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Capítulo VI: A Fonte do Jardim

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     Entre coucheiras de juncos e de fentos, onde a primavera espargiu generosa as suas flores, ali, no meio da regata húmida e frondosa, abrolha a Fonte do Jardim. À sua esquerda ficam as touças do Castelar, que bem seguro recebem esse nome por subirem-se os seus carvalhos quase até às fraldas do Castelo Velho. Em frente, os lameiros da Alobada descansam agora, nem a água da rega precisam receber de noite; são eles ricos e fazem sentir rico a quem os contar entre as suas meras. Fazem sentir afortunado a quem tiver a sorte de os ver, ainda que só fosse estando de passo e no meio da escuridão, como lhes acontece a estes três viageiros da noite. A humidade desta fraga que estoura de tanta vida que mantém, carvalhos, vidoeiros, castanheiros, amieiros, salgueiros, sabugueiros, cepas de vimeiros, azevinhos, loureiros, sanguinhos, ameixeiras, espinheiros, gestas, piornos, uzeiras, carquejas, tojos, carpaços,... dá-lhe ao verde o seu senso plural. Nenhum dos três homens sentira nunca, apesar de que a luz que os alumia não sobrava, um abraço como o que a Mãe Natureza lhes estava dando no Jardim, e que cada um ao seu jeito estava a experimentar.
     Ainda havia vagar até que chegara a hora de marcharem, portanto os três e a pia beberam e gozaram das sensações que mesmo os anovavam. Beber e empapar-se. Dom Narciso sentia-se um coa terra e quis incorporar à sua vivência àqueles seus companheiros... se eles eram parte da terra, daquela deviam, por força, formar parte também dele. E Narciso olhou-os com tal franqueza que os dous homens pareceram sentir aquele abraço emocional. Perfeuto quis torcer a cara, dar a volta e olhar para outro lado, mas não o fez e em vez disso resistiu. As bágoas em fio face abaixo. Dentro a batalha entre sentires que semelhavam contrários, e afinal, a calma. Enxugou os olhos coas costas das mãos e ajoelhou-se cara à fonte e bebeu. Com cada golo enviado sentiu como aqueles pedaços negros, que se lhe desfizeram coa luta, eram lavados e expulsados fora dele. Já não os sentia. Já não mancavam... fora o medo aos espelhos da alma, fora o medo à mornura do olhar amigo, fora o medo a querer-se a si mesmo. Por primeira vez, num tempo que a ele lhe parecera eterno, Perfeuto gostava de olhar o seu próprio reflexo na água limpa do Jardim. Ergueu-se, caminhou até Narciso, e pondo uma mão sobre o seu ombreiro, disse: "graças amigo". "Não se merecem, irmão" foram as tenras palavras de Narciso. Sentaram nas pedras da beira do caminho e os dous buscaram o Alcaide coa olhada.
     O Alcaide, de costas para eles e a fonte, lá a uns poucos metros, estava de pé direito cos braços caídos em frente dos carvalhos. Ele também quisera ter experimentado o que, a julgar pola sua reacção, fizera estremecer o seu companheiro. Ele também recebera a mirada de Narciso, ora... recebera-a realmente? Porque ele não sentira nada. Que levava ele dentro que parecia filtrar tudo o que até ele chegava deixando assim estéreis os mais sinceros intentos de comunicação? De que dianhos estava ele feito? Nem sequer seria de manteiga, que a manteiga tem a capacidade de tremer e até de se derreter co calor. E ele não sentia nada. Ele era como aqueles carvalhos aos que tanto lhes tem que chova ou vá calor. Ele devia estar feito de pau. De madeira seca e velha. E com aqueles pensares, que não sentires, foi-se bosque adentro e desapareceu. Até a noite seguinte não o volveram ver. Narciso e Perfeuto falaram e beberam e deram água à pia... "Toma tu amiga, que nos trazes a todos por duros caminhares" dissera Perfeuto com um tom que a Narciso lhe parecera tranquilo e até tenro. Narciso achegou-se com as suas mãos carregadas de água para lhe dar também ele. E os homens perguntaram-se polas sedes da sua companheira de pedra; mas não tentaram topar resposta em vãos exercícios intelectuais. Não, a sua não era realmente uma pergunta, era só um querer fazer próprio o sentir da pia de pedra. Uma pedra que cada vez se via mais reluzente e dourada. Aquela noite quando a esconderam na beira da folhagem da carvalheira, trataram-na com muito agarimo... como se fosse um ser vivo. Até um deles dissera: "aí ficas sozinha até amanhã à noite". Mágoa que o outro companheiro não pudesse participar daquele renascimento, onde andaria o Alcaide? Aguardaram um bocado. Não chegava. Narciso e Perfeuto marcharam juntos para o dia.

* * *

     — ...Vês tu como levava eu razão, e Nuestra Región não falou nada do abade esse que assou os santos?
     —E a ti que mais che tem, se tu só lês o chiste do Carrabouxo?
     —Que terá que ver isso! Eu bem vi que não puseram nada de nada, ainda que eu não o pensasse ler, eu para perder o tempo chega-me co chiste.
     —Pois não fazes mal de todo, porque eu leio quase por inteiro o que diz o jornal e ao cabo sempre penso que foi uma perda de tempo...
     —Ai pois logo por sorte a ti tempo não te falta! Que senão...
     —Quê? O que me sobra a mim é vagar, que aqui nesta Delegação da Conselharia não há nada que ranhar...
     —Então tanto che tem, dum jeito ou doutro há-lo ter que matar...
     —É o que eu digo, e o jornal vem-me ali de graça, oh, senão também, caralho! Um cão por ele não malgastava, não tivesses medo.
     —Homem, eu o chiste guicho-o ali na taberna, e depois passo pra ali um pedaço de parola cos gandaias do Pardieiro e já não che tenho vagar para mais nada, mas tu lá sem nada co que te distraíres, nem gente à que atender, que vais fazer...?
     —Nada homem, nada, se não fosse por Nuestra Región encheria-che-me eu de pensar...

