As Sete Fontes

Páxina Anterior

Descobrimento

Páxina Seguinte

v2concharousiaassetefontes009.html
     Aquela madrugada marcharam mui cedo, e como ainda havia tempo e tempo antes de que o dia viera, foram-se caminhando devagar pola rua da Arribada para a eira da Festa e de ali subiram à Ranha. Com sigilo afastaram-se das casas e depois começaram a falar. De quando em vez viam-se assaltados por um medo súbito que lhes sacudia só de pensar que alguém pudesse dar co lugar onde ficava a pia. Por vezes viram-se dando volta e indo a caminho de Penacova outra vez, e depois tiveram que se refrear e seguir a se separar da aldeia e do que tinham escondido nela. Sabiam que o mais prudente e também o mais seguro era deixá-la ali só todo o dia... E eles não tinham outro remédio que aturar os seus próprios e legítimos medos...
     À noite voltaram ligeiros; chegaram, como já sempre fazem, juntos os três. Era um pouco mais cedo do habitual, as ânsias de chegar fizeram-lhes apurar o passo caminho arriba. Chegaram asinha, e não puderam fazer mais que aguardar até que tudo ficasse tranquilo e quedo. Não bulia uma folha, era uma noite sereninha e cheia de estrelas, todas cravadas neles tal que olhos vigilantes; a lua parecia que se via medrar, logo queria ser cheia. Apegados às casas avançaram mais à pressa que outras noites, quando quiseram dar conta iam galgados... que imprudentes! E diminuíram a marcha durante o último trecho que cobriram mui a modinho adrede, como de castigo. Com cada passo, seu pensamento de perigo, e seu estremecimento polo corpo arriba enquanto o coiro se arrepia. Por fim, uma última alancada e já se dobra a esquina em direcção ao recuncho do palheiro. Nas caras dos três homens reflecte-se a ledícia de chegar... o palheiro via-se inteiro, tal como eles o tinham deixado. Tudo parecia indicar que ali ninguém tinha tocado, contudo haveria que passar atrás e ver se era assim... Passam pola beira do paredão e lá, entre a erva e o sabugueiro, vêem estar a sua pia apoleirada no chedeiro, tal como eles a deixaram. Quase querem correr e abraçá-la, mas em lugar disso vão-se achegando e..., como casualmente, com um braço rodeiam-na dissimulando um meio abraço e sentindo um abraço pleno. Apesar do muito que tinham avançado todos, algo parecia interpor-se impedindo-lhes exprimir o que sentiam. Alegraram-se de ter-se apercebido dos seus próprios sentimentos, ainda que não soubessem como mostrá-los ante a pia. Era como se ela conhecesse algo mais deles, algo que eles não lembram, e que faz que se vejam como meninhos, como meio despidos na sua presença. Mas faltava tempo por andar, quem sabe, talvez dariam atingido essa sensação que agora lhes estava restando intensidade à manifestação do seu sentir. Se quadra eles não eram tão merecedores como pareciam ser. Ainda faltava uma jornada para ganhar o que ficava por conseguir. Uma jornada. Coa esperança nas suas olhadas saíram a percorrer o lugar. Tudo semelhava tranquilo, deixando adivinhar que as gentes andariam já a dormir. Estamos no tempo da carreja, e toda a gente sabe o moídos que andam os corpos. Chega co que se há-de madrugar à manhã. Antes da rompida do dia já vão os carros a caminho das leiras onde aguardam os medouchos e as rodas feitos cos molhos segados e atados. Tudo há-de ser carrejado num dia, e que não chova. A ninguém se lhe ocorreria ir-se dormir e deixar a meda aberta e sem rematar. Uma jornada, estes labregos, como os homens da pia, só contam com uma jornada. E como os deles, os seus cálculos tinham que ser mui precisos. Antes de começar o pé da meda dever-se-ia calcular as pousadas de messe que colhia aquela casa; a messe não deveria sobrar, mas tampouco podia faltar para rematar a meda como é devido... Co orgulho na olhada baixa o mestre da meda, que depois de levar bem os seus cálculos chega ao cabo e diz-lhe aos de abaixo "falta-me um molho para fechar..." e um molho é tudo o que falta para livrar o carro. E havia que o fazer tudo numa jornada. Os da carreja fazem polo dia o que eles hão de ter que fazer na noite que lhes falta.
