Eu vi queimar Sarajevo

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Capítulos VI, VII e VIII.

 

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CAPÍTULO VI


     “Era no verão, quiçá Julho, Agosto? Estivéramos jogando ao futebol até perto da noite no Campo da Festa... Eu tinha uma filarmónica na que poucas cousas sabia tocar! Mas comecei a interpretar umas peças de ar lento... E começara a mocidade a bailar no campo... Éramos uns dez moços e outras tantas rapariguinhas... A Inés não quis bailar com ninguém. Então eu, à vez que tocava, botei-lhe a mão esquerda acima do pescoço e ela apegou-se agarimosamente a meu corpo! Agora pergunto-me: como eu a não lhe pedi palavra?
     Padecia-mos doenças da grandeza do pobre... Aos que estudávamos parecia-nos que aquelas raparigas eram umas oferecidas! Que palermas e que asneiras cometíamos com tão extravagante ideias.”

     O Richard ergueu-se muito cedo. Eram as sete da manhã e em toda a Bajina Bastia havia movimento de militares. Buscavam um comando muçulmano que se infiltrara pola madrugada e assaltaram um posto militar levando-se armas e deixando cinco mortos degolados.
     - São uns assassinos, há que os aniquilar... - gritava pola casa adiante, dirigindo a olhada ao teito e com as mãos na cabeça, a esposa do pousadeiro.
     O Kofa também acordou e ergueu-se perguntando polo acontecimento. O “Comandante” apareceu de súbito e perguntou polo Windsor. Este inquiriu desde o seu quarto:
     - Que é o que sucede?
     O “Comandante” aproximou-se dele e disse ao ouvido:
     - Sabe que a NATO vai atacar os sérvios que rodeiam Sarajevo? As nossas defesas aéreas detectam aviões invisíveis por toda a parte...
     - Não acredito nisso, tantas vezes já disseram antes do tal ataque...
     - Nesta vai a sério, meu amigo. Tantas vezes vai a ola à fonte que termina escachando, os fados sabem o que se está a passar. - O monténegrino sente medo.
     - Você o que tem que fazer é descer do comboio da loucura - sussurra ao ouvido do “Comandante” o Windsor,- ainda que seja em marcha. Pode ser tarde de mais amanhã...
     - Eu sou jugoslavo.
     - E eu galego, quero dizer cubano, meu amigo. E isso que tem a ver com a guerra na Bósnia? Você é de Monte Negro, quiçá tão vítima como a própria Bósnia ou ainda mais, o próprio Kosovo. Os sérvios dizem: onde há um sérvio lá é sérvia, eu pergunto: onde há um albanês (do Kosovo) é Albânia?
     O “Comandante” dá curtos passeios polo quarto, olha a todas as partes. Sentou agora numa cadeira e perguntou:
     - Que é o que vocês propõem?
     Ele sabia-o muito bem. O caso era ganhar dinheiro no tráfego de armas. No fim de contas o Windsor tinha muito clarinho que a missão dele era organizar a entrega de armas ao governo legítimo de Sarajevo e entregar aquele carro, o Nissan Pátrol com todas as documentações que nele havia. Ou quiçá a sua verdadeira missão ainda ele a não sabia? Que é que levava o carro inserido, um radar camuflado? Um emissor de sinais?
     - Eu proponho-lhe fazer-se milionário! Primeiro terá que nos acompanhar a Sarajevo e uma vez lá organizar vias de entrada de armas. Eu é que sei que lhas pagarão muito bem.
     O “Comandante” monténegrino disse mais uma vez ao ouvido do Richard:
     - Partimos à noitinha, às vinteduas horas. Às vinteuma farei-lhe chegar um documento acreditativo da sua missão.
     - Qual?
     - Vocês são os nossos amigos e dirigiremo-nos a Sarajevo para lhes facilitar explosivos e armas aos sérvios de dentro para cometer sabotagens contra instalações muçulmanas. Uma missão “especial”!
     O Windsor ficou mirando fixamente ao “Comandante” como escrutando a veracidade das palavras. Tão fácil se apresentava aquilo que não acreditava lá muito. Mas que fazer? Em quem se podia confiar naquelas circunstâncias?
     - Você não acredita na minha palavra? - perguntou o “Comandante” em tom molesto.
     - Aliás, que alternativa tenho?
     - Nenhuma...
     Naquela altura entrou um par de militares muito alterados aos que o Windsor não entendeu nada... Informaram de algo e marcharam.
     - Ia dizer que não há tempo que perder. Vocês estejam preparados, às nove, quer dizer vinteuma horas, estarão já documentados e às vinteduas partimos, vocês no Nissan e nós num camião bem carregado de carburante e outros materiais!
     - Nós?
     - Sim, levo um ajudante experto em relações muçulmanas.
     O “Comandante” desapareceu do lugar apressadamente. O Kofa aproximou-se do Windsor com o rosto murcho e ainda deluvando os olhos.
     - Às vinteduas vamo-nos a Sarajevo!
     - Amém.
     O Kofa usava muitas palavras latinas, ainda que guardava no seu apartado sentimental um especial conceito da história de ambos os povos antigos, Grécia e a Roma Imperial... Mas era de certo grego o Kofa?
