Escritos sobre teatro

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SOBRE O SEU TEATRO
     É verdadeiramente um exemplo de vocaçom servida pola laboriosidade, a que representa a colecçom dos cadernos da escola dramática galega publicados até a data, e que agora se nos apresentam nos seus primeiros números formando um conjunto compacto que nos permite apreciar panoramicamente o esforço realizado. Desde ediçons e reediçons populares de textos clássicos até as primícias de autores moços de grandes esperanças, desde informes esclarecedores a propósito de questons de técnica teatral até pequenos estudos monográficos sobre obras dramáticas concretas, os Cadernos oferecem ao estudioso do teatro galego, ao amante da arte dramática, ao erudito e ao afeiçoado, materiais de conhecimento que suponhem umha importante contribuiçom ao enriquecimento da nossa cultura teatral e à educaçom popular neste aspecto artístico, de transcendência social tam relevante. Nom podia eu negar-me a pronunciar nesta ocasiom umhas palavras, como contribuiçom entusiasta, ainda que modesta, à celebraçom de um trabalho que merece a gratitude de todos os galegos. Podo considerar-me como um colaborador a distáncia desta obra, pois se bem nom se me pode estimar como home de teatro, escrevim algumhas peças e pronunciei algumhas conferências que me relacionam com estas actividades, e algumha amostra da minha teima como autor e como crítico foi benevolamente incorporada à série dos cadernos. Mesmo, dentro de reduzidos círculos escolares, sendo professor em diversos centros, privados ou públicos, de distintas cidades galegas, tenho montado alguns espectáculos dramáticos, em galego, castelhano, francês e latim, segundo as circunstáncias o aconselhavam; e ainda que tais ensaios se podem considerar puramente domésticos, som testemunho, a maior abundamento, do meu amor ao teatro, que me dá, se nom autoridade, pretexto para comparecer hoje aqui, requerido pola cordialidade do director da publicaçom, a quem felicito pola sua dedicaçom, assi como a todos os que com diversas funçons estám integrados na Escola Dramática Galega, que nalgumha ocasiom botou mao de algum texto meu para realizá-lo com esquisito gosto.
     Por isso pareceu oportuno aproveitar esta minha comparecência ante vós para tratar, sequer seja de forma sumária, do meu próprio teatro, o que nom deixa de produzir-me umha forte confusom; mas as persoas da minha idade soem ser requeridas com freqüência como testemunhas de acontecimentos sobre os que podem fornecer informes de primeira mao, e nom podo negar que a minha mao é a primeira cando se trata da minha própria obra. Os actores dos acontecimentos e as testemunhas visuais dos mesmos nom sempre estám em condiçons de fornecer informes objectivos sobre o que fixérom ou presenciárom, mas representam um ponto de vista que é mui específico, e que é mui natural que interesse conhecer ao historiador ou ao curioso. Assi, com suma timidez, pois a bailarina do strip tease ha estar mui convencida da beleza das suas formas para despi-las publicamente sem desacougo, avenho-me a tencionar a iluminaçom de alguns aspectos do meu trabalho, sem a tranquilidade com que a consciência da sua própria beleza pode conformar à profissional que a exibe.
