v2monchofildalgoeuvi001.html
Srebrenica
será para sempre uma
mancha na consciência do povo sérvio
e uma vergonha para ONU, cúmplice
daquele genocídio...
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O relato que vais ler, leitor, não pertence
à realidade, é da exclusiva invenção do autor. |
Naquelas horas pensava nela... Era
uma adorável tagareleira, ria sem qualquer justificação. Tinha
um belo sorriso. Penteava-se com suavidade... Era branca, magra,
braços frágeis e longos. Inés ocupava agora as lembranças
dele. Apenas for uma relação de garotos bailando nas romarias
da bisbarra. O Ricardo perguntava-se o porquê é que retornava
àquela lembrança assim tão de súbito... Não fizeram o amor,
não concordaram em se prometer... Não foram outra cousa que
dous vizinhos que projectaram uma hipotética relação para um
futuro incerto.
Mas depois apareceu a
Colensa... A Colensa foi como uma frequência furtiva na
sintonização duma emissora que eu desejava ouvir... Esta era a
Inés, mas das ondas vizinhas surgiu aquela voz violenta,
cativante. E já nunca mais soube da Inés!
Recém chegado a Istambul para
enviar notícias a um jornal de Lisboa o Richard repousava num
hotel perto do bazar da cidade velha. Ainda havia de baixar à
recepção a recolher os documentos pessoais e após havia
também de tomar o fresco da noite. Uma noite de Junho do ano de
1993. Informaria a seus leitores dos acontecimentos da zona na
que, exceptuando o conflito Curdo, a tranquilidade é habitual.
O prédio do hotel ainda que
moderno conserva um certo estilo que só outorgam algumas cidades
do mundo a suas construções. O peso da história tudo o engole!
- Senhor , pode devolver-me a
documentação? - disse em inglês o Richard ao empregado da
recepção do hotel.
Nesse instante aproximaram-se dele
dous homens apressados e suarentos:
- Windsor, Richard Windsor,
pode-nos atender um bocadinho? Somos da polícia de fronteiras.
Nós é que temos a sua documentação.
O Richard, alarmado polo incidente,
esforçava-se em lhes explicar que ele era apenas um simples
jornalista com todos os documentos em ordem. Introduziram-no num
carro e encaminharam numas ruas angustas e transitadas mais por
peões do que por qualquer veículo a motor.
- Repito-lhe que eu sou apenas um
simples jornalista. Trabalho para um jornal português e tenho
nacionalidade cubana.
O carro deteve-se diante dum
prédio feio e sujo mas uma vez dentro a opinião mudava
automaticamente como se a mente do sujeito for um aparelho
informático programado para isso. O Richard franziu o cenho e
observava atónito.
- Senhores, eu sou jornalista...
Tenho os meus direitos - gritou o Richard em inglês.
Uma porta, forrada de pele vermelha, deu passo a uma panorâmica
agradável, uma requintada mesa de dimensões consideráveis
tinha conta dum bom número de alimentos, umas dez, ou quiçá
quinze, pessoas falavam amigavelmente ora em inglês ora em
árabe e às vezes em turco.
Quando o Richard tinha a seu
alcance tudo o que a mesa portava aproximou-se dele um homem de
rosto escuro, olhos cinzentos e vestido com roupas árabes.
- Senhor Windsor, Richard, quanto
tempo!
- Meu senhor, é agradável escutar
falar essa língua na que Jorge Amado tão bem escreve, mas eu
sou cubano e trabalho para um jornal europeu. Você quem diabos
é?
- Não lembra?
- Não...
- Lembra um naufrágio perto da
cidade de Vigo?
O Richard seguia afirmando a sua
naturaliza de cubano.
- Vocês olhem para meu passaporte.
Sou cubano, estão equivocados de pessoa.
- Amigo Richard - ergueu a voz o
sujeito que falava português- eu ia ali, sou capitão de barco.
Era capitão do Paulo Figueira!!
- Senhor Agostinho?
- O mesmo, Carlos, ou prefere que
lhe chame polo nome?
Nessa altura tomou a palavra outro
indivíduo vestido à europeia e que falava inglês.
- Amigo Ricardo Aveiro, já que nos
conhecemos - disse dando-lhe a mão- vamo-lhe apresentar a pessoa
que andávamos procurando!
E alguém leu, em português, num
papel:
Ricardo Aveiro, que se fez
passar por Carlos em algumas ocasiões... Natural de Vila Velha,
Galiza...
- Terra de tratantes e bom gado! -
acrescentou o Aveiro.
Os navios dão o adeus sonoro,
doído, tristão lá no Bósforo. Dizem que os barcos que navegam
na distância levam os desejos de todos os homens de a bordo. O
Richard, na crise de perto dos
quarenta, em cada enruga leva gravado a ferro o amor que não
foi, a mulher que não amou.
- Perfeito. Como ia dizendo, em
origem estudante para abade, engenheiro, assassino de dous
súbditos muçulmanos, terrorista... Buscado por dous estados
europeus, nos dous cometeu assassinato, e que o Marrocos poderia
aderir petição de extradição. Não esqueça que os dous
súbditos eram dessa nacionalidade.
- Desculpe. Eu sou inocente de
todas essas imputações. De mim escreveram-se muitas cousas não
exactas, olhe lá... Que se era terrorista, que se
independentista... eu quando era súbdito espanhol ninguém
puído jamais demonstrar acção alguma fora da lei que eu
cometesse. Além disso a minha família teve sempre uma conduta
irreprochável.
- Bom, olhe meu caro Aveiro, se
prefere Richard, nós desejamos que nos faça um trabalho bem
remunerado, isso sim. E se não quer, entregamo-lo às
autoridades espanholas. OK? - cortou o indivíduo que melhor
falava português e lia num papel a biografia do
Aveiro.
- O jornal para o que trabalho sabe
algo da minha identidade?
- Não, e se o desejar pode você
convencê-los de ir para Sarajevo informá-los da guerra - disse
em inglês outro sujeito vestido de árabe.
- Sarajevo?
- Sim, lá é onde desejamos que
nos faça o trabalho - afirma o capitão.
- Vocês querem matar-me? Não
resistirei outra guerra, não, faça o favor! - disse aflito o
Ricardo.- Com a do golfo tive avondo, outra não por favor...
- Meu caro amigo - falou o
capitão- se você entrasse na cidade como jornalista ocidental,
não há problema nenhum.
- Claro, homem. Lá andam de
brincadeira. Estamos a falar da guerra mais criminosa dos
últimos anos e você aconselha-me que me não aflija. Que fácil
é dizer tontices.
Naquele instante alguém indicou
aos presentes que tomassem assento para comer o que havia servido
acima da mesa.
O Agostinho era o instrutor nos
detalhes da missão. Em dez dias começaria sua execução. O
governo legal de Sarajevo podia cair em menos de seis meses se
antes não chegavam armas, estratégias e informações
necessárias.
Tantas atrocidades tinham
acontecido já naquela guerra, onde os sérvios se não saciavam
de conquistar e assassinar, que as Nações Unidas
estavam a dar imagem de cumplicidade. A Europa Ocidental dava a
impressão de estar contra da existência dum estado muçulmano.
Éramos quatro ou cinco pessoas,
andávamos caminhando polas ruas do limitado perímetro de Vila
Velha abrigados com sobretudos grossos e era no mês de Agosto...
Andávamos na procura dos movimentos das estrelas... Ou era do
cometa? Acaso era uma chuva de estrelas? Que mais dá! Éramos
quatro ou cinco, íamos em silêncio contemplando no céu limpo e
empedrado de estrelas naquela noite fria, limpa, amarga... Amarga
porque fica longe a noite de Vila Velha. E era o mês de Agosto.
Bebemos, na fonte fria, respirámos
o ar perfumado da Regata, passeámos polos cimos dos Agros,
detivemo-nos na Caracocha... Ouvimos a coruja polo Caminho Real.
Sentámo-nos no Couso Velho e olhámos as luzes lá longe, de
vilas e aldeias. O ar fresco dava-nos forte na cara. Era o mês
de Agosto daquele ano inesquecível.
Vila Velha, minha Vila Velha pobre,
alongada e distante. Vejo à minha avó fiando na roca e
aconselhando-me enquanto eu, miúdo, rebelde e inquieto ando
arredor dela sem lhe fazer muita atenção.
- Ai! Meu Ricardinho, quando eu che
falte vais dizer: que razão tinha a minha avó...! E era naquele
mês de Agosto que eu já não era miúdo, minha avó deixara de
existir e lembrava suas palavras, tépidas, amáveis e bem
intencionadas.
E agora que faço cá? Quem sou eu?
Não atinjo a saber que pinto nesta terra.