     Agora o Richard experimentava aquele estranho sentimento de quando estudara. Primeiro estourava em alegria ante uma boa notícia, logo começava a grande dúvida, a desconfiança. Será certo? Não será uma falsa impressão? Certamente no tabuleiro de anúncios aparecia seu nome seguido duma pontuação aprovada... Mas, e se for um erro do professor? Não poderia ser-se a nota anterior do listado que era ademais um suspenso? Agora o “Comandante” era a dúvida do tabuleiro de anúncios onde os professores iam colocando os resultados dos exames. Não poderia ser uma manobra dos sérvios para caçá-lo?
     O Kofa fumava sentado à beira dum copo de vinho, o Ricardo, agora Richard, dava golpes na mesa com os dedos da mão esquerda e fazia arpégios por vezes com a direita como se fosse num teclado... No bar da pousada não havia mais pessoas naquele momento; mas tudo era agora o tabuleiro dos anúncios. Que importância poderia ter um carro e umas notas para um governo? Quando a Sarajevo podiam chegar todos os representantes dos governos do mundo... Menos o da Sérvia. Ou quiçá esses próprios governos ignorem que se vaia fazer esta operação? Pudera ser um trabalho em solitário da “Companhia” e dos governos, ou parte deles, implicados? O Richard havia de entregar o Nissan ao Governo legítimo de Bósnia e comunicar que o trinta de Agosto, às oito horas e no lugar X seriam entregues armas aos muçulmanos... A operação havia de semelhar ajuda humanitária ante os croatas ainda que eles pensariam o próprio a respeito dos muçulmanos... Um equilíbrio, com efeito, perigoso. “Havemos de ver para aonde vai esta operação?” - o Richard sentia-se confuso.
     O “tráfego” que pudera fornecer o “Comandante” havia de ser-se ajuda exclusiva do Richard ao Governo legítimo de uma nação reconhecida polos governos do mundo e após privada de se poder defender pola imposição dum embargo de armas que viera favorecer aos agressores.
     Um povo que estava sendo atacado em duas frentes, a croata e a sérvia, e se ainda fosse pouco, um “caudilho” local, no extremo ocidental da República proclamara a independência dum anaco do país!
     “E ainda bem que o aparelho secreto que vai oculto no carro o não têm descoberto os sérvios” - o Richard pensava para si -. “Quiçá esse seja o verdadeiro valor desta operação?”
     As vinteuma tardavam tanto em chegar... Semelhava uma partida de futebol quando a equipa ganha polo mínimo e se está a dez minutos do final! Que longo se faz isso...
     As agulhas dum relógio com o cristal roto situado na parede e elevado por cima da cafeteira do bar marcavam as vinteuma horas e treze minutos quando um homem ruivo duns trinta anos de idade, magro e alto, perguntou por Richard.
     - Sou eu...
     Ergueu o Windsor que estava sentado ao lado do Kofa e ambos acompanhados duma moça que se oferecia por poucos marcos.
     - O “Comandante” disse que além de lhe entregar estes documentos - tiros duma pasta um envelope- lhes indique algumas cousas. Eu sou Arka, companheiro de viagem.
     -OK.
     Agora o local estava cheio de gentes de toda condição, o fumo dava um aspecto lúgubre à sala.
     O Arka dava instruções discretamente sem aclarar muito bem que era no que falava. O mesmo poderia interpretar-se que iam tomar uns copos à cidade mais próxima como outra cousa mais arriscada. As paredes têm ouvidos! “...Quando cheguemos ao lugar que nos ocupa...”, “...durante o trajecto que teremos que fazer para salvar os irmãos...”
     Segundo as instruções orais do Arka em Sarajevo achava-se um grupo de sérvios dispostos a sabotar instalações muçulmanas, para colaborar assim com a causa Jugoslava. Havia que lhes facilitar, pois, material para tal fim. Com esta pretensão era como lograriam entrar em Serajevo até deixarem atrás os sérvios sitiadores.
     -E quando encontremos o outro bando? - perguntou o Kofa intrigado que agora já estavam sentados arredor duma mesa noutro apartado do próprio bar.
     - Então eu serei o guia.
     - Amém... - disse o Kofa.
     - Amém - repetiu o Windsor.
     Agora aguardavam os três em silêncio a que chegassem as vinteduas horas. O Kofa pediu três cervejas sem perguntar se era o que lhes apetecia realmente aos reunidos.
     O Windsor cavilava nas ameaças do Ocidente de atacar à artilharia sérvia que sitiava Sarajevo. Possivelmente jamais se produza tal ataque, mas o temor a ficar exposto a um tribunal internacional, como militar dum estado ocupado no suposto de que o Ocidente invadisse Sérvia, fez que o “Comandante” tardasse menos tempo em se decidir na colaboração com o Aveiro... Ou talvez o monténegrino tinha participado já em alguma chacinaria nos primeiros dias da guerra?
     Às vintetrês horas um camião Mercedes, tipo militar, com tracção aos dous eixos, abria-se passo e detrás um Pátrol seguia a poucos metros polas estradas meio desfeitas para Sarajevo. O camião luzia uma bandeira sérvia na sua parte dianteira mais visível. O Nissan também levava abundantes símbolos que o identificavam como um carro para-militar sérvio.
     O Richard Windsor lembrava de novo o tabuleiro de anúncios do Seminário e também dos outros centros nos que prosseguira os seus estudos. A “dúvida”, eterna sensação intrépida que o abordava constantemente. Sentia nojo naquilo, mas que fazer? O “Comandante” lá adiante no camião acompanhado do Arka era agora a sua grande dúvida. Por que é que tinham que arriscar as suas vidas aqueles dous seres? Polo medo à guerra e a uma mais que possível derrota? Polo dinheiro? A seu lado o Kofa conduzia em silêncio. Em que pensaria?
