Aquela madrugada marcharam mui cedo, e como ainda havia tempo e tempo
antes de que o dia viera, foram-se caminhando devagar pola rua da
Arribada para a eira da Festa e de ali subiram à Ranha. Com sigilo
afastaram-se das casas e depois começaram a falar. De quando em vez
viam-se assaltados por um medo súbito que lhes sacudia só de pensar
que alguém pudesse dar co lugar onde ficava a pia. Por vezes viram-se
dando volta e indo a caminho de Penacova outra vez, e depois tiveram que
se refrear e seguir a se separar da aldeia e do que tinham escondido
nela. Sabiam que o mais prudente e também o mais seguro era deixá-la
ali só todo o dia... E eles não tinham outro remédio que aturar os
seus próprios e legítimos medos...
À noite voltaram ligeiros; chegaram, como já
sempre fazem, juntos os três. Era um pouco mais cedo do habitual, as
ânsias de chegar fizeram-lhes apurar o passo caminho arriba. Chegaram
asinha, e não puderam fazer mais que aguardar até que tudo ficasse
tranquilo e quedo. Não bulia uma folha, era uma noite sereninha e cheia
de estrelas, todas cravadas neles tal que olhos vigilantes; a lua
parecia que se via medrar, logo queria ser cheia. Apegados às casas
avançaram mais à pressa que outras noites, quando quiseram dar conta
iam galgados... que imprudentes! E diminuíram a marcha durante o
último trecho que cobriram mui a modinho adrede, como de castigo. Com
cada passo, seu pensamento de perigo, e seu estremecimento polo corpo
arriba enquanto o coiro se arrepia. Por fim, uma última alancada e já
se dobra a esquina em direcção ao recuncho do palheiro. Nas caras dos
três homens reflecte-se a ledícia de chegar... o palheiro via-se
inteiro, tal como eles o tinham deixado. Tudo parecia indicar que ali
ninguém tinha tocado, contudo haveria que passar atrás e ver se era
assim... Passam pola beira do paredão e lá, entre a erva e o
sabugueiro, vêem estar a sua pia apoleirada no chedeiro, tal como eles
a deixaram. Quase querem correr e abraçá-la, mas em lugar disso vão-se
achegando e..., como casualmente, com um braço rodeiam-na dissimulando
um meio abraço e sentindo um abraço pleno. Apesar do muito que tinham
avançado todos, algo parecia interpor-se impedindo-lhes exprimir o que
sentiam. Alegraram-se de ter-se apercebido dos seus próprios
sentimentos, ainda que não soubessem como mostrá-los ante a pia. Era
como se ela conhecesse algo mais deles, algo que eles não lembram, e
que faz que se vejam como meninhos, como meio despidos na sua presença.
Mas faltava tempo por andar, quem sabe, talvez dariam atingido essa
sensação que agora lhes estava restando intensidade à manifestação
do seu sentir. Se quadra eles não eram tão merecedores como pareciam
ser. Ainda faltava uma jornada para ganhar o que ficava por conseguir.
Uma jornada. Coa esperança nas suas olhadas saíram a percorrer o
lugar. Tudo semelhava tranquilo, deixando adivinhar que as gentes
andariam já a dormir. Estamos no tempo da carreja, e toda a gente sabe
o moídos que andam os corpos. Chega co que se há-de madrugar à
manhã. Antes da rompida do dia já vão os carros a caminho das leiras
onde aguardam os medouchos e as rodas feitos cos molhos segados e
atados. Tudo há-de ser carrejado num dia, e que não chova. A ninguém
se lhe ocorreria ir-se dormir e deixar a meda aberta e sem rematar. Uma
jornada, estes labregos, como os homens da pia, só contam com uma
jornada. E como os deles, os seus cálculos tinham que ser mui precisos.
Antes de começar o pé da meda dever-se-ia calcular as pousadas de
messe que colhia aquela casa; a messe não deveria sobrar, mas tampouco
podia faltar para rematar a meda como é devido... Co orgulho na olhada
baixa o mestre da meda, que depois de levar bem os seus cálculos chega
ao cabo e diz-lhe aos de abaixo "falta-me um molho para fechar..." e
um molho é tudo o que falta para livrar o carro. E havia que o fazer
tudo numa jornada. Os da carreja fazem polo dia o que eles hão de ter
que fazer na noite que lhes falta.
