as palavrinhas e não soltar a rabiça; e se ligasse que te saltaras uma linha, pois já volverás ao rego, o caso é não perder a paciência. Também, e seguindo co do arado, cumpre que se tenha boa relha, que isso sei-vo-lo eu bem que apontei umas quantas. Se a relha não é boa o arado vai aos golpes e colhe-che para onde quer, mesmo podes enrelhar uma vaca, ora que, se a relha defende...! A relha vem a ser como o interesse do leitor... se gostas do que lês não há linha que se possa resistir; isso é, por dura que esteja a terra, mesmo à hora da decrua, se a relha está apontada a consciência —e eu deixava-as como se fossem cutelos, Deus me perdoe— rego vai e rego vem, abres a terra sem te dar conta. Tudo tem a sua ciência, e se dás com ela, qualquer que seja a tarefa que empreendes, de ali em diante todos os santos te hão-de ajudar...
     Quando o detective chefe escutou isto último espertou-se-lhe um grande interesse de repente... Tinha sentido o que dizia o velho ferreiro, e isso explicaria porquê eles ainda não deram convencido a ninguém de que lhes contara o da pia... "Claro, agora compreendo" Entrementes ele andava com estas reflexões, o tio Serafim seguia falando, e Riba procurava que não se lhe escapasse nenhuma das palavras que saíam da boca do homem sem analisá-la bem primeiro.
     —...e agora há muito que ler, não lhe é como nos meus tempos, dantes só liam os mestres e mais os curas. O cura inda porventura era um homem mais lido que o mestre, polo menos naqueles tempos, talvez agora têm baixado também...
     Essas últimas palavras sobre o saber dos cregos foram a convergir cos pensamentos do detective, que andava a buscar onde podia topar esse elemento científico que lhe abriria o caminho das perguntas como relha que labora na terra... Claro, o abade, como não se lhe teria ocorrido antes? Iriam ao lugar de repouso onde morava dom Aurélio, o velho abade, e falariam com ele. Se há alguém que saiba algo esse será ele. Aquela entrevista ajudara-os mais do que eles poderiam ter antecipado, e com mais atenção que antes escutava agora o que o Serafim ia dizendo.
     —...pois olha que te anda a cousa bem ao revés, agora que se pode ler o que se quiser, pois não vai a gente e se nega...? Claro que tampouco fica já quem are as terras, nem quem aponte uma relha... se quadra vai tudo junto, fruto da mesma doença... mas eu estou falando demais, falem vocês que seguro que têm cousas mais importantes que contar; eu só sou um velho ferreiro que já nem ofício tem, nem ninguém a quem lho deixar, quanto mais saber do que falar.
     —Não, você disse cousas que nos serão de grande ajuda....
     E enquanto o detective dizia isto, o tio Serafim botou a mão e pôs-se a apalpar na orelha, mentres dizia:
     —Perdoe você, que não escutei o que me dizia... é que tinha a cousa esta baixada para não me aboujar enquanto eu falo... siga, siga, que agora já lhe ouço bem.
     —Nada, é que nós já nos temos de ir indo.
     —Pois que mágoa que tenha de ser assim, porque com vocês dava gosto de falar.
     Despediram-se do senhor Serafim, que ficou lá no seu escano com um dos velhos diários na mão e entoando uma canção que a eles lhes pareceu mui agradável, ainda que desde abaixo não podiam entender o que dizia. Perguntaram-se se o senhor Serafim baixaria o volume do aparelho da orelha para não ouvir as suas próprias melodias, ou se pola contra, aproveitando que ouvia bem agora, queria saborear a sua cantiga. Contentes por ter dado coa ideia de visitar ao velho abade marcharam rua arriba em direcção ao seu carro.

