Gris cinza

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GRIS CINZA

                       (Para José Luís Rodríguez)


I. SEQUÊNCIAS (ACORDANÇAS DE UM SOBREVIVENTE)


ACORDANÇA 1

- Era ruivo, guapo, alto e educado. A senhora era esbelta, magra, morena e elegante. Trazia um diadema ancho de cor branca e o cabelo recolhido num monho; um sobretudo de la com astracão nos colares e punhos, e grandes botões. Havia tempo que não viam uma mulher com meia e sapatos de salto. O rapaz -não passava de vinte e cinco anos- fixo aceno de ajudá-la e pediu-lhe o meninho. Logo, guindou-o de cabeça contra o chão...
E vai o cão e achega-se a lambê-lo... O rapaz tira de fusta e começa a bater no animal endianhadamente. É difícil suar com este frio..., mas o jovem tem o floco molhado e as bochechas encarnadas, e não para. Quando cansou da fusta, começou com as patadas. A mulher fica no chão, no caminho da bota. O seu diadema, vermelho.
Agora está de pé, lívida, como morta, e já não berra. Esse silêncio...


ACORDANÇA 2

- Era ruivo, guapo, alto e educado. Todos os dias levava os restos da comida da esquadra ao pátio dos animais: uma espécie de galinheiro rodeado de arame. Guindava uns anacos e os dobermanes abalançavam-se sobre eles. Às vezes estavam famintos porque os deixavam dias sem provarem bocado. Quando se enchiam, deitavam-se alasando, enquanto três figuras famélicas, a gatinhas, apareciam por detrás, aterrorizadas, olhando de soslaio para os dentes alerta dos cães; iam para as sobras, e se não davam para todos, ainda havia pelejas entre eles, às dentadas, como aprenderam. O mais débil ficava sem nada. Era quase um esqueleto, e entre as laganhas dançava-lhe uma lágrima de criança que, apesar do seu terror, havia que reter.
Era ruivo, guapo, alto e educado. E aquela tarde quijo experimentar a lhe dar de comer na mão ao mais pequeno. Este achegou-se devagarinho e vorazmente acabou o bocado.
Era ruivo, guapo, alto..., mas não percebeu por quê não o mordia; por isso começou a bater nele como uma besta para que aprendesse, porque os cães mordem, não é?
A criança fora capaz de conter a lágrima, mesmo com tanta fame e medo. O rapaz era ruivo, guapo, alto...; não passava de vinte e cinco anos.


NEGOCIAM, delimitam lindes:
honoráveis ou assassinos? Não, por quê?
Passam carregados comboios de gando: olhar
para o lado, outro mais.

Muro, pedra; construíam eles mesmos
rompida cidade, cega sem janelas e luz;
nada, fome, só morte em abandonos, crianças e dança fatal.
Mas elites limpas, ordem e controlo,
não escapam nem se rebelam: submissão;
líderes livram: fugida, mar, marcos (alemães).


ACORDANÇA 3

- Eram só crianças. Crianças brincando a fazer-lhe cóssegas a um morto. E riam. Riam como crianças felizes. Eram felizes. As crianças eram felizes, as crianças não conhecem a morte. A fome, sim. A fome, sim. Sim, mas daquela ainda não conheciam o medo; por isso riam. Nem a doença, nem a dor, nem a furriqueira, nem... Por isso riam. Brincavam a fazer-lhe cócegas a um cadáver. Brincavam... Mas, por que riam? O que dá riso é ver quem tem cócegas a fugir do proído, e o morto não bulia nem pisca. E riam. Eram só crianças. Crianças descalças e sujas, franzinas, com farrapos e gorra, rapadas... rapadas...