     Vieram, comprovando que polo rueiro não havia nada que pudesse impedir o seu passo. Mui devagar, como a noite anterior, ou mais se cabe, começaram a sua andaina. Hoje andariam por entremeio das casas e não se podia escapar nem um chio do eixo, não só porque pudesse espertar a gente, senão porque ao o ouvir alguém pudesse pensar que outros colheram já a dianteira em madrugar e iam indo a caminho das leiras para a carreja. Não se podia cometer nem um erro. Deviam ter a exactidão do bom levantador de medas e assim como não lhes podia faltar o tempo para dar chegado, tampouco se podiam permitir que lhes sobrasse. Avançaram passeninho, e tal como tinham calculado levou-lhes a noite toda chegar. Estavam para abrir as portas do átrio quando a Estrelinha do Luzeiro lhes dedicou o seu primeiro pestanejo... ainda havia vagar para que essa amiga se despedira desde o céu... Conseguiram passar pola entrada do átrio e passo a passo foram-se arrimando à porta da igreja. Narciso corre à janela que dá à parte traseira, abre uma fisga e mete o braço com jeito para livrar o peitoril de por dentro, depois pousa os objectos de vidro na erva e empuxa a folha contra a parede; ele mesmo se dependura para adentro. Corre ao fundo, ele conhece bem os andares e escusa de ir às apalpadelas, abre o portalão para dentro e agarra o pinho. Passam coa pia.
     Uma vez dentro já se sentem mais tranquilos, as grossas paredes dão-lhe acovilho às suas falas e rugires. Levam o carro até o alto da igreja, primeiro tiveram que arredar uns bancos e mais uns reclinatórios. Ali à esquerda, tal como Narciso agora lembra, estava o sítio da pia... se um reparasse, e houvesse luz, ainda se poderia ver a diferença na cor da pedra do chão. Fizeram recuar para esse lugar o chedeiro, Narciso manteve o pinho ergueito enquanto os seus companheiros iam deixando resvalar a pia pouquinho a pouco polas tábuas. Finalmente, a borda da pedra da base tocou no chão, então, enquanto os outros dous sujeitavam a pia para que não caísse de golpe, Narciso foi tirando do pinho e movendo a modichinho o carro adiante. Por fim a base inteira apoiou-se naquele chão de pedra no que estivera toda a vida, e o chão estremeceu co pousar dela. E eles puderam por fim deixar sair o ar das respirações contidas. Asinha tiraram o carro e esconderam-no na casa esborralhada que há por riba do átrio, na que já só vivem sabugueiros e silvas... "aqui ninguém virá rebulir de momento, e depois já se verá..." Volveram a correr à igreja. O dia, pronto a despontar, ameaçava com descobri-los. A Estrelinha do Luzeiro já se tinha acovilhado debaixo da luz que começava de querer banhar tudo por este lado da terra. Enquanto Ovídio e Perfeuto acotegavam os bancos movidos e mais os reclinatórios, Narciso correu à parte de atrás do átrio, recolheu a copa e mais a jarrinha de vidro e volveu a escape. Depois subiu-se num móvel de gavetas enormes onde guarda as roupas o abade, fechou a janela e recolocou os frágeis objectos detrás, no peitoril. Os companheiros pregam-lhe que se apure, que o sol não se faz rogado para sair e se não bolem asinha não se sabe o que pode acontecer...
     Narciso pegou um brinco e caiu ao chão justamente quando a primeira raiola de sol entrava pola janelinha lateral, uma abertura estreita na parede, demasiado estreita para ser chamada propriamente janela, mas o suficientemente ancha e esbelta como para não catalogada como troneira. No alto, na parte de fora, remata com umas ondas a jeito de concha de vieira que está coroada polas cinco estrelas da mitra de Santiago, e por ali entram os raios de luz quando chegam do Leste. Os dous companheiros viram como Narciso e a luz chegavam abaixo a um tempo. Narciso ergueu-se a correr, e já se dispunha a botar-lhe a ultima olhada a pia, a jeito de despedida, quando viram que da água iluminada saía um resplendor dourado no que se podia ver uma imagem nebulosa, como se estiver formada por essas multitudinárias partículas que dançam nas franjas de luz quando estas atravessam a escuridão, mas que pouco a pouco foi aclarando até que a puderam ver com nitidez. Era a imagem duma mulher nova que corria com um meninho nos braços, apegado ao seu peito. O pequeno semelhava recém-nado... a mulher asinha achegou a cabecinha da criatura à borda da pia e coa outra mão botou-lhe uma mada de água, como se dum baptizo se tratasse... depois já, tranquilamente, marchou com ele para a casa. Os três homens não o sabiam, mas aquela era a Áurea, que acabava de parir, mãe solteira e só, a quem sem ajuda nenhuma lhe levara tempo demais dar a luz à criatura. Temendo que não chegasse ao outro dia, correra a socorrê-lo. A visão daquela luz apagou-se mas após ela veio outra, e depois outra, e outra, e outras mais... e os três homens ali ficaram presos, sem poder fazer mais nada que desfechar os olhos e deixar