Vieram, comprovando que polo rueiro não havia
nada que pudesse impedir o seu passo. Mui devagar, como a noite
anterior, ou mais se cabe, começaram a sua andaina. Hoje andariam por
entremeio das casas e não se podia escapar nem um chio do eixo, não
só porque pudesse espertar a gente, senão porque ao o ouvir alguém
pudesse pensar que outros colheram já a dianteira em madrugar e iam
indo a caminho das leiras para a carreja. Não se podia cometer nem um
erro. Deviam ter a exactidão do bom levantador de medas e assim como
não lhes podia faltar o tempo para dar chegado, tampouco se podiam permitir que lhes sobrasse. Avançaram passeninho, e
tal como tinham calculado levou-lhes a noite toda chegar. Estavam para
abrir as portas do átrio quando a Estrelinha do Luzeiro lhes dedicou o
seu primeiro pestanejo... ainda havia vagar para que essa amiga se
despedira desde o céu... Conseguiram passar pola entrada do átrio e
passo a passo foram-se arrimando à porta da igreja. Narciso corre à
janela que dá à parte traseira, abre uma fisga e mete o braço com
jeito para livrar o peitoril de por dentro, depois pousa os objectos de
vidro na erva e empuxa a folha contra a parede; ele mesmo se dependura
para adentro. Corre ao fundo, ele conhece bem os andares e escusa de ir
às apalpadelas, abre o portalão para dentro e agarra o pinho. Passam
coa pia.
Uma vez dentro já se sentem mais tranquilos,
as grossas paredes dão-lhe acovilho às suas falas e rugires. Levam o
carro até o alto da igreja, primeiro tiveram que arredar uns bancos e
mais uns reclinatórios. Ali à esquerda, tal como Narciso agora lembra,
estava o sítio da pia... se um reparasse, e houvesse luz, ainda se
poderia ver a diferença na cor da pedra do chão. Fizeram recuar para
esse lugar o chedeiro, Narciso manteve o pinho ergueito enquanto os seus
companheiros iam deixando resvalar a pia pouquinho a pouco polas
tábuas. Finalmente, a borda da pedra da base tocou no chão, então,
enquanto os outros dous sujeitavam a pia para que não caísse de golpe,
Narciso foi tirando do pinho e movendo a modichinho o carro adiante. Por
fim a base inteira apoiou-se naquele chão de pedra no que estivera toda
a vida, e o chão estremeceu co pousar dela. E eles puderam por fim
deixar sair o ar das respirações contidas. Asinha tiraram o carro e
esconderam-no na casa esborralhada que há por riba do átrio, na que
já só vivem sabugueiros e silvas... "aqui ninguém virá rebulir de
momento, e depois já se verá..." Volveram a correr à igreja. O dia,
pronto a despontar, ameaçava com descobri-los. A Estrelinha do Luzeiro
já se tinha acovilhado debaixo da luz que começava de querer banhar
tudo por este lado da terra. Enquanto Ovídio e Perfeuto acotegavam os
bancos movidos e mais os reclinatórios, Narciso correu à parte de
atrás do átrio, recolheu a copa e mais a jarrinha de vidro e volveu a
escape. Depois subiu-se num móvel de gavetas enormes onde guarda as
roupas o abade, fechou a janela e recolocou os frágeis objectos
detrás, no peitoril. Os companheiros pregam-lhe que se apure, que o sol
não se faz rogado para sair e se não bolem asinha não se sabe o que
pode acontecer...
Narciso pegou um brinco e caiu ao chão
justamente quando a primeira raiola de sol entrava pola janelinha
lateral, uma abertura estreita na parede, demasiado estreita para ser
chamada propriamente janela, mas o suficientemente ancha e esbelta como
para não catalogada como troneira. No alto, na parte de fora, remata
com umas ondas a jeito de concha de vieira que está coroada polas cinco
estrelas da mitra de Santiago, e por ali entram os raios de luz quando
chegam do Leste. Os dous companheiros viram como Narciso e a luz
chegavam abaixo a um tempo. Narciso ergueu-se a correr, e já se
dispunha a botar-lhe a ultima olhada a pia, a jeito de despedida, quando
viram que da água iluminada saía um resplendor dourado no que se podia
ver uma imagem nebulosa, como se estiver formada por essas
multitudinárias partículas que dançam nas franjas de luz quando estas
atravessam a escuridão, mas que pouco a pouco foi aclarando até que a
puderam ver com nitidez. Era a imagem duma mulher nova que corria com um
meninho nos braços, apegado ao seu peito. O pequeno semelhava recém-nado...
a mulher asinha achegou a cabecinha da criatura à borda da pia e coa
outra mão botou-lhe uma mada de água, como se dum baptizo se tratasse...