ACORDANÇA 4

- Tinham cuidado de não rirem, porque viram mais de uma vez como saltavam do carro e, sem motivo aparente, começavam a bater em qualquer deles com um pau, com uma barra de ferro, com o que encontravam à mão, até abrirem-lhes a cabeça; ou simplesmente disparavam ao chou. Por isso não riam, para evitarem provocações; e a vida acabou por se converter numa fugida do inferno.
Ao primeiro, confiaram-se. Aos pequenos apanhavam-os polos tornozelos e começavam a dar-lhes voltas como se fosse um jogo, um carrusel. Riam, era uma brincadeira inusitada, mas afinal sempre o mesmo: as cabeças desfeitas contra as paredes, os faróis, as árvores, os bordos do passeio... Miolos, sangue e berros. E aquela impotência das testemunhas, aquele medo infinito...
O jogo da fugida... Assim que a patrulha assomava por um extremo da rua, sucediam-se os apitos, que eram como um sinal de afugentada. Os grandes apanhavam os pequechos e desapareciam nos portais, nos rueiros labirínticos, nos sumidoiros... Quando o perigo passava, reuniam-se alasando; e só ali, acochados, permitiam-se um abafado e nervoso sorriso infantil.


TRÊS MORTES E UMA FLOR
                                                    (Para A. L., fotógrafo)

A) A morte viaja em vagões para gado.
Em toda história de amor há violência insuspeitada.
O assassino atinou número e série.

B) Em Birkenau florescem, entre arames, margaridas.
O marido de Rosa regou roseiras depois de (re)matá-la.
Para o corpo policial, que sejam mais ou menos ficará numa questão estatística.

C) Vejo um parterre de vida adubado por cadáveres.
(Gosto das lilás.)


ACORDANÇA 5

- Ao primeiro, nada; os outros tinham-o tudo muito bem montado. Mas a nudez, o cheiro e a noite...; começavam a suspeitar e o pânico apoderava-se deles. Era tarde demais: os berros, os espancamentos e a porta que se fechava para sempre. No silêncio da noite, aquele pavor, aqueles alaridos, até ao fim da agonia; tantos ecos...


ACORDANÇA 6

- Havia uma mulher com uma criança ao colo e um peito fora. Estava a aleitá-lo. Achegou-se e disse que precisava urgentemente leite, que o menino estava com muita fome. Foram ao economato e trouxeram-lho; quando achegaram o bico da garrafa aos lábios do bebé, viram que estava morto. A mulher deu-lhes um encarecido obrigado e foi-se cantarolando. Não levava andados nem dez metros quando caiu esbarrigada.
Tinha o pêlo preto e a face pálida e franzina, e umas olheiras violáceas, como os lábios. E aquela roupa pobre: um abriguinho preto e um vestido azul claro de verão, com aquele frio, e nem meias, em socos com a sola de madeira; amarrada ao embrulho de tecidos do qual assomava o crânio degolado da criatura...


FOSSA

Terra, branco e marrom, vermelho:
um trapo, roupa. Escarvar até
os ossos; ângulos, luz, figuras
níveas que descarna o tempo.
Centos. Fossas, lembranças: Miguel
Anjo caindo para o inferno,
abraços em alto, fetal postura,
algo preto, uma jaqueta, duas.
Jesus da minha vida! Dezasseis
anos. Bolsa de mortos. Uma
boca viva que berre: NÃO
!


ACORDANÇA 7

- Golpeárom as crianças com a culatra dos fusis. Vertêrom gasolina sobre as vítimas, algumas vivas, e prendêrom-lhes lume. Muitos com os ossos rotos eram atirados a fojos e cobertos com cal. Quando começava a ferver o sangue, ainda se ouvia berrar os feridos. (Numha só operação combinavam assassinato e tratamento de cadáveres).