     Já se tinham adentrado em caminhos de terra, a estrada que vai de Belgrado a Sarajevo está içada de vigilância. O Richard sabia que entraram na Bósnia-Herzegovina polo nome de Visegrad que ficava já a vários quilómetros.
     - Tu fias-te destes dous? - perguntou de supetão Windsor.
     - Por que não? E que remédio?
     - E se nos levam presos?
     - Tinham provas abondo para nos deterem em Bajina, por que haviam de nos levar de excursão?
     - Certo...
     O camião ia carregado de munições, explosivos e também armas de vários calibres. Ainda também botes de pintura branca para chegado o momento camuflar os veículos como UN.
     - Faltam vinte quilómetros....
     - Bom, - assentiu o Windsor .- Pára, semelha aquilo um controlo, não é?
     - Sim.
     Instantaneamente, sugiram canhões à direita e à esquerda apontando.
     - Milicianos sérvios... - rosnou o Kofa.
     - Sossega...
     O “Comandante” baixou do camião com vários papéis na mão. O miliciano que dirigia a resto de companheiros escutava à luz do camião. O Windsor e o Kofa foram convidados a baixar do carro e aproximaram-se do Arka e do “Comandante” escoltados de três para-militares... Eram barbudos e cheiravam a álcool. De longe ouviam-se os ruídos da guerra.
     - Esta noite entramos em Sarajevo!! - Berravam bêbedos alguns sérvios.
     À direita da estrada havia uma montanha que por vezes se podia divisar com a luz alongada das explosões. Para a esquerda ouvia-se rugir a água...
     O “Comandante” discutia com os para-militares, comunicava-lhes que as ordens que ele tinha era de continuar a Sarajevo. E procediam do Chefe do Exército Sérvio.      O Arka baixou da cabida do camião quatro garrafas de conhaque para ajudar às negociações. Os milicianos gritavam de contentes. O Windsor sentia terror da situação, suava frio e respirava profundamente para se não congestionar de medo...
     Depois de duas horas de fortes discussões os milicianos aceitaram que continuassem os veículos. Indicaram-lhes como melhor entrar em Sarajevo pola parte controlada por eles, os sérvios. O “Comandante” comunicou a Richard e a Kofa que quiçá em duas horas estariam a poucos metros do prédio da Presidência, em Sarajevo.
     A viagem ainda havia de ser abondo surpresiva. Controlos, paragens. Pintar, retirar os símbolos sérvios, por distintivos da ONU.
     O “Comandante” propôs um descanso para pensar e também para contemplar Sarajevo... Eis a cidade prometida! Após o descanso prosseguiram adentrando-se. Tudo estava derrubado, as ruas cheias de anacos de paredes, telhados fundidos, carros machucados, janelas sem vidros, árvores rotos. E o nada, gentes e cidade abandonados. E de novo os bombardeios, os franco-atiradores, os assassinos. Uma patrulha de soldados bósnios aproximou-se deles solicitando-lhes identificação. O “Comandante” pediu ser levado ante alguma autoridade da Presidência, ou relacionado... Os veículos foram inspeccionados. Estavam um bocadinho surpreendidos do achádego.
     - Queremos-lho oferecer ao governo legítimo deste país! - espetou o Windsor em inglês.
     Os soldados não perceberam o significado. Limitaram-se a se instalar quatro na caixa do camião, dous no pátrol e o resto continuou no seu próprio veículo, também um todo-terreno preparado para transportar soldados, e enfiaram para um prédio meio derrubado. No interior havia um posto de controlo antes de dar com a boca dum túnel camuflado detrás duma pilha de sacos terreiros. O túnel conduzia a um subterrâneo amplo ao longo do qual numa grande nave havia soldados por toda a parte arranjando armas, carregando carros com caixas de madeira feitas rudimentariamente. Desta nave central partem outros túneis. Por uns quase não se pode caminhar de pé, por outros transitavam incluso carros e até pequenos camiões. Depois das incómodas comprovações e verificações, por um daqueles túneis partiram no pátrol o Kofa, o “Comandante” e o Arka, seguiam a um carrinho conduzido por quatro soldados. Mais baixo terra ainda continuavam a se escutarem as deflagrações. Havia partes do túnel derrubadas ou semi-derrubadas onde gentes civis trabalhavam para repararem o que os sérvios desfaziam a canhonaços. Os túneis estavam muito pouco iluminados. Chegados a uma altura apareceram de novo uns dez homens armados sem uniforme militar. Saudaram os guias ou soldados governamentais e depois duma breve conversa abriram-se umas portadas polas que entraram os carros. No interior achavam-se arrumados dous carros marca Mercedes ao lado duma frontaria de uma casa. Tudo isto baixo terra. Duma parte acedia-se a umas dependências que estavam cheias de gente que iam e vinham... todos estavam armados. Ao fim os quatro, acompanhados de dous militares, encontraram-se numa dependência, uma mesa pequena de madeira ao redor da que se achavam quatro pessoas. Uma delas era um ministro do Governo legítimo da República.