     A minha afeiçom ao teatro, afeiçom que só esporadicamente pudem cultivar ao longo da minha vida, data dos meus anos infantis. Os meus pais, no pequeno Ferrol dos tempos da guerra europeia e o após-guerra imediato, acudiam sistematicamente ao teatro Jofre cando o seu cenário nos brindava algum espectáculo. Alternando com séries cinematográficas que conseguiam grandes êxitos, como La máscara de los dientes blancos, em que a rapaza que hoje designaríamos como actante objecto era personage interpretada por umha actriz que conheciamos polo pseudónimo de Pearl White, ofreciam-se ao público actuaçons de companhias de teatro, muitas vezes lírico, do que estava em voga em Espanha: comédias de Benavente ou Linares Rivas ou Munoz Seca ou Arniches; peças em verso de Marquina, Villaespesa ou Fernández Ardavin; zarzuelas clássicas de Fernández Caballero, Bretón, Chueca ou Chapí, ou mais modernas de Luna, Serrano, Vives, Guerrero ou Alonso. Levavam-me quase sempre os meus pais com eles ao teatro, e primeiro sentado num joelho do meu progenitor, e logo ocupando umha butaca que me vinha mui ancha, eu escuitava os cínicos alegados de Crispim, interpretado por Ricardo Puga ou os maternais conselhos da senhá Rita, cantados por Sélica Pérez Carpio. Ja moço, desde a minha humilde localidade de respaldo do Principal de Santiago, continuei vendo teatro, o mesmo que durante as minhas vacaçons em Ferrol ou as minhas primeiras excursons a Madrid. Enrique Borrás em El alcalde de Zalamea, Santacana em Espectros, Francisco Morano em El collar de estrellas, Lola Membrives em Pepa Doncel, Rosario Pino em Cristalina, Catalina Bárcena em calquer comédia de Martínez Sierra, e outros muitos actores e actrizes espanhóis de grande soada, suscitárom em mim nom só umha secreta vocaçom de comediógrafo, senom de comediante. Com o tempo, ainda que de jeito modesto, cumpriu-se algo daquela primeira vocaçom, a de comediógrafo; em troca frustrou-se inteiramente a segunda, pois na minha vida interpretei um papel nas tábuas, ainda que para adoutrinar os meus pequenos actores dos centros docentes em que trabalhei, tivem que assumir provisionalmente nos ensaios, como director, a personalidade do senhor Fuco... e até a da mesmíssima Pimpinela!
     Felizes dias de Fingoi! Com actrizes tam excelentes como as irmás Baamonde, as irmás Herrero, as irmás Fernández, algumhas das cais ainda o ano passado, neste mesmo local, recitárom versos do seu velho mestre, e outras muitas rapazas e rapazes que hoje som catedráticos, médicos ou advogados distinguidos, puxémos em cena, para os alunos, os professores e as famílias de uns e outros, nos locais do colégio ou fora deles, peças ou fragmentos de Herondas, Plauto, Lope de Rueda, Lope de Vega, Li Hsing-Tao, Seami Motokiyu, Baring, Courteline, Castelao, Cabanilhas, e mesmo como anónima, umha versom ad usum Delphini da Farsa das çocas, que foi a minha primeira estreia, na cal Glória Baamonde, hoje casada em Oviedo, e Carmen Fernández, hoje casada em Madrid, fixérom umhas sensacionais Edelmira de Comido e Divina da Acea, admiravelmente replicadas por Joám Carlos Teixeiro, que continua a residir em Lugo, e que fixo um Jocas insuperável.
     Em 1971 reunim num tomo o que me pareceu mais legível ou visível do meu teatro. Fôrom quatro peças, às cais em 1982 agreguei outras catro para constituir o meu Teatro completo.
     A mais antiga desta peças é O filho, excluída na colecçom de 1971. Escrevim-na aos vinte e três anos, recém-casado, e como estava ambientada na aldeia, para a linguage dos campesinos pedim assessoramento à minha mulher, que naceu e viveu de nena numha aldeia de Lugo, mentres eu nacim e vivim de neno no bairro marinheiro de Ferrol.
     Nesta peça apresentava um tipo feminino que encarna o ideal cristao da Virge-Nai. A exaltaçom simultánea da ideia de pureza sexual e a ideia de agarimo maternal. Dous arquetipos femininos, a donzela e a nai, contraditoriamente mitificados na Idade Média dentro da sociedade europeia. Dous valores románticos da estimativa religiosa tradicional nom conciliáveis senom na figura da Virge Maria. Joana, na minha peça, professa, até a exaltaçom irracional, a devoçom por ambos os princípios, e nom se contenta com venerar a figura que no catolicismo os realiza sobrenaturalmente, senom que sonha com realizá-los persoalmente de algum modo na sua própria vida. A realidade impom-lhe a virgindade estéril, que elege voluntariamente por aversom à unión carnal com varom. Mas o seu pulo maternal é tam poderoso que de algum jeito se crê favorecida com o dom milagroso de um filho.
