Lugris,
oratória e teatro
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Jenaro Marinhas del Valle |
Condiçom humana
Desde os primeiros anos da minha infáncia até
pouco antes da sua morte mantivem com bastante asiduidade amistoso trato
com dom Manuel Lugris Freire, porque ele com Tettamancy e meu pai
formava um trio de amigos ligado por muitas finidades e mútuos afectos.
Assim como de Tettamancy só poderia dar umha visom infantil, já que
morreu quando nom tinha eu cumpridos os doze anos, de dom Manuel gardo
umha visom mais espaçosa: de quando eu neno, quando eu moço e quando
eu já home feito, contava os trinta e um anos ao seu falecimento.
Começo declarando un amistoso trato e será
necessário pontualizar que as relaçons entre novos e velhos por
aqueles tempos eram diferentes das que ambos os grupos mantemos
actualmente; polo de entom, os novos jamais trespassávamos umha imaginária linha de submisso respeito, e, pola sua parte, os velhos
adoitavam umha atitude de superioridade e paternalismo. Aquele absurdo
esquema de trato foi quebrado polas novas juventudes que, cada vez mais
e melhor informadas, descobrírom que podiam contender de igual a igual
com os seus predecessores, que non raro caminhamos reçagados. Por outra
parte os velhos começamos a sentir-nos um tanto ridículos empoleirados
sobre um pedestal que nom nos corresponde e botamos pé a terra sem
cuidar-nos de se havia lama ou nom. Ainda resta algum velho pressumido
aferrado aquilo de que o raposo sabe mais por velho que por raposo. Em
qualquer caso o único que saberá serám raposadas (1).
Apesar de aquele relativo distanciamento
generacional existia o trato e amizade, por tanto creio haver conhecido
a dom Manuel suficientemente para poder facilitar veraz detalhe da sua
condiçom e comportamento humanos. Procurarei portanto focar o homem com
preferência ao escritor porque estudiosos e críticos da sua obra (con
mais competência do que eu) podem abundar agora e em anos sucessivos;
mas testigos da sua humanidade restamos poucos e com os dias contados,
porquanto nom devemos adiar a nossa declaraçom.
Reavivando os rescaldos da minha memória, vejo
a dom Manuel velho, mas nom tanto como eu sou agora, falando franco e
rotundo com os amigos, pronto sempre a animar, colaborar e agir a prol
de qualquer causa em benefício da justiça e da liberdade. Dom Manuel
era um neno grande com todas as perrenchas, egotismos e irritabilidade
da infáncia, mas também (e em maior medida) com toda a ternura,
generosidade e sinceridade próprias dos nenos. Entregava-se a toda
empresa com o entusiasmo com que os nenos se entregam ao jogo e sendo
leal com os companheiros e amigos, era-o também com os adversários,
aos que nunca atacou valendo-se de artimanhas torticeiras senom seguindo
as regras do jogo.
Era esse camarada forte e grandulhom sempre
disposto a defender os mais febles em quanto vítimas dos abusos de
algum colega despiedoso. Lembrarei umha anedota ilustradora.
Na rua corunhesa de Santo André e na
confluência com a rua do Sol, ubicava-se em tempos o quiosque de venda
de jornais, revistas e textos de Malatesta, Kropotkine, Bebel e outros
doutrinários, propiedade de Severino. Severino era um anano meio
corcunda, meio coxo, ácrata e librepensador, e o seu quiosque um
estreito tuvo exagonal de madeira e vidros. Umha noite uns alegres
senhoritos capitaneados por um doutor de juventude pouco exemplar, que
nem por isso deixou de merecer da municipalidade rua e monumento,
volcárom o quiosque e levarom-no rolando até a próxima capela
distante uns douszentos metros; à manhá seguinte, um grupo de vizinhos
rodeava a Severino que, a pé do seu quiosque derrubado, jurava e
maldizia contra os autores de aquele atropelo, sobre cuja identidade a
ninguém cabia dúvida. Acercou-se dom Manuel e inteirado do sucedido
mirando desde a sua altura aquele homúnculo que pouco lhe sobrepassava
do joelho, lamentou-se: Fazer-lhe umha cousa assim a este pobre home! A
seguido improvisou umha peça oratória contra o senhoritismo que
campeava impune pola cidade dormida. O auditório foi engrossando e,
enardecido, denunciava aos gritos, com nomes e apelidos, os
desaprensivos parrandeiros cujas famílias, para paliar o escándalo,
pagárom os vidros rotos e a devoluçom do quiosque ao seu lugar.
E já que entramos em anedotas, citarei outra
mais engraçada e igualmente sublinhadora dos arrebatos lugrisiáns.