CAPÍTULO VII


     “Eu era um menino muito amante dos animais, não gostava nada da tourada... Arrepiava-me olhar como os maiores desfrutavam fazendo-lhes dano e acima pola televisão falavam do “arte” e da “maestria”. Como havia de ser-se arte aquilo? Após escutava-se falar àqueles “maestros” com aquela pinta de palerma e “analfa-burro” que dava pena... Mas é a sociedade que há...”

     Os subterrâneos de Sarajevo era a vivenda de seus moradores. Não se guardava um horário regular e normalizado como em tempos de paz. Os ministros, os chefes militares, os responsáveis da resistência civil... Todos dormiam quando se podia. As bombas com os seus infinitos ruídos e desalmadas conseqüências em qualquer hora chamavam à porta, havia que estar alerta. Todos contavam com o assalto final naquela noite, ou amanhã... Quem é que sabe? Lá nas colinas estão os assassinos a lançar metralha para esta parte.
     O Richard perdera um tanto a noção do tempo, levava no inferno, como ele próprio gostava dizer, duas, três ou quatro noites? As autoridades deram-lhes pousada num subterrâneo seguro perto donde se entrevistaram na chegada com um Ministro e outros mandos militares. O Kofa continuava na sua companhia, mas o Arka e o “Comandante” foram afastados... Quiçá detidos? O Windsor é que suspeitava isso. E ele próprio podia pensar-se detido? Dera-lhes toda a informação da que dispunha. O trinta de Agosto na zona x de Mostar às oito zero, zero! Além de lhes entregar o carro com todo o que nele havia... Menos o conteúdo da roda de reposto! Aqueles marco eram a sua recompensa. Dous milhões para ele... No interior das solas de seus sapatos também havia informação que lhes entregara. Envelopes pequenino feitos de zinco cujo interior se não podia averiguar sem separar duas lâminas soldadas. O Ricardo confirmou, ou quase, a suspeita de que o verdadeiro serviço à causa da Bósnia não for a informação e menos ainda as armas que ofertou às autoridades da Capital... “Fizeram vocês mais dano ao exército inimigo que duas divisões lutando a nosso lado. Vocês é que deram trabalho a toda a força aérea sem o saber! E ainda à grande parte dos tanques de além da fronteira. Quiçá houveram cruzado em massa de não ser polo medo a uma invasão que vocês simularam.” - Assim falou um militar bósnio.
     A terra seguia a tremer polo efeito das bombas que lá fora impunemente provocavam a morte de miúdos. E detrás iam os Capacetes Azuis a recolherem os miolos ciscados polo chão! Era a missão “valente e arriscada dos notários” vestidos de militares da ONU, era o papel da Europa Ocidental! Os sérvios das montanhas limitavam-se ao envio dos obuses e de os seguirem com prismáticos. Assim contabilizavam os mortos diários com certa precisão. Claro que também os podiam contabilizar escrutando nos cemitérios e ainda para mais, de quando em vez matavam algum enterrador.
     Às nove da manhã o Windsor e o Kofa tinham que se deslocar à Presidência do Governo, lá é que lhes agradeceriam os serviços prestados e facilitaram-lhes meios para abandonar a Bósnia-Herzegovina. As bombas continuavam a cair na cidade, eram as dez da manhã e ainda não puderam partir. O lugar no que se achavam estava muito bem acondicionado, de dimensões reduzidas. Uma cama, uma mesa pequena e duas cadeiras. A casa de banho estava num recanto dum espaço exterior e comum a outras dependências, também subterrâneas.
     O Kofa permanecia sentado na cama, o Windsor fazia exercícios de ginástica, os dous militares que os iam acompanhar à Presidência aguardavam no exterior do quarto.
     - Não posso acreditar - exclamou o Windsor olhando para o relógio,- levamos cinco minutos sem bombas!
     - Certo!
     Naquela altura os dous militares entraram apressurados no quarto e indicaram com energia contra o carro que estava estacionado na sala exterior. O Kofa e também o Windsor saltaram à carreira no interior do carro militar e também os dous membros da Armija. O carro rolava aos poucos minutos polas ruas destruídas de Sarajevo. Um repineque de metralhadoras de súpeto lembrou a realidade, os vidros dianteiros do carro saltaram polo ar, os militares caíram debruçados para adiante e o automóvel perdeu o rumo. O assobio que de imediato se ouviu anunciava aos ocupantes que ainda mantinham a consciência do que se aproximava. As rodas do carro saltaram polo ar a quarenta metros do lugar, os vidros que ainda ficavam inteiros caíram no chão esfarelados e mesturados em sangue. Os quatro corpos ficaram entre ferros retortos e imóveis. O silêncio fez-se de novo.