depois já, tranquilamente, marchou com ele para a casa. Os três homens
não o sabiam, mas aquela era a Áurea, que acabava de parir, mãe
solteira e só, a quem sem ajuda nenhuma lhe levara tempo demais dar a
luz à criatura. Temendo que não chegasse ao outro dia, correra a
socorrê-lo. A visão daquela luz apagou-se mas após ela veio outra, e
depois outra, e outra, e outras mais... e os três homens ali ficaram
presos, sem poder fazer mais nada que desfechar os olhos e deixar entrar
aquelas imagens da luz... E viram como uma velhinha de estranhas roupas
entrava com uma jarra de barro e a enchia da água da pia; depois
persignou-se e marchou a correr para levar-lha à Conceição, que
parira dous meninhos, gémeos dum ventre, o primeiro e mais pequerrecho
nascera bem, mas ao mais grande saíra-lhe primeiro um braço... e
também viram como a tia Esperança, com as suas mãos esbeltas e
sábias, lhe ajudava a recolocar-se na postura da nascença, mas o
meninho precisava outros cuidados... e vendo que se lhe queria ir,
botaram-lhe na sua cabecinha a água de socorro da jarra... depois
choraram... e a ledícia de parir um filho vivo viu-se assumiçada pola
perda do seu irmãozinho... e viram também como nas mãos do seu pai
umas tábuas se convertiam numa caixa pequena... e o pai caleou-a por
fora para que dissera branca... depois achegaram-se ao sagrado e
arredaram um nada a terra da sepultura da sua avó, há poucos dias
enterrada, e deixaram-no ao lado dela para toda a eternidade. E esse
mesmo dia de luto e despedida foi também dia de baptismo para o outro
pequeno que se salvara e que sem dúvida já estranhava o latejar do
irmão que o deixara para sempre. E mal essa imagem se apagou apareceu
uma mulher chorando, baptizara o seu meninho havia tão só dous meses e
agora tinha que o destetar e marchar longe a dar o seu leite a filhos
que não parira. Era a Erundina, que chorava bágoas de sangue por ter
que lhe roubar o leite, que era dele e só dele, ao seu meninho para o
ir malvender e assim poderem comer todos. Ela marcha chorando em
silêncio, mas a intensidade da sua dor não passa desapercebida, e
mesmo se deixa sentir nos berros do seu filho, que até aos vizinhos,
só de o ver sem a sua mãe tão pequeno, faz chorar... E o pranto do
meninho trocou-se em pranto de gentes grandes, eram homens e mulheres
que choravam a meninha da Dorinda, que lhe morrera. Três anos escassos
entre nós e agora fora-se para sempre. Todos os da aldeia de luto, a
morte duma meninha é nunca fácil de entender... e quando lhe botaram a
terra por riba à caixa, a Dorinda mirou ao vazio e perdido parecia para
sempre o seu olhar... Depois viram como a Dorinda se prostrou no leito e
se negava a comer cousa nenhuma. Os da casa já desesperam; entram
então os vizinhos e todos juntos revivecem a dor, e choram juntos outra
vez, e assim até que os prantos foram botando para fora a negrura do
seu sofrer e a Dorinda volveu comer. Logo que aquela imagem se foi viram
como uns homens corriam pola beira do átrio arriba, entre quatro levam
suspendido um colchão, e sobre dele ao Delmiro, que andando fazendo na
casa, caíra-lhe a trave enriba e deixara-o arrelado... têm que chegar
até Os Mouros onde podem colher um auto para o levar a Ginzo, ou se
quadra a Ourense, antes de que seja tarde demais. E depois viram como os
quatro homens voltavam cansos, com eles traziam o colchão e a
esperança de que o Delmiro se salve. E unida àquela imagem chegou a
duma mulher berrando, que no meio da rua chora e também maldiz, porque
seu filho tem de se ir à Alemanha, e aquela mulher duplica-se e agora
são duas as que berram, e logo três e depois quatro, em pouco tempo
já são todas as mães da aldeia as que têm que chorar os filhos que
lhes rouba a emigração. E a tristura enche os lares de Penacova;
depois pouco a pouco passam os dias e as semanas e por fim o sorriso se
debuxa nas suas caras ao ver chegar uma carta. Para o Natal chega um
giro de marcos que ao se converter em pesetas muito rende. E vem o
verão e de repente um dia, mentres andas cavando na horta, sentes à
vizinha que te chama para que volvas, que che está um filho à porta...