     Escrita a obra, que doze anos depois obtivo em Buenos Aires o prémio Castelao de teatro, fum perdendo simpatia polo tipo de Joana, que nom só chegou a parecer-me psicopático, cousa que em realidade admitim desde que o concebim, senom que chegou a semelhar-me desumano, e falto de simpatia e atractivo pola sua aberrante conduta. Por isto, e por rasgos de realizaçom da peça que ja estimava demasiado convencionais ou anacrónicos, condenei-na à fogueira, mas nom executei a sentença, e cando a relim ao tempo de ordenar o material para a segunda colecçom, julguei-na menos desfavoravelmente.
     Desde que fora premiada em Buenos Aires, o manuscrito experimentara várias sucessivas alteraçons. Umha quase explícita interpretaçom freudiana da personage chegou a parecer-me vulgar e grosseira, contraditória com o ar de peça semihagiográfica e poética, como um mistério de natal, piedosamente lírica, que pairava sobre o texto. Joana, assi, com diversas emendas, perdeu muito do seu carácter psicopático. Ficou mais bem como umha santa ingenuamente confiada em excepcionais favores divinos, que afinal renuncia ao seu secreto orgulho de sibila Casandra e sabe ser maternal permanecendo afastada do amor de varom, ja sem obsessons condenátorias das fraquezas da carne.
     Tecnicamente, haveria que destacar que é um drama de mulheres. As personages masculinas estám em certo modo neutralizadas sexualmente, o Crego pola sua condiçom de célibe, e os nenos pola sua idade. Caracteres, nom hai propriamente mais que dous: Joana e Estrela. Esta é simplesmente a mulher normal, na cal se fundem harmonicamente o instinto amoroso e o instinto maternal. Contraponto da sua descarreirada senhora, é ao cabo a que triunfa, arrastando a Joana à outra banda do berce onde dorme o filho do pecado, agora aceitado pola mística vinculeira na sua inocência natural.
     A peça oferece nos seus três quadros unidade de lugar. Um quadro que se desenvolvia na casa da nai do neno e no cal se desvelava o mistério no trance da morte daquela, pareceu-me afinal melodramático e ventajosamente substituível pola notícia dos acontecimentos através do diálogo das personages testemunhas; de jeito que a verdadeira nai e a sua irmá, que na primeira versom apareciam em cena, fôrom riscadas no elenco das dramatis personae.
     Concebida essencialmente esta peça, como todas as minhas, em funçom da sua representabilidade cénica, tem finais de actos, ou de quadros, pensados com referência ao seu dinamismo plástico. O primeiro acto remata com o súbito estralar do climax da obra. Umha pequena parrafada inecessariamente declarativa que no primeiro borrador punha em lábios de Joana, foi subtituída por umha rápida exclamaçom, composta de dous vocábulos, que estimei de maior eficácia dramática.
     A cena final da primeira parte do acto segundo apresenta a complexa integradora dualidade amorosa de Estrela num movimento como de ballet, acompanhado de canto, em que a pendulaçom da moça entre a janela e o berce, entre o parrafeio galante e a nana maternal, quer simbolizar na sua estética oscilaçom a plenitude humana, a normalidade psicossomática da moça montanhesa.
     A cena final da peça, como fica sugerido, apresenta plasticamente a normalizaçom dos sentimentos da morgada, que aceita o filho que rejeitara no seu delirio de pureza; de forma que o expósito contará agora com o agarimo de duas nais. Joana acorda do seu sonho desumano.