     Numa nave grande semi-escura amontoam-se colchões acima dos quais repousam corpos mutilados ou semi-inconscientes a consequência de feridas menos visíveis... Os exteriores daquele hospital improvisado eram bombardeados a cada pouco. Na cama 13-7, as fileiras são de até treze camas agrupadas de sete em sete, repousava um anónimo doente que fora alcançado num bombardeio e que só pronunciava algumas palavras de jeito repetitivo...
     “Sou Ricardo Aveiro... não me fuzilem!”
     Só ele chegou com vida quando uma patrulha da Arnija os recolheu faz quatro meses e os trasladou ao hospital de Cosevo...
     “Sou Ricardo... Sou Ricardo. Tenho que pensar. Quem é que sou? Não vejo... Deus, meu Deus. Estarei a falar baixo, ou quiçá estou a berrar? Sou Aveiro, Ricardo, Vila Velha, Europa? Agora intentarei mover-me. Não posso mover-me. Dói-me o pé direito ou é que é o esquerdo? Deus, tenho pé? Terei pernas? Seica quando a um lhe dom os dedos dos pés é porque os não tem já! Auxílio, que alguém me diga se tenho pés... pernas ou como é que estou? Alguém me toca na cabeça... passam várias pessoas, só vejo sombras...”
     Naquela altura, mês de Novembro, uma visita de autoridades europeias da União Europeia inspecciona o hospital.
     “...A corte principal estava cheia de bafo, assim chamamos na minha aldeia ao vapor, e os homens moviam-se destros ao redor do caldeiro onde iam metendo os porcos já sem vida... Ali amolecem-lhes as serdes para logo rapar-lhas com o aço... Os miúdos corríamos entre o meio dos animais mortos, os maiores repreendiam-nos...
     - Rapazes, saí daí... Não vaiais cair no caldeiro da água... Está fervendo.
     A “matalote” dos porcos estava-se a realizar. E nós, miúdos, corríamos, desfrutávamos compartilhávamos a felicidade dos maiores. Vila Velha era naquelas datas o paraíso, os miúdos dumas casas ia-mos para a casa dos outros... O Amador do Zarralheiro era o especialista em fazer rins à brasa... O Pepe de Rivas confeccionava nos untos... E a Helena de Carreira parolava na cozinha no meio das outras mulheres contando as últimas novidades e à vez pelava nas patacas... Mas ela não podia faltar, que seria a matança sem a Helena de Carreira? Quando se faziam os chouriços era também a que sempre animava à minha mãe a lhes botar mais sal ou pimento! Ainda havia outros, mas estes mudavam cada ano... Bom, o Raimundo de Caseiro quase que sempre assistia, ainda que fosse à ceia só. Eu era o miúdo anfitrião... E agora cá sem me poder mover, ignoro o que é que tenho, não posso falar, nem mover... Apenas posso ouvir alguns ruídos muito fortes, creio eu que assim hão de ser? Porque fuzilaram a Arkam e ao “Comandante”... E por que é que eu sei que os fuzilaram? Deus! Istambul, Sarajevo... E agora? Houve uma explosão e saltamos polo ar, que é o que aconteceu com o Kofa? Sim, já lembro, olhei como saltavam os miolos da sua cabeça polo ar, está morto. Eu devo de estar num hospital de Sarajevo...”
     Os delírios do Richard começavam já a serem perceptíveis. A cama onde ele estava pertencia a um sector que se encontrava baixo supervisão e atenção de vários “Médicos do Mundo”, aguardavam a visita duma delegação da Cruz Vermelha que traziam um carregamento de medicinas.
     “Sou Richard Windsor... Não sou Ricardo Aveiro...”
     O Windsor continuava a cavilar na sua identidade. Já coordenava e relacionava correctamente todos os seus actos anteriores ao desastre.
     Os médicos e o resto do pessoal sanitário do hospital andavam muito atarefados, careciam do imprescindível e além disso tinham que trabalhar muito duramente para atender nos doentes. O Richard já percebia o murmúrio da sala e a vista era a cada instante melhor.
     Lá fora seguiam os disparos. Eram as nove da manhã e um grupo de médicos dispunha-se a passar inspecção do estado dos feridos. Em cada cama havia um cartaz com o nome do ferido. Na cama do Richard o cartaz tinha escritas as letras X e E... Um dos médicos ia perguntando em inglês, e outro traduzia quando era preciso à língua local, no estado no que se achava o doente.
     - O X, como é que estamos hoje?
     O Windsor percebeu correctamente a pergunta e emocionou-se.
     - Tranquilo, não se excite... Este leva vários meses cá, recolheram-no dum bombardeio, ignoramos quem é, os outros companheiros ficaram irreconhecíveis - disse um dos três sanitários em voz muito baixa, que acompanha à delegação da Cruz Vermelha.
     - Como se chama... Pode ouvir-me? - inquiriu um dos quatro membros da Cruz Vermelha.
     - Sou Windsor, Richard Windsor, jornalista cubano.
     À delegação da Cruz Vermelha acompanhava-a uma escolta de soldados da ONU de nacionalidade espanhola. Naquela altura encarregados de fazer chegar à capital da República carregamentos humanitários. O capitão que mandava a escolta acompanhava naquele mesmo instante ao grupo. Era grosso, loiro e baixote. O capitão Carlos Lopes ficou paralisado quando olhou aquele rosto que com certas desfigurações lhe lembrava um amigo da juventude. “Não é possível!” - rosnou o capitão.
     - Dizia algo o senhor? - perguntou um dos médicos.
     - Nada, - disse o Carlos no seu inglês,- lembra-me a um amigo meu, sem dúvida polas desfigurações.
     O Windsor cravou os olhos no Carlos e interrompendo a respiração exclamou:
     - Vivam os Capateces Azuis!!
     O Carlos sorriu e guardou silêncio ainda que permaneceu atento à conversa.
     O chefe dos médicos que comandava a inspecção com a delegação visitante informou do estado do ferido. No cartaz já figurava agora o nome escrito com caneta vermelha: “senhor Richard Windsor”, jornalista. As duas pernas fracturadas, também a clavícula e ainda o crânio... Fica proposto para uma evacuação... A inspecção continua e numa certa altura o capitão retrocedeu e quando estava junto da cama 13-7 disse a duas quartas do ouvido do Windsor:
     - A Colensa mora em Lugo, quer algo para ela?
     O Windsor virou raudo para o Carlos e ficou sem saber que cousa dizer. Depois duns segundos reagiu:
     - Não me descubras amigo. Sou Richard Windsor e sou cubano. OK? A Colensa é história passada.
     - OK! Mas, que fazes cá?
     - Trabalho para os aliados dos teus chefes...
     - Vão-te evacuar à Espanha possivelmente, interessa-te ser Windsor de certo...
     O Richard ficou calado e o Carlos continuou acompanhando a delegação.
     Queria deitar fora a ideia de ser evacuado à Espanha, seria muito perigoso pois de certo ainda não tinha prescrito aquele delito polo que um dia tivera que fugir. Imputações que ele sempre negou.
     O Carlos Lopes deixou debaixo do travesseiro um livro pequeno com relatos escritos por um conhecido e até amigo de ambos: Jorge L. Argis da Pena. O Ricardo Aveiro já podia ler os relatos do Argis...