"Qual? Qual deles?" repetes ti enquanto tiras co sacho por enriba
das ervilhas e corres pola mera arriba sem mirar onde pões o pé...
tanto tem qual deles seja, tens quatro lá na Alemanha e a todos
estranhas tanto como o palpitar do coração se cho quitaram como chos
quitaram a eles. Quando vês o teu rapaz tão gabacho lá de pé onde a
porta, sentes uma ledícia breve e depois chorais os dous, num abraço,
pola alegria de ver-vos. E aquela mesma cena repete-se de casa em casa e
de ano em ano... E, pouco a pouco, canda os filhos vêm os netos, e
Penacova recobra no verão a vida que durante todo o ano parece
adormecida... mas é uma alegria breve, logo volvem a soidade o
silêncio e a escasseza do rebulir das crianças polas ruas do lugar. E
a vida do campo, já cíclica de por si, torna-se cíclica outra vez com
estas idas e vindas... Idas e vindas de gentes que se avelhentam, que se
transformam e se vão convertendo em estranhos, e todos presos nesse
caminho que leva à morte, à extinção... O cíclico dentro do
cíclico na espiral que leva a nenhures, ou a algures... E quando as
imagens já pareciam chegar ao seu remate o resplendor rachou em três,
e de cada raiola emanou sua imagem, uma para cada um.
Ovídio vê numa delas a um alcaide arrogante e
ruim que insiste em passar a gábia pola beira mesmo da Fonte... porque
se andam com cuidados gastarão todos os tubos, e para quê tantos
rodeios e gastos desnecessários... E a gábia passa a ser vizinha da
Fonte e ainda mais funda que ela; favorecida pola inclinação do
terreno e o fácil decorrer ao longo do cimento, rouba-lhe a sua água...
Que desprezível lhe parece agora a Ovídio aquele homem que se fazia
chamar alcaide! Apesarado pola sua própria imagem deixa-se cair no banco
que acabava de colocar; como pôde ele ter estado tão cego? Mas agora
que via, teria que ser capaz de o amanhar... Fazer emendas. Estava
determinado a restaurar o que devia.
Entrementes Perfeuto senta na pedra fria do
chão, o que viu ele não o deixava melhor parado que ao companheiro.
Viu a um espoliador da pedra que pouco a pouco se vai achegando a um
penedo que no alto tem uma fonte que o banha; aquela era a Fonte do
Galo. Na fronte do penedo havia afundada para dentro a silhueta duma
grande pia, agora dá-se conta de que é a mesma que andaram a carrar...
Viu também como uns pedreiros muito mais velhos que ele a arrincavam do
penedo cos seus cinzéis e martelos sem esnacar mais do que era
inevitável, deixando a silhueta para sempre ali esculpida, protegida
pola água que a banhava... E chega ele e com um só petardo rebenta
fonte, silhueta e água. Que casta de besta era ele? Sentia-se
desprezível mas não tentou fugir daquele sentir, pola contra deixou
que esse sentir lhe ajudara ao seu pensamento a encontrar o jeito de
repará-lo... Ainda estava a tempo de reparar..., e ali no chão ficou a cavilar.
Narciso estava agora
ajoelhado e prostrado ao pé da pia, como se estivesse rogando ser
perdoado. E assim era, porque ele vira a um homem cambaleando-se mentres
desfecha a porta da igreja para que um comando de curas dirigido polo
Aurélio entre e marche coa pia. Logo levam-na em silêncio até o alto
do lugar onde a carregam no camião do fulano que a há-de levar, é o
mesmo forasteiro que diz-se que já tinha levado os altares tempo atrás.
E agora marcha com ela, e os bolsos do Aurélio se incham, e assim foi
como pôde ir a Vigo a comprar prédios para os sobrinhos... ele dirá
que é bom aforrador, mas toda a gente sabe que da paga que lhe dão
não os podia sacar e que se dedica a roubar... depois tolejou... alguns
dizem que tolo já estava, outros dizem que de tolo nada, que o nome que
lhe pertence é o de ladrão, ladrão e criminal. Um criminal que chegou
a Penacova fugindo das pedradas que lhe lançavam as mulheres de
Medouchos, onde não o deram aguentado mais... por ladrão e por rufião...
e por não sei quanto mais. E Narciso agora sente as cutiladas da dor
que noutrora lhe anestesiara o álcool. E em voz baixinha, só para ele
e a pia, suplica ser perdoado... Incansável e prostrado no chão
repete: "nunca mais, nunca mais..."