     A sua transformaçom é resultado de umha luita interior entre os elementos patológicos e os elementos saudáveis da sua estrutura anímica. Para expressar isto, como no fim do acto primeiro, abandona-se a técnica de representaçom objectiva realista que se mantém no resto da obra. No que nesse final vemos nom é o que perceberiam os sentidos de umha testemunha indiferente, senom a versom que Joana ha dar-se a si mesma da apariçom do neno. De jeito que as condiçons das categorias de espaço e tempo som alteradas nesta cena, que nos abre o mundo interior de Joana. Tamém no diálogo desta com a Desconhecida, salta às tábuas o diálogo íntimo da própria Joana, a luita consigo mesma. Triunfa a Joana moça, que intercambeia o seu aspecto com a Joana madura, assi que a que se situa enfrente de Estrela no final do drama é a actriz que representa a Joana ao longo da obra, mas agora representa a Desconhecida, que é a que espiritualmente habita agora na forma exterior de Joana, mentres que a Joana visionária, enferma ou megalómana, se alongou na forma da Desconhecida, perdendo-se na noite.
     Isabel arranca de umha ideia, profundamente modificada no curso da execuçom, e que brotou numha conversa com um amigo que cria dispor de possibilidades para fazer representar a obra umha vez escrita. Isto explica que eu repetisse em certo modo nas personages de dona Júlia e Rosalia as de Generosa e Estrela que aparecem em O filho. Som personages que na nova peça cumprem fundamentalmente a funçom de informar ao espectador, mediante o seu diálogo, a propósito dos antecedentes da comédia. Som a criada velha e a criada nova. A situaçom suposta é a mesma. A criada moça acaba de entrar ao serviço na casa, e é informada pola criada velha dos precedentes que o autor necessita pór em conhecimento do espectador. Ante a perspectiva de umha pronta representaçom de Isabel, e estando relegada a primeira peça ao limbo das obras manuscritas sem esperanças de ver a luz, recorrim por motivos de urgência à contaminatio, tomando de O filho duas personages e umha situaçom que me convinham para Isabel. Mas Estrela, e a própria Generosa, tenhem o seu papel autónomo na economia de O filho, muito mais acusado, sobretodo o daquela, que os de Júlia e Rosalia em Isabel. Estrela, se nom é indispensável como elemento do drama persoal de Joana, desempenha um importante papel técnico na realizaçom desse drama tal como autor o apresenta, encanto a normalidade da criada contrasta com a anormalidade da senhora, que é conduzida finalmente à normalizaçom através da pressom da Desconhecida, ou seja da própria Joana moça e cheia de força vital. E esta desconhecida, que representa as reservas positivas que dormiam em Joana, é figura que nos seus traços essenciais responde ao mesmo modelo que Estrela.
     Em Isabel, como em O filho, o essencial é a tensom entre a ilusom e a realidade. Mas mentres na peça anterior, o processo vai da ilusom à realidade, e é um processo de saneamento, em Isabel o processo vai da realidade à ilusom, e é um processo de saneamento tamém. A realidade é a viuvez de Mário, que recupera ilusoriamente a sua mulher. Mas esta recuperaçom ilusória remove a neurose da personage, com o que se revela positiva. A outro nível, podemos assentar que tamém nesta obra se impom a realidade, porque a segunda Isabel é umha realidade viva, mentres que a primeira, morta, é umha realidade ilusória na vida do seu marido. No entanto, a peripécia em Isabel é menos radical que em O filho, pois, como sugere o diálogo monológico com a Desconhecida, em Joana hai um cámbio completo de atributos, e Joana aceita plenamente a realidade, quer dizer, a verdade, mentres que a curaçom de Mário, que tamém aceita a realidade, se verifica sem que a verdade se reconheca, pois Mário, intencionalmente, nom cambeia de mulher, ou nom contrai novo matrimónio, senom que aceita a Isabel II como idêntica a Isabel I. E, por suposto, a própria Isabel II aceita essa identidade. Em O filho, afinal, a realidade desaloja a ilusom. Em Isabel ocorre mais bem o contrário.
     Ainda que a psicologia na segunda peça oferece mais refinamento que na primeira, nom hai em Isabel cenas expressionistas ou simbólicas. Por duas vezes, em O filho o espectador vê o invisível, vê o interior de Joana. Nada semelhante hai em Isabel, na cal umha técnica completamente realista nos fornece a visom do que realmente veriam os olhos dos presentes nos acontecimentos. Neste sentido, a peça mais moderna é menos moderna -menos vanguardista, menos experimental- que a anterior.