     Richard Windsor era um homem novo naquela quarta-feira de Junho... apenas tinha já sequelas visíveis da sua queda em Sarajevo. Foram muitos meses imobilizado num hospital onde só se podia rezar a Deus para que a desejada intervenção da OTAN se produzisse. Daquela aventura só guardava lembranças amargas e uma infinita decepção nos países da União Europeia. Às sete da tarde dum dia qualquer saía do Hospital Militar do Ar com a alta na algibeira e com muitas instruções, tanto médicas quanto de outra ordem que o Richard ainda se não terminava de crer. Tomou um táxi na própria saída do hospital, rua de Arturo Sória... Em Madride já quentava o sol como no verão mais absoluto. Ele continuava a chamar-se Richard Windsor. Um militar comunicou-lhe três dias antes de o dar de alta que o Serviço de Inteligência sabia da sua verdadeira identidade:
     - O que você me conta produz-me muita piada!
     - Não se aflija, senhor Aveiro, não temos intenção de o denunciar à polícia nem tampouco queremos entregá-lo à justiça... Algo melhor para você! Terá trabalho e ganhará um bom dinheiro. Um ordenado que para si próprio quereriam muitos bons patriotas espanhóis que se puderam fariam grátis o que você vai fazer.
     - Que é o que se tem que fazer para ser-se bom espanhol?
     - Você vai trabalhar para a “Casa” integrado nos “Grupos de apoio operativos”, interessa-nos a sua facilidade lingüística. Ah! Se agora não está na cadeia é por um amigo seu chamado Carlos Lopes... Lembra?
     - Lembro...
     - Ele é quem nos disse que você é capaz de falar uma língua alheia em vinte dias!
     - Ignorava tal genialidade da minha própria pessoa! Mas trocando de assunto, vocês é que estão errados na minha conduta, eu sou inocente de todos os cargos que se me imputam.
     - Quais os cargos?
     O Ricardo guardou silêncio um bocado desconcertado.
     O táxi rolava pola rua de Alcalá à altura do Metro de Suanzes... O Ricardo Aveiro cavilava na atitude dos militares no hospital militar de onde ele vinha. Fica surpreendido de como na sua paranóia castrense, adoravam ser louvados e faziam que os saudaram segundo a sua norma à saída ou à entrada, no controlo exterior... Visível para qualquer viandante, ficando facilmente identificáveis ainda quando iam em roupas não militares... Por acaso algum membro de grupo terrorista sem qualquer esforço podia tomar notas das matrículas dos carros.
     Aquilo de trabalhar para o Estado resultava cómodo e até agradável além de ser forçado polas circunstâncias. Na rua Diana havia um andar aguardando o novo agente. “Quantas voltas é que a vida dá! Eu cá de novo em Madrid, com barba de trinta dias e bastantes anos mais...”
     - Senhor... senhor.
     - Dispense. Ia cavilando no passado
     - São novecentas e cinquenta pesetas.
     - Tenha.
     O taxista deu o troco e enfiou para o centro da cidade. O Ricardo deu mais uma volta no bairro e depois encaminhou para o apartamento na rua Diana. Deram-lhe umas chaves e o endereço, terceiro andar... Adentrou-se no apartamento e descobriu um só quarto uma cozinha sem móveis, serviço com banheira, um comedor... Acima de uma mesa, ao redor da qual havia quatro cadeiras, encontrava-se uma pasta escura. Dentro as instruções ou ordens da primeira missão. Na imediata sexta-feira havia de viajar a Lisboa. Lá ia celebrar-se um primeiro “Encontro de organizações Lusistas Galegas” para tratarem da reunificação lingüística e reafirmá-la... Seu trabalho consistiria exclusivamente em apresentar um informe das pessoas que se tiveram significado no sentido unionista. Lá estava ele, acima de uma cama com a mirada extraviada cara o teito... Uma situação até para ele pouco crível. Sentia-se personagem de um filme americano! O debate filosófico no Ricardo Aveiro era inevitável... O interior do agora “agente” Richard Windsor não tinha paz. De colaborador do nacionalismo galego a espião da inteligência espanhola! Era preciso ser-se muito frio e carecer de coerência e até princípios para se não voltar louco.
     “Acho um falho nisto... Chamar-me Richard Windsor pode ser perigoso! Por acaso pode haver lá algum interveniente que me conheça...”
     O Ricardo cavila agora como é que ia reagir de produzir-se um encontro com algum dos seus velhos amigos? Mas tampouco era complicado fazer-lhes crer, a qualquer que for, que se tratava duma estratégia para se não deixar identificar pola “Inteligência”... Quem não ia acreditar nesta versão se antes se tinha conhecido a Ricardo Aveiro? Como ele ia trabalhar para quem o fazia agora? Aquele estudante em Lugo comprometido em todas as luitas e ainda em causas perdidas, como havia ser-se agora do bando contrário? Até tinha aparecido nos papéis, como personagem dum romance escrito por um vizinho de Vila Velha. Só alguém que conhecesse muito bem Ricardo sabia que gostava de se fazer passar por “Carlos” com as mulheres nos seus anos moços... E em certos serviços secretos acredita-se na versão do romancista. Neste romance o Aveiro cometeria assassinato!