Umha manhá soleada e a horas em que o Cantom corunhês se achava
concorrido de paseantes, um ex-indiano muito conhecido da vizinhança,
de apelido Ribadulha pero mais nomeado por Marqués da Calderilha,
que tinha sona de ricalhom e avarento, acercou-se de Lugris e
perguntou-lhe: Diga-me, dom Manuel, como se dize em galego, judio ou
judeu? E dom Manuel, fazengo buguina com as duas maos, berroulhe na
orelha: Dize-se Ribadulha!.
Em certa ocasiom o meu pai contara-lhe ao amigo
um conto que Lugris redigiu e publicou. Encontramo-nos com dom Manuel e o
meu pai dixo-lhe: Roubaste-me um conto, e foi a resposta Os
contos nom têm dono. Ouvido este breve diálogo entre amigos, ante
a minha mentalidade infantil aparecu-se-me Lugris pouco menos que como
um assaltador de caminhos, que, bacamarte em riste, se apropriara das
pertenças do meu pai; mas, andando o tempo, muito tempo quando
houvem de escrever umhas reflexons sobre o conto para introito de A
vida escura, vim a coincidir por inteiro com dom Manuel: o conto é
mais do que o narra que do que o inventa.
Os últimos anos de vida de Lugris coincidírom
com o triunfo em Espanha do absolutismo imposto por umhas forças
armadas de inspiraçom nazi-fascista, com o aplauso da grei católica e
dos seus pastores, triunfo contrário aos ideais que dom Manuel
alimentara e praticara toda a sua vida. Quando em tam tristes
circunstáncias os moços galeguistas o visitávamos, porque já
envelhecido apenas saía da casa, nom podia reprimir as lágrimas; mas
nom se pense por isso que era um velho choramingom: passada a primeira
emoçom mantinha-se lançal e varudo. Chorava de impotência, como os
nenos; os nenos choram a miúde por verem-se incapazes de obviar um
obstáculo que se opom ao livre exercício da sua vontade frente a umha
autoridade tutelar que nom les dá opçom de defesa. Ele via-se acabado
e sem forças para proseguir a luita iniciada em dias de juventude e
mantida sem desmaio, dúvidas nem temores.
Oratória versus teatro
No seu Livro dos Amigos escreve Otero
Pedraio a respeito de Lugris: Foi bon poeta, mais grande orador, e
ainda acrecenta mais adiante: Habia unha rara elegancia de tribuno na
maneira de erguerse Lugris para falar en público e deitar as primeiras
verbas, mainas, vougas, dubidosas, e ben logo confiado lume. Poucas
mostras nos quedam da oratória de Lugris, mas ainda que fosem mais, a
oratória (como o teatro) nom é para ler, mas para ouvir e ver; o texto
é umha parte e nom sempre a mais importante: a participaçom do
público ha de ganhar-se tanto pola expressom corporal e a vibraçom
sonora como polo conceito e a palavra.
Sem ter algumha notícia de aquel postulado dos
promotores do teatro livre que prescreve: A arte é o meio e o
tablado cénico umha tribuna, Lugris vê no teatro mais do que um
espectáculo umha tribuna e apressa-se a ocupá-la. Mas oratória e
teatro nom casam bem, até ouso formular umha hipótese: oratória
reverso de teatro, que se num senso universal pode nom ser válida, no
caso particular de Lugris parece-me demostrável. Oratória e teatro nom
som fáceis de adunar precisamente polo muito de teatral que aflora na
oratória e os muitos recusos oratórios utilizados polo teatro. Há,
pois, entre ambos um território em disputa, um conflito fronteiriço
que obstaculiza as boas relaçons entre eles. Maiormente quando se trata
de oratória popular própria de dom Manuel Lugris. Até os charlatáns
de feira, que tratam de vender a loçom cresce-pelo ou a graxa de
serpente boa para o reuma, sabem quanto eficaz é a ajuda da
teatralidade para prender a atençom do público e histrionizam ao
máximo as suas proclamas para fazer-se acreditar dos possíveis
compradores.
Non sabemos medita Carvalho Calero
se quixo ser o Echegaray, o Dicenta ou o Guimerá galego.
Também, considero eu partindo do meu conhecimento do homem, nom pensou
em nada disso (penso que Lugris acometeu o seu empreendimento teatral
com a mesma impetuosidade destravada característica da sua condiçom
humana), e só em contribuir generosamente, impulsivamente
ao assentamento de um teatro que via tam desvalido como aquele Severino
do quiosque. Se pensou emular algum daqueles autores hispánicos,
parece-me que do que mais se aproximou (e nom muito) foi de Dicenta.
Está longe do efectismo teatral de Echegaray e carece da força
trágica de Guimerá.
O que sim é certo é que quando Lugris
escreveu as suas peças dramáticas nom teria visto mais teatro que o
que ofereciam os cenários espanhois da época. O modelo nom seria o
melhor, mas era o único que tinha ao seu alcanço. Esqueceu o teatro
galego feito anteriormente e substituiu o verso pola prosa (2).