Ainda andavam os três homens
tentando endireitar-se e orientar-se na confusão que lhes deixaram
aquelas imagens quando sentiram vozes procedentes do fundo do átrio. A
correr erguem-se e colocam-se nas bancadas da cabeça, de costas à
entrada. A gente vai entrando e situando-se como lhes manda o costume: as
mulheres mais atrás, polos bancos que há no fundo e à esquerda da
igreja; e os homens, ou o homem, que se vem um já são muitos, ocupando
os assentos do alto, arrimadinhos ao altar, mesmo à direita do abade se
missasse de cu para eles, porém isso já não está na moda, polo que
agora os homens, se viessem, estariam à esquerda do padre. A gente era
pouca, ora seguia passando adentro; porquê entravam era um mistério
que eles deveriam tentar resolver se não queriam que a ansiedade os
rilhasse por dentro... que por fora já se encarregavam as olhadas das
mulheres desde lá atrás. Tentando não ladear as faces para que
ninguém reconheça o seu perfil, permanecem imóveis... e aguardando
que se lhes ocorra algo que pudesse justificar, no caso de ser preciso,
a sua entrada na igreja, e ademais entrando assim... arrombando porta e
tudo... Entrementes a gente que entrava ia repartindo as olhadas entre
os três homens e a pia, de admiração por esta, e interrogantes para
os forasteiros. Não podiam crer que lhes devolveram a pia, a que era
deles para sempre, a que os viu vir ao mundo a todos, a que antes de
entrar nesta igreja por primeira vez já bebera nas sete fontes dos sete
Penacovas distintos que povoaram estes vales, a que era sua e só sua e
dos penedos que lha deram... E enquanto a gente ia entrando eles seguiam
ali arriba imóveis. Quiçá a gente ainda se marcha... Mas ninguém se
moveu do seu sítio, e de ali a um pouco entrou o abade, e quando se deu
a volta, viram-lhe a cara de ledícia que levava, mesmo semelhava que
tinha presenciado um milagre. Ele era um rapaz novo, de feições suaves
e, se não fosse sacerdote, quase se poderia dizer que atractivas. A
gente parecia conforme co jeito de dizer missa deste abade que ia acorde
coa sua idade: curta. A gente gostava dessa brevidade, para quê perder
muito tempo se se pode arranjar com menos... "E logo... já saístes
da missa? Pois olha, hoje colocou-vo-la à pressa...", burlam-se os
novos. "Ele di-la correcta, como é, mas não se anda lá com sermões
nem trapalhadas para lhe fazer a um perder mais tempo", respondem os
velhos. Este cura parecia ter um estilo que à gente não lhe
desagradava... Vamos, a bulir a escape! E não é porque tenham pressa,
que muitas vezes ao sair da missa botam uma hora de conversa pola rua
fora antes de volverem para casa. De qualquer jeito o remate precoce
daquelas missas parecia servir a um e a outras. Mas aquele dia o pároco
parecia transformado, e aplicou-se a fundo, e ademais dos serviços mínimos que sempre lhes prestava,
meteu-lhes um sermão sobre a qualidade do saber dar... que nem rediola. Usou metáforas e exemplos do bom fazer
que aparecem nas escrituras cristãs, e do bem que fazia sentir o regalar...
não obstante não lhe serviu de nada o sermão porque o contido das suas
escolhidas palavras chegou aos ouvidos das gentes em forma de bla-bla-blas,
e ninguém reparou no que o abade dizia. Elas tinham bastante com cumprir co seu
dever, que têm automatizado,... ora de pé,... ora de joelhos,... ora podem
sentar-se, ora fazer a "por-la-señal" ou o "nombre-del-padre"...
mas fazer isto não requer pensar, e assim enquanto cos gestos do corpo fazem que fazem, a cabeça
anda às voltas para adivinhar quem são os três forasteiros que sem lugar a
dúvida foram os que lhe ajudaram ao abade a devolver-lhes a pia. Cada um para os
seus adentros mantém um monólogo dialogando consigo mesmo, que se poderia estandarizar do seguinte jeito:
"Pois aquele do meio, o do pêlo abrancaçado,
parece-che-me o Domingos de Ninhodáguia... não, não pode ser, que este é muito mais alto...
pois logo a ver se vai ser... e aquele da esquina... que me leve o demo se não é o
Perfeuto das canteiras...! Pois logo os outros também hão-de ser de por aqui,... a ver se
me arrimo à ponta do banco e vejo algo mais desde ali... porquê
estarão tão atentos, que nem sequer ladeiam a face...? Polas roupas parecem gente
coma nós, ora vão algo mais descuidados... claro que para carregar essa pia
tiveram que suar... Não me digas que aquele vai ser o alcaide velho... olha lá..."
Enquanto a gente segue coa sua adivinhadela, os três homens fazem o
próprio por outro lado, e de quitado o Narciso, que sim lhe atende para
ver se dá pilhado chave que lhes ajude a sair da situação, os outros
tampouco entendem nada do discurso desse cura arrapazado que tanto latrica hoje.
Ao remate do sermão Narciso avisou-os de que podiam estar tranquilos, a cousa não parecia ir mal encaminhada...