     E como desenvolver o novo trabalho? Disfarçando-se? Em que é que consiste o de ser espião de verdade? Ele ia com uma ideia, espreitar a nova situação. Olhar os acontecimentos qual se sucedessem numa montra, num cenário... E tomar notas daquilo que se possa usar num dossier futuro... As pálpebras iam-se vencendo à falta de descanso... A realidade ia desaparecendo numa brêtema imensa. O companheiro de viagem não deixava de produzir fumo... A cada pouco punha lume a um charuto de poluição que o não deixava respirar. Outros gritavam no meio da rua... “La Pátria es lo primero...” De súbito as metralhadoras interpretavam a sua sinfonia... “Muerte a los traidores...” “Matai-os, matai-os a todos os que não falem a nossa língua!” E de novo as metralhadoras, o suor baixava polas encostas daquele corpo atormentado. “...Este é um espião!” E de novo pediam a morte para os traidores. E o autocarro cruzou a fronteira. Duma banda os sérvios e da outra os bósnios! E não se matam? Eles vestiam roupas militares, capacetes de ferro... Mas, não íamos para Lisboa? Sim mas havemos de passar primeiro por Mostar, e ainda chegarmos a Sarajevo... Obrigado! Mas que é o que falam? Castelhano... Mas se estamos na minha aldeia, isto é Vila Velha... Porque é que os miúdos não falam galego? Quemacaquizes é que você diz? Já são bilingues... Que mais dá o idioma que eles falam se usam o espanhol, não acredita? E o companheiro continuava a soltar fumo e mais fumo com o charuto nocivo! Ocupava o seu assento e parte do dele... “Que fizem eu, que crime cometi para merecer um companheiro de viagem assim? Mas não estava proibido fumar em autocarros? Mas isso é quando o fumador é bósnio-muçulmano... Não compreende que eu sou sérvio?”
     As metralhadoras de novo a interpretar a monótona e triste sinfonia de guerra. E de súbito acordou tirando um grito surdo e angustiado. “Maldição, de novo estou com o pesadelo a misturá-lo tudo...”
     O Ricardo incorporou e enfiou para o sanitário, o suor caía-lhe polo rosto... As pingas iam ficando polo assoalho de madeira vernizada e geometricamente colocado. Atirou água à cara para se despavilar. “Que sonhos tão absurdos tenho...”
     O Richard cada vez que permanece uns quantos minutos sem se mexer, depois para fâ-lo padece fortes dores de ossos.
     Na escassa bagagem que trazia do hospital, o resto ficou em Serajevo, encontrou-se com o breve livrinho que lhe regalara o Carlos Lopes e do que ainda lhe ficava sem ler quatro páginas... Abriu o livro e leu o título do relato...
     Eram as vinteuma horas do dia três de Junho, sexta-feira. E Lisboa voltou à cabeça do Aveiro. Teve-se que queimar o Chiado para que a Europa descobrisse a cidade, a capital do Atlântico... A capital do primeiro e do quinto império! Defronte às oficinas da empresa de autocarros ALSA aguardava bicha um tipo moreno, cabelos embranquecidos e de muitos dias sem passar pola água! As roupas que ele vestia não eram acaso da última moda... As calças brilhavam de velhas e os sapatos tinham mais um furado.
     - O autocarro para Lisboa quando é que parte? -perguntou o mendigo com sotaque lisboeta.
     - Às vinteuma e trinta, tem-se que confirmar a passagem nas oficinas da Meliá... - respondeu o empregado com certo desprezo.
     Na estação de autocarros, buliam gentes para um lado e para outro... brancos, pretos, amarelos, de todas as raças possíveis. Entre tanta gente “O Mendigo” observou três indivíduos galegos que animosamente comentavam cousas relacionadas com Portugal... “O Mendigo” aproximou-se deles, todos aguardavam já o autocarro no passeio correspondente, e escutava tudo o que falavam, já que o faziam inibidos de resto de passageiros... Havia indues, chineses, pretos da Angola, do Brasil... pretos de toda a parte! Os galegos eram três tipos de diferentes idades, quarenta, trinta e cinco e vinte e dous... Possivelmente. Falavam num próximo encontro que se ia celebrar em Lisboa organizado por vários grupos da Galiza, e de Portugal, regeneradores do idioma... O evento teria lugar na rua Vítor Córdom, na antiga Universidade Livre... Quando chegou o autocarro “O Mendigo” encaminhou para um assento do final em zona de fumadores... Os três galegos ficaram polos primeiros, os de não fumadores. O Mendigo só levava por mala um livro que ele lia de jeito anárquico. Ora na página quarenta... ora na cem. Um dos três galegos, o de maior idade, falava de seus projectos como escritor de romances, os outros dous são poetas... Anota “O Mendigo” numa das folhas do livro além de seus nomes: Jorge L. Argis da Pena, que é o autor do livro que ele próprio está a ler, Marcos Janeiro e Cristófeles Martins.