     No seu assunto, que versa sobre os mistérios da personalidade, que destrui a rigidez teórica da personalidade definida e intransferível, a comédia pode lembrar o teatro de Pirandello, que o autor desconhecia cando a escreveu. Mas nada é inteiramente novo de baixo do sol. Nem Joana nem Isabel brotárom em mim como sugestons de precedentes literários. Mas lembro que assistindo a umha representaçom de Campo de armiño, de Jacinto Benavente, observei que a separaçom do filho cando se averigua a verdade da sua origem, e a sua posterior readmissom, porque o sentimento maternal se impom à realidade da filiaçom, é um motivo comum às duas obras. Polo demais, o nó mítico de O filho, a maternidade virginal, nom é o fundamento da obra de Benavente. Esta mais bem nos remete a El abuelo de Galdós, encanto exalta a filiaçom espiritual, sentimental e voluntária, face à material, legal e genesíaca. Maior impressom me fixo a semelhança da minha Isabel com a peça de Pirandello Come tu mi voui, cando a conhecim através da versom cinematográfica de Greta Garbo.
     Externamente, Isabel pode parecer umha peça de intriga, suspensom e mistério; umha comédia policíaca, se queredes, ainda que nela nom hai crime algum. Vejamos como funcionam neste sentido as cenas finais dos actos.
     A do primeiro aspira a suscitar umha brusca surpresa na consciência do espectador. Aparentemente, está viva umha persoa que a todo o longo do acto fora considerada morta.
     A do segundo acto marca a crise da situaçom criada com a apariçom de Isabel. Esta comporta-se em todo o acto segundo conforme os supostos indicados ao final do acto primeiro; mas as palavras que um visitante lhe dirige, e com as cais remata o acto segundo, criam umha crise na situaçom. Temos agora umha indicaçom segura de que se nos vai dar umha explicaçom do mistério. Temos umha pista.
     O terceiro acto, efectivamente, trai-nos essa explicaçom. Mas a cena final, em que Mário e Isabel ficam sós frente a frente, desenvolve-se como se aquela explicaçom nom se produzisse. El fuma, ela cose, falam de trivialidades domésticas, e o pano cai sobre umha normalidade conjugal que sabemos fictícia. É um final atípico. Um final que nom pom fim, senom continuidade na situaçom que críamos crítica, e que resulta nom sê-lo. A ilusom tomou o lugar da realidade. Nom so Mário, senom Isabel, os amigos, os criados, o próprio representante dos ideadores da ficçom -como a mesma "impostora"- aceitam a ficçom, aceitam a impostora, e cando cremos que o ilusionado e a ilusionista, sós connosco, vam comportar-se como gentes que estám no segredo e que entre eles nom necessitam dissimular, vemos, ouvimos, observamos que se comportam de modo tal, que a ilusom da última cena do acto primeiro foi assumida por eles como verdadeira realidade. Efectivamente, nom hai nada que secretear, nom hai nada que dissimular, nom hai nada que dizer. Só que é duvidoso que uns jornaleiros podam rematar umha obra, pois as chuvas causárom muitos desperfectos, e nom se dispom de persoal suficiente.