A sucursalia do teatro de Lugris a respeito do teatro espanhol coetáneo
pode fazer-se extensiva aos mais géneros e cultivadores da literatura
em galego. Ainda nos tempos actuais, em que o conhecimento de idiomas se
generalizou grandemente, a cultura literária galega continua a ser umha
cultura satélite da castelhana e grande parte dos nossos intelectuais
tam ensopalhados estám por essa cultura que nom acertam a ver o mundo
se nom é reflectido polo espelho espanhol. A nossa autonomia cultural
é mais fraca ainda do que a política e escritores em galego
encontramos com maior carência de galeguidade que alguns dos que
escolhérom a língua castelhana; porque a língua por si só nom dá
garantia de vernaculidade, a língua tem de marchar ligada com o
espírito nacional que lhe deu o ser. Um bom contrapeso para neutralizar
a constante e progressiva castelhanizaçom espiritual que obstrui as
nossas raízes será frequentar con mais asiduidade a literatura
luso-brasileira, hoje de escasa incidência, apesar de contar com
valores de universal reconhecimento.
Quando em cena ouvimos declamar Hamlet ou
Segismundo esquecemos que por boca deles quem nos está a falar som
Shakespear e Calderón, porque todo o grande autor dramático sabe
emascarar-se, sabe que ha de prescindir da súa própria personalidade
em benefício de que outorga às suas criaturas para que apareçam como
seres vivos, totalmente independizados do criador. Mas dom Manuel Lugris
antes que um autor dramático é um orador popular e como tal nom pode
admitir entre ele e o seu auditório nengum intermediário, é por isso
que nom é criador de personagens, nom dá livre albedrio às suas
criaturas, vida própria, fala própria aos seus marinheiros e
operários em cena ali quem está sempre no uso da palavra é Lugris face
a face com o público, sem emascaramento nengum, como corresponde a um
orador popular.
Dom Manuel estimava mais o aplauso popular do
mitim que o aplauso burguês da plateia. Quando Nuestra Natacha,
de Casona, se passeou polos cenários espanhois, nom recebu mais que
aplausos de mitim, por isso pronto ficou relegada como peça teatral.
Algo assim ocorre com o teatro de Lugris, mas, repito, nom entrou na
minha intençom fazer estudo nem crítica da sua obra e só deixar
constáncia de algum detalhe da condiçom humana de um velho amigo de
que guardo grata e saudosa memória.
NOTAS
1 |
O treto e
intercomunicaçom actual entre jovens e velhos, homens e mulheres,
mestres e alunos, etc., etc., parecem-me muito mais francos e
positivos que os que existiam no tempo da minha mocidade e
pessoalmente sinto umha satisfaçom infinita quando algum jovem,
que por idade poderia ser um meu neto, me aborda com tratamento de
tu por tu, como sendo dous camaradas. Agradeço-lho tanto que só
a muito custo reprimo o impulso de estreitá-lo num abraço
emocionado. |
2 |
Lugris era
mais destro que De la Iglésia, Cuveiro e Salinas no rimado e
medida do verso (mais elegante também na escolha do léxico),
escolheu a prosa seguindo a corrente do teatro que daquela
privava.
Os géneros fundamentais do teatro
clássico som a tragédia e a comédia, em ambos o verso é
complemento de alto valor. O drama tal e como hoje o conhecemos é
um género moderno, adjectivo e mestiço que se desenvolve melhor
em prosa, e assim como temos comédia dramática, de nengum jeito
se pode admitir a existência de um drama cómico. O autor
espanhol Carlos Arniches descobriu a tragédia grotesca, mas
também nom é fácil conceber um drama grotesco; por isso quando
algo grosso, exagerado ou que se aproxima do ridículo se infiltra
no drama muda de nome, já nom lhe chamamos assim, chamamos-lhe
melodrama, sub-género caido em desuso.
Valle-Inclán, que de teatro sabia o seu,
escreveu em verso (entre outras) a Farsa e licencia de la reina
castiza e também (em prosa rimada) a tragédia Voces de
gesta; em troca, e com inquestionável acerto, escolheu a
prosa (coloquial e vulgar) para os esperpentos, que se veriam
frivolizados com a presença do verso, sendo certo que no
esperpento nom cabem frivolidades, porque tudo está a procurar
algum escozimento.
O verso haverá de fluir no parladoiro
teatral com a espontaneidade e a naturalidade de que (com mais ou
menos rípios) fazia gala dom José Zorrilla, que até redigiu em
verso o seu discurso de ingresso na Real Academia de la Lengua,
o que me parece ser caso único e digno de ser sublinhado, porque
o verso nom costuma ser obediente às severas normas académicas. |
[
En Agália nº 23, Outono 1990, pp. 313-317 ]. |
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