entrar aquelas imagens da luz... E viram como uma velhinha de estranhas roupas entrava com uma jarra de barro e a enchia da água da pia; depois persignou-se e marchou a correr para levar-lha à Conceição, que parira dous meninhos, gémeos dum ventre, o primeiro e mais pequerrecho nascera bem, mas ao mais grande saíra-lhe primeiro um braço... e também viram como a tia Esperança, com as suas mãos esbeltas e sábias, lhe ajudava a recolocar-se na postura da nascença, mas o meninho precisava outros cuidados... e vendo que se lhe queria ir, botaram-lhe na sua cabecinha a água de socorro da jarra... depois choraram... e a ledícia de parir um filho vivo viu-se assumiçada pola perda do seu irmãozinho... e viram também como nas mãos do seu pai umas tábuas se convertiam numa caixa pequena... e o pai caleou-a por fora para que dissera branca... depois achegaram-se ao sagrado e arredaram um nada a terra da sepultura da sua avó, há poucos dias enterrada, e deixaram-no ao lado dela para toda a eternidade. E esse mesmo dia de luto e despedida foi também dia de baptismo para o outro pequeno que se salvara e que sem dúvida já estranhava o latejar do irmão que o deixara para sempre. E mal essa imagem se apagou apareceu uma mulher chorando, baptizara o seu meninho havia tão só dous meses e agora tinha que o destetar e marchar longe a dar o seu leite a filhos que não parira. Era a Erundina, que chorava bágoas de sangue por ter que lhe roubar o leite, que era dele e só dele, ao seu meninho para o ir malvender e assim poderem comer todos. Ela marcha chorando em silêncio, mas a intensidade da sua dor não passa desapercebida, e mesmo se deixa sentir nos berros do seu filho, que até aos vizinhos, só de o ver sem a sua mãe tão pequeno, faz chorar... E o pranto do meninho trocou-se em pranto de gentes grandes, eram homens e mulheres que choravam a meninha da Dorinda, que lhe morrera. Três anos escassos entre nós e agora fora-se para sempre. Todos os da aldeia de luto, a morte duma meninha é nunca fácil de entender... e quando lhe botaram a terra por riba à caixa, a Dorinda mirou ao vazio e perdido parecia para sempre o seu olhar... Depois viram como a Dorinda se prostrou no leito e se negava a comer cousa nenhuma. Os da casa já desesperam; entram então os vizinhos e todos juntos revivecem a dor, e choram juntos outra vez, e assim até que os prantos foram botando para fora a negrura do seu sofrer e a Dorinda volveu comer. Logo que aquela imagem se foi viram como uns homens corriam pola beira do átrio arriba, entre quatro levam suspendido um colchão, e sobre dele ao Delmiro, que andando fazendo na casa, caíra-lhe a trave enriba e deixara-o arrelado... têm que chegar até Os Mouros onde podem colher um auto para o levar a Ginzo, ou se quadra a Ourense, antes de que seja tarde demais. E depois viram como os quatro homens voltavam cansos, com eles traziam o colchão e a esperança de que o Delmiro se salve. E unida àquela imagem chegou a duma mulher berrando, que no meio da rua chora e também maldiz, porque seu filho tem de se ir à Alemanha, e aquela mulher duplica-se e agora são duas as que berram, e logo três e depois quatro, em pouco tempo já são todas as mães da aldeia as que têm que chorar os filhos que lhes rouba a emigração. E a tristura enche os lares de Penacova; depois pouco a pouco passam os dias e as semanas e por fim o sorriso se debuxa nas suas caras ao ver chegar uma carta. Para o Natal chega um giro de marcos que ao se converter em pesetas muito rende. E vem o verão e de repente um dia, mentres andas cavando na horta, sentes à vizinha que te chama para que volvas, que che está um filho à porta... "Qual? Qual deles?" repetes ti enquanto tiras co sacho por enriba das ervilhas e corres pola mera arriba sem mirar onde pões o pé... tanto tem qual deles seja, tens quatro lá na Alemanha e a todos estranhas tanto como o palpitar do coração se cho quitaram como chos quitaram a eles. Quando vês o teu rapaz tão gabacho lá de pé onde a porta, sentes uma ledícia breve e depois chorais os dous, num abraço, pola alegria de ver-vos. E aquela mesma cena repete-se de casa em casa e de ano em ano... E, pouco a pouco, canda os filhos vêm os netos, e Penacova recobra no verão a vida que durante todo o ano parece adormecida... mas é uma alegria breve, logo volvem a soidade o silêncio e a escasseza do rebulir das crianças polas ruas do lugar. E a vida do campo, já cíclica de por si, torna-se cíclica outra vez com estas idas e vindas... Idas e vindas de gentes que se avelhentam, que se transformam e se vão convertendo em estranhos, e todos presos nesse caminho que leva à morte, à extinção... O cíclico dentro do cíclico na espiral que leva a nenhures, ou a algures... E quando as imagens já pareciam chegar ao seu remate o resplendor rachou em três, e de cada raiola emanou sua imagem, uma para cada um.