Éramos quatro ou cinco pessoas
naquela noite tépida na lembrança e fria na lonjura. E agora
também estamos no verão
Os muçulmanos desta nação
agredida achavam-se à mercê da superioridade militar dos
agressores. O Ricardo Aveiro percebia certo romantismo naquela
operação que ia iniciar, quem lho ia dizer, mas também
cavilava em todos os perigos que se acharia.
Quanto mais velha é a gente mais
responsável e temerosa... - pensava para si próprio o Aveiro.
Deitado acima da cama do quarto do
hotel o Ricardo repassa mentalmente a geografia dos Balcãs. Não
deseja acreditar na fatalidade que ameaça à Bósnia. Sérvios e
croatas parecem ter atingido o assentimento dos que mandam no
Conselho de Segurança para repartirem-se a
república.
Para serem as primeiras horas
naquele hotel muitas cousas lhe tinham já acontecido... O
reencontro com o capitão do Paulo Figueira,
Agostinho, semelhava uma circunstância inventada num romance de
espiões.
No dia seguinte iniciaria o treino,
ignorava quase todos os detalhes e dados que precisaria.
Geográficos, culturais, políticos e até lingüísticos.
Naquela ceia sequestro o capitão
Agostinho e ele falaram de tudo o acontecido em tempos
pretéritos. Com a queda do muro e com ele o comunismo, também
no pensamento filosófico do Ricardo tinha acontecido uma
mudança importante. Alem disso, a guerra da ex. Jugoslávia,
primeiro na Croácia e agora na Bósni-Herzegovina, fizeram
atingir uma evolução no discurso do Aveiro. Tudo isto unido a
madureza da sua pessoa fazem do antigo estudante para abade um
possibilista, como ele gosta de se definir. Agora é
um firme defensor da Unidade da Europa onde todos seus povos
tenham um espaço de liberdade.
Agostinho contou que a operação
estava financiada polo governo da Turquia e abençoado pola
Companhia. Na cabeça do Richard Windsor, teria que
continuar com o nome actual, mesmo retumbavam as palavras do
Agostinho pronunciadas na ceia:
- Podes imaginar, o projecto é
segredo, cá o que se vaia da boca termina com um buraco no
crânio, e zás! os miolos fora...
O ordenado pola operação para o
Richard Windsor ainda se não fora concretizado, mas andaria por
cima dos quinhentos e mil dólares. Reverteriam no familiar mais
próximo de lhe acontecer um acidente mortal, mas sempre que o
carregamento tiver chegado ao seu destino. Oitenta toneladas,
seriam transportadas em camiões pequenos todo terreno camuflados
com as iniciais das Nações Unidas: UN, tal que um carregamento
humanitário. Polo menos essa era a primeira ideia, ainda que o
Richard viajaria antes.
- Mas que é o que se podia fazer
com apenas oitenta toneladas de material militar? - Pensava o
Richard.
Achava uma minúscula quantidade de
armamento. De supetão uma trovoada estava acontecendo em
Istambul. O Ricardo mergulhado nas lembranças de tempos já
desaparecidos, ora em Vila Velha, ora em Lugo caminhando por uma
muralha romana reconstruída polo menos duas vezes... Em quantas
ocasiões pegara naquele passeio da muralha para desabafar dos
acontecimentos negativos. Foram momentos muito duros que agora os
olhava suavizados com a relatividade do passo do tempo.
Sentia-se importante, ele um
fugitivo da justiça de dous estados, ou mais... Esta encomenda
que provinha de dous governos, e abençoada polos serviços
secretos mais importantes do mundo. Infelizmente as amizades dele
iam mudando com velocidade. Os conhecidos de hoje não podia
segurar que o foram amanhã. Cada vez mais sentia essa saudade na
lonjura de todos os galézios do mundo.
- Quem sou eu? Por quê éramos
assim de irreflexos naqueles anos. Por quê publicara eu aquelas
tontices na Galeria Pública incomodando àquela
família luguesa? - Ao Richard assaltavam-lhe todas as
lembranças da sua existência na noite de Istambul.- Sou um
simples apátrida? Europeu ou cubano? Apenas tenho notícias da
minha gente. Sempre mentindo, estou farto de fugir. Triste
destino o dos homens que por desígnio do mais alá, ou do mais
acá, terminam fazendo uso do fogo e da pólvora.
A moda era a do pêlo longo, quanto
mais pelugem melhor! Ele era um dos mais à moda. Gostava de o
trazer que quase a gente o confundia com uma mulher. A Inés
sempre a empurrar nele, gostava de lhe governar a vida. Quiçá
porque eram amigas as famílias e até algo parentes. Eram tempos
em que a mocidade ia ter à missa.
- Há que ir à igreja - dizia o
pai do Ricardo -, se precisas uma certidão o pároco expedi-a
sem qualquer problema. Se não te olha nunca na missa?!
- Para que quero uma certidão do
cura? Vou para jogar futebol e ter com a gente.
Aquele Domingo o Ricardo sentara na
parede meio esborralhada que havia próxima da igreja, nos
minutos prévios a começar a missa o barulho era considerável,
os moços, os miúdos e algum velhote riam e gracejavam. Havia
muita brincadeira.
Polo campo da festa arriba, magra,
orgulhosa subia a Inés. Na altura do Ricardo parou-se e disse
energicamente:
- Estarás contente?
A gente soltou a rir a gargalhada.
Ele tornou vermelho como uma cereija madura. Era o protesto dela
porque o Aveiro cortara o pêlo!
Às sete da manhã um carro todo
terreno bruou às portas do vetusto hotel. O Ricardo saiu
acompanhado dum sujeito de espessos bigodes e barbas de poucos
dias. Montaram no carro, o Richard - preferia fazer-se a esse
nome- ia na parte traseira, e pegaram numa estrada secundária
caminho das aforas de Istambul. Conduzia outro sujeito de pele
cinzenta e olhada neutra. O Ricardo guardava silêncio, também
os outros acompanhantes, e apenas se interessava pola paisagem ou
lugares que iam deixando atrás. Depois de algum tempo de se
terem adentrado num bosque espesso apareceu uma casa rodeada de
prados. O que guiava no carro indicou ao Aveiro com um sinal mudo
que entrasse. No interior achou-se com o Agostinho e outro homem.
A casa só tem um andar e uma mesa numa sala central que na
realidade era quase das mesmas dimensões que a pequena
edificação. Acima da mesa uma metralhadora e algumas pistolas.
Fizeram práticas de tiro, treinaram em técnicas de ocultação,
de interrogação e também de improvisação em inglês.
Repassaram rotas, frentes da guerra e alguns vocábulos em
língua servo croata.
O Agostinho é quem instruía. O
Aveiro admirava naquele angolano, ou de onde é que era?
Capitão? Quem sabe o quê era o angolano?
Após dum tempo saiu, não se soube
muito bem donde, à palestra um sujeito ruivo, de uns quarenta
anos, emagrecido e longo como um lareiro.
- Senhor Aveiro, é um prazer. Sou
Wili. Chefe da operação.
- Encantado de o conhecer - disse o
Ricardo oferecendo a mão direita.
Continuaram a tratar dos assuntos
que o Ricardo não tinha ainda esclarecidos. Como se levariam as
armas até Sarajevo? Como é que pretendiam entrar com o
carregamento numa cidade sitiada polos sérvios armados até o
infinito e hostis com as operações humanitárias.
O senhor Wili disse que ainda não
chegaram ordens de se trasladar à capital dos turcos
eslavos. Mas as armas já estavam na Albânia... Agora
duvidava-se se as passar por Monte Negro com o suborno das
autoridades locais ou por qualquer outra fronteira. Tampouco se
sabia muito bem se chegariam em helicóptero ou em camião como
num princípio se tinha pensado.
Aquela aparente desorganização
apoderava-se do correspondente metido a espião forçado... Ele
que trabalhava sempre sob projectos quadriculadamente calculados,
achava-se agora numa empresa onde ele próprio semelhava um cevo,
uma negaça! Embora um engano?
- Você tem um conceito nítido da
missão exacta a realizar?
- Bom, senhor Wili, você está de
brincadeira ou é parvo?
- Por que é que o diz?
- Pois porque ainda ninguém me
informou do que tenho que fazer... Agás pensem que sou adivinho?
O Wili sorriu, tomou-se uns
segundos como pensando ele primeiro o que havia de dizer.
- Você é jornalista, Richard
Windsor, cubano... Isto é importante, é cubano e é o mais
exacerbado e radical dos comunistas... Os sérvios gostam disso!
- Muito bem... Além de tudo, acho
que alguns sérvios não serão comunistas?