Tudo dito num murmúrio e coa mão apoiada na cara tapando a boca para dissimular o movimento dos beiços:
A julgar polo que disse o abade no sermão, ele pensa que a gente é
a responsável de que esteja aí a pia, logo por esse lado estamos
salvados...
Mas donde sacarias tu isso, se não se lhe entende uma palavra do
que sai pola sua boca?
E que vai pensar a gente?
Pois que lhe viemos ajudar ao abade a devolver o que é deles, e que
não tinha que ter sido nunca roubado, e eu fui responsável, polo que a
ninguém lhe estranhará ver-me aqui participando. Logo podemos sentar e descansar um
pouco, que a cousa parece controlada.
Não sei, não sei... a ti parece-che normal que fite tanto para nós o
abade?
Homem não lho hás-de tomar a mal, ele pensa que somos possíveis
novos clientes para engordar a vezeira, que tem arrarado muito... e anda-nos
a fazer as beiras...
Narciso e Perfeuto riram um nada.
Se não parais ainda nos vão botar fora...
Isso é o que eu quereria, que isto está-se-me
fazendo interminável... donde caralho tirais tanta lábia os curas, que não há Deus que o dê
aturado...?
Eu já não sou cura, irmão, que esgarcei o hábito... que muito me
apertava e mesmo me parecia que me ia esmagar ou pôr louco...
E digo eu... ao abade não lhe estranhará que a gente traga uma pia
tão grande assim polas boas?
Ao abade não lhe vai estranhar nada, ademais por aqui a gente ainda
anda com isso das oferecedelas... e ele pensará que esse foi o motivo,
e aí morrerá o conto... Olha, esta igreja foi enchida no seu tempo antigo
graças aos esforços das gentes que então viviam... agora, graças ao fazer dos
curas volvia a estar vazia, e já vês que pouco a pouco se volve encher... E que
razão tinha Narciso, o altar do meio que agora havia fora regalado por um
vizinho que se oferecera quando se viu a morrer... e os outros dous
comprou-os a gente a escote, e há pouco pedira-se-lhes que deram também para governar o telhado
e comprar casulas novas, que as que o Dom Narciso velho deixara já
foram roubadas, e quiçá vendidas também... e também lhe pediu para
livros e para não sei que mais... e a gente a dar, e a dar... E ninguém parece
importar-se de que este ano não se vão colher feijões, porque o sistema de rego
precisava dum escote para meter uns meios tubos e evitar que a pouca água que fica se
escape polas toupeiras e não dê chegado às meras... mas à gente não lhe
fica dinheiro que dar para mais escotes este ano... o cura pediu antes de que chegasse
a rega... e agora já lá vai o dinheiro... E assim, mole e mole, irá-se
enchendo a igreja outra vez. E um dia, talvez dentro de alguns anos, chegará outro
cura que precise para lhe comprar os prédios aos sobrinhos, e volverá
vendê-lo todo..., e volta a começar de novo o conto; portanto ao abade não lhe vai
estranhar nada, e nada dirá.
Pois olha, e eu que pensava que os curas vos entendíeis melhor coa
gente ...
Não me volvas chamar isso, que eu já estou curado... E aguardo que
me chegue o tempo desta vida para reparar o mal que fiz co hábito...
Perdoa homem, que a ti não te queria ofender, já sei que ti te
tens governado...
Vós segui a falar e vereis como ainda havemos de ir fora antes de
que remate o segundo acto.
Se ainda fosse como no teatro que te dão intermédio, e se não
gostas da representação já te vais embora... mas aqui se te marchas
nota-se muito, e todos os olhos cravados em ti...como para perguntar: "Passoute
algo?" "Desmaiaste?" Pois já verás quando tenhas de sair de primeiro e
todas as mulheres do fundo te reconheçam...
E porquê vou sair eu primeiro...? Que saiam elas e eu vou detrás...
Não che são as cousas assim.
Pois já é hora de as mudar.
Calai duma vez...!
Narciso então acordou-se de três raparigas que vieram alguma vez à missa
quando ele estivera naquela freguesia substituindo ao Aurélio... sim,
vinham e sentavam-se nos bancos dos homens, e se sentavam abaixo era para lhe dar
nas ventas a todos e sair elas as primeiras... pois só por isso, e nada
mais, vinham à missa alguma vez,... e até se perguntou por onde andariam...
de certo que não iam estar na igreja, ora que quando souberam que a pia
voltara entrariam a tocar com as suas mãos a pedra na que todos os seus
antepassados puseram a mão primeiro... quanto daria ele por poder falar com elas,
agora de tu a tu...!