* * *

     ...Os agentes iniciaram aquela entrevista carregados de expectativas, e fizeram um trabalho excepcionalmente paciente. De não ser assim já se teriam marchado nos primeiros minutos, logo de ver que o abade desconfiava tanto deles. E eles volta a lhe assegurar que não tinha de que se preocupar, que eles vinham de boa fé; mas isso da boa fé já não era suficiente para aquele homem algo avelhentado pola vida de semi-reclusão voluntária, ou por vai saber tu o que...
     — ...
     — Não, não tem nada de que se preocupar, como já lhe disse, nós só lhe queremos falar dum assunto relacionado com uma das últimas freguesias onde você disse missa, mas não deve apurars-e, que nós só estamos interessados em ver se a sua memória nos poderia guiar nalguma direcção para poder seguir investigando o tema que, desde há uns meses já, nos ocupa e ao que não damos entrado bem.
     — ...
     —Sim, pode-se dizer que nós somos como... vá, que pertencemos assim como à Polícia; mas nós só vimos a falar com você para ver se logramos alguma pista que nos leve a saber algo da pia desaparecida.
     —...
     — Não, nós não pensamos que fosse você, que já nos disse que não sabia onde fora parar quando a levaram do museu, mas a nós o que nos seria de grande ajuda é saber se você tinha alguma informação de quando a pia fora levada de Penacova por primeira vez, e não desta última desaparição.
     —...
     —Não, nós só estamos interessados pola pia. Nem os altares barrocos nem os confessionários, nem mantéis ou cousas polo estilo nos preocupam neste momento...
     Mentres o mais velho dos agentes seguia a levar o peso daquela monótona conversa, Riba tratava de imaginar os altares barrocos dos que o abade se pusera a falar. É certo que eles não entraram dentro da igreja nunca, entre outras cousas porque eles visitavam Penacova em dia solto e daquela a igreja estava fechada. Quando se encontravam com alguém a quem lhe poderiam quiçá perguntar pola chave, preferiam aproveitar para lhe fazer perguntas relacionadas coas sua investigações, e a cousa foi indo sem que eles passaram nunca adentro, tendo que conformar-se coa olhada através dos vidros da janela que dá à parte de atrás do sagrado. A igreja estava fechada para evitar que desaparecera nada... Mas como dizia o outro... —"Pois não sei eu que haviam de levar da nossa igreja, como não levem o abade, outro dianho de cousa ali não fica!" —"Mira que eu conheço bem igrejas, e mais nunca vi uma tão desvalijada como a nossa" —"Homem, está calada por Deus, que até lhe arrancaram as lousas da parte em alça onde estavam colocados os altares... agora, Deus me perdoe, parece uma corte para as vacas" —"Mesmo dá reganho ouvir missa assim ... e que me dizes dos poucos santinhos que ficaram?" "Isso, felizmente alguém teve a ocorrência de os esconder das rapinheiras mãos do pároco durante aquela temporada, que senão também teriam desaparecido canda o resto, e nós ficávamos a vê-las vir" —"Ai, eu hoje vou-vos ir à missa do Corpus a Ameixeiras, que ali tão sequer ainda não desfizeram a igreja" —"Contudo, os cregos roubam muito de Deus..." Pedaços de conversas como esta batem de vez em quando nos miolos do abade, e isto deixa-se notar porque ele relampa muito os olhos e põe-se como se vira o demo ou a sua própria senha... mas neste instante o senhor abade escuta o que lhe diz o detective e parece sossegado.
     —...nós não temos nada na sua contra, ao revés, eu diria que nos merece você o respeito devido a um servidor da comunidade... em certo jeito como nós mesmos. E esta é precisamente a razão pola que o seu testemunho nos parece de grande valor. Você passou muitos anos naquela freguesia e tratou com toda a gente que poderia ver ou estar interessada na pia que desde sempre estivera ali na igreja... Aguardo que não duvide das nossas intenções, dou-lhe a nossa palavra. —disse assim, sem sequer consultar o Riba coa olhada.
     O abade ficou calado um pouco, como processando o que lhe diziam... ou quiçá estivesse sendo visitado por algum daqueles diálogos que desde dentro do seu crânio lhe boureavam a cabeça, e depois pôs-se a falar outra vez.
     Riba aproveitou a desorientação do abade para seguir a trazer à sua memória lembranças da Igreja de Penacova. Ultimamente andaram limpando-a por fora e ficara com essa cor amarelada característica da pedra velha que a ele lhe parecia formosíssima. —"andam a ponhê-la mui gabacha" —sentira Riba numa conversa um dia— "se calhar é que também a querem levar... claro que só têm que levar as paredes, o resto já lá o têm..." —"e por sorte os homens daquela, quando marchara o abade com tudo, não lhe deixaram levar o relógio, que senão... onde ele iria?" —"Não saberíamos nem a
hora que é" "Ele não, filha, não". Riba participava da admiração colectiva para aquela pedra com forma de homem que está lá na direita onde começa de se erguer o campanário, e que dá a hora co sol. A Riba dera-lhe algo que matinar a diferença que havia entre a hora que marcava o seu relógio de pulso e o de pedra, quase duas horas... uma hora era explicável, por aquilo da mudança para o aforro de energia, lá onde suponha tal, ora duas... mas não tardou em aperceber-se de que a hora que se veste nas agulhas dos relógios é a do Mediterrâneo, ainda que aqui se viva na do Atlântico, como na vizinha Montalegre. O abade pôs-se de novo a falar:
     —...
     —Mire eu não posso fazer outra cousa que dar-lhe a minha palavra; ora bem, posso-lhe prometer que o que saia desta reunião não terá nenhuma repercussão negativa para você. Só queremos que nos ajude na procura da pia, não prejudicá-lo a você.
     —...
     —Não, a você ninguém o acusou de nada, nem há denúncia de nenhum roubo de altares ou confessionários ou cousas assim... que já sabemos que você levou tudo isso mas não foi para vendê-lo, que não serviam. Não se incomode, que já mais gente nos disse que os altares andavam caindo e precisavam que alguém lhes botasse uma mão... Ora como o orçamento co que você se tinha que arranjar não lhe abundava para governá-los, pois que decidira outro meio para resolver o assunto antes de que lhe caíra o Santo António em riba, que já andava buligando lá no alto da repisa. E sim, também sabemos que por causa disso você colocou o santo no chão, num recanto junto co Santiago, a quem lhe partira a espada e mais perdera o chapéu, e coa virgem do Carmo, que andava ela mui mal pintada... e quando depois marchou cos altares esqueceu os três ali no chão... e que quando volveu por eles para os levar para a incineração final, não os topou por lado nenhum e logo mais tarde compreendeu que a gente os levara e os escondera nas suas casas, que também cumpre valor; e também nos disse que afinal os devolveram à Igreja, mas que ao Santo António lhe fizeram um banco de madeira, ao Santiago lhe colocaram um livrinho tapando o pedaço de espada rota que lhe ficava na mão e levava agora um chapéu feito de palhas... desses de ir à seitura, e que à virgem do Carmo traziam-na toda pintada que era um primor... E claro, já era tarde para os levar e se desfazer deles... ora já sabemos, que no-lo repetiu você muitas vezes, que não eram para vender nem cousa nenhuma... que isso só lho apunham as más línguas, mas de certo não tinha nada. Que você sim que o queimara tudo no pátio da reitoral da outra freguesia de abaixo, porque em Penacova você já não tinha reitoral, que a vendera nada mais chegar, e que agora no que fora a reitoral de Penacova estava a taberna, que era a única tenda que havia no lugar, e da que se servia a gente para comprar desde aspirinas até lixívia, sem esquecermo-nos do tabaco, as pilhas e os pitos congelados... E claro que tem razão... por culpa de estar ali a taberna... que tampouco se podia fazer ali lume no meio do pátio e que ardera tudo junto cos altares e todas essas cousas douradas e retorneadas fora de moda... Mas nós já o sabíamos e não desconfiamos, como outros fazem, de que você não lhe chispara um fósforo a tanta cousa inservível... E também concordamos com você em que a ideia de queimá-los era melhor que a de enterrá-los no horto... que sim, que você à primeira dissera-lhes aos vizinhos de Penacova que os enterraria como lhe sugeriram eles... mas que logo você pensou-o melhor e que creu que se se enterravam tardariam em apodrecer e sairiam quando se cavasse ou esgaravatassem os cães e não pareceria nada bem, portanto escolheu o lume que derrete tudo a escape... E não se alvorice, que nós sabemos que não é certo que lhes dissera o do lume para poder ir levando tudo para a outra freguesia e depois vendê-lo tudo a um museu ou a um coleccionista privado de... donde disse você que dizem que era o tal coleccionista?