- Tem que comunicar com os
muçulmanos, com a presidência, quando isto aconteça já
saberemos como chegarão as armas e onde... O lugar decidi-lo-á
o Governo Bósnio. Não há que esquecer que é ilegal vender ou
oferecer armas na zona. Quanto à situação pessoal, desde hoje
você é um agente da nossa Central.
- Quem o ia dizer... - interrompeu
o Aveiro -, se chegam a saber alguns dos meus amigos botam-me
cianeto na bebida!!
- A vida é uma roda que
changoleia, meu caro. Eu, cá onde me vê, fui activista em favor
de Moscovo.
O Ricardo moveu a cabeça como
indicando que não ia acreditar nisso que o Wili contava. O certo
é que o Aveiro tinha a impressão de que tudo dependia de ordens
de muito acima, o mesmo podia sair em qualquer instante como
demorar um tempo indeterminado.
Naquela noite quente de Julho em
Istambul todos os mosquitos da Turquia tinham concordado atacar
no Ricardo. Ele sempre tivera grande problema nos insectos já em
Vila Velha, de miúdo, achava um grande problema. Os tavões
quase que preferiam a branca e terna pele do rapaz que a das
vacas ou a dos cavalos quando ele estava perto.
O local encontrava-se uns quantos
metro baixo do nível da rua, o fume dos charutos invadia-o
tudo... Wili, Agostinho e o Aveiro tomavam aguardente curda em
fildzans, que são como cuncas pequeninas, naquele local que era
uma mistura de bazar árabe e cantina galega. Numa megafone
distorsionada transmitia-se uma música de fundo que para
qualquer profano nos ritmos da zona, como o Ricardo, embora se
adivinhava de inspiração árabe... Vários camareiros serviam
bebidas detrás duma montra de madeira e adornada com objectos
marinheiros. Mas, podia-se comprar de tudo naquela loja. Desde o
sexo até o chocolate e outras ervas! E de súbito o
silêncio. Seguiu uma música harmoniosa, suave e própria para a
dança da serpe! Assim é como o Aveiro a denomina. As olhadas
viraram para um cenário de madeira, uma mulher apareceu
retorcendo a cinta e abalando os glúteos no interior dum véu
gigante e transluzido que lhe cobria desde o umbigo até os pés.
O Aveiro lamentava a pobreza de
espírito na que morava desde havia um tempo. No seu leito de
estrume sem obter ordenado nem prazer.
- Coitado de mim! - rosnou.
O Agostinho falava e falava com o
Wili, ora em inglês ora em português e até em árabe e turco.
O amargoso café desceu pola goela
abaixo, o Ricardo seguia com a olhada os movimentos duma das
camareiras que debaixo do avental imaginava voluptuosa. De
supetão batiam na sua mente uma cheia de vocábulos: Lugo,
solteira, trinta e tantos anos longos... Sentiu um desejo brutal
de beber um golo mais de café e de aguardente e até fumaria de
não ser-se polo muito sofrimento que passara para se afastar
desse vício!
Mais uma cousa lhe remoía no
pensamento. Está certo de que o Ocidente não gostava da
criação dum estado muçulmano na Bósnia-Herzegovina, então o
por que é que tanta gente e importante empenhada em fazer chegar
armas a esse povo ao qual indirectamente estavam privando por
outros meios de se defender? Acaso eram armas? Talvez não seria
só leite em pó para acalmar as consciências dos membros dos
governos? Que faço eu cá nesta empresa?
- Se calhar é preciso meu concurso
numa missão que seria do mais singelo para a Central... Com
quatro helicópteros desde qualquer lugar do outro lado da foz do
Neretva poderia-se chegar sem qualquer complicação ao
território controlado polos muçulmanos. Então por que
arriscar-se ir a Sarajevo? Mas tampouco é que esteja decidido
que eu vaiar a Sarajevo? - perguntava-se o Aveiro enquanto o Wili
e o Agostinho seguiam a beber aguardente e a falar não se sabia
muito bem em que idioma?
- Você crê que eu sou pessoa
idónea para uma operação disfarçada de humanitária? -
Inquiriu o Ricardo ao Wili.
O Wili moveu a língua devagar numa
boca pastosa e com cheiro a metílico Curdo disse:
- Acho que sim, meu amigo Windsor,
Richard, Ricardo... O amigo Agostinho contou o hábil que você
é ante as adversidade e o perigo. É como os gatos
camponeses!
- Qual é a missão?
- Já o sabe, fazer chegar armas
aos muçulmanos, e por isso pagam-nos muito dinheiro, camarada!
- É que pretendem, que lhas leve
eu baixo do braço?
- Mas que brincalhão... Você é
jornalista, comunista, cubano, hábil e especial -
adiantou-se o Agostinho.
- Como vou ir eu só? Que pensam,
que sou um super-homem?
- Não, você será o nosso enlace
em toda a operação, mas não se aflija, não terá que carregar
camiões! - Riu o Wili.
O treinamento continuou vários
dias mais naquele insuportável mês de Julho. O Ricardo, o
Agostinho e mais o Wili tomavam café agora no bar do hotel,
aguardavam instruções das alturas. Eram as quinze e trinta...
Naquela altura entrou no bar uma personagem de pele queimada,
baixote e de amplos bigodes. Dirigiu-se ao Wili e inquiriu:
- Estamos prontos?
- Estamos.
Acenou com a cabeça e enfiaram os
quatro para uma sala contígua ao bar, no mesmo andar, um
bocadinho elevado do chão. Uma vez dentro e quando todos
sentaram em uns sofás de veludo verde disse o tal:
- Boa tarde. Sou uma pessoa com
nome próprio como todo o mundo mas vocês não saberão jamais!
Tampouco provavelmente nos voltemos encontrar, e se isso
acontecera eu não os conheço, e vocês tampouco a mim...
O Ricardo naquela altura mirou para
o Wili surpreendido.
- Quem nos pagará o dinheiro
prometido? - Inquiriu o Ricardo.
O sujeito facilitou-lhes um
envelope onde teriam que preencher os dados pessoais e o
endereço aonde remeteria o dinheiro no caso de resultarem
mortos. Naquela operação o Aveiro achou que o Wili e o
Agostinho tinham graduação inferior na Central. Já
que haviam de fazer o mesmo que o Ricardo sendo ele novo.
O sujeito seguia a falar e exprimia
cada detalhe da operação.
- Não sei o que lhe terão dito,
senhor Aveiro, mas desde já o único que conta é o que agora
lhe diga eu. A operação será realizada em helicóptero desde a
foz do Neretva. Você tem cá as instruções neste envelope. A
grandes traços dir-lhe-ei que amanhã partirá para Atenas onde
contactará com a embaixada de Jugoslávia para viajar a Belgrado
como jornalista que é. Lá a sua encomenda é fornecer uma
passagem do próprio governo da Sérvia para poder circular
livremente por Bósnia controlada polos sérvios. Em cada lugar
que você esteja há de ter uma entrevista com os nossos
homens... No envelope tem os nomes que terá que memorizar,
obviamente. Amanhã recolhera-o um carro neste mesmo hotel com
mais documentação.
Ah! Esqueça o jornal para o que
trabalhava. No futuro é jornalista cubano para a Agência
Cubana de Notícias...
Mais uma vez a vida parece
dizer-lhe ao Richard, Aveiro, Windsor, Ricardo, Carlos... que
ainda fica muito por andar, olhar, descobrir, sofrer e passar por
perigos que não imaginara. Não tinha eleição, havia que ir à
Bósnia. Mas uma cousa batia na sua cabeça: não acreditava que
o seu concurso for necessário para levar armas ao Governo legal
de maioria muçulmana. Talvez algo mais se agachava naquela
operação?
No dia seguinte pegaram na estrada
ele e um chofer jovem que só falava quatro palavras de inglês.
O carro grande, potente, de fabricação alemã não fazia nenhum
ruído. O Ricardo ia olhando para os campos sentado ao lado do
chofer. As árvores iam passando, como se foram elas as que se
movimentavam, traziam lembranças da criança a Ricardo. Na sua
memória existem recantos com imagens gravadas como fitas de
vídeo que são postas a funcionar quando algo as excita ou
activa, qual um aparelho de reprodução de filmes.
Muito cedo saíram da casa ele e a
mãe caminhando para a estrada geral, um camião para gado e
também para transportar pessoas detivo-se e eles subiram... Vila
Velha ficava já tão longe para o miúdo, seguramente fosse a
primeira vez que tinha saído da aldeia, estava assustado.
Temeroso da viagem, empolingado naquele camião meio para gado
meio para pessoas, ia olhando os terraplenos e pareciam-lhe
precipícios gigantescos... As árvores corriam e corriam!
Agora ia também olhando para os
precipícios e também lhe pareciam infinitos, mais ainda.