     Ovídio vê numa delas a um alcaide arrogante e ruim que insiste em passar a gábia pola beira mesmo da Fonte... porque se andam com cuidados gastarão todos os tubos, e para quê tantos rodeios e gastos desnecessários... E a gábia passa a ser vizinha da Fonte e ainda mais funda que ela; favorecida pola inclinação do terreno e o fácil decorrer ao longo do cimento, rouba-lhe a sua água... Que desprezível lhe parece agora a Ovídio aquele homem que se fazia chamar alcaide! Apesarado pola sua própria imagem deixa-se cair no banco que acabava de colocar; como pôde ele ter estado tão cego? Mas agora que via, teria que ser capaz de o amanhar... Fazer emendas. Estava determinado a restaurar o que devia.
     Entrementes Perfeuto senta na pedra fria do chão, o que viu ele não o deixava melhor parado que ao companheiro. Viu a um espoliador da pedra que pouco a pouco se vai achegando a um penedo que no alto tem uma fonte que o banha; aquela era a Fonte do Galo. Na fronte do penedo havia afundada para dentro a silhueta duma grande pia, agora dá-se conta de que é a mesma que andaram a carrar... Viu também como uns pedreiros muito mais velhos que ele a arrincavam do penedo cos seus cinzéis e martelos sem esnacar mais do que era inevitável, deixando a silhueta para sempre ali esculpida, protegida pola água que a banhava... E chega ele e com um só petardo rebenta fonte, silhueta e água. Que casta de besta era ele? Sentia-se desprezível mas não tentou fugir daquele sentir, pola contra deixou que esse sentir lhe ajudara ao seu pensamento a encontrar o jeito de repará-lo... Ainda estava a tempo de reparar..., e ali no chão ficou a cavilar.
     Narciso estava agora ajoelhado e prostrado ao pé da pia, como se estivesse rogando ser perdoado. E assim era, porque ele vira a um homem cambaleando-se mentres desfecha a porta da igreja para que um comando de curas dirigido polo Aurélio entre e marche coa pia. Logo levam-na em silêncio até o alto do lugar onde a carregam no camião do fulano que a há-de levar, é o mesmo forasteiro que diz-se que já tinha levado os altares tempo atrás. E agora marcha com ela, e os bolsos do Aurélio se incham, e assim foi como pôde ir a Vigo a comprar prédios para os sobrinhos... ele dirá que é bom aforrador, mas toda a gente sabe que da paga que lhe dão não os podia sacar e que se dedica a roubar... depois tolejou... alguns dizem que tolo já estava, outros dizem que de tolo nada, que o nome que lhe pertence é o de ladrão, ladrão e criminal. Um criminal que chegou a Penacova fugindo das pedradas que lhe lançavam as mulheres de Medouchos, onde não o deram aguentado mais... por ladrão e por rufião... e por não sei quanto mais. E Narciso agora sente as cutiladas da dor que noutrora lhe anestesiara o álcool. E em voz baixinha, só para ele e a pia, suplica ser perdoado... Incansável e prostrado no chão repete: "nunca mais, nunca mais..."