CAPÍTULO VIII


     Os fumadores iam quase todos dormitando... Já não havia fumo estúpido quando o autocarro rolava polas estradas ainda da Espanha, eram as vinte e três horas... O autocarro continuava a devorar na estrada.
     Quando eram as duas da madrugada “O Mendigo” segue a ler, ajudado por uma pequena luz individual que o autocarro oferece, a quem a quisesse usar, e está situada acima da cabeça de cada viageiro:
     “... A dúvida do Doutro é um relato de muitos dos que consta o livro do Jorge L. Argis da Pena, que nestas horas dormita nos primeiros assentos do autocarro. No vídeo passam um filme: La misión...
     No mendigo ninguém repara, quem ia dizer que ele e o próprio Jorge nasceram no mesmo lugar, foram à escola juntos e agora o não conhecia.

     As pálpebras do Ricardo, “O Mendigo”, iam cedendo ao esforço da leitura nocturna. As indicações na auto-estrada anunciavam que restavam quarenta quilómetros para chegar a Lisboa. Nesta altura da viagem o motorista desligou o ar refrigerado e a temperatura aumentou consideravelmente.
     Tem piada este jogo dos espiões... “O Mendigo” sente-se no interior de uma personagem do Grahan Green ou do Jon Lecarré. Refugia-se com o livro de relatos do próprio autor a quem investiga, entre outros! Obviamente ao livro colocou-lhe uma sobrecapa branca sob a que escreveu o nome do proprietário: Richard Windsor... fica muito bem quando alguém possa observar um mendigo, ele está a ler... Também serve para ocultar um bocadinho o rosto.
     E isto é Lisboa. Rua do Casal Ribeiro, Av. Da Liberdade... “O Mendigo” encaminha para o Chiado, bairro alto, A Brasileira... Os turistas tiram fotografias com o Pessoa de bronze para logo presumir com os amigos... Quem não conhece o Pessoa... “O Mendigo” vai observando polas ruas.
     - Senhor, faça o favor... -“O Mendigo” requeria a presença dum camareiro no interior do café “A Brasileira”. Mas este lhe não presta atenção. Os mendigos são ignorados também na Lisboa eterna!
     “O Mendigo” sentado numa cadeira tomava notas acima duma mesa ante a indiferença dos presentes. Ordenava as impressões tiradas do que lhe tinha escutado no interior do autocarro aos três viageiros que vinham a participar no encontro de associações lingüísticas.
     Todas aquelas notas de interesse haviam de ficar no informe que entregaria às autoridades de “La Casa”... Por isso lhe pagavam e para isso lhe seguiam a respeitar a nova identidade. Richard Windsor! E ainda achava normal, não considerava estranho que os organismos do Estado quisessem estar informados em todo o momento de como pensavam aqueles que não gostavam da filosofia do sistema. Ele também concordava em defender a ideia de que os galegos, assim como os outros povos não castelhanos, haviam de ser espanhóis mas não castelhanos! E achava que o actual Estado mais bem obrigava a ser-se castelhano para passar por bom espanhol! Mas considerava lícito o trabalho encomendado, ele não podia fazer outra cousa...
     No primeiro dia do encontro, naquelas primeiras palestras, o Richard, enfundado em seu disfarce, anotava tudo o importante que este ou aquele iam dizendo... Havia um grupo de participantes que pronunciavam discursos muito radicais, outros que só se ocupavam no assunto da língua.
     “Em parte da Bélgica falam a mesma língua que na Holanda e não por isso é que andam a tiros para mudar a fronteira de lugar...”
     Assim é que outro dos participantes queria significar que ele era um estudioso da língua e da história, não um político... O Richard faz asinha uma fotografia das diferentes filosofias e permite-se uma anotação de recomendação para quem o quiser ler.
     A sala onde se celebravam as intervenções é uma aula da “Universidade Popular”... Com grandes janelas polas que se pode olhar a ponte de Lisboa, a ponte de Salazar... As cadeiras na sala são pouco confortáveis, e ainda o espaço grande demais e um bocadinho desajeitado.
     O primeiro dia termina o encontro com muito revoo de imprensa e pouca participação de público português. “O povo português é que não sabe lá muito desta história - acreditava um jornalista,- mas quando ele saiba, asseguro-lhes que vai reagir positivamente...”
     O Richard fora dar com seus ossos a um albergue para mendigos perto do porto de mercadorias, os mendigos não são admitidos nas pousadas... No encontro olhadas escrutadoras se cruzavam frente à sua pessoa.
     - Quem é esse moreno?
     - De onde é que saiu esse homem?
     - Parece judeu, é evidente, só havia que o ouvir falar da igreja católica!
     Mas ele ignorava-os a todos e continuava a dar a “nota desafinada no concerto da reintegração...”
     Às sete da manhã, no dia seguinte, o Richard lia no livro do Jorge, aguardando que começasse o encontro. Sentado num banco num parque grande onde havia uma preciosa feira do livro.
     O segundo dia do encontro ia-se celebrando sem muito sucesso... “O Mendigo” seguia escrutando todo o que ali se dizia e também ele falava, com certa incoerência. Havia que ser-se um mendigo com todas as da lei... Sua missão estava a piques de terminar em Lisboa, as notas estavam tomadas, os jornais recortados, isso sim, estava surpreendido do espaço que os jornais de Lisboa dedicaram ao acontecimento, evidentemente o assunto era de interesse para os portugueses. Agora lembrava a anedota da noite anterior, oito pessoas foram cear juntas... Todas participantes no “Encontro”. Cada um contava cousas, os galegos a falar com seu sotaque içado de castelhanismos e os portugueses dando ritmo àquela sinfonia desafinada.
     Os anfitriões ora contavam cousas acontecidas nas suas viagens à Galiza, ora anedotas sucedidas polo mundo... “O Mendigo” ali no meio... Também ele a contar sucessos, entre prostitutas e gentes de mal viver... Mas ele é que se não dedicava à delinqüência, só tivera problemas com o álcool... Mas ele nos seus anos normais for uma ilustre personagem!
     E chegou a hora de pagar... Fizeram-se as contas a repartirem-se entre as oito pessoas... Tantos escudos entre oito?
     - Não, desculpem... São vocês sete, eu não tenho dinheiro...- disse com cara de circunstâncias “O Mendigo”.
     - Tranquilo, não passa nada, - disse um participante galego que estudava em Lisboa.


     Já não ficava em Lisboa nenhum dos intervenientes no “Encontro”, polo menos aqueles que podiam reconhecer no Richard Windsor... agora requintadamente vestido tomava café na Brasileira. Queria saber se o camareiro o ia ignorar como quando no primeiro dia...
     - Jovem, faça o favor!
     - Diga o senhor, que vai tomar?
     - Um copo de Porto.
     - Muito bem, senhor.
     E continuou a ler no último relato que começara havia um tempo e que por circunstâncias não terminara.
     A velha Constantinopla, a Ponte Atatür e também a Galata e as impressionantes cúpulas e minaretes próximos... Todas estas construções históricas vinham agora à mente do Richard Windsor. A Mesquita de Solimam, o Palácio de Topkapi... Istambul, o Bósforo, Europa e além Ásia. E não lhe deixaram desfrutar de todo isto que de certo levava muitas ganas de fazer um verdadeiro percorrido minucioso. Agora na Brasileira repousava, cavilava... É o quarto dia que vinha perguntar ao Pessoa o que havia de fazer... Se regressar à Espanha para entregar o informe previsto às autoridades ou de novo fugir?

Desde a borda do abismo
olhei a todos aqueles
que não têm nome...

     Era algo dum poeta Arménio que ele tinha lido em algum lugar, e possivelmente do século XII?
     E agora ele ali, só, sentia que tampouco tinha nome. A dúvida, a eterna dúvida do Ricardo Aveiro retornava à sua confusa mente. Agora o tabuleiro de anúncios dos centros onde ele estudara regressava imaginário e cruel. Tinha dúvida!
     O café da Brasileira estava cheio de turistas, também havia muitos portugueses... Numa praça, perto do lugar, uma orquestra interpretava peças de música tradicional do país. E numa montra de cassetes próxima do lugar um altifalante distorsionava um fado belo e triste...
     Que me não digam que a saudade não é uma característica comum dos “Atlantas”?

     O sol queima em Lisboa. O Ricardo folheia agora num jornal as notícias internacionais. Na Bósnia-Herzegovina tudo continuava igual, os sérvios seguiam não aceitando nenhum acordo de paz que significara a devolução de território conquistado. Os muçulmanos tinham melhorado muito militarmente, cousa que agradava ao Richard, agora levavam a iniciativa militar, e ainda recuperaram território no Norte.

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