     O ano de 1948 escrevim três peças. A primeira delas, em três actos -ou lances-, como Isabel, renuncia tamém na visualizaçom da trama a todo procedimento que nom seja realista. É tamém umha comédia psicológica, e ainda que agora nom hai esses jogos de ósmose entre a realidade e a ilusom que hai em Isabel e em O filho, pois as cousas que vemos suceder no cenário em A sombra de Orfeu transcorrem dentro da mais absoluta verosimilitude material, a análise psicológica parece-me mais matizada que a das peças anteriores, onde propriamente nom se estudavam individualidades, senom situaçons ou modelos típicos de reacçom humana perante problemas existenciais. Aqui o autor acha gosto em traçar os perfis de seis mulheres, três delas em alto-relevo, as outras três em relevo menos salientado, que bolem arredor de umha figura masculina consagrada à sua vocaçom artística como suprema finalidade da sua vida, e que, dotado de um forte poder de atracçom sobre as mulheres, e perfeitamente capaz de valorizar o encanto feminino, subordina totalmente à sua relaçom com a música a sua relaçom com o sexo oposto, e com heróico egoísmo se abstém de aceitar laços que pudessem comprometer a sua dedicaçom a própria obra de compositor. Necessita ser livre, e por isso rompe o seu vínculo com Mariana, joga sem queimar-se com o lume perigosíssimo de Madalena e mantém um trato assepticamente amistoso e profissional com Luisa. Excepto esta, devota servidora do mestre, que é feliz com a confiança e estima do mesmo, sem nengumha veleidade erótica ostensível, as demais misturam a admiraçom artística com a inclinaçom galante, o que fai impossível umha comunicaçom afectiva duradoira com el. Orfeu refuga ser devorado polas feras que o ameaçam com as fauces da sua feminidade enervante, e o Mestre conserva só ao seu carom a feminidade da sua fiel e digna colaboradora, feminidade sublimada em dedicaçom profissional, e que só a custa dessa sublimaçom mantém a privilegiada posiçom de sombra familiar do Mestre, a quem nom inquieta e que, naturalmente, a estima como preciosissimo coadjuvante da sua obra.
     A indolência, e mesmo a desconfiança do artista perante a mulher que pode pertubar o seu matrimónio com a musa, fica patente na cena final do acto primeiro, tam decepcionante para o que espera, como alguns indícios poderiam sugerir, o triunfo do erotismo.
     O final do acto segundo revela a disposiçom para a luita de Mariana e Madalena, cada umha das cais vê a Rafael segundo as suas respectivas experiências e temperamentos.
     O do terceiro pom de manifesto que ainda que nessa luita vence aparentemente Madalena, o objecto da disputa nom está disposto a alhear a sua independência, que mantém com implacável decisom.
     Comédia com unidade de lugar, como Isabel, e de mais cingida unidade de acçom, é mais irónica e lúdica, como corresponde à condiçom das suas personages, que aqui som todas artistas. Creio que os seus procedimentos técnicos som menos "benaventianos" que os de Isabel. Cando um crítico regista como ingénua ou convencional a frase de Mariana: "Todas vivemos longe, menos Madalena", dirigida às suas amigas, que, naturalmente, sabem mui bem onde vivem, esquece que Mariana nom tenciona informar ao espectador, através de umha redundáncia inverosímil, de um feito sobre o que mais adiante se fornecem dados, senom urgir a necessidade de nom demorar a marcha, relembrando as distáncias que hai que percorrer, para remover a resistência a emprender o regresso das persoas que se mostram renuentes a encetá-lo.
     A Farsa das çocas baseia-se num relato popular recolhido em Sam Sadorninho por umha minha discípula, hoje catedrática nesta cidade. Tomei-me, naturalmente, todas as licenças que me prouvérom na dramatizaçom da história, e resolvim os problemas de ambiente e personages estilizando todo segundo as fórmulas da farsa semiguinholesca. Os convencionalismos e a ruptura dos mesmos estám utilizados com finalidade humorística, como é o caso das autopresentaçons das personages, os apóstrofes dos mesmos ao público e outras técnicas. E umha obra caricaturesca, que admite umha leitura social ou simplesmente lúdica, inteiramente inserida no contexto galego rural.
     Tamém hai estilizaçom em A árvore, mas de outro tipo. Parece-me que neste auto, que trata do amor -totalmente ausente na Farsa das cocas, onde o motor da acçom é o interesse económico-, ainda que hai ironia, e mesmo certa esperpentizaçom, mais chaplinesca que valleinclaniana, a substáncia do assunto é de um existencialismo mui sério, mesmo trágico. Dando um tratamento moderno à história bíblica da árvore da ciência, encena-se a expulsom do Paraíso e a conversom do amor, que devia dar felicidade ao home, em causa da sua desdita.