* * *

     Atinara bem o Alcaide querendo parar mais cedo a outra noite... dissera-lhes aos companheiros que lhes chegava bem o tempo, e assim era, numas poucas noites estarão na sua próxima fonte, a Fonte do Jardim. Só umas quantas jornadas mais, portanto ele guiaria devagar, para quê matar-se se tinham lua avondo para chegarem. Na verdade, pensava o Alcaide, que também tivera sorte, por aqui por onde andam o terreno tornara-se agradável e ademais ao irem-se achegando à aldeia os caminhos andam algo melhor governados e tudo são facilidades. Deve de ser o seu destino, que sempre se encarrega de lhe dar a ele a melhor parte. Talvez haja muitas cousas que já iam no seu sino, como aquilo de nascer para ser alcaide para sempre. E vão esses, que não fazem mais que fumaceira, e fazem-lhe perder a cabeça. O desses não tinha nome, fazer que se torça assim o destino dum homem... que nascera para mandar. Aturou-os quanto pôde, e mira que nas aldeias onde havia destes ele sempre lhes dava graxa..., fazendo como que os entendia. E mas eles não se contentavam com nada. As últimas obras públicas que ele recorda ter feito em Penacova, quase os tem que obrigar a aceitá-las e compreender os seus benefícios. Ele queria-lhes fazer uma calçada como tinha feito noutros lados. Deu-lhes a escolher por onde é que a queriam. Polo meio do lugar estava descartado porque senão depois já não passam nem os carros, ou os tractores, que vêm a ser o mesmo. Isso qualquer o entende, e eu compreendi-o também. Mas logo vai e ofereço-lhes fazer uma calçada ao longo da estrada que vai do lugar até ao cemitério, e vão eles e dizem que não, que eles não gostam... que não sei quê de estragar a paisagem rural, e não sei quantas cousas mais. Vou eu com toda a minha boa intenção de lhes levar algo de progresso e modernidade e saltam-me com essas parvadas... e não sei que mais do meio ambiente... E que ademais os mortos não precisavam de calçadas para os seus passeios, que havia que fazer algo mais polos vivos... Vamos, que ainda se riram à conta minha. Pois logo... que vos parece se em lugar de nessa estrada fazemos a calçada da aldeia até à Ranha? "Sim claro, mui atinado, para que passeiem as ovelhas que são as que vão para esse lado... ou senão para subir-se por elas e coa carretilha ir às verças..." Pois logo não faço nada e assim não me meto em sarilhos. E eles venha é dá-lhe co que eles queriam... "nós queremos empedrar aí abaixo a canelha que vai ao Campo, e falando do cemitério, ali não nos viria mal uma bilha para colher água, que há que a andar carrejando desde o meio da aldeia... isso sim que faz boa falta". "Olha que são burros" —pensava o Alcaide—, "não entendestes nada, o dinheiro já está aprovado e, ou vos coloco as aceras, ou ficais sem nada" E aí foi onde quase lhes ganhei a partida, porque alguns avarentos, que não podem rejeitar nada, começaram de reformular o da calçada essa da estrada... "Homem, se os vai devolver..., melhor é isso que nada" "Mas olha que sois néscios, e não vos valorais nada —seguia um lenha-verde, ou até penso que era 'uma'— a calçada aqui escaralha a paisagem, que é o único que nos fica já, ainda que já está bem escaralhada..." "Mais olha que lá ao monte a calçada não chega, não escaralha tanto a paisagem, vamos digo eu, ora eu muito disso não entendo..." —o avarento treme só de pensar que um peso escape— Mas eles, nada, seguiam e seguiam e seguiam... "Mirai o que vos digo!" —segue a dizer a da saia verde, enquanto saca as mãos dos bolsos dos seus jeans e as move gesticulando— "...uma calçada cara à Ranha ficaria tão bonita como uma vezeira de ovelhas pascendo na Praça do Obradoiro em Santiago de Compostela" E lá gargalhadas, e eu, canso já de tanta risada dos de Penacova, estive para marchar, mas afinal, e para não ficar tão mal, porque alguns ainda me votavam, os mais deles eu diria, autorizei o da bilha para o cemitério, e marchei dali como fugindo do inferno. Mas eles nunca se contentam, parece que não lhes chega nada. Arranjei-lhe os poços de lavar, onde havia um velho de pedra, no seu lugar fiz três novos com cimento, um para beber o gado e outro para lavar, e o outro para..., três, para que não se queixem, e tampouco gostaram deles. "Nós queremos que nos arranjem o forno que está caindo aos cachos". E para que querem o forno se não cozem? Vão lá para aí vinte anos que não cozem nada e acordam-se agora de se lhes chove no tendal, ou que se o pavilhão precisa uma porta nova, e dá-nos algo para a pá, o rodo e mais o vassoiro, e que não lhe metam tijolos refractários, que para cozer é preciso usar os de barro... Pedir, pedir, pedir,... e os que mais pedem são os que menos me votam; ora claro, por não ficar mal cos velhos, que são dos que me eu nutria..., e por certo não de todos, que em Penacova já desde a época de Franco houve desses revirados que falavam de política e que não iam muito à Missa; claro que enquanto não morreu o Velho estavam todos calados, e eu feliz como o rapaz que queria ser alcaide. Ora dês que morreu o Velho, estes, junto cos barbas-verdes, e mais algumas mulheres, fizeram-me a vida impossível... até que quase perco o sentido, e aconteceu o que tinha de acontecer.
     Estes pensamentos traziam ao Alcaide triste e mal-humorado. Porquê não o queriam todos? Se ele era o melhor alcaide que tiveram, ainda mais que melhor, ele era quase que o único alcaide que tiveram... e mas alguns não depreenderam a querê-lo. Em que falhou? Que teria que ter feito que não fizera para contentá-los? E com aqueles pensamentos chegara, quase sem ele decatar-se, à primeira fonte da sua guiada. Era cedo, e depois de beber eles e mais dar-lhe a sua parte à pia, sentaram à beira daquele formoso manancial. Era a Fonte do Jardim. Com uma água esquisita. Com uma paisagem nocturna única.