     —...
     —Não, se eu já sei que é tudo inventado por esses de Penacova que já deixaram de crer nos curas e agora levantam-lhe contos para a gente ir por aí pensando que os abades são todos uns aproveitados e uns desalmados... mas não se preocupe que nós isso já lho sabíamos. E não acreditamos nisso do coleccionista que diz-se que viera de fora daqui, e que nem sabia falar o galego, nem tão sequer o castrapo, e que lhe enchera a bolsa de dinheiro... ademais tem você razão, quanto pensam eles que lhe podiam dar por uns altares aos que já não lhes brilhavam os dourados e nos que alguns santos buligavam entre as colunas retorneadas dos cangalhos...? E ademais eram mais antigos que Matusalém, ... nós cremos o que você diz, e por isso gostaríamos de que nos falasse algo da pia...
     —...
     —Homem...! Como vamos nós pensar que você tentou queimar a pia? Já sabemos bem que não, que ademais à pia ao ser de pedra não lhe passaria nada... já nos ficou claro que você só lhe plantou lume aos altares e os confessionários e mais aos santinhos que deu apanhado... e também já nos contou que alguns se lhe escaparam... e que não era culpa sua, que fora a gente a que os escondera nas casas... tampouco ia ir você de casalandreiro a meter as ventas a ver se estava ali o Santo António ou algum dos outros. E tem muita razão ao pensar que esses de Penacova ainda se haviam de rir à conta de você se o fazia... e lhe diriam: —"Passe, passe senhor abade, que o santinho está-lhe aqui connosco ceando ao quente..." E agarrando um tição desses mais gordos da lareira acrescentariam: "ai, que se chamuscou um nada no lume o coitado...! Se vê que bebeu muito vinho na ceia e deu-lhe o sono e caiu no lume... mas olhe, assim ainda lhe dará menos trabalho a você, não sim? Se quer rematamos aqui o trabalho e assim tão sequer ainda nos quenta as canelas..." E tudo o diriam só para burlar-se enquanto escondiam o santinho lá no fundo da ucha entre a brancura dos lençóis de linho, ou envolvido nas roupas do casamento que guardam no mesmo sítio, ou até debaixo da erva no presel do boi chegariam a esconder a Virgem... —"Porque em casa se calhar dá-se-lhe por entrar a dom Aurélio e... a um cura não se lhe pode dizer que não passe assim como assim... e ademais eles coa sua lábia vão-te enredando, enredando, e quando te queres dar conta já lhe disseste do ninho, e porventura nem te apercebes... ai, mas eu amolei-o de raio! A ver se se atreve de entrar à corte onde o boi!" Por isso você não fez por topar os santinhos que faltavam, e depois, claro, quando apareceram já era tarde... e não é certo que o coleccionista não lhos fosse a querer... ainda que alguns dizem que depois da repinta que lhe meteram à virgem do Carmo não havia Deus que a quisesse... e isso que lhe colocaram bonitas alfaias a jogo coa sua coroa...; contudo já sabemos que isso do coleccionista era mentira. Que você só fez o que fez, e mais nada.
     A cousa seguia e seguia, mas o abade não soltava prenda, e tiveram que marchar, mas não sem antes falar cos encarregados daquele lugar de repouso por se escutaram a Aurélio falar alguma vez do assunto que lhes interessava. Segundo os cuidadores, havia já tempo que Aurélio se empenhava só em repetir a história da queima daquele património da Igreja de Penacova ou património de todos, segundo a gente, deixado ali polos antepassados, e roubado polos curas. Ele houve um tempo em que o crego chegara quase a aceitar a ideia de que quiçá pudesse ser que tivessem razão os que diziam que os vendera ao coleccionista que viera da Terra Ancha. Alguns incluso diz-se que lembram como o tal coleccionista presumia de experto e que até se gabava de que sabia onde, e a quem lhas fazia. E assim aproveitando a ignorância dos que desconhecem o valor do que têm, e pensam que ainda lhes fazes favor se lho liquidas, ele ia-se pondo cada vez mais rico. "Pode-se-lhes roubar tudo o que têm e nem se apercebem, ...se me apuras até a língua lhes poderia arrancar, ainda que a levem na boca, e ainda que a levem fechada; porque a mim, como sabem que são de fora, não me ladram" diz-se que dizia o coleccionista, se bem ele dizia-o na sua língua, que por certo não a deixava descansar muito, que seica latricava até polos cotovelos. Ora esta aceitação da possibilidade da venda e do coleccionista não durara muito, apenas uns meses, e de volta coas luminárias. Os cuidadores não acreditam que queimasse nem os santos nem os altares, bem seguro que os levou, e por riba com enganos para que os vizinhos lhe carregaram tudo no carro... E a gente, de parva, não desconfiara nada, e isso que ele repetia-lhes a todos: "tende conta, que os quero intactos" ou talvez alguém sim que compreendera, mas tampouco era boa cousa ir contra o abade, que daquela ainda tinha algo de autoridade, e mais lábia para te fechar bem o bico se o abrias sem a sua licença. Ora bem, enquanto o andava rondando a imagem do coleccionista, parecia o homem mais sossegado, e todos desejavam que a aceitara definitivamente, mas ele nada, volta co lume, e daí não há quem o tire. Não, eles não crêem que queimasse nem os santos nem os altares, porque senão, para que queria andar co trabalho de os levar para a freguesia de baixo, onde ninguém, por certo, cheirara o fumo nem cousa nenhuma? Ou é que para carbonizar os santos e as outras trapalhadas não lhe chegava a eira das Cabras, mentes elas andam no monte? Ou a da Linheira, que o linho deste ano já está maçado e mais fiado, ou mesmo a da Festa, que antes de que se celebre já se haviam de apagar as chamas... E ademais fazendo-o ali teria muito quem lhe botara uma mão e lhe ajudara a chegar o lume... "Eh tu, que fica atrás um cangalho de uvas que caiu daquela coluna retorcida que botaste...!" "Ai, pois bota para cá, caralho, que estes para fazer vinho não valem..." "E aquele santinho pequerrecho, de pêlo crespo e dourado, como dis ti que se chama,... ou chamava?" "Aí che passo o braço da santa Luzia que deste lado não arde, e por aí tendes mais brasa..." "Eh, olhai a cor da labareda que faz o manto daquele santo...!" E assim a foliada teria sido para todos... e ademais a gente poderia aproveitar para queimar os farrapos velhos, como faz uma vez ao ano, e aforrar-se-ia um lume, e mais lenha e trabalho. Porque a roupa velha, só, não arde de gana e há-de andar-se sempre a remexer e acrescentar lenha... olha se teriam ajudado aqueles altares velhos tão sequinhos como estavam...
     Afinal de contas, tudo aponta a que teria sido mais fácil, e de mais proveito, que se armasse a fogueira ali em Penacova. Isto era prova de que, efectivamente, o da queima era uma escusa que dom Aurélio utilizava para não ter que dizer que o vendera todo e se lucrara. O agente que dirigia a conversa insistiu-lhes uma vez mais aos cuidadores que tentassem fazer memória e lembrar qualquer comentário que dom Aurélio pudesse ter feito sobre uma pia de pedra que também levara o mesmo caminho que os confessionários e todo o demais. Mas a sorte tampouco estava ali para eles hoje, e logo de dedicar muito tempo e esforço marcharam daquele lugar de repouso, perto da cidade das Burgas, esgotados. Foram-se com um ar de desesperança e também co desassossego que lhes deixara a teimosia do velho abade co lume; tanto dá-lhe com as chamas que mesmo lhes parecia agora que saíam do inferno.