Parece que estamos a chegar ao último acto...
Por fim mandou-os em paz e eles os três saíram tão completos, e as
mulheres viram saciadas as suas curiosidades. Trás dos homens vão-se elas, e
agora, enquanto o abade anda dentro a pelejar cos saiotes para despir-se,
todos estão a saudarem-se polo átrio... Quando o pároco dá saído vê como os três
homens já se vão para fora. Então chama-os com um berro e um aceno da
mão, e eles pensam que aquele pasmão ainda os vai descobrir...
Eh! Aguardai aí, bons homens, que ainda vos tenho que dar as
graças...!
Não se merecem, e ademais já no-las deu você desde o altar...
Narciso apurou a dizer aquilo para lhe tapar a boca ao cura, não fosse
falar mais do que eles desejavam que se soubesse. Aguardaram a que se achegasse a eles e amigavelmente fizeram como que charlavam... sem dizer
nada que a gente pudesse interpretar. Aquela naturalidade coa que se desenvolveram
confirmou-lhe à gente que os três vieram a ajudar coa pia. E coa mesma, toda a gente, de dous em dous, foi deixando o sagrado, e
parando-se polos recunchos da aldeia para falar. Os três caminhantes também
se foram e o abade, vendo-se só no átrio, também marchou. E aqui não se
passou nada. Os vizinhos não sacarão nunca o assunto a reluzir, não
fosse o demo, já lha levaram uma vez... e o abade fez o mouco. O bispo não
chegou nunca a saber nada de nada, e as autoridades fecharam o caso. Bom, isto
último não está totalmente claro.
Segundo o jornal Nuestra Región, não é que o fecharam senão que o
abandonaram. Na verdade, o mais novo dos agentes nunca se ocupara a
sério dele; ele andava ali camuflado de detective para fazer um estudo de
campo sem que ninguém se desse conta. E por certo, não se chamava Riba por
catalão, que ainda que nascera em Barcelona era filho de galegos, e galego se
declarava ele também, ainda que fale tão bem o catalão como o idioma de Rosalia. E
agora já anda lá por Barcelona tentando escrever a sua tese na área da
antropologia social. Já lhe tem um título buscado: "Bi-dimensionalidade
e suicídio cultural dos galegos" Ainda não sabe se encontrará quem
lha publique na nossa língua; em Barcelona mandará uma síntese à Revista Catalana de Estudis
Transculturals e sairá co título "Bidimensionalitat i suicidi
cultural dels gallecs" Escusado é dizer que os de Nuestra Región não lhe vão publicar nem
uma entrevista, quanto mais... e vá que lhes amola que se ande a falar
dessas cousas...! E vainos falar de bidimensionalidade ele, precisamente ele que tem
duas ou três falas, ele podia valer como exemplo da bidualidade essa... Mas a
Camilo Riba, filho e neto de Camilos Ribas todos, até ao confim das
memórias familiares, eram galegos e ele tem clara a sua identidade não dá
crédito às críticas que lhe possa fazer um panfleto ao que o qualificativo de
folha paroquial lhe assentaria melhor que o de jornal. A ele agora o único
que lhe consome o seu tempo é a sua tese, que há-de ser brilhante.
De vez em quando pára-se a pensar nas possíveis críticas que os membros
do júri lhe possam fazer e vai introduzindo mudanças no corpo do texto
que ajudem a argumentar as posturas que ele agora, no momento de redigir,
toma. A quem mais teme é ao professor Loureses, sendo como é natural duma
freguesia achegada a Penacova, ainda que agora pare em Barcelona. Ele aguarda que o professor Loureses lhe critique a sua excessiva
psicologização na terminologia, e lhe diga quiçá que bota em falta uma interpretação
de corte mais simbólico que fosse capaz de dar conta de toda a complexidade do
elemento mágico, inseparável da vida de Penacova. Camilo aproveita
estas projecções que faz para ir fazendo os ajustes que lhe permitam sair
airoso o dia da sua dissertação. Contudo, o que Camilo Riba jamais poderia ter
adivinhado é uma das perguntas do professor Loureses, uma sobre as serpes voadoras
e os seus poderes. E daquela Camilo terá-se que arrepender de não ter perguntado
mais aos vizinhos enquanto andava por Penacova... Mas se fizera isso as
suas observações já não seriam tão objectivas... e esse será o
argumento usado para mitigar o efeito da pergunta. Claro que sim, não interferir co objecto
da observação fora o seu lema, e bem difícil que lhe foi às vezes...
por isso não lhes pôde perguntar nada... e ademais, que ia a pensar a gente, e o seu
companheiro, se entre as perguntas sobre a pia lhes solta uma sobre
cobras voadoras? Não, isso qualquer entenderia que não se podia fazer. E isso
que se o tivesse feito a gente bem que responderia, pois falar disso era-lhe
bem mais fácil que falar da pia. Ao cabo, o das serpes essas que voavam
acontecia lá por longe; daqui de Penacova, que se saiba, só as viu o Teófilo, quando
andava polo Norte, e mais diz-se que... "Eram grandes como os temões dos arados, e polo
lombo fora, dos dous lados, estavam cheias dumas asas pequeneiras...
como as conchas das vieiras... Quando erguiam o seu voo, já te podias vigiar.