     Ainda andavam os três homens tentando endireitar-se e orientar-se na confusão que lhes deixaram aquelas imagens quando sentiram vozes procedentes do fundo do átrio. A correr erguem-se e colocam-se nas bancadas da cabeça, de costas à entrada. A gente vai entrando e situando-se como lhes manda o costume: as mulheres mais atrás, polos bancos que há no fundo e à esquerda da igreja; e os homens, ou o homem, que se vem um já são muitos, ocupando os assentos do alto, arrimadinhos ao altar, mesmo à direita do abade se missasse de cu para eles, porém isso já não está na moda, polo que agora os homens, se viessem, estariam à esquerda do padre. A gente era pouca, ora seguia passando adentro; porquê entravam era um mistério que eles deveriam tentar resolver se não queriam que a ansiedade os rilhasse por dentro... que por fora já se encarregavam as olhadas das mulheres desde lá atrás. Tentando não ladear as faces para que ninguém reconheça o seu perfil, permanecem imóveis... e aguardando que se lhes ocorra algo que pudesse justificar, no caso de ser preciso, a sua entrada na igreja, e ademais entrando assim... arrombando porta e tudo... Entrementes a gente que entrava ia repartindo as olhadas entre os três homens e a pia, de admiração por esta, e interrogantes para os forasteiros. Não podiam crer que lhes devolveram a pia, a que era deles para sempre, a que os viu vir ao mundo a todos, a que antes de entrar nesta igreja por primeira vez já bebera nas sete fontes dos sete Penacovas distintos que povoaram estes vales, a que era sua e só sua e dos penedos que lha deram... E enquanto a gente ia entrando eles seguiam ali arriba imóveis. Quiçá a gente ainda se marcha... Mas ninguém se moveu do seu sítio, e de ali a um pouco entrou o abade, e quando se deu a volta, viram-lhe a cara de ledícia que levava, mesmo semelhava que tinha presenciado um milagre. Ele era um rapaz novo, de feições suaves e, se não fosse sacerdote, quase se poderia dizer que atractivas. A gente parecia conforme co jeito de dizer missa deste abade que ia acorde coa sua idade: curta. A gente gostava dessa brevidade, para quê perder muito tempo se se pode arranjar com menos... "E logo... já saístes da missa? Pois olha, hoje colocou-vo-la à pressa...", burlam-se os novos. "Ele di-la correcta, como é, mas não se anda lá com sermões nem trapalhadas para lhe fazer a um perder mais tempo", respondem os velhos. Este cura parecia ter um estilo que à gente não lhe desagradava... Vamos, a bulir a escape! E não é porque tenham pressa, que muitas vezes ao sair da missa botam uma hora de conversa pola rua fora antes de volverem para casa. De qualquer jeito o remate precoce daquelas missas parecia servir a um e a outras. Mas aquele dia o pároco parecia transformado, e aplicou-se a fundo, e ademais dos serviços mínimos que sempre lhes prestava, meteu-lhes um sermão sobre a qualidade do saber dar... que nem rediola. Usou metáforas e exemplos do bom fazer que aparecem nas escrituras cristãs, e do bem que fazia sentir o regalar... não obstante não lhe serviu de nada o sermão porque o contido das suas escolhidas palavras chegou aos ouvidos das gentes em forma de bla-bla-blas, e ninguém reparou no que o abade dizia. Elas tinham bastante com cumprir co seu dever, que têm automatizado,... ora de pé,... ora de joelhos,... ora podem sentar-se, ora fazer a "por-la-señal" ou o "nombre-del-padre"... mas fazer isto não requer pensar, e assim enquanto cos gestos do corpo fazem que fazem, a cabeça anda às voltas para adivinhar quem são os três forasteiros que sem lugar a dúvida foram os que lhe ajudaram ao abade a devolver-lhes a pia. Cada um para os seus adentros mantém um monólogo dialogando consigo mesmo, que se poderia estandarizar do seguinte jeito:
     "Pois aquele do meio, o do pêlo abrancaçado, parece-che-me o Domingos de Ninhodáguia... não, não pode ser, que este é muito mais alto... pois logo a ver se vai ser... e aquele da esquina... que me leve o demo se não é o Perfeuto das canteiras...! Pois logo os outros também hão-de ser de por aqui,... a ver se me arrimo à ponta do banco e vejo algo mais desde ali... porquê estarão tão atentos, que nem sequer ladeiam a face...? Polas roupas parecem gente coma nós, ora vão algo mais descuidados... claro que para carregar essa pia tiveram que suar... Não me digas que aquele vai ser o alcaide velho... olha lá..."
     Enquanto a gente segue coa sua adivinhadela, os três homens fazem o próprio por outro lado, e de quitado o Narciso, que sim lhe atende para ver se dá pilhado chave que lhes ajude a sair da situação, os outros tampouco entendem nada do discurso desse cura arrapazado que tanto latrica hoje. Ao remate do sermão Narciso avisou-os de que podiam estar tranquilos, a cousa não parecia ir mal encaminhada... Tudo dito num murmúrio e coa mão apoiada na cara tapando a boca para dissimular o movimento dos beiços:
     —A julgar polo que disse o abade no sermão, ele pensa que a gente é a responsável de que esteja aí a pia, logo por esse lado estamos salvados...