* * *

     Narciso e Perfeuto chegaram de novo às beiras do Jardim. Vinham juntos, e quando se iam achegando à fontela viram que ali, frente aos carvalhos, no mesmo sítio que a noite antes, estava o Alcaide. Não se imutou sequer ao sentir que eles chegavam, semelhava como se andasse meio hipnotizado polas árvores. Os seus companheiros fitaram um para o outro sem saber mui bem o que fazer; ali ficaram de pé direito olhando ao seu companheiro, que seguia sem mover um músculo. Depois, Narciso e Perfeuto sentaram nas mesmas pedras que ocuparam a noite anterior, e miraram em silêncio para o Alcaide que seguia ali tão quedo como os carvalhos que encarava. O tempo começou de passar, mui a modinho à primeira e algo mais ligeiro depois, ou assim lhes pareceu a eles. O Alcaide, que seguia em reunião com as árvores, semelhava mesmo estar fora da dimensão temporal. Narciso e Perfeuto até duvidaram se seria real aquela silhueta ou simplesmente era o espectro da noite anterior. Um espectro não podia durar tanto, não podia ter resistido após todo o dia ao sol. Em todo o caso seria a senha que já se andava deixando ver, sinal de que a morte rondava já ao homem ausente. Para nenhum dos dous era de agrado a ideia de que o seu companheiro fosse abandonar este mundo assim sem avisar, sem rematar a travessia na que andavam, porque aquele não podia ser o final, pressentiam que não.
     Diferentes teorias sobre aquela imagem foramse sucedendo. E se não fosse o Alcaide? A dúvida fez-lhes saltar dos seus assentos de pedra, desde ali eles não lhe viam o rosto... e com aquela escasseza de luz que havia, bem podia ser outro o que ali estava de pé... e tão perto da pia... A pia! Perfeuto correu até onde a esconderam a noite anterior enquanto Narciso se achegava ao homem que, teso como uma candeia, ali seguia chantado sem se trugir. Era o Alcaide, ou polo menos tinha as suas feições, ainda que não correspondesse à olhada de Narciso nem quiçá sequer o vira. O Alcaide tinha os olhares perdidos pola janela que mirava para o seu interior, na que ele se afincava desde havia uns dias. O que via deixava-o sem resposta possível. E assim ficou até que de súpeto, quando já os companheiros estavam sentados de novo e mais tranquilos, logo de saudar a pia e molhá-la coa água fresca do Jardim, desapareceu como a noite anterior.
     No céu algumas nuvens tapavam as guias que a cotio eles seguiam para não errar no seu caminho. Perfeuto e Narciso perguntaram-se para onde é que teriam que tirar aquela noite, mas ao não achar estrelas que os guiassem, ali ficaram. Falaram. Escutaram. Sentiam-se cantar as cloucas do regueiro do Pradonovo. A água da fontela guardava silêncio. Seria verdade o que se diz de que as águas de noite dormem? Aquelas do Jardim baixavam com tal sigilo, que de não ser polas ervinhas que se bambeiam lá no meio do rego, ninguém poderia crer que estivessem em movimento. Certo é que viajam por terra chã aqui nas beiras do recanto da fontela, e ademais o seu passear transcorre sobre uma almofada de morujas onde nem os passos dum gigante soariam. Mas outras águas não corriam com tanta sorte; a algumas mesmo ao toparem-se num dos remates da terra, só lhes restava tirar-se aos saltos polos rochedos abaixo, fervendo como o caldo que escapa do cu do pote. Estas sim que hão-de andar bem cansas de tanto brinco, e seguro que quando se lhes vem a noite, dormem. Os vizinhos de Penacova polo menos assim o pensam, ainda que não todos são do mesmo parecer...
     —Mas mulher! Como vai dormir a água? Isso que tu dizes não tem jeito nem direito.
     —Pois não o terá mas eu digo-che a ti que dorme. Olha que aquela que ferve a cachão lá em Chão-de-Lamas, que de dia mete medo o barulho que ela arma, pois vai e colhe pola noite e dorme... se quadra é que aproveita o estar lá agachada detrás do Penedo do Peão para dormir, ora diz-se que dorme toda a noite.
     —Parecer-lhe-á à gente, porque se calhar não a têm sentido rugir, ora, daí a que durma...
     —E logo diga-me, porquê não se sente? Porque de dia bem barulho que ela mete, que até ressoa lá pola Xaravelha, por detrás do Castelo Velho e o Penedo da Uzeira... mas de noite está calada, nem sequer um chio.
     —Pois porque a gente não se pararia a espreitar ou não se achegaria o suficiente para a sentir, que queres que eu che diga...
     —Pois eu tenho-me posto a espreitar e tenho ouvido até os ouleos dos lobos quando andam à janeira, mas a água jamais a pude escutar.
     —Ora mulher! Tu achegaste-te alguma vez de noite lá ao fundo de Aguiar para ver se a cachoeira dormia ou ficava esperta?
     —Pois não, que não sou tão valente e tenho medo, e ademais não me havia de tirar as minhas dúvidas, que já é sabido que se te achegas muito, pois quiçá já a espertas e daquela já não sabes que pensar.
     —Pois daquela já sabes que está esperta e ponto, que mais queres descobrir?
