Ouvem-se passos, cada vez mais fortes, mais cercanos. Eu estou
arreconchegado aquí, num canto do habitáculo. Cheira mal, nom puidem
dormir em todo este tempo. Em todas estas horas, só estivem temendo que
chegasse este momento. Ouvem-se agora vozes. Aquí há obscuridom e
humidade, cheira mal. Nom poido nem adivinhar a dimensom do
compartimento onde me meterom. Apenas acertei a procurar umha esquina e
refugiar-me alí. Pregar-lhe ao tempo que fosse o meu aliado. Que se
detivesse naquele momento, que nom chegasse nunca a amanhecer. Agora uns
olhos espreitam desde o outro lado da porta. Oio vozes, nom poido saber
se som duas ou três. Só sei que me resultam familiares. Sei que voavam
polo ar do quarto onde estivem antes. Entre os pontapés e as pancadas,
envolvendo-me em angustia. Ameaçando-me e incitando a bater-me mais
forte. Insultando-me quando a minha cabeça estava em baixo da água.
Apremiando-me a confessar, já nom sei o quê, com a bulsa na minha
cabeça. Eu pregava que me deixassem respirar e eles deziam que o que
tinha que fazer era falar. Confessar o que eles já sabiam, e mentir se
queria no que eles ignoravam. Prometiam-me que, se falava, nom haveria
já mais golpes, nem a minha cabeça voltaria estar baixo a água
daquele caldeiro, nem a bulsa envolveria de novo a minha cabeça. Eu
tomava fólegos e tratava de exprimir a minha inocência. Entom, umha
voz berrava que a paciência se estava esgotando e que se nom falava
agora "eles" marchariam e viriam "outros" que
utilizariam métodos mais violentos comigo. Eu reiterava a minha
inocência chorando e berrando. Entom alguém me agarrava do cabelo e me
fazia erguer. Eu era levado a outro quarto e alí começava de novo o
suplício. A minha angustia e a minha dor medravam. Berrava que, por
favor, outra vez nom. Que confessaria o que "eles" quigeram a
cámbio de que me deixassem em paz. Eles perguntavam-me se eu conhecia a
nom sei quem. Eu dezia que sim. Perguntavam-me se eu estivera com ele a
tal dia e a tal hora. Eu jurava que nom. Inmediatamente começava umha
chúvia de golpes na minha cabeça. Eu deixava-me cair no chao, mas
sempre me incorporavam e me obrigavam a permanecer de joelhos. De nada
serviam os meus berros a pedir que parassem de bater-me. Tumbarom-me no
que parecia umha padiola, similar às que se utilizam nas consultas dos
médicos. E começarom a pôr-me a bulsa de plástico. Por espaços de
tempo, que a mim me pareciam mais longos a cada vez, asfixiavam-me com a
bulsa. Ás vezes, davam-me pancadas no entanto tinha a cabeça aí
metida. Davam-me com o que eu diria que era umha porra de goma nas
pernas e nas costas. Eu estava desorientado e cheio de medo. Já nom
escuitava as perguntas. Em realidade, agora mesmo nem lembro porquê
estou cá. Só lembro a humilhaçom de ver-me indefenso em poder
"deles", dos meus captores. "Eles" punem-me
brutalmente e quando eu me derrubo, prometem-me que pararám de
torturar-me se falo. Mas nunca cumprem a sua promessa. Pretendem que
diga algumha cousa que "eles" dam por certa, mas eu nom acerto
a dizê-la. Nom tenho mais aliado que o tempo. Que se pare ou que passe
de vez. Que chegue o momento em que rebente dos golpes que me dám e
morra. Ou que tenha a sorte de que me tenham que levar ao hospital. Mas
que chegue já esse momento. Se tivesse valor, atiraria-me por umha
janela num descuido, ou lançaria-me contra umha vidreira, quem sabe.
Daria-me golpes na cabeça contra a parede, ou contra a porta. Só tenho
paz quando perdo o conhecimento. Várias vezes o perdim quando me
interrogavam. Reanimavam-me e continuavam as torturas. Numha ocasiom,
depois de deixar-me num dos compartimentos onde me aplicavam as
torturas, alguém me ofereceu tabaco e deu-me um conselho
"amistoso". Deu-me a possibilidade de contar-lhe tudo a ele, e
assim evitar que me seguissem golpeando e torturando. Eu digem-lhe que
nom sabia o quê era o que "eles" queriam saber. Que
simplesmente estava aquí porque provavelmente teria havido um erro. Que
me colheram no portal da minha morada, que me meteram num carro e que
alí já me começaram a golpear e que, inclusso, me pugeram umha
pistola numha meixela. Aquele gajo, ao que nom lhe vim bem a cara,
porque havia uns focos que me alumeavam directamente aos olhos, dijo-me
finalmente que lamentava nom poder ajudar-me, mas que com a minha
atitude nom fazia mais que alargar mais o que poderia durar bem pouco,
porque em realidade estava tudo muito claro. Pouco depois seguirom
metendo-me a cabeça no caldeiro e dando-me pontapés. Alguém me
increpa desde o outro lado. Pergunta-me como é que estou aí
arreconchegado, tremendo e chorando, tam valente que era na rua. Outro
pergunta com xorne se estes som os que queriam luitar contra o sistema.
Nom entendo nada. Escuitam-se risos ao outro lado e comentários fazendo
troça de mim, mas eu já nom oio. Quigera a paz e a liberdade do sono.
Que a minha mente voasse fora de aquí. Poder respirar a minha casa, e
as ruas e a liberdade, fora deste inferno. Quigera que isto nom tivesse
acontecido nunca, poder acordar deste pesadelo. E os meus captores...
oxalá o seu ódio infinito lhes comera as entranhas. Oxalá os seus
olhares traiçoeiros se diluiram numha névoa infecta. Oxalá a sua
lembrança se afundira no mar e os seus uivos infra-humanos se
confundiram no vento para nom ouví-los mais. E que o seu mundo de
reixas e arames farpados nom fosse mais do que umha noite de trevoada
nos sonhos da humanidade. |