As Sete Fontes

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Capítulo I: A Fontecova

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     Ainda que os seus caminhos já se tinham cruzado muitas vezes, tempo atrás, os três custodiadores da pia de pedra não lembravam tais encontros, nem as faces, bastante mais novas, que os viveram. Estes três homens foram destinados, sem eles saberem muito bem como ou porquê, para cuidar de que a pia chegue ao seu destino. Andarão durante sete luas, que começarão a contar quando chegarem à primeira das sete fontes polas que há-de passar a pia antes de arribar ao seu destino definitivo. Terão que esconder a pia durante o dia para que não seja vista por ninguém, e marchar às suas casas, onde não lhes hão-de topar a falta. Cada noite voltarão a se reencontrar e seguir coa peregrinação até ao amanhecer, e assim até ao remate do tempo do que dispõem. Sete são os pontos polos que a hão-de levar, e cada um correspondese com uma das sete fontes das que darão de beber à pia antes de a depositar no lugar que foi destinado a ela.
     A primeira noite, chegaram coa encomenda à Fontecova, o primeiro dos sete mananciais. Ainda havia vagar para o arraiar do dia, polo que antes de esconderem a pia tiveram tempo para falar ali na beira da fonte. Nas noites precedentes àquela, os três homens não tiveram tempo nem fôlegos para se darem a conhecer. Reinava a confusão nas suas cacholas. Eles os três lembravam um sonho em que ficavam de pé direito nas portas do Museu Arqueológico de Ourense; Dom Narciso, o cura, mirando aos outros dous homens dissera então: "que faço eu à porta deste museu?" Os outros dous, o Perfeuto Racha-Pedras e o exalcaide do concelho de Os Mouros, a quem todos conheciam por Rebenta-Ruas polo seu afã de encanar mais fundo que o inferno; estes últimos não tinham percebido que aquelas eram as portas dum museu, eles só passaram polas tabernas da rua sem reparar nunca nele. Seguido daquele encontro de ensono tudo sucedera tão depressa que os três homens não tiveram tempo nem para falarem. Agora repousavam na beira da fonte; aquela fonte, na que com sucessivas mãos-cheias beberam eles e mais deram a sua água à pia, fora destinada, quiçá pola sua localização, a ser a primeira das sete polas que teria de passar aquela procissão nocturna.
     O Perfeuto Racha-Pedras, que andava algo torpe ultimamente, caíra no rego da água e ficara todo enlamadurado; Dom Narciso, para lhe tirar importância ao pequeno incidente, repetia-lhe que não se preocupasse, pois antes de que chegasse o dia havia-lhe enxugar e trapalatrá...; ao Perfeuto amargava-lhe bem ter que aturar esses conselhos, sobretudo sabendo que vinham dum cura. Ainda que Narciso afirmara e negara essa condição na mesma frase ("Fui cura mas... agora já não...") ao Perfeuto, como a toda a gente, não lhe abondava com que Narciso não dissesse missa para o deixar de ver cura, e como uma víbora revolvia-se cara a ele: "que saberás tu, tu nem sequer foste nunca casado e não lhe tens que dar conta do que fazes ou não fazes pola noite à mulher!" E isso era certo, o Narciso não lhe tinha que dar contas a mulher alguma, mas o que não sabia ainda o RachaPedras era que este cura cada noite, logo da ceia, tinhase que escapar do psiquiátrico do Couto, onde residia desde um incidente que tivera numa freguesia que linda co vale onde fica a Fontecova. Tampouco era certo que o Racha-Pedras lhe tivesse que dar contas à mulher, ainda que a tinha; e apesar de que muitos lhe aconselharam que o deixasse, ela seguia a o aturar. O ex-alcaide, baptizado coa alprecha de Rebenta-Ruas polos seus ex-votantes, tentou fazer de intermediário entre o cura e o canteiro... "Calai já, tarabelos, que sois mais maus de aturar do que... ainda nos hão-de descobrir por vossa causa... porquê não tratamos de esclarecer onde é que nos topamos...? Lembrais se algum de vós esteve antes por aqui, ou lhe resulta familiar este sítio?" O cura engrunhou o focinho e moveu a cabeça em sinal de não ter ideia de que lugar era aquele; a escasseza de luz que manda a lua nova não ajudava muito. O Racha-Pedras botou uma olhada mais longa e até subiu ao alto do lameiro no que fica a fonte, depois meteu-se no carroucho e disse: "sim, eu conheço isto, estamos em terras dum lugar que se chama Penacova, e que fica do outro lado desse outeiro; sei-o eu bem porque desde o carroucho vi que acolá para o fundo estão os penedos da Rainha Loba. Na base daqueles penedos tive eu há anos uma canteira." "Penacova... —repetiu Narciso—, eu disse missa em Penacova alguma vez, já vão lá alguns anos disso... o cura de Penacova tinha andado algo desassentado... Penacova..." repetiu o cura, e ficou calado, a olhar para o chão como tentando achar nas ervas, ou quiçá nos seus miolos, alguma ideia que lhe dera luz àquela noite de incertezas. "Penacova pertence ao concelho de Os Mouros" —disse o ex-alcaide. —"Eu fui alcaide nesse município alguns anos, há também já tempo, mas não me portei mal cos de Penacova..." E disse isto como quem rosna uma queixa, manifestando a sua desconformidade com um destino que intuía lhe vinha acima.
     Começavam a desaparecer algumas estrelas, polo que esconderam a pia e foram-se, cada quem por seu carreiro. Partiram sem despedir-se sequer, os três sabiam, e então não era preciso mentá-lo, que à noite seguinte teriam que juntar-se ali de novo, onde ficava escondida a valiosa peça. Esconder a pia não era tarefa difícil, pois o lugar no que ficava a fonte estava rodeado de poulas com gestas e piornos de mais de dous metros, e tojais nos que se via perfeitamente que ninguém entrara a roçar desde havia muitos anos; portanto escolheram o que ficava mais à mão e encaminhado na direcção que consoante com as estrelas teriam de seguir na próxima jornada, e ali a esconderam junto cos trebelhos que usavam para a deslocar: uma espécie de chedeiro pequeno sobre duas rodas eixadas e um pinho polo que um deles puxava quando havia que mover a carga. Os outros dous, cada um co ombro à roda e a empuxar. As pegadas, que ali perto da fonte se espetaram mais, e as rodeiras, tinham de ser bem dissimuladas antes de partirem para as lavouras do dia; feito isso, aqueles homens eram livres de voltarem ao seu cotio.