     —Eu queria saber se antes de que eu, ou qualquer outro, se achegasse o suficiente como para poder senti-la, ela dormia.
     —E como pensas que vai dormir?
     —Coma nós, ficando caladinha e indo rego abaixo sem aperceber-se...
     —Pois há gente que fala mentres dorme, e alguns até se levantam, diz-se que lhes chamam sonâmbulos.
     —Pois não pensara eu nisso... talvez os que pensam que as águas não dormem é que sentiram a alguma sonâmbula dessas...
     —Que não, mulher, que a gente sonâmbula faz cousas mui raras. Mira, aí tens por exemplo o que fizera a Maruja da Cristalina dias antes de marchar para Alemanha. Uma noite seica se ergueu e ceivou todas as portas das cortes, deixando sair vacas, bezerros, porcos e ovelhas, e até às pitas lhe abriu o buraco do poleiro. Quando deram com ela ia tangendo tudo polo Eiró fora, em direcção à Pedralta, caminho dos lameiros do Campo do Val, ou das leiras da Portelinha, de seguro ninguém o sabe. Mas ela marchava coa fazenda toda para algures.
     —Ai! E como lhe colheria o sentido para ali...?
     —Quem sabe..., se calhar é que se lhe fazia muito isso de ter que marchar tão novinha para Alemanha e deixar aqui a sua vida, e não descansava nem tão sequer de noite.
     —Não che digo que não, porque isso de marchar-se e deixar o sítio dum não toda a gente o dá aguentado, para alguns diz-se que mesmo é como se lhe entrara um andaço que não dão botado para fora.
     —Diz-mo a mim, que o levo no sangue...
     —E logo tu de quem o herdaste?
     —Da minha avó, a mãe da minha mãe, Deus a tenha no Céu, chamavam-na Felesvina, eu não a acordei de viva. Ela, no que pegava no sono, erguia-se, desfechava a porta com jeito, pola calada, e marchava a caminhar desde aqui até Penalapa, donde viera para casar co meu avô. Deus os perdoe aos dous. Ao chegar lá metia-lhe um bom susto a todos quando sentiam andar na cravelha da porta para entrar. Quando viam que era ela, então é que se assustavam deveras, porque cuidavam que algo mau ocorrera e que ela lhes vinha avisar. Depois de descobrir o que lhe passava já não se assustavam tanto; mas à primeira chegou-lhes bem.
     —E logo porquê não lhe fechavam a porta e escondiam a chave onde ela não a topara?
     —Depois já o faziam, mas o meu avô à primeira até chegou a pensar que ela se queria afastar dele e que por isso se marchara; e olha que ele a queria... diz-se que quando a primeira noite que se ergueu e não topou a sua mulher na casa, por pouco morre do desgosto, e até se lhe retirou a fala, e não sei que mais. Depois quando a vieram guiar as irmãs dela e lhe explicaram o que acontecia, ele já se tranquilizou, e depois já guardava ele sempre a chave. Ela era gostante do trato, pois tampouco lhe fazia graça saber que ia a andar de noite por esses montes, e com tantos lobos que havia daquela!
     —E com isso a ela tirar-se-lhe-ia a mania, claro, não é milagre.
     —Que se lhe havia de tirar! Cada vez que o meu avô se esquecia de esconder a chave, à manhã...u-la mulher? Rematou por atá-la com um rebite ao pescoço... a chave, se entende...
     —Daquela a tua avó sim que não teve mais escapatória.
     —Mas olha que diz-se que ela se arranjava para dar-se uma escapada de quando em vez lá a Penalapa, onda os dela.
     —E como é que se arranjava se o homem lhe tinha a chave bem guardada?
     —Pois às vezes andava co gado lá no monte e dava-lhe o sono e quando queria ter tino já estava em Penalapa.
     —Que problema para o teu avô!
     —Homem cala, que afinal acabou por rifar com ela, apesar do bem que seica se entendiam...
     —E daquela ela sim que pararia coas fugidas...
     —Parar? Ele não; daquela nem sequer aguardava a prender no sono, que ainda esperta colhia o andante e ia-se cos dela.
     —E o teu avô a aguardá-la, não sim?
     —Em primeiras sim, mas depois à última acordaram de irem viver lá a Penalapa; ali os dela também tinham muito capital, e a ela tocara-lhe uma boa mera, assim trabalhavam o daqui e mais o de lá.
     —Pois fez bem o teu avô indo-se para lá com ela, assim quiçá descansariam algo melhor.
     —Pois olha que eu não diria tanto, que seica depois ela alguma vez se escapou de lá para cá.
     —Que complicado che é isso de ser sonâmbulo, logo não me estranha a confusão da gente co das cachoeiras...
     —Não me venhas lá outra vez com isso de que a água dorme, que eu estou farto dos dormires raros...
     —Não che me estranha nadinha...! E mais já deverias estar afeito... sendo da gente de quem vens sendo... a saber o que andarás a fazer tu pola noite!
     —Se tens muito interesse deixa a porta desfechada hoje à noite e verás como o descobrimos juntos...
     —Ai sim, homem! Era-che a conta! Eu para isso prefiro estar bem esperta, que não sei das tuas intenções, e não me fio...
     —Pois para saber se che sirvo, primeiro hás-de me ter que provar... —e arrimando a boca à orelha dela murmurou-lhe o velho cantar:

Esta noite hei-de ir alá,
meninha não tenhas medo,
deixa-me a porta atrancada
c'uma palha de centeio

     A Aurora sorri coa cumplicidade do que goza por sentir-se parte dum mundo próprio, um mundo para eles dous. Um mundo fechado para os de fora, para os que a palha de centeio se converteria em tranca de carvalho seco que só desde dentro se pode tirar. Ela sorri, e vendo como o Manuel se vai caminhando, imagina que um dia ela talvez terá que levar um rebite com uma chave ao pescoço.
     Narciso e Perfeuto falaram e falaram e aos poucos espreitaram para as touças, a ver se sentiam ao Alcaide, mas ele não apareceu. Onde se meteria aquele homem? Se tão sequer ele mesmo o soubesse poderia quiçá dar resposta àquela e outras perguntas que o acossavam, e já não se teria que esconder entre os carvalhos que tão pacientemente o acolhiam dia e noite. Ninguém o estranhava, contrariamente ao que noutrora pudera pensar Narciso, o Alcaide não tinha mulher nem filhos; ele tudo o perdera por salvar a alcaidia, e afinal também a perdeu, e agora até ele anda perdido. Os companheiros aguardaram toda a noite mas ele não saiu. Eles marcharam. O Alcaide passou o dia entre os carvalhos e de tanto silêncio foi-se-lhe abrindo a janela da esperança; ajudado polas fisgas que por entre as canas das árvores lhe baixavam a luz do céu, foi acougando. O pior eram as noites, ele não queria ser visto; nem sequer polos seus companheiros, que de seguro compreenderiam o seu sofrer; nem sequer naquela penumbra nocturna. Ele queria que só o vissem os carvalhos.
     De dia passeava as touças arriba e abaixo, observando cada rebento daquela tanta beleza... aqui fechava os olhos e enchia os foles do peito coa recendência da flor dum sabugueiro, ...acolá arrancava as flores dos são-joãos, e fazia-as estralar contra a palma da mão esquerda, ...observava a pujança coa que os gamões das abrótegas subiam, com aquela humidade parece que mesmo se viam medrar. Quando a fome o avisava de que já passava outro dia sem comida, ele rebulia nos carpaços e coas póutigas maduras que topava distraía o seu cativo apetite. Tanta beleza, tanta riqueza, e ele tão feio. Ele tão pobre. Ele tão pouca-cousa. O que mais lhe amolava era não ter-se apercebido. Saber que fora protagonista daquela vida de tanto despropósito, de tanta ruindade, de tanta desconsideração com os demais e não ter-se apercebido de nada. Ter sido sempre como um carvalho que habitara entre os humanos e nem sequer se soubera carvalho. Mas talvez ele não fosse carvalho, que é esta árvore nobre e amiga da sua terra. Não, ele fora pinheiro, de beleza ausente e perene. Ele fora algo mais essa árvore monótona. Mas não, ele ainda fora pior que o pinheiro que se deixa levar ali onde o plantam e vai medrando. Ele fora algo mais activo no seu afã de destruir, mesmo a vida, ao seu redor. Ele fora... sim, ele fora eucalipto. Ele envenenara a terra que o sustenta. Ele fizera-lhe pouco fácil o viver a outros. Ele fora um estrangeiro que nascera aqui. Ele não fora carvalho, que ia ser! Mas agora queria ser, como o carvalho, merecedor da touça que o alberga. E ali ficaria até que o sentisse. Até que olhasse a sua mão e visse os musgos prateados que sobem como se duma pôla de carvalho se tratasse. Deitou-se no chão e recebeu o abraço da terra almofada que o acolhia sem críticas, com silêncio aceitador que só se rompeu para lhe murmurar no ouvido o anúncio daquele renascer possível: "Tu também Ovídio, se o desejares, tu também podes ser meu filho" E ele entrega a sua alma àquela mensagem. Ele quer ser filho da terra, como o carvalho, como a mesma pedra...