Siliut, Tekirdag, Kesan, Alexandrúpoles, Kubala, Thessalonike,
Lárisa eram cidades que iam ficando no caminho de Atenas, belas
paisagens nunca olhadas antes por ele. E por que Atenas, se
Sófia caía mais perto de Istambul quanto do próprio Belgrado?
Acaso polas boas relações dos gregos com os sérvios?
Quem é o que sabe algo? O Ricardo
sentia-se como um boneco manejado mas o pior de tudo era aquela
situação de ignorar os passos a dar ou que desde longe lhe iam
dizendo como dar, onde e quando.
Em Atenas aguardava-lhe mais uma
surpresa ao Ricardo Aveiro. Tudo ia tão de mãos dadas que tal
semelhava que o próprio embaixador da Jugoslávia era parvo ou
se fazia, polo fácil que resultou enganá-lo para que facilitara
os documentos de entrada na Sérvia. O Richard Windsor, um
jornalista cubano que trabalha para a Agência Cubana de
Notícias e sem dúvida ia informar de jeito mais
objectivo do que o andavam a fazer os jornalistas dos
países Ocidentais. Embora esse for o motivo da sua parvoíce?
Aliás se não compreenderia.
Membros da Central em
Atenas tinham facilitado toda classe de documentação para o
Richard e acompanhante. Passariam da Grécia à Sérvia num novo
carro... Um Nissan de fabricação europeia com tracção às
quatro rodas de matrícula grega... O chofer ia já entrando em
confiança com o senhor Windsor, como ele lhe chamava. O jovem
Kofa, moreno, educado e prudente, é grande experto ainda que só
conta com vinte e nove anos. Participou em várias guerras como
mercenário.
Naqueles primeiros dias do mês do
Agosto em Atenas abrasava o sol. Na última noite de estância
naquela cidade iam cear num restaurante... Da capital grega nada
vira ainda, e tampouco esperava ver grande cousa nas horas que
lhe puderam restar ali, de longe e no escurecer na lonjura
podia-se observar ou mais bem imaginar o Pártenon... Assim lhe
acontecera na cidade de Istambul, viu o canal do Bósforo e
alguns monumentos históricos que o circundam...
O Kofa aproximou-se da orelha do
Richard e disse:
- Coma, já que na guerra é o
único que fica aproveitável!
O Richard moveu a cabeça e não se
sabia muito bem em que direcção iam as suas indicações. Na
ceia acompanhavam-nos dous membros da Central que
trabalhavam na cidade como agregados de duas embaixadas, uma
ocidental e outra árabe.
Quiçá desejo lembrar o meu
passado porque acho próximo o meu final? Se morro é possível
que ninguém saiba jamais de onde vinha e aonde ia... E tampouco
onde finei... Tinha treze anos e ainda não sabia correctamente a
tábua de multiplicar, que trauma, e que libertação quando a
aprendi! Mas logo foi uma progressão constante até finalizar a
carreira...
Agora neste Belgrado hostil,
fanatizado e belicoso é que eu lembro aqueles instantes mais
ternos e doces do passado... Eu que exerço de jornalista tinha
que escrever algo da minha vida. Imaginemo-nos por um momento que
morro nesta operação. Quem vai saber que eu sou Ricardo Aveiro,
galego. Que num dia tive que fugir de todas aquelas terras que eu
amava. Agora sou Richard, quem me mandaria a mim escolher esse
nome? Richard Windsor...
Dizem que trinta e tantos anos não
são nada, que é um sopro... Pode ser-se, pero na minha memória
ficam gravadas cousas que se não fosse porque o sei, diria que
sucederam há cem anos.
Três miúdos baixavam por
corredoiras molhadas no Janeiro húmido e ventoso de Vila Velha
para irem à escola... Três quilómetros para escutar as duras
palavras duma mestra em língua alheia.
Alguém disse, acho tê-lo
lido, que os poetas têm um privilegio: que até morrerem podem
estar namorados. Eu não sou poeta, mágoa, também se o for que
felicidade...
Quanto eu daria por ser capaz de
escrever em verso tudo o que sinto! Como digo, agora retorno
àqueles amores que puderam ter sido e não foram...
Chegam-me notícias de que a moça
dos meus sonhos, das minhas lembranças anda lá pola Suíça...
Casou, seica, duas vezes. Coitada, como eu, vai para os quarenta.
Andará ela também a voltas com a crise dos quarenta? Eu
lembro-a magra e bela... Desde os dezoito a não voltei
ver.
A imprensa tinha informado dum
Belgrado triste e famélico, causado polo bloqueio internacional
em resposta à agressão da Sérvia nos territórios ocupados da
Croácia e da Bósnia-Herzegovina.
Mas o Richard no fugaz viagem não
acredita em tal versão.
Era uma recepção do governo da
sérvia para correspondentes de imprensa e também para antigos
partisanos que se achavam em Belgrado chegados de cem partes do
mundo para se pôr ao serviço da causa que noutrora os alinhara
num mesmo bando comunista. Seguramente havia mais de duzentas
pessoas. Jornalistas russos e de outros estados do extinto bloco
comunista. Acima dum conjunto de mesas de uns trinta metros de
longo havia alimentos e bebidas. Era uma verdadeira
demonstração de opulência. O Richard departia amigavelmente
com quantos lhe permitia seu conhecimento do inglês, português
e espanhol além de algo de servo-croata. O Kofa acompanhava-o
dum lado para o outro. O Aveiro achegou-se num grupo de
veteranos, todos por acima dos setenta... Entre eles um velhote,
baixo, curtido e muito simpático que contava suas corrarias
entre gargalhadas e copos de vinho. Falava português e para um
fulano de Vila Velha era fácil adivinhar um sotaque galego. Ele
precatou-se de que o Windsor o observava. Ficou em silêncio uns
segundos e disse:
- Olá, conhecemo-nos?
- Não acredito, mas...
- Acho que não nos temos visto
antes, eu sou dum lugar muito longe de cá e muito pouco
conhecido nestas latitudes, meu caro. - O velhote aproximou-se
dele e perguntou-lhe à orelha -, como disse que se chama?
- Não disse nada. Chamo-me
Richard...
- Eu, bom, na minha última estadia
na Espanha alguém me deu a conhecer como O Sereno...
Está a falar com um guerrilheiro da Segunda Guerra Mundial. Não
me envergonho de me confessar comunista.
- E por que ia sentir vergonha?
- Agora não está bem visto.
O Kofa, calado e observador sorri
sem que se saiba muito bem se entende ou faz que compreende...
- Donde disse que é?
- Não disse. Mas posso dizer. Sou
da Ferraria do Íncio, Lugo, fica ao Norte de Portugal. Além da
fronteira. Para que se faça ideia...
- Espanha?
- Na Galiza, para ser mais
exacto... - precisou o velhote.
O Richard sabia pois a identidade
do velho guerrilheiro mas não podia revelar a sua. Se calhar o
velhote estivesse ali em missão de apoio do governo que todos no
Ocidente achavam culpável da guerra, pero que ninguém fizera
nada por lhe parar os pés!
- Que faz em Belgrado? Donde é em
fim...
- Estou cá de correspondente da
Agência de Notícias Cubana - o Richard comenta em
voz baixa.
- Muito bem. -O Sereno
amostrou certa complacência com a informação. Mas o Richard
ignorava se esta era devido ao facto de ser-se polo de cubano e
comunista ou por outra circunstância que não sabia.
Naquele instante um alto cargo do
regime de Belgrado entrou na sala e desde uma palestra dirigiu um
discurso em inglês aos presentes. Os assistentes todos
aplaudiram as intervenções incluso os jornalista ocidentais.
Após o discurso alguém apresentou
o Richard às autoridades. Fizeram a petição dum documento que
lhes permitira deslocar-se livremente polos territórios baixo
controlo sérvio na Bósnia-Herzegovina. Depois de um
interrogatório interminável e da apresentação das credenciais
pertinentes combinaram em se reunirem no ministério dos
Negócios Estrangeiros nos próximos três dias.
Vários dias de trovoada deram
passo a uma onda de calor que invadiu Belgrado.
No hotel no que se hospedava o
Richard e mais o Kofa notava-se o bloqueio mundial imposto polas
Nações Unidas à Jugoslávia do Milosevic. Qualquer cousa que
não for uma vulgar comida resultava a uns preços proibidos. Um
simples café com um conhaque bom podia chegar aos dez dólares.
Aquele hotel lembrava-lhe a Richard
Windsor as pousadas de terceira nos anos setenta da sua terra.
Tudo muito limpo mas muito velho e usado.