* * *

     Por certo que Nuestra Región não volveu a mencionar o assunto aquele do velho... sim homem, sim, aquele que namorara e se fora lá ao Caribe coa mocinha aquela nova em lua-de-mel sem casar nem nada. Eia, isso sim que está bem feito! Comer o mel sem aguentar o aguilhão...! Quem sabe, se calhar a cousa não foi adiante e não vão arejar assim o sofrer do pobre homem, que já lhe chega bem com não poder fazer a sua obra benéfica e teve por riba que perder tão pronto a moça, agora que lhe saíra. Ou diz-se que pôde morrer, que era bem velho... homem, velho, velho, não era, mas com esses desgastes que se diz que lhe levava fazer vida de... de como se fosse moço, vá! Pois não se diga nada..., olha que os golpes fazem amolecer até as pedras. Mas não, mulher, não pode ser, que se morrera já se teria sabido polo jornal, não sim? Pois claro, não iam desaproveitar uma ocasião como esta para lhe brindar homenagem a um homem que lutou toda a sua vida por... polo que fosse, isso é o menos importante... Mas um homem lutador bem merece ser reconhecido quando morrer, senão é como se não tivesse vivido. E ele viveu, vá que viveu. E viveu-che bem. Mas agora de morto Nuestra Región já nem sequer se lembra de que ele queria ter feito a sua obra benéfica, e por culpa de que ninguém topara a pia ia ele ter que deixar este mundo sem cumprir esse desejo... ele, que não estava afeito a deixar assim como assim um desejo sem saciar. Homem! É que, se calhar, ultimamente andava tão saciado doutras cousas que nem sequer se apercebeu que ia deixar este mundo sem fazer a obra essa. Ele quereria ser lembrado por algo mais que por ter ido ao Caribe coa mocinha essa que... que quem sabe que andará agora fazendo a pobre. Terá-lhe deixado algo o velho? Mira que se ainda por riba vai e não lhe deixa nada, sim que seria foda... Homem pois é, mas ela já sabia bem a que se expunha, ora que uma cousa é saber e outra saber... Porque se soubera não teria... ou talvez sim... A gente é-che mui má de entender, e isso são-che tudo murmurações, ou pensamentos dos que não lhe querem bem. Seguro que ele está por aí vivo, o que se passa é que há gente à que lhe dá reganho que os ricos vivam tantos ou mais anos que os pobres. Homem, pois também não estaria mal que fosse uma cousa proporcional... tu queres viver melhor, pois gasta-se-che a cousa antes, e agora morres novo... e tu, aquele outro de acolá, vais-te sacrificar e não dilapidar nada, ... pois vais viver algo mais... e assim se calhar isso de ser milionário não tinha tanto aquele, e a gente seria menos invejosa uma da outra, e não lhe desejariam a morte a ninguém..., vamos digo eu... Ora quem o sabe, se calhar nem morreu.

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