* * *

     Hoje Nuestra Región, num editorial eloquente e quase profundo, analisa a função dos meios de comunicação na consecução do bem social, e à sua contribuição na procura da justiça e a transformação da sociedade. Não é preciso dizer que a meta do jornal, neste senso, é conduzir a opinião em direcção à consolidação de uns valores (morais e espirituais) cos que o periódico comunga. O artigo faz uma reflexão sobre o papel que aos meios lhe corresponde à hora de resolver enigmas como o da desaparição da pia do museu. Este facto, que a muitos lhes poderia parecer pouco transcendente de um ponto de vista social, não é tal para Nuestra Región, que sustém que do que se trata não só é do seu valor material e artístico, ou se se quer até patrimonial, senão do seu valor como símbolo de religiosidade popular, etc. etc.
     Foi também num número desta semana onde teve cabida uma entrevista ao poeta Budial, após receber este um prémio de poesia galega contemporânea. E também foi assim como se deu a conhecer por primeira vez o nome do poeta, Castor Ribeiro, que ademais da poesia tem afecção pola antropologia e mais a arqueologia... quem sabe, se quadra um dia destes vemo-lo lá polos penedos da Rainha Loba dum pau matar duas lebres...

* * *

     Narciso e Perfeuto vieram juntos de novo também esta noite; dês que chegaram às terras do Jardim juntam os seus atalhos lá onde lhes é possível e fazem o resto do caminhar em companhia um do outro. Que lhes aguardaria hoje? Poderiam seguir já a sua andaina? O céu, por primeira vez em bastante tempo, estava despejado, e a noite estava clara com lua grande. Estaria aguardando o Alcaide como as noites passadas? Narciso e Perfeuto já depreenderam a falar entre eles, e bem que aproveitavam aquela nova habilidade, e agora perguntavam-se, mentres seguiam o caminho para a beira da fontela, se seria possível que um dia o Alcaide se unisse a eles no seu conversar. Chegaram ao Jardim. Surpreenderam-se de não ver o Alcaide ali de pé frente aos carvalhos. Beberam. Deram água à companheira, à qual com cada golo parecia que lhe envivecia mais a cor dourada. Sentaram nos assentos que já são habituais para eles, Narciso sempre ocupa o da esquerda, o que está mais perto das carvalheiras. Onde andará esta noite o Alcaide?
     De súpeto sentiram aquelas palavras que acompanhavam a figura do homem que as pronunciava enquanto saía de entre as árvores: "Aqui estou companheiros, e eu sou Ovídio." Os dous homens miraram a Ovídio como se o vissem por primeira vez, mostrando surpresa por aquela naturalidade coa que se apresentava ante eles. Narciso achegou-se à fonte e com ambas as mãos apanhou a água fria que lhe levou a Ovídio: "Toma irmão, pareces rendido." Ovídio bebeu sem dizer nada, depois deu um fundo suspiro e agradeceu a Narciso aquela água que tanta falta lhe fazia. Perfeuto não queria ficar fora daquela reunião e fez chegar a sua voz até onde os outros dous homens estavam: "Hoje pareces-me outro, Ovídio" "Graças, Perfeuto," —respondeu Ovídio— "hoje sou outro, e quanto me alegra que ti o tenhas notado". Ovídio contou-lhes da sua tortura interior, e do seu espertar. Contou-lhes do que sentira e do desprezo tão grande que se dedicara a si mesmo. Da sua luta no silêncio das touças. Da luta ganhada e do perdido na batalha. Do passado e do esquecido. Ovídio contoul-hes tudo o que pôde dar lembrado dum Alcaide ruim, dum homem vazio que nunca se dava enchido. Pouco a pouco foi-lhes debuxando com palavras, com punhos fechados que se sacodem no ar, quem ele fora. Os olhos de Ovídio fecharam-se enquanto lembrava, ora para atrair os recordos mais facilmente, ora para evitar ver as olhadas dos que o escutam. Quisera ficar calado mas as condenadas das lembranças querem sair; ele sabe que deve ser julgado, e aceita essa imposição como um jeito de começar a render contas polo que fez... embolsar-se o dinheiro que devia ter ido a obras públicas; castigar as aldeias nas que havia pessoas que não votavam ao seu partido; contratar no concelho, ou na deputação, ou onde fosse, aos filhos dos que lhe ajudavam a manter a sua rede caciquil funcionando, condenando aos que não se deixavam dominar à emigração; burlar-se dos seus próprios votantes referindo-se a eles como "a granja de pombos que me votam" que ademais, segundo ele mesmo dizia, era a granja que mais ganâncias lhe dava... E por último, Ovídio admitiu o mais baixo ao que chegara: bater-lhe a uma pessoa, uma mulher, uma secretária do concelho; e não por quem ela era, senão por quem ele, coa sua olhada deformada, via nela. Ele chegara a tal extremo de precisar controlar aos demais que perdeu o controlo de si próprio. Aquilo custara-lhe a Alcaidia. Daquela pensou que isso era o pior que lhe pôde ter passado, agora sabe que estava bem errado. Ovídio falou-lhes da sua cegueira, e enquanto o fazia seguia com os olhos fechados e com as mãos, agora abertas, gesticulava como para pôr em cena o que pensava, o que queria que viram, o que queria ele que ocorresse agora. Estava envergonhado de si próprio... Depois calou e as bágoas que caíram face abaixo ocuparam o silêncio que deixaram as palavras e as mãos gesticulantes. Perfeuto e Narciso deixaram que respirasse para adentro aquele instante e se anovara com ele, depois cada homem por seu lado deixou cair cadansua mão nos ombreiros de Ovídio. Não disseram nada. Ninguém disse nada, e por primeira vez o silêncio era silêncio e estava calado. Por fim acharam as palavras que os achegavam, que os punham em contacto e agora nem tão sequer precisavam delas. Sem mais demora colheram a pia, e depois de lhe dar a sua água, puseram-se ao caminho.
     —Faltar-nos-á muito?
     —Não sei, mas tanto tem, eu acho que poderíamos seguir ainda que fosse por toda a eternidade.
     —A mim dá-me no corpo que não há-de ser tanto, e só de o pensar já parece que vos estranho.
     Sabiam que ainda lhes aguardava caminho por diante mas ignoravam quanto. Intuíam que não seria tanto quanto o que já levavam andado. Aquela noite o carro rodou sereno, como se andasse de passeio. E aquela noite o carro cantou; quiçá já tivesse cantado antes mas aquela noite os três homens sentiram o seu musical rechouchio. Polo Pradonovo arriba, aquela noite as cloucas calaram para espreitar o ranger daquele carro. Subiram polo caminho das leiras da Igreja e viram como o centeio já agachava a cabeça, isso era indicativo de que a espiga já estava carregada e os gadanhos já não haviam de tardar em levar ali a seitura. A luz da noite não lhes permitia ver a cor daquela messe tão granada, mas pola caída da espiga adivinharam que já iria tirando a marelinha com algo mais de verdor lá no fundo da palha. Pararam um pouco à beira da parede, e admiraram aquela abundância, e os três desejaram ser seitureiros. Imaginaram-se segando aquela leira de pão entre os três, e calcularam quanto lhes levaria. Até chegaram a repartir os trabalhos:
     —Tu serias o ateiro, Perfeuto, que polo corpo que tens bem se vê que se che daria bem apanhar as gavelas... E ti Ovídio, a julgar por como és capaz de dobrares o lombo, em fouce não haveria quem pegasse em ti... E eu, mesmo para dar as vencelhas bem sirvo, ora que tampouco me amargaria segar, e pouco se me poria para vestir os zagões e atar os molhos.
     Co bom humor que os rondava chegaram às eiras do Penedo, deixando os lameiros da Carrancova, e os nabais da Praça, à sua esquerda. Desde onde andam arestora já quase se adivinha o começo da aldeia, e intuem que aquele é o seu destino, quiçá o ponto final da sua andaina. Amanhã teriam vagar para descobrir isso, mas agora é a hora de partir, não for que alguém madrugue hoje, mesmo para ir à seitura, e os veja. E com boa sensação por primeira vez os três homens marcharam a uma e polo mesmo caminho. Atravessaram a Canelha do Fojo e subiram pola Tapada para as leiras da Burata, e ali perderam-se. Quando baixavam viram como a névoa ia subindo da Límia por ali arriba; amanhã será dia de calor e de segada.
     E tal como a névoa prognosticava, o dia veio ardente e os de Penacova aproveitaram para deitar o centeio que ainda estava de pé; e se eles desandaram um nada o caminho que levaram ontem à noite, teriam visto que aquele pão que queriam segar eles já estava agora amedouchado no meio da leira, mas não sem antes enredar ali um bom bocado da manhã aos seitureiros.