O Aveiro não queria nem pensar no
seu verdadeiro nome, repetia-se uma e outra vez: Richard,
Richard, Richard Windsor. Nem sequer ao Kofa podia dizer seu nome
verdadeiro. A central impressionava-o com a sua
perfeita infra-estrutura de cada cidade que iam visitando.
Sentia-se partícipe da mais poderosa rede do mundo de espiões.
Talvez o império Austro-Húngaro teria contado com uma rede
assim? Se assim fosse e a informação tivesse chegado no momento
indicado ou apropriado não teria caído...
Um carro com matrícula
diplomática recolheu-os no pé do prédio do hotel. O Richard
observou naquele detalhe um falho no procedimento do responsável
da central em Belgrado. O Kofa e ele foram levados
até um domicílio às aforas da capital da Sérvia.
Numa casa de dous andares e com
jardim rodeando o prédio aguardavam cinco pessoas. Três homens
e duas mulheres. O Richard ficou surpreendido de olhar ali de
novo ao velhote que se fazia chamar Sereno. Depois de
se saudarem o Aveiro fez constar sua contrariedade polo, segundo
ele, incidente do carro oficial.
- Acha que o governo deste país
não tem melhor cousa que fazer que vigiá-lo? - disse sorrindo
uma das mulheres.
- É que ele é muito provisor -
afirmou o Sereno.- Como bom galego.
- De Vila Velha, Íncio.
- Certo, certo. Da terra do Jorge,
o que escreveu a minha história, ainda que muito mudada.
- Diga-me - perguntou o Richard-
você ficou bem com ele?
- Sim, é bom rapaz, mas
aproveitou-se um bocadinho do que eu, infelizmente, lhe contava
como numa tertúlia.
O Richard e O Sereno
tagarelavam amigavelmente à vez que o Kofa e os demais falavam
cada um no idioma que podia. Mais tarde é que dariam as ordens
oportunas. Com tanta viagem, saídas e entradas nas edificações
onde tinham lugar as reuniões o Ricardo tinha já pouca noção
do tempo, ora de noite ora de dia...
- Pois eu fiquei mal com o Jorge.
Conhecemo-nos desde miúdos, imagine-se. E nas suas histórias
contou cousas que foram usadas pola polícia contra mim...
Obviamente nesta altura O
Sereno sabia já a identidade real do Ricardo.
O oxigénio que havia no local já
não era respirável a consequência
do fumo dos fumadores. O Sereno falava do bem e do
mal, da verdade e da mentira, do branco e do preto.
- Onde é que estava você durante
a guerra do Golfo?
- Na Espanha - afirmou o
Sereno.
- Pois eu em Bagdade. E posso-lhe
segurar que fiquei assombrado quando olhei os vídeos das
notícias que se ofereciam na Europa... Não imos ignorar, meu
amigo, que bombardearam a capital Iraquiana, mas posso-lhe
afirmar que agás algum prédio oficial e as pontes, de resto
não tocaram nada as famosas bombas inteligentes. O
que sim desfizeram foi o Kuwai, lá pensavam que o Sadám tinha o
demo e a mãe! Mas que tinha afinal? Onde estava já o exército
do Sadám quando os Ocidentais chegaram?
- Não esqueça que agora trabalha
você para os...
- Já sei - assente o Ricardo.
Naquela reunião falou-se dos novos
aspectos da missão. De Belgrado partiriam no dia seguinte para
Bósnia... O Kofa e o Richard iriam no Nissam todo-terreno e com
meios jornalísticos suficientes. O destino era Sarajevo.
Aproximava-se o dia D... O inferno.
Naquela noite o Ricardo bebeu em
companhia do Sereno e do Kofa. Beberam e beberam até
que o brilho felino apareceu nos olhos... O Kofa só ria, ele
apenas falava algo de inglês, era grego, era grego ou albanês?
Quiçá fosse macedónio...
O Richard Windsor pensava que
seguramente aquele era o último dia em que bebia com O
Sereno... Deitado acima da cama, no hotel, aguardava que o
dia abrisse e a bebedeira passasse! O teito do quarto dava voltas
e mais voltas... Ele cavilava na guerra, no racismo, no ódio e
no medo. Era o medo o que levava os homens a cometerem
atrocidades?
...Dizem que os judeus têm
medo congénito por isso se comportam assim de desumanos com os
palestinos... Mas agora parece resolvido esse problema? É
preciso ser-se valente para não sermos cruéis? É possível.
Quando se peleja com alguém a quem não se teme parece que se
não preocupa tanto por deixá-lo seco dum pau!
E o quarto dava voltas e mais
voltas... O Richard seguia filosofando para se não dormir. Se
fechava os olhos o quarto dava ainda mais voltas.
...Quem somos os de uma
determinada etnia para expurgar-nos de outra distinta? Por que os
brancos tiveram escravos em séculos passados? Crueldades do
destino! Que bom... Os ruivos dos USA serão algum dia minoria a
extinguir a consequência da política escravista de seus
antepassados! Os pretos, coitados, bem tranquilos que estavam lá
na África.
Agora cavilava no difícil que lhe
resultaria aparentar ser-se pro-sérvio ou pro-sérvio ultra já
que não todos os sérvios haviam de ser-se assassinos. Como
podia ser pro-algo que assassina, viola e expulsa os habitantes
de suas moradas? Como se podia admitir a política dos sérvios
com esse lema de onde há um sérvio é Sérvia?
Então também onde haja um germânico lá é Alemanha?
Naqueles tempos idos, os
tempos da minha Inés, e também das filhas do Deus de Noceda -
que mágoa, não lembro já seus nomes- e dos rapazolos
maiores... Todos mesturados íamos à mesma escola, nas mesmas
aulas e até ouvíamos as mesmas tontices da mesma e única
mestra. Eram tempos escuros.
Quantas vezes os terei lembrado e
ainda assim cada uma delas experimento uma sensação diferente.
Aquele miúdo que eu era, tímido e apoucado, em que deu?
- De-che numa boa estrúcia! - Era
uma expressão muito usada.
Agora talvez se não diga, a
televisão tudo o invadiu, tudo o mergulhou.
- Eu gosto muito do Ricardo, mas
ele é que não me atura! - Disse que comentou numa altura. Para
onde é que estaria eu a olhar, palerma de mim.
Naquela manhã tudo era diferente
ao vivido antes. O Ricardo e o Kofa partiam para a
Bósnia-Herzegovina, a Sarajevo por concretizar mais. Atrás
ficavam as voltas do efeito do álcool no quarto do hotel.
O Sereno e outros colaboradores também ficavam lá.
Stepojevo, Lajkovac, Valjevo era topónimos que o Richard ia
lendo pola estrada para Sarajevo. Ainda não chegaram a Bósnia e
começavam já a se olhar militares e paramilitares por toda a
parte. O carro todo-terreno pegava-se à estrada de jeito
admirável. O Kofa era um experto chofer e fazia-o bruar nas
inumeráveis curvas que se iam encontrando. Faltavam dez
quilómetros para chegar a Bajina Bástia já no fronteira com
Bósnia. Cada peão que iam deixando atrás oferecia-lhes uma
olhada que falava todos os idiomas do mundo e significava
desconfiança, quiçá reagiam assim devido ao bloqueio
internacional, cada carro não jugoslavo que transitara as
estradas destas terras era observado com especial atenção.
- Senhor Windsor, acho que devemos
deter-nos - disse o Kofa.
- Guardemos calma. Eu lhes direi...
Um posto militar, já quase que
dentro da cidade da Bajina Bastia, apareceu de improviso
surpreendendo aos viageiros.
- Arrumem, façam o favor - ordenou
um militar jovem com metralhadora em ristre.
O Richard colheu duma carteira
preta os documentos acreditativos e desceu.
- Aonde se dirigem?
- Verá, somos jornalistas e
queremos ir a Sarajevo... Sou cubano.
Estas mesmas frases repetiu-as em
inglês, português, espanhol e também na língua local. Ainda
temendo que o seu conhecimento do servo-croata não fosse tão
correcto como para ser compreendido. O indivíduo limitou-se a
indicar ao Kofa que também descera e inspeccionou o carro,
mentres outros militares se iam aproximando do veículo com
rostos sérios e fumando tabaco negro. De novo o tipo
indicou-lhes que montassem no carro e seguissem detrás dele.
Um carro militar ia-os guiando, já
no centro da cidade e num prédio que seguramente era o quartel
geral da zona ou quiçá o governo militar local ou quem sabe...
