Sempre se sinteu um gajo especial, aínda que raros eram os que
partilhavam essa percepçom dele. Como muito, todo o mundo admitia que
era um personagem peculiar. Era no único em que se punham de acordo os
seus muitos detractores e os seus escasíssimos admiradores. Polo
demais, eram muito diversas as opinions que sobre a sua pessoa
circulavam. Uns opinavam que era um fulano extravagante, ainda que
quiçá essa era a opiniom mais piadosa que os seus inimigos teriam
emitido sobre ele. A mais extendida, e provavelmente mais realista, era
a de que era um completo imbécil. Claro que isso tem pouca importância
quando um está seguro de estar chamado a fazer grandes coisas. Desde
menino intuiu que o seu destino era fazer algumha coisa importante.
Sempre pensou que era umha chatice ter que conviver com tantas pessoas
ignorantes que nom se decatavam da estrela que ele levava. Ainda que o
seu consolo nom lhe era difícil de achar. Quando se lamentava, para si,
porque quase nunca atopava qualquer infeliz que quisser escuitar as suas
cuitas, do sofrimento que lhe infringia o facto de ter que aguentar,
como o resto dos mortais, as missérias quotidianas como as
aglomeraçons no autocarro, as bichas no hipermercado ou as broncas do
chefe no trabalho, ao final sempre chegava à conclussom de que sem
dúvida era o Altíssimo quem lhe fazia passar por aquelas provas. O
Sumo Fazedor, cujos caminhos som inescrutáveis, seria quem o obrigava
ao sacrifício quotidiano, para um dia fazer-lhe umha grande revelaçom.
A que empurraria ao nosso heroi a fazer isso tam excepcional que a
Humanidade inteira lhe teria que agradecer. Nom devia, pois, afligir-se
nem queixar-se; tinha que ser paciente. Um homem curtido nos sofrimentos
da vida mundana seria o que Deus desejava para esta missom, assim que
devia sentir-se honrado de ser escolhido por Ele e nom pôr em causa os
planos que o Senhor tinha respeito ao seu superior destino. Tinha
vergonha às vezes dos pensamentos frívolos que lhe vinham à cabeça.
Dezia-se a si próprio, quê impaciência tenho por saber que coisa
formidável terá Deus preparada para mim. Tinha mesmo medo de que esses
pensamentos foram escuitados polo Pastor e que, ofendido, Este decidisse
prescindir do seu serviço. Às vezes tinha a tentaçom do martírio. A
dor e a morte, para alcançar o Prémio sublime da glória, da
santidade. Mortificava-o a sua existência medíocre e, ao mesmo tempo,
sabia que nom podia ensaiar vias a Deus pola sua própria conta, que o
justo era que fosse Deus quem chamasse a cadaquem quando correspondesse.
Mas ensonhava para si outras sendas muito distintas da que fora a sua: a
política, as armas, as letras ou o sacerdócio. Desde logo, qualquer
delas mais recta no caminho à santidade que ser empregado de banca.
Quê se podia fazer desde o escritório de umha sucursal bancária digno
do mais grande dos prémios? Estava muito longe dos banqueiros da Obra,
desde o seu posto de interventor. O seu pároco e confesor admirava a
tenacidade da sua procura constante da perfeiçom; a sua zelosa
observância dos preceitos, a sua devoçom afervoada rondando o
delírio, a sua disciplina. Animava-o sempre a perseverar no estudo da
Bíblia e na oraçom. Os seus companheiros de trabalho odiavam-no
patologicamente. Quiçá porque lhes soliviantava nom entendê-lo. Os
seus vizinhos dividiam-se entre os que se viam inspirados por um
sentimento de nojo até físico e os que sentiam lástima. Apenas a sua
nai pensava que tinha um filho que era um santo varom. Com cinqüenta e
quatro anos sobreveu-lhe a morte, e mentres esperava numha esquina da
consciência a que aparecesse o Altíssimo, compreendeu no último
segundo que Deus nom assistiria à cita. Sinteu pânico mentres caia
nesse furado frio e obscuro onde se afoga a memória.
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