* * *

     Os três homens chegaram juntos aquela noite, se alguém os tivesse visto pensaria que eram viageiros que estavam de passo, seguramente a caminho da Raia. Metia-lhes algo de respeito andar tão perto da aldeia; quando se iam achegando avistaram as primeiras casas, logo de passarem o cemitério; eram as casas dos do Penedo. Estremeceram-se de pensar o que se passaria se alguém os via, que iam pensar que eram? Se nem sequer eles estavam mui certos do que pensar de si próprios, quanto mais se as gentes do lugar os descobriam assim de noite e coa pia. Aquela incerteza dos ânimos durou só uns segundos. Não tinham de que se preocupar, eles estavam a ser guiados por uma força alheia às suas vontades e que os levaria aonde tivessem de chegar. Noutrora teriam permanecido sujeitos à ideia do perigo, que lhes impediria de seguir. Agora já são quem de saber que o seu poder é limitado, e portanto também a sua responsabilidade; eles só são parte dum destino que os leva pola terra, e às vezes até os arrasta, mas já não vão sem guia, não vão vagando sem rumo nem meta no horizonte. Até as mesmas estrelas se ordenaram lá no céu para que eles o entendam. Ora, paradoxalmente, estes três homens sentiam-se mais livres, apesar do grande peso que têm que levar com eles. Fazem-no com vontade, fazem-no com aceitação, e como não, fazem-no com amor. Por conseguinte, fora temor, só deviam de ter muito tino como fizeram até agora.
     À lua nova faltava-lhe pouco para se estrear. A sua próxima fonte estaria perto e seria a última, ainda que talvez não fosse esse o final. Vendo que a aldeia estava tão cerca decidiram ir sem a pia até ao meio do lugar para ver se estava tudo despejado. Atravessaram o caminho do Eido e passaram por onde o forno, já desde ali viram o arco de meio ponto que anunciava a Fonte. Achegaram-se e ajoelharam-se os três a um tempo para provar as suas águas. Aquela não era a primeira vez que eles bebiam naquele manancial, ora sem dúvida aquela era a primeira vez que bebiam juntos. Que bebiam a mesma água. Repousaram sentados na pedra da beira esquerda e conversaram um pouco, em voz baixa, não fosse que alguém os sentisse, das experiências passadas que cada um tivera naquele lugar. E veio-lhes a hora da partida antes da fim da conversa, e falando marcharam sem trazer adiante a pia, que os aguardou até à noite seguinte.

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