No dintel da porta da entrada principal havia uma inscrição em
alfabeto cirílico que lembrou ao Richard o de Todo por la
pátria da guarda civil na Espanha. Os carros arrumados à
porta, os militares da entrada saudaram ao jeito castrense e os
dous jornalistas foram introduzidos no interior dum
quarto com as paredes pintadas de branco e só um banco de
madeira arrumado a uma das paredes. O quarto era rectangular de
uns quatro metros por dous. Noutra parede havia um mapa físico
da antiga Jugoslávia, semelhava um mapa de uso escolar. O Kofa
olhava para o Richard como interrogando-se. O Windsor moveu os
ombros e guardou silêncio.
Aquela situação lembrou no
jornalista outra circunstância vivida noutro lugar e que tinha
em comum a espera e a decisão de outra pessoa... Nas suas mãos,
nas dessa pessoa, é que estava o destino dele. Porquê um ser
humano havia de suportar isso? Um sujeito decide fazer e desfazer
no futuro de outro indivíduo ou indivíduos. Ainda que isso é
aceite como norma, naquela altura o richard Windsor fazia-se mais
uma pergunta. Quiçá não possamos ser mais que aquilo que os
demais dizem que somos?
Aquela outra situação parelha
sucedera no seminário quando fora chamado polo
supremo ao seu despacho enquanto aguardava, também
estavam os outros quatro membros daquele grupo que denominaram
Os cinco de Lucus, perguntava-se se era lícito que
aspectos das nossas vidas por vezes dependeram da opinião de
outros? Não resultava arbitrário que ele, por serem seus
familiares amigos dum abade, não fosse expulso do seminário
enquanto os outros quatro sim?
E naquele quarto, na companhia do
condutor, aguardava agora a opinião de outra pessoa
para ver o que iam fazer com eles. Seguramente quem decida seja
um militar radical, fanático; um miliciano que talvez nem, se
calhar, é militar.
O quarto só tinha uma janela e
achava-se no rés-do-chão. Mas a janela tinha os espaços, onde
alguma vez tiver vidros, tampados com madeira.
- Tardam... - rosnou o Kofa olhando
para o relógio.
- Tardam. Levamos cá já uma hora.
O Richard tentou abrir a porta mas
encontrava-se fechada por afora. O Kofa vestia calças de
campanha e sapatilhas de desporto, uma casaca de cor escura e
numa bolsa de viagem é que guardava muda do mesmo estilo. O
Richard vestia do mesmo jeito. Mas, em lugar de sapatilhas
desportivas, botas com sola grossa de uns quatro centímetros
onde guardava lacrado um envelope com instruções em clave.
Parte para lhe entregar ao responsável da defesa da Bósnia e
parte para ler ele... O carro, num lugar secreto, leva cópias
falsas tanto das autorizações de Belgrado quanto das
credenciais como jornalista cubano... Mas o Ricardo tinha
observado algumas partes do carro um tanto abauladas em
comparação com outros carros do mesmo modelo e da mesma marca.
Que é o que ia dentro? Os documentos do Kofa são gregos. Com
efeito, toda esta segurança resultavam-lhe ao
Ricardo estúpidas e até ridículas. Ele estava certo que a
verdadeira missão que ele cumpria era ignorada, polo que ali
estavam a jogar-se a vida. Não era justo!
Passavam dez minutos da hora de
estância no quarto e ouviram-se pisadas. Alguém, com roupas
militares, abriu a porta e comunicou aos jornalistas
que os fortes combates nas zonas polas que teriam que transitar
para Sarajevo obrigavam-nos a hospedá-los por algum tempo em
Bajina Bastia.
- Mas esta zona, desde a fronteira
até Sarajevo não está conquistada já? - perguntou o Richard.
- Libertada, quer dizer?
- Sim.
- Bom, há algum foco... Mas estão
libertados todos os territórios. Vocês é que têm que pagar a
pousada.
- Se não há mais remédio?
- Não há.
O Richard compreendia perfeitamente
a língua local mentres falassem devagar. A sua dificuldade
surgia quando pretendia ele falar. Parecia um loro. Repetia quase
tudo também em inglês, às vezes também em português e até
em espanhol. Com toda essa salada lingüística iam-no
compreendendo bastante bem. Pois quase sempre havia algum
responsável presente que entendia quer pouco de italiano, quer
um pouco de inglês quer outro pouco de português... Além do
que o Richard falava de servo-croata.
O Kofa além do muito pouco de
inglês que ele falava, dominava o albanês, o italiano, o turco
e o grego.
Na roda de reposto do carro levam
dous milhões de marcos e também alguns centos de dólares.
Foram inseridos no interior do pneu.
Conduziram-nos a uma pousada
modesta do centro da cidade onde as casas eram de construção
granítica, de dous andares quase todas. Alguma edificação
moderna chegava aos quatro e até aos cinco andares rompendo a
estética local.
A pousada Beograd tinha na parte
traseira espaço para estacionar os carros. O Kofa meteu lá o
Nissan Patrol com o consentimento dos militares. Todo tinha que
ser-se autorizado polos militares, ou denegado. Os militares
davam a impressão de o dominar absolutamente tudo.
O Richard estava certo de que os
comandantes militares acreditavam na identidade apresentada polos
dous jornalistas. Além disto, o Aveiro não poupava
louvores para com os dirigentes do povo, do grande e glorioso
povo da Sérvia. Na TV informavam bem diferente da marcha da
guerra na Bósnia, tal se poderia dizer que diariamente havia
chacinas de civis sérvios em algum lugar da república em
guerra.
Quando se dispunham a cear um
militar incomodado chegou inquerindo explicações de algo que
observara aderido no motor do Nissam... Para lá foram todos. O
Richar abriu a tampa e ficou tão surpreendido como o sujeito
alvoroçado. Um aparelho estranho de dimensões aproximadas a uma
mala pequena. Achava-se inserido entre o motor e um lateral,
vários cavos o ligavam ao resto dos aparelhos secundários do
motor.
O Richard explicou que era um novo
invento aderido ao turvo-alimentado para melhorar as
circunstâncias de funcionamento. Tudo ficou calmo.
A pousada Beograd tem o comedor no
primeiro andar e também um balcão onde se pode jogar à baralha
e comentar a marcha dos acontecimentos. Estavam muito preocupados
polas sucessivas crises russas. Sabem que é o único país do
Conselho de Segurança que os defende.
Para dormir têm que subir ao
segundo andar. O Rchard e o Kofa dormem no mesmo quarto ainda que
cada um na sua cama. Não existem duchas, só uma jofaina no
mesmo quarto que faz de lavatório, e um retrete turco comum para
todo o andar... Todos os dias, levam já quatro, o
Comandante militar local acompanha-os na ceia... E
como não! Ele também come ainda que é o Richard o que paga em
dólares. O Comandante é homem regordete, afável e
de rosto convencional, moreno, baixo, careca e duns quarenta
anos. Fala castelhano porque de moço disque andara pola Alemanha
trabalhando entre andaluzes. Naquelas noites todos estavam mais
nervosos do normal. A televisão dera notícias de que milicianos
croatas assassinaram a vinte civis na Crajina. O
Comandante bebia vodka, o Kofa aguardente e o Richard
vinho. O Aveiro deixara a bebida branca. A bebida branca é
muito má, mata às bestas... Afirmava sempre o seu pai.
- Porquê é que desejam chegar a
Sarajevo? - perguntou o Comandante.
- Queremos contar ao mundo, meu
Comandante, o que lá se passa. Além disso o mundo
não sabe a verdade, só o que lhe querem contar os americanos.
- Bobagens! - disse o
Comandante-. Eu é quem lhes posso levar às portas
do inferno mas têm que pagar em dólares ou marcos. Melhor
marcos.
O Comandante arrola seu
corpo pequeno e groso com lentidão. O álcool começa a fazer
efeito. O Richard escuta atónito a proposição.
- Como é que diz?
- Eu posso transportá-los até à
parte muçulmana da capital de Sarajevo, mas hão-de pagá-lo. Eu
conheço muito bem tudo. Combati lá nos primeiros dias ao se
proclamar a independência, conheço todas as ruas. Era sócio
duma empresa clandestina que operava nessa cidade.
- A que se dedicava? - perguntou o
Windsor.
- Venda de alimentos e outros
produtos...
- Contrabandeavam?
- Não acredito. Vendíamos o que
não se podia comprar nas lojas, compreende?
- Correcto.
O Kofa rosnava vocábulos em sete
línguas, o camareiro da pousada dormitava com a cabeça acima
das mãos e sobre de uma mesa, o Comandante bebia
como se quisesse apagar algum fogo. O Richard observava o quadro
um bocadinho menos bêbedo, ainda que a cabeça já dava sinais
de alarme.
O Aveiro pensava na operação que
havia de realizar quer no que ali estava a acontecer; mas ainda
seguia a ter dúvidas da necessidade do seu concurso no assunto.