Elas não mordiam, não, o perigo delas vinha do poder da sua sombra... se che
roça a sombra duma dessas, por nada que seja, aí mesmo ficas tolheito e para
sempre... por conseguinte as gentes andam sempre à procura da sombra
das árvores para que não lhes roce a delas jamais..." Contudo, apesar de
não saber nada disso, Camilo sairá bem airoso, e o professor Loureses
alegrará-se de ver como os galegos ainda somos quem de nos observarmos e de nos
criticarmos, e fazemo-lo bem, ainda que às vezes para poder-nos ver com clareza nos
tenhamos que afastar da nossa terra. Ele mesmo vê tudo o relativo à
nossa cultura com mais clareza dês que está aqui em Barcelona, onde lhe é
reconhecido o respeito que merece mais que na sua própria terra, não
só como professor senão também como galego. Esta tarde achegar-se-á a algum dos
bares dos Nou Barris dos tantos nos que se escuta falar na nossa
língua, e quiçá presencie algo que lhe permita manter as esperanças da supervivência
da nossa cultura. Que desconcertantes lhe resultam as cousas que se estão
a passar na nossa terra... mas quando vê gente como Camilo Riba, que
desde aqui é capaz de ir-se até lá coa sua olhada invulnerável frente ao raquitismo, a
tentar resgatar o que ainda se puder salvar... põe-se contente e até alberga
esperanças de que nos salvemos, de que um dia nós também sejamos um
país normal... Quiçá, desta geração de galegos criados fora, livres da
influência directa da bidimensionalidade essa da que falava o já doutor Riba,
possam sair homens e mulheres que voltem a ajudar aos que andam hoje já a lutar
contra o suicídio colectivo, contra a desmembração e a auto-mutilação
crónicas.
"Homem Loureses, que gosto saudar-te" Era C. Rousia, que desde a
entrada do Cinco Estrelas o convidava a passar... "Olá! Que fazes tu
por aqui? Olha que também che é casualidade, precisamente hoje venho eu dum
júri de tese no que um colega falava da nossa terra, mais falava da tua que da
minha, se calhar viste-o por lá, haverá um ano que visitou aquilo, e..." Conversam um
bom bocado, os dous têm vagar e querência de fazê-lo... Depois C. Rousia
despede-se dele: "Já me tenho de ir, alegrou-me deveras ter-me encontrado
contigo, e não te preocupes tanto, que qualquer dia se resolve... isto
é-che como dantes quando às mulheres, logo de três dias parindo, lhes davam
a água de ferver os cornozelos... 'parir ou rebentar' diziam então... e
quando as parideiras enviavam para abaixo aquele xaropote amargo já tanto lhes
tinha morrer como não... algumas já estavam mais mortas que vivas... pois
nós também nos livraremos... qualquer dia acaba-se o sofrimento... tanto
sentir-se vulnerável... e isso que eu ainda sou nova, mas há gente que já leva
uma vida longa nesta merda... e de que nos estranhamos ao ver como muitos e eles
se passam ao outro bando e preferem que os seus filhos se alimentem do
montão grande de esterco...? Eles, como os vermes, só pensam na própria
subsistência, e devoram a maçã que lhe serve de alimento, e assim destruem o seu
próprio universo... eles, os coitados, só pensam que se estão a afastar do mal
que ameaça com extingui-los, e fogem moribundos a esconder-se debaixo do
escudo do inimigo, porque assim tão sequer já não se apercebem de que
morrem... correm sem dar-se conta de que quando se albergam lá debaixo já
estão mortos... Fogem espantados por um espelho que lhes devolve uma imagem de si próprios como seres feios e desprezíveis, ora eles, tal
que esganados, não podem ver outra cousa no espelho que têm diante;
botam-lhe a culpa à língua, pois é a diferença que mais ressalta, e contra ela
arremetem... E arrasam a terra tal que mortos viventes que como os vermes se arrastam
por riba dela... Não, não me invejes porque me vou para lá, compadece-me..."
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