     —Mas donde sacarias tu isso, se não se lhe entende uma palavra do que sai pola sua boca?
     —E que vai pensar a gente?
     —Pois que lhe viemos ajudar ao abade a devolver o que é deles, e que não tinha que ter sido nunca roubado, e eu fui responsável, polo que a ninguém lhe estranhará ver-me aqui participando. Logo podemos sentar e descansar um pouco, que a cousa parece controlada.
     —Não sei, não sei... a ti parece-che normal que fite tanto para nós o abade?
     —Homem não lho hás-de tomar a mal, ele pensa que somos possíveis novos clientes para engordar a vezeira, que tem arrarado muito... e anda-nos a fazer as beiras...
     Narciso e Perfeuto riram um nada.
     —Se não parais ainda nos vão botar fora...
     —Isso é o que eu quereria, que isto está-se-me fazendo interminável... donde caralho tirais tanta lábia os curas, que não há Deus que o dê aturado...?
     —Eu já não sou cura, irmão, que esgarcei o hábito... que muito me apertava e mesmo me parecia que me ia esmagar ou pôr louco...
     —E digo eu... ao abade não lhe estranhará que a gente traga uma pia tão grande assim polas boas?
     —Ao abade não lhe vai estranhar nada, ademais por aqui a gente ainda anda com isso das oferecedelas... e ele pensará que esse foi o motivo, e aí morrerá o conto... Olha, esta igreja foi enchida no seu tempo antigo graças aos esforços das gentes que então viviam... agora, graças ao fazer dos curas volvia a estar vazia, e já vês que pouco a pouco se volve encher... —E que razão tinha Narciso—, o altar do meio que agora havia fora regalado por um vizinho que se oferecera quando se viu a morrer... e os outros dous comprou-os a gente a escote, e há pouco pedira-se-lhes que deram também para governar o telhado e comprar casulas novas, que as que o Dom Narciso velho deixara já foram roubadas, e quiçá vendidas também... e também lhe pediu para livros e para não sei que mais... e a gente a dar, e a dar... E ninguém parece importar-se de que este ano não se vão colher feijões, porque o sistema de rego precisava dum escote para meter uns meios tubos e evitar que a pouca água que fica se escape polas toupeiras e não dê chegado às meras... mas à gente não lhe fica dinheiro que dar para mais escotes este ano... o cura pediu antes de que chegasse a rega... e agora já lá vai o dinheiro... E assim, mole e mole, irá-se enchendo a igreja outra vez. E um dia, talvez dentro de alguns anos, chegará outro cura que precise para lhe comprar os prédios aos sobrinhos, e volverá vendê-lo todo..., e volta a começar de novo o conto; portanto ao abade não lhe vai estranhar nada, e nada dirá.
     —Pois olha, e eu que pensava que os curas vos entendíeis melhor coa gente ...
     —Não me volvas chamar isso, que eu já estou curado... E aguardo que me chegue o tempo desta vida para reparar o mal que fiz co hábito...
     —Perdoa homem, que a ti não te queria ofender, já sei que ti te tens governado...
     —Vós segui a falar e vereis como ainda havemos de ir fora antes de que remate o segundo acto.
     —Se ainda fosse como no teatro que te dão intermédio, e se não gostas da representação já te vais embora... mas aqui se te marchas nota-se muito, e todos os olhos cravados em ti...como para perguntar: "Passoute algo?" "Desmaiaste?" Pois já verás quando tenhas de sair de primeiro e todas as mulheres do fundo te reconheçam...
     —E porquê vou sair eu primeiro...? Que saiam elas e eu vou detrás...
     —Não che são as cousas assim.
     —Pois já é hora de as mudar.
     —Calai duma vez...!
     Narciso então acordou-se de três raparigas que vieram alguma vez à missa quando ele estivera naquela freguesia substituindo ao Aurélio... sim, vinham e sentavam-se nos bancos dos homens, e se sentavam abaixo era para lhe dar nas ventas a todos e sair elas as primeiras... pois só por isso, e nada mais, vinham à missa alguma vez,... e até se perguntou por onde andariam... de certo que não iam estar na igreja, ora que quando souberam que a pia voltara entrariam a tocar com as suas mãos a pedra na que todos os seus antepassados puseram a mão primeiro... quanto daria ele por poder falar com elas, agora de tu a tu...!
     —Parece que estamos a chegar ao último acto...