Certamente o carro tinha toda
classe de esconderijos camuflados, e assim que havia de chegar ao
governo da Bósnia.
O Richard e a sua situação mental
caminhavam por uma corda bamba pendurada po cima dum precipício.
As notícias que chegavam do assédio sérvio a Sarajevo punham
dúvidas na cabeça dele. A ponto de cair a cidade em mãos
sérvias que é que fazia ele encaminhando para lá? Aguardava
qualquer resposta dos USA àquela ousadia irresponsável sérvia.
Havia uma possibilidade de intervenção da NATO.
O Comandante ergueu
abalandose todo e exclamou em espanhol:
- Vocês desejam os meus serviços,
sim ou não?
O Ricardo deu um salto,
assustou-se, olhou ao seu redor e em voz alta, mais bem gritando
disse:
- Para quê? Senhor
Comandante para que deseja ir lá se quando cheguemos
não vai existir a cidade. Essa cidade maldita!
- Não, não, não! - o Kofa
delirava.
O Comandante gritou:
- Bom, vocês dirão?
- Calma, meus senhores, calma, não
atirem de pistola. Amanhã chegaremos a uma conclusão.
O Kofa pediu calma e perguntou se
naquela cidade havia mulheres...
- Ainda que haja que pagar por
elas!
- Sigam-me, meus amigos, eu posso
facilitar-lhe o que desejarem.
Lá iam os três de parede em
parede bêbedos como pipas. O Comandante conduzia-os
polas ruas de Bajina Bastia nas altas horas da noite, uma noite
do Agosto caloroso. Iam agora por uma ruela de pouca luz,
adentraram-se pola parte dum prédio meio de pedra meio de
tijolo... Depois de trespassar uma porta, um bocadinho oculta num
recanto escuro, encontraram-se no interior dum local com as
paredes empapeladas de vermelho e onde penduravam focos que
facilitavam escassa luz. Fumo, muito fumo, uns quantos
indivíduos sentados ao redor duma mesa bebiam acompanhados de
outras tantas mulheres ligeiras de roupa. O local quadrado,
possuía uma barra americana num dos laterais detrás da que se
exibiam duas mulheres com os peitos nus. O Richard alçou-se por
cima do balcão para olhá-las de cinta para abaixo. Nisso uma
delas ergueu uma perna para lhe facilitar a visão à vez que
amostrou os dentes numa sonora gargalhada. O Kofa sentou-se na
primeira cadeira que achou e o Comandante pediu
bebida para os três ao grito de Viva a Grande
Sérvia!
- Eu sou de Monte Negro - disse o
Comandante no ouvido do Richard,- pero cá gostam
desse grito de guerra.
- Tem filhos?
- Não - disse o
Comandante antes de levar à boca o bico duma garrafa
de cerveja gelada.
- Família?
- Todos mortos em Sarajevo. E o
pior que os mataram os nossos próprios projectis.
O Comandante solta a
chorar com a cara entre as mãos.
- Está só nesta vida? - o Kofa
balbuciou na outra beira da mesa.
- Tenho um irmão na Alemanha.
- Nesta guerra pode-se fazer
milionário... - Soltou o Richard como se não fosse com eles a
afirmação.
- Para que queremos o dinheiro? -
gritou o Comandante dando com o punho fechado na
mesa.
- Certo... - riu o Kofa.
- Mas sem dinheiro não há nada! -
insistiu o Richard.
- Certo... - assentiu o Kofa.
O Comandante ficou
olhando para eles sério e silencioso.
Na obscuridade do dormitório o
Ricardo Aveiro cavilava no aparelho achado no carro... Obviamente
não era uma prolongação do turvo-alimentador... Mas que era
aquilo? Talvez um emissor de sinais? Tinha uma parte como se for
uma antena em jeito de cunca mirando cara o exterior do motor,
justo numa zona onde a chapa era crivada, com muitos buraquinhos
semi-ocultos.
O Windsor associava agora o facto
de que desde a sua chegada por toda a parte havia defesas
anti-aéreas. Seria um emissor o aparelho do carro? Quiçá
emitia sinais falsas?
Era uma noite de primavera,
ou quiçá de verão? Ia-mos estrada acima um feixe de moços -
como diria o Avelino da Casa Grande,- no anonimato da massa e na
escuridade da noite cada quem dizia uma tontice, outro
pronunciava um insulto... Quando chegarmos perto da janela da
Inés cantávamo-lhe uma cantiga adaptando-a à nossa língua:
Inés,
Inés... Inés,
Inés inessinha inés,
abre-me a porta que
Eu te venho ver! |
Ou
algo assim, e ela assomou à janela e a imprudência juvenil
proferiu mais um insulto. Ela correspondeu, e em fim, terminara
tudo de jeito pouco agradável...
Bandadas de pássaros não achavam
acougo em parte nenhuma. Ora erguiam daqui ora passavam para
acolá... A cada detonação trocavam de lugar. O fulgor dos
bombardeios ouviam-se lá na zona muçulmana. Na zona croata
caíam menos bombas. Numa casinha dum só andar estavam reunidos
representantes croatas com dous agentes da Companhia.
A casinha muito requintada e pequenina, com telhado de piçarra e
paredes brancas, janelas e portas verdes, toda a zona está
inçada de pequenas casas deste tipo numas desgastadas colinas
com outras montanhas mais grandes e pronunciadas um tanto mais
longe... Estreitas estradas vão unindo estas casinhas às aforas
de Mostar.
Da parte croata, além dos
militares de escolta, estava o primeiro líder local e dous mais,
os três com responsabilidade num auto-proclamado governo croata
da Herzegovina.
Os dous membros da
Companhia chegaram ali num blindado branco com as
iniciais UN, vinham da parte muçulmana.
Eram as dezasseis horas nos
relógios locais. No blindado aguardavam quatro soldados armados,
um deles oficial e de nome Carlos Lopes, do regimento de
capacetes azuis espanhóis que patrulhavam na cidade e zona de
Mostar. A missão que ali se desenvolvia estava abençoada pola
ONU e obviamente os militares ali presentes ignoravam a pertença
à Central de Inteligência dos dous negociadores que
naquela mesa pediam autorização aos croatas para transportar
ajuda humanitária em helicópteros à parte muçulmana e a
câmbio eles, os croatas, também seriam obsequiados com ajuda.
Os croatas pediam que um dos helicópteros com o seu armamento
lhes fosse entregue polo favor. Finalmente chegaram a um acordo.
Mas havia-se de guardar silêncio, os próprios capacetes azuis
podiam desfazer a operação, pois ignoravam dos tratados ali
realizados. Os croatas assentiam gostosos. O carregamento
humanitário partiria desde buques situados na foz do
Neretva.
- Quiçá me propõe que não
inspeccionemos o carregamento humanitário que vocês entregarão
aos muçulmanos? - demanda irritado o número um croata.
- Isso não, podem inspeccionar o
buque. Mas se vocês erguessem muito barulho poderiam fazer o
mesmo os muçulmanos, colocar inspectores na operação, não
acredita? - espeta um dos negociadores das Nações
Unidas.
- Bom...
Resultava muito difícil fazer
qualquer trato com aquelas gentes, tão curtidos em cem batalhas
sanguinárias e sem regras. Arrepiavam a quem tratara com eles.
Concretizam os pontos onde se
situariam os buques com o carregamento, os pontos para fazer a
entrega da ajuda humanitária, tanto para os
muçulmanos quanto para os croatas. Seria o dia trinta do mês de
Agosto e às oito da manhã começaria o trabalho...
As detonações seguiam naquele
Mostar sacrificado numa guerra atroz e que ainda se não sabia
aonde é que ia ficar tudo.
A reunião tinha lugar na sala
central da casinha. Uma mesa de madeira e vernizada de cor
castanha, dous floreiros, água mineral e acima das cabeças dos
ali reunidos duas lâmpadas grandes equidistantes.
O Wilman tem quarenta anos, é
ruivo e também o mais alto de todos os presentes na sala,
representa à ONU oficialmente... O outro representante que
também o é da Companhia ou Central de
inteligência igual que o Wilman, tem cinquenta e três
anos, é moreno e mede um metro e setenta centímetros
aproximadamente, chama-se Oscar. Para os escoltas, para o
capitão Carlos Lopes aqueles novos negociadores que a chefatura
enviava agora eram estranhos no lugar. Sem embargo não achavam
cousa anormal, aquela guerra dava situações novas a cada
instante. Andava ele enredado num novelo de lembranças.
O Carlos Lopes entrara no exército
de muito jovem e sem qualquer vocação. A pouco de terminar a
primeira parte do bacharelato foi-se lá a um exame a Madrid e
já não voltaria com os seus companheiros. Agora apontara-se
voluntário naquela honrosa missão. Mais groso e igual de loiro,
mais careca também.