*  *  *

     Pola manhãzinha em Nuestra Región pode-se ler que as autoridades andam a investigar a história da pia para ver se dão descoberto quem pôde estar detrás da sua desaparição. Com esta finalidade fizeram uma visita ao Bispado, na rua do Progresso, no meio e meio de Ourense, já que a pia fora, e porventura ainda era, propriedade da Igreja. Há perto de vinte e poucos anos que foi sacada da freguesia na que estava, e para a que fora criada, e anda ambulante por aí; mas sobre disto o Bispado não tinha documentação que o pudesse provar, já que nos seus arquivos, actualizados antes dessas datas, não rezava nenhum movimento de pias. A peça fora recentemente adquirida polo Museu Arqueológico de Ourense, numa hasta pública, e nele estava exposta até à noite da sua desaparição. Representantes do Bispado, trás cotejar a descrição que lhe ofereceram os agentes com as suas avelhentadas notas, sugeriram o nome duma freguesia como possível origem da peça; porém, isso deveria ser confirmado, pois nos arquivos não consta pia nenhuma desaparecida em tal lugar. Ora que também se poderia tratar doutra pia e doutra freguesia, pois, ainda que não o pareça, todas são similares.
     Na secção de sociedade, o diário recolhe a notícia de como os vizinhos da cidade velha iniciaram uma campanha de recolhida de fundos para mandar fazer outra pia exacta, e que não lhe perca ponto, à desaparecida. O jornal também publica um novo verso de Budial, e o anúncio dum adinheirado ourensão que oferece uma soma respeitável a quem proporcionar informação fidedigna que ajude a dar co paradeiro da pia. O nome deste enriquecido cidadão é omitido para lhe evitar a avalancha de possíveis informadores no seu domicílio. Aquelas pessoas que tenham, pois, algum tipo de informação que pensem poder ser de interesse, podem achegar-se aos escritórios deste jornal, ou ligar por telefone a um número que é facilitado também polo diário.

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     —Cala, Racha-Pedras, e agacha o lombo que a cousa não se há-de mover só; deixao tranquilo co pinho, já te chegará a ti a rolda.
     O Racha-Pedras seguia um pouco enfronhado porque ontem caíra no rego