ACORDANÇA 8

- Sim, havia muitos modos de afogá-los. Arrebolavam-os dentro de poços de águas quase congeladas. Escuitavas os berros de socorro e os corpos a batujar desesperadamente. Alguns tentavam agatunhar pelas pedras arriba, mas iam com um pau comprido e batiam-lhes na cabeça para que voltassem a cair. Ou em caldeiros de água, se eram pequechos: enchiam-os até ao bordo, metiam-os e punham uma tabela acima, onde sentavam entre risos a conversar como se nada. Aquela balbúrdia, e logo o silêncio...
E também os enterravam vivos em fossos ou areais...
Havia umas treze crianças famélicas, esmirradas, que escuitavam as ordens de um quarentão gorducho que acabava de chegar com uma quadrilha de trabalho. Estavam firmes, como brincando a serem soldados. Algum ria, mas os mais olhavam com gesto de desconfiança. Logo começárom a marcha, imitando o passo da oca dos desfiles, e perderam-se detrás da floresta de faias. O gordo voltou e levou consigo os colegas novos que riam às gargalhadas enquanto se dirigiam com pás na mão para as árvores. Ali detrás, uns presos estiveram pela manhã cavando fojos, que ainda estavam vazios, para os fusilamentos; e a rapaziada estava firme à beira de um deles. Eram umas crianças famélicas, esmirradas... O gordo começou a atirar caramelos dentro, e a uma ordem sua os rapazes atiraram-se por eles... Os colegas apanharam as pás... e continuando com as gargalhadas começaram a deitar terra por riba dos pequenos... Os mais grandinhos tentavam sair, mas eram mais rápidos a deitar-lhes em cima pazadas de... morte. Os pequechos, com o pó, vagavam extraviados polo rectângulo. Alguns choravam. Só os mais velhos luitavam por sair, mas iam-nos cobrindo, primeiro até aos tornozelos, aos joelhos; uns caíam, outros já desapareceram... Afinal, uma mão aberta e a cara com a boca em estertor anunciavam a derrota. Depois nada, só terra e areia. O gordo e os colegas, que ainda riam, sentárom cada um com a sua pá e acenderam um cigarro. Trabalho findado...


MATANÇA

Corte cruzando olhos, delicados ossos
identificadores, rasgos partidos;
arma romba, balas. Fugia, que gente:
Kibuye, Ruanda.
Machetes, ferramenta assassina
agrícola simultaneia fainas
civis e feridas ofensivas.
Medo, perda, dor, mãos
diminutas, quartos, sangue,
portas quebradas, teito salpicado,
violência. Arma afiada.
Apunhalamento, tendão de Aquiles
cortado, a fugida impedindo e
rematá-los. Folha acoplando
enquanto rezos, deuses surdos...
Corda apertada em cintura
reduz fome. Não se defendiam,
força bruta. Narizes pequenos.
Ruanda, Quigali.
Em cada colina, cadáveres.
Mandíbula fracturada, clavícula,
esterno quebrado, pé direito.
Aquiles.

Dos bolsos bolas, jovem em fossa.
Disparos na cabeça.
Roupas, cerzidos. Bósnia.

Destruir casa, símbolo, décadas de
trabalho, ajuda vizinhos, apagando
pegadas da face (da terra): - Não voltes
!
Obrigado a tombar-se aninhado,
joelhos contra peito, abraço ante
disparo: mofo turquesa,
círculos na frente. Croácia.

Tiro em nuca, bala
traçadora a idoso sem dentes;
7,62 mm, a vinte e dois anos,
posição fetal, crianças;
marca, culatra de fuzil; chumbo,
antes de entrar em entreperna,
na cara, nas costas, várias vezes,
para queimá-los. Três dedos
não. Kosovo.
Soldados, polícias, barbeiros,
mecânicos, doutores, empresários,
ministros, capitães, coronéis,
oficiais, generais, comandantes,
presidentes, chefes, líderes
religiosos..., culpados assassinam
vizinhos. (Riqueza, poder, recursos
naturais.) Em massa mataram.

Adolf.

Todos somos

Homem.


ACORDANÇA 9

- Colgaram-no despido cabeça abaixo, cortaram-lhe o pénis, meteram-lho na boca e golpearam-o no estômago até à morte.


ACORDANÇA 10

- No matadoiro municipal viam-se cadáveres como gado. Havia uma menina pendurada pelos pés como um vitelo, com todo o corpo ensanguentado.


FINAL

Lilás
Silêncio
Memória
do horror...

 

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