     Por fim mandou-os em paz e eles os três saíram tão completos, e as mulheres viram saciadas as suas curiosidades. Trás dos homens vão-se elas, e agora, enquanto o abade anda dentro a pelejar cos saiotes para despir-se, todos estão a saudarem-se polo átrio... Quando o pároco dá saído vê como os três homens já se vão para fora. Então chama-os com um berro e um aceno da mão, e eles pensam que aquele pasmão ainda os vai descobrir...
     —Eh! Aguardai aí, bons homens, que ainda vos tenho que dar as graças...!
     —Não se merecem, e ademais já no-las deu você desde o altar...
     Narciso apurou a dizer aquilo para lhe tapar a boca ao cura, não fosse falar mais do que eles desejavam que se soubesse. Aguardaram a que se achegasse a eles e amigavelmente fizeram como que charlavam... sem dizer nada que a gente pudesse interpretar. Aquela naturalidade coa que se desenvolveram confirmou-lhe à gente que os três vieram a ajudar coa pia. E coa mesma, toda a gente, de dous em dous, foi deixando o sagrado, e parando-se polos recunchos da aldeia para falar. Os três caminhantes também se foram e o abade, vendo-se só no átrio, também marchou. E aqui não se passou nada. Os vizinhos não sacarão nunca o assunto a reluzir, não fosse o demo, já lha levaram uma vez... e o abade fez o mouco. O bispo não chegou nunca a saber nada de nada, e as autoridades fecharam o caso. Bom, isto último não está totalmente claro.
     Segundo o jornal Nuestra Región, não é que o fecharam senão que o abandonaram. Na verdade, o mais novo dos agentes nunca se ocupara a sério dele; ele andava ali camuflado de detective para fazer um estudo de campo sem que ninguém se desse conta. E por certo, não se chamava Riba por catalão, que ainda que nascera em Barcelona era filho de galegos, e galego se declarava ele também, ainda que fale tão bem o catalão como o idioma de Rosalia. E agora já anda lá por Barcelona tentando escrever a sua tese na área da antropologia social. Já lhe tem um título buscado: "Bi-dimensionalidade e suicídio cultural dos galegos" Ainda não sabe se encontrará quem lha publique na nossa língua; em Barcelona mandará uma síntese à Revista Catalana de Estudis Transculturals e sairá co título "Bidimensionalitat i suicidi cultural dels gallecs" Escusado é dizer que os de Nuestra Región não lhe vão publicar nem uma entrevista, quanto mais... e vá que lhes amola que se ande a falar dessas cousas...! E vainos falar de bidimensionalidade ele, precisamente ele que tem duas ou três falas, ele podia valer como exemplo da bidualidade essa... Mas a Camilo Riba, filho e neto de Camilos Ribas —todos, até ao confim das memórias familiares, eram galegos e ele tem clara a sua identidade— não dá crédito às críticas que lhe possa fazer um panfleto ao que o qualificativo de folha paroquial lhe assentaria melhor que o de jornal. A ele agora o único que lhe consome o seu tempo é a sua tese, que há-de ser brilhante.
     De vez em quando pára-se a pensar nas possíveis críticas que os membros do júri lhe possam fazer e vai introduzindo mudanças no corpo do texto que ajudem a argumentar as posturas que ele agora, no momento de redigir, toma. A quem mais teme é ao professor Loureses, sendo como é natural duma freguesia achegada a Penacova, ainda que agora pare em Barcelona. Ele aguarda que o professor Loureses lhe critique a sua excessiva psicologização na terminologia, e lhe diga quiçá que bota em falta uma interpretação de corte mais simbólico que fosse capaz de dar conta de toda a complexidade do elemento mágico, inseparável da vida de Penacova. Camilo aproveita estas projecções que faz para ir fazendo os ajustes que lhe permitam sair airoso o dia da sua dissertação. Contudo, o que Camilo Riba jamais poderia ter adivinhado é uma das perguntas do professor Loureses, uma sobre as serpes voadoras e os seus poderes. E daquela Camilo terá-se que arrepender de não ter perguntado mais aos vizinhos enquanto andava por Penacova... Mas se fizera isso as suas observações já não seriam tão objectivas... e esse será o argumento usado para mitigar o efeito da pergunta. Claro que sim, não interferir co objecto da observação fora o seu lema, e bem difícil que lhe foi às vezes... por isso não lhes pôde perguntar nada... e ademais, que ia a pensar a gente, e o seu companheiro, se entre as perguntas sobre a pia lhes solta uma sobre cobras voadoras? Não, isso qualquer entenderia que não se podia fazer. E isso que se o tivesse feito a gente bem que responderia, pois falar disso era-lhe bem mais fácil que falar da pia. Ao cabo, o das serpes essas que voavam acontecia lá por longe; daqui de Penacova, que se saiba, só as viu o Teófilo, quando andava polo Norte, e mais diz-se que... "Eram grandes como os temões dos arados, e polo lombo fora, dos dous lados, estavam cheias dumas asas pequeneiras... como as conchas das vieiras... Quando erguiam o seu voo, já te podias vigiar. Elas não mordiam, não, o perigo delas vinha do poder da sua sombra... se che roça a sombra duma dessas, por nada que seja, aí mesmo ficas tolheito e para sempre... por conseguinte as gentes andam sempre à procura da sombra das árvores para que não lhes roce a delas jamais..." Contudo, apesar de não saber nada disso, Camilo sairá bem airoso, e o professor Loureses alegrará-se de ver como os galegos ainda somos quem de nos observarmos e de nos criticarmos, e fazemo-lo bem, ainda que às vezes para poder-nos ver com clareza nos tenhamos que afastar da nossa terra. Ele mesmo vê tudo o relativo à nossa cultura com mais clareza dês que está aqui em Barcelona, onde lhe é reconhecido o respeito que merece mais que na sua própria terra, não só como professor senão também como galego. Esta tarde achegar-se-á a algum dos bares dos Nou Barris dos tantos nos que se escuta falar na nossa língua, e quiçá presencie algo que lhe permita manter as esperanças da supervivência da nossa cultura. Que desconcertantes lhe resultam as cousas que se estão a passar na nossa terra... mas quando vê gente como Camilo Riba, que desde aqui é capaz de ir-se até lá coa sua olhada invulnerável frente ao raquitismo, a tentar resgatar o que ainda se puder salvar... põe-se contente e até alberga esperanças de que nos salvemos, de que um dia nós também sejamos um país normal... Quiçá, desta geração de galegos criados fora, livres da influência directa da bidimensionalidade essa da que falava o já doutor Riba, possam sair homens e mulheres que voltem a ajudar aos que andam hoje já a lutar contra o suicídio colectivo, contra a desmembração e a auto-mutilação crónicas.
     "Homem Loureses, que gosto saudar-te" Era C. Rousia, que desde a entrada do Cinco Estrelas o convidava a passar... "Olá! Que fazes tu por aqui? Olha que também che é casualidade, precisamente hoje venho eu dum júri de tese no que um colega falava da nossa terra, mais falava da tua que da minha, se calhar viste-o por lá, haverá um ano que visitou aquilo, e..." Conversam um bom bocado, os dous têm vagar e querência de fazê-lo... Depois C. Rousia despede-se dele: "Já me tenho de ir, alegrou-me deveras ter-me encontrado contigo, e não te preocupes tanto, que qualquer dia se resolve... isto é-che como dantes quando às mulheres, logo de três dias parindo, lhes davam a água de ferver os cornozelos... 'parir ou rebentar' diziam então... e quando as parideiras enviavam para abaixo aquele xaropote amargo já tanto lhes tinha morrer como não... algumas já estavam mais mortas que vivas... pois nós também nos livraremos... qualquer dia acaba-se o sofrimento... tanto sentir-se vulnerável... e isso que eu ainda sou nova, mas há gente que já leva uma vida longa nesta merda... e de que nos estranhamos ao ver como muitos e eles se passam ao outro bando e preferem que os seus filhos se alimentem do montão grande de esterco...? Eles, como os vermes, só pensam na própria subsistência, e devoram a maçã que lhe serve de alimento, e assim destruem o seu próprio universo... eles, os coitados, só pensam que se estão a afastar do mal que ameaça com extingui-los, e fogem moribundos a esconder-se debaixo do escudo do inimigo, porque assim tão sequer já não se apercebem de que morrem... correm sem dar-se conta de que quando se albergam lá debaixo já estão mortos... Fogem espantados por um espelho que lhes devolve uma imagem de si próprios como seres feios e desprezíveis, ora eles, tal que esganados, não podem ver outra cousa no espelho que têm diante; botam-lhe a culpa à língua, pois é a diferença que mais ressalta, e contra ela arremetem... E arrasam a terra tal que mortos viventes que como os vermes se arrastam por riba dela... Não, não me invejes porque me vou para lá, compadece-me..."

Páxina Anterior

Ir ao índice de Páxinas

Páxina Seguinte


logoDeputación logoBVG © 2006 Biblioteca Virtual Galega