Os novos negociadores já
terminaram a sua missão. O Carlos Lopes aguardava-os ao pé do
blindado branco, agora havia que os transportar a Gavela...
e depois regressar a Jablanika a não sei que outra
missão... - pensa o Carlos.
Outros dous blindados uniram-se ao
do capitão e agora já formando bicha dirigiam-se àquele lugar
que chamavam Gavela... Lembra-me uma palavra
galega... O Carlos ia olhando polos diminutos gachinelos a
paisagem polas ribeiras do Neretva. Em toda a parte as pegadas da
guerra. Carros crivados a balaços... Árvores caídos, casas
queimadas. Triste paisagem. Que caralho é o que a mim se
me extraviaria neste país? O carro blindado, a metralhadora, as
detonações. Quando termine tudo isto é que tenho que visitar
um psiquiatra. Ou trinta, maldito seja eu e todos os homens! Mas
que digo? Estes todos que vão a meu lado ignoram que vou
pensando e chorando nos adentro... Vai-se-me dessangrando o
coração. O meu pai, quem o ia dizer, não morreu na guerra em
Rússia... Esteve com a Divisão Azul, forçoso, e agora o meu
pobre pai agoniza dum cancro na minha aldeínha, e eu cá...
Malditos sejam os homens, aqueles que não têm que tirar tiros
que são os que começam as guerras.
O Carlos ia sério, de quando em
vez levava sua mão direita às pálpebras dos olhos e assim
limpar as lágrimas, ainda bem difícil lhe resultava ocultar os
soluços. Comunicaram-lhe que seu pai estava nas últimas. Um
cancro era o culpável da sua dor. Tanta morte naquela terra
maltratada e porquê havia também que a morte, com a terrível
gadanha, viajar à sua pequenina aldeia? Não alcançava a
compreendê-lo. O Capitão Lopes tinha recolhido com as suas
próprias mãos restos humanos ciscados polo chão. Mãos de
miúdo, tripas e até olhos... Ele sabia bem que se achava no
limite da resistência, a vezes tinha visões estranhas,
olhava-se a ele próprio com um cuitelo degolando mulheres, ora
disparando-lhe aos que ele considerava ser-se os culpáveis
daquele horrível pesadelo, ora comendo as suas próprias
deposições... Alguns prisioneiros muçulmanos foram obrigados.
Esse conhecimento não se ia da sua cabeça. Um simples
conhecimento fazia que ele se visse realizando aquelas cousas. E
de novo na sua cabeça batia com força um recordo. O seu
progenitor. Ora lembrava-o quando miudinho brincava no seu
regaço, ora nas fainas do campo.
...Como me picavam as suas
barbas, eram uns canhotos adoráveis, que jovem era então ele e
quanto gostava eu das histórias que me contava da sua guerra de
Rússia. A quarente quilómetros de Moscovo. O rio
Volchó, que tiveram que passar muitos anos para que
eu averiaguara que se tratava do Volga... Que bem dizia, no rio
Volchó, que tem seica 3531 quilómetros de longo,
atacaram-nos, cruzamos, transportamos... E logo também falava
muito no lago Imem... E os aviões que
aterravam na água e eu contradizia-o, como vão
aterrar aviões no mar? Tu cala rapaz, tu que sabes! E eu fazia
com a cabeça sinais negativos... E ainda mais quando afirmava
que no Cáucaso adoravam neles... Mas como ia ser-se
assim, vós erades os invasores? Sem embargo em tudo tinha ele
razão, o Cáucaso sente-se pouco russo... E agora eu cá, nem
posso tocar-lhe ainda que fosse por última vez. Deus! Fuzilemos
a Morte! Que mal me sinto... Lembro todos os despreços que fizem
a meu pai, maldição, porquê é que os lembro. Castigo de Deus!
Ora à direita ora à esquerda, o rio Neretva, este é o meu
Volchó e não posso já contar-lhe a ele a
história. Eu não poderia contá-lo jamais como ele o fazia. A
sua história semelhava uma festa, ele é que o narrava daquele
jeito tão gracioso que para os ouvidos daquelas crianças que
escutávamos era uma festa de imagens com bela música celestial.
E a quem vou contar eu as minhas façanhas polo meu
Volchó, filhos não tenho! Além disso, para que
quero contar nada? Quem pode estar interessado em saber que estas
minhas mãos tiveram uns segundos os olhos dum miúdo ou o braço
duma muçulmana que instantes antes me tinha obsequiado com uma
flor? Quem pode estar interessado em saber que com estas mãos
tive que retirar dum blindado a um companheiro morto ou que
arrastar os corpos queimados de quarenta muçulmanos, homens,
velhos, miúdos e mulheres, todos civis e inocentes. Agora
escutam-se detonações dum lado e do outro do rio e eu cá no
meio. Não tenho medo porque tanta dor tira-me o medo, a vergonha
e a ética e também a consciência... Não tenho consciência,
agora mesmo dar-me-ia igual matar a um que a cem sérvios, tenho
que me esforçar para compreender que os sérvios não têm culpa
da manipulação que fizeram de seu próprio medo os dirigentes
radicais. E não há pior inimigo que aquele que padece pânico.
É perigoso, desde que começara este conflito eu não posso
viver com normalidade, tenho problemas com o estômago, com o
ventre e com a mente! Não acredito em nada, creio que se
esqueceu até Deus destas gentes... Agora as detonações são de
artilharia, sim, se nos alcançam teremos problemas... Mas não
tenho medo. Ignorava que para esta zona havia disputa? Que longe
fica tudo... A criança, minha estância de estudante em Lugo,
para sempre guardarei na minha cabeça àqueles amigos do grupo
do seminário. Onde andarão? Os meus amores primeiros... Bom,
para que pensar neste inferno?
Em Gavela apearam-se os dous
representantes da ONU e estavam já de regresso para
Jablanika. De Gavela a Jablanika havia poucos quilómetros mas
ainda muitos obstáculos. Semelhava um jogo de computador de
caça ao homem... Ora detenham-te num controlo croata ora
noutro muçulmano... Isto não tem fim. E polos vistos asinha
teremos que escoltar um comboio humanitário a Serajevo...
O Lopes pensava em voz alta. O soldado que compartilhava o
reduzido e imediato espaço no interior do blindado olhava para
ele com preocupação.
Meu pai era, além de tudo,
matachim. Corria a contorna matando os porcos de toda a bisbarra.
Nos meses de Dezembro e Janeiro ia ele de matança em matança.
Chegava às tantas da madrugada mas ainda assim erguia-se muito
cedo para lhe dar de comer às vacas... Eu sabia que na algibeira
do sobretudo tinha os melindros que sempre guardava para mim da
ceia anterior... Guardava-os para seu miúdo...
O Lopes repassava agora todas as
cousas de importância ou não que junto de seu pai lhe tinham
acontecido. Cada lembrança era como um cuitelo que se lhe metia
no coração de jeito violento. Agora que sabia o final do pai,
seu cérebro era o vídeo que todo o reproduz.
A noite ia botando-se acima.
Levavam duas horas detidos aguardando a que os croatas deixassem
passar num controlo a uns cinco quilómetros de Mostar em
direcção a Jablanika. Ouviam-se detonações rio acima. De
supetão dous carros com canhões de metralhadora e com a
bandeira croata surgia a toda velocidade, um soldado gritava
dando ordem de retroceder. O Lopes com voz enérgica deu ordem de
situar-se detrás duns penedos que havia à parte direita. Todos
correram a refugiar-se. Os disparos surgiam por toda a parte...
à esquerda o rio, à direita os penedos e escoltando o quadro
geral as montanhas donde procediam balas e mais balas... Os
muçulmanos atacavam forte agora, os croatas respondiam desde
mais longe com a artilharia. Novo controlo, agora polos
muçulmanos que avançavam metros, e de novo também mais tempo
detidos...
A história continuava. A quem lhe
importava no mundo aqueles incidentes de não haver mortos de
Capacetes Azuis? E ainda assim, não todos os soldados da ONU
eram iguais...
Em Jablanika poucos sabiam do
quartel geral dos Capacetes Azuis espanhóis que havia um
garito ao que polas noites alguns soldados acudiam a
desabafar e beber... O capitão Lopes estava tentado à
inspecção pacífica daquela casa. Havia moças feiticeiras,
loiras, ruivas e pretas... Toda a Bósnia-Herzegovina era já um
bazar, todo se podia comprar e vender. Armas pequenas e grandes,
drogas, sexo, álcool... Todos vendiam, todos comerciavam. Mas na
companhia do Lopes assim não acontecia.
É possível, nós somos os
últimos quixotes sobre esta terra...