     Em 1969 puxem-me a redigir em Lugo o Auto do prisioneiro, longo tempo meditado, e que é a mais expressionista das minhas peças. Como os autos sacramentais do teatro clássico espanhol, utiliza as personages simbólicas, ainda que sem sacrificar a sua aparência individual. Evidentemente, contém muitos elementos de sátira social, mas a sua raiz última é o problema da transcendência: do que pode haver, se hai algo, tras a porta que permanece fechada mentres o Prisioneiro vive. Existe o Director? Isto perguntava um espectador tras umha representaçom desta peça nesta cidade. Essa pergunta constitui o assunto da obra. Com relaçom a ela tem-se falado de Beckett e de Kafka. Na época em que se estreou, cando se considerava imoral em certos meios toda literatura independente, uns interpretárom-na benevolamente como dirigida contra a sociedade de consumo, e outros, detectando nela umha postura ideológica incompatível com o materialismo dialéctico. Eu creio que tencionei refletir numha forma moderna, poética e incisiva, a angústia do home engaiolado na sua finitude, mas com umha fáustica sede de além. Destas catro peças últimas falei algo no prólogo ao volume que as contém, e nom desejo repetir-me. Nom direi, pois, mais delas.
     A última das minhas obras de teatro é umha comédia política. Muito tempo a incubei, mas até 1980, precisamente na Corunha, nom pudem pôr-me a escrevê-la. Se alguém se molesta em interpretá-la, pode chegar à conclusom de que é umha apologia de classe militar, ou bem que é umha sátira contra a mesma. Tamém cabe interpretá-la como progresista e como conservadora, como de esquerda e como de direita, e até como de centro. O pensamento que quixem desenrolar é o da ambigüidade das posiçons políticas, e, como harmónico deste motivo, o da inanidade das luitas civis, o da identidade íntima dos ideários políticos opostos, o da escravitude dos chefes com relaçom às massas e o da manipulaçom das massas polos chefes. O acto primeiro desenrola-se no Quartel Geral das forças conservadoras. O acto segundo desenrola-se no Quartel Geral das forças progressistas. Som inteiramente paralelos. Num é noutro bando aparecem o chefe inteligente, paciente e objectivo; o colaborador profissional, cortês e frio; o político profissional, que domina a retórica da propaganda. Som duas entidades de igual magnitude, de idêntica estrutura. Comprendem sectores moderados e sectores radicais. Só se diferenciam na orientaçom do seu esforço. Uns tendem ao leste e outros ao oeste, uns à esquerda e outros à direita. Sem um rígido esquematismo, que daria à peça um ar de farsa que nom tem, os dous primeiros actos oponhem-se quase cena a cena, personage a personage. O General Branha e o General Dragom, o General Brandariz e o General Bravo, o Ministro de Informaçom e a Ministra de Propaganda. Salvo o signo, a cor branca ou negra, escuitamos as mesmas soflamas, contemplamos as mesmas atitudes, observamos as mesmas convençons, estimamos os memos valores. O acto terceiro reduz a sintese a tese e a antitese manifestadas nos anteriores. Os chefes ponhem-se em contacto e revelam-se idênticos. A guerra e inevitável, porque as asas extremas de ambos os bandos som irreconciliáveis, e querem esmagar-se mutuamente; mas essa guerra é inútil, porque ganhe quem ganhe, os chefes comprometêrom-se a manter a mesma posiçom. Tenhem que luitar, ainda que os seus ideais sejam idênticos, porque a força dinámica está nas posiçons extremas, e estas chocam. Mas umha destas posiçons será eliminada pola vitória do ganhador, e este eliminará logo a força do bando vencedor homóloga e antagónica da esmagada. Nom é possível a paz entre Branha e Dragom, mas si o acordo, porque realmente estám de acordo, e ainda que vam luitar, vam triunfar inevitavelmente ambos, ja que o sobrevivente realizará a política comum.
     O terceiro acto desenrola-se em terreno neutral, e por vez primeira enfrentam-se os dous chefes. Este acto foi o primeiro que escrevim, precisamente nesta cidade, no verao de 1980, portanto antes do intento de golpe militar do 23 de Fevereiro de 1981. Digo isto último porque nesse acto dous generais se ponhem de acordo para realizar um golpe militar. Mas o ambiente da minha peça nom é o das intrigas políticas, senom o da guerra civil. Nom se trata da guerra civil que dessangra Espanha entre 1936 e 1939. Os chefes da minha obra pouco se parecem aos chefes daquela guerra real. Ambos som caudilhos militares, e nengum reproduz os rasgos do único que existiu na nossa guerra. Excepto que um se apoia na direita e outro na esquerda, nada os diferencia, e, afinal, o mesmo dá que vença Joám ou que vença Pedro. Mas como o drama está concebido de jeito realista, utilizei a minha experiência da guerra civil espanhola para dar verosimilitude a acçom. Fala-se de quinta coluna, fam-se mútuas acusaçons de crimes de guerra, pronunciam-se palavras que fôrom realmente pronunciadas. "Catro colunas do nosso exército convergêrom sobre Gaibor, mas quiçá seja a quinta a que desplegue a primeira bandeira nossa na Casa de Governo da capital". Som palavras atribuídas a Mola, postas aqui em boca do Ministro de lnformaçom dos brancos. "Imporemos a nossa vontade com a vitória". Som palavras de Franco. "Renunciamos a todo menos à vitória" era umha consigna dos anarquistas. "Nom passarám" foi o lema dos defensores de Madrid. "Gaibor será a tomba da subversom reaccionária" adapta a fórmula propagandística "Madrid será la tumba del fascismo".
     O diálogo dos chefes no terceiro acto é o caroço da obra, e todo o demais som antecedentes ou consequentes desse momento crucial. Os dous primeiros actos apresentam aos dous antagonistas. O terceiro enfrenta-os. Como o Heitor e o Ulisses de Giraudoux, entendem-se; mas como é inevitável que haja guerra de Tróia, é inevitável que se dê a batalha de Gaibor. Sem embargo, calquer que seja o resultado desta batalha, o porvir político de Gurlándia será o mesmo: um golpe de estado militar que imponha uma situaçom de centro.
     A posiçom do autor perante a matéria ideológica que organiza em condutas dramáticas é a de cronista imparcial. Nom hai nengumha preocupaçom propagandística, nom hai nengumha caricatura. Nom hai nengum maniqueísmo. Sentiria muito que um director progressista caracterizasse de maus aos combatentes do primeiro acto, ou um director conservador fixesse o próprio com os do segundo. Cada quem defende a sua causa na peça o melhor que pode, mas som dous turnos, um para cada bando, os que se concedem. E se no diálogo dos chefes se propugna umha terceira soluçom, a responsabilidade é dos chefes, nom minha. Pode-se pensar: dous homes de honor com verdadeiro sentido patriótico. Ou tamém dous chefes que pactam um engano às massas que os apoiam. Umha apologia da democrácia ou umha sátira da oligarquia. A vida pública, como a privada, pode ter interesse dramático independente das condutas éticas.
     Contra o meu costume, os dous primeiros actos rematam com cenas neutras, porque som pura preparaçom do enfrentamento do terceiro. Este si tem um final marcado, ainda que o feito de que o cenário esteja vazio, e as únicas vozes que se ouvem sejam a do relógio e a do canhom, dé, segundo creio, algumha originalidade técnica a este desenlace.
     Ja nom hai tempo para que falemos de O redondel, de 1951, adaptaçom num acto para teatro infantil do complicado drama chinês de Li Rsing-Tao O círculo de giz. Foi representada duas vezes em Fingoi. Glória Baamonde, actriz mui excelente, fixo a primeira o papel de Hai-Tang. A segunda vez incorporou essa personage a mesma aluna que fixera com anterioridade umha impecável Pimpinela, Carmen Herrero. As duas fôrom as minhas discípulas tamém na Universidade.
     Queridos amigos: devo rematar e remato. Muitas graças poja vossa atençom, e as minhas excusas por ter-vos entretido tanto tempo falando de mim mesmo. Nom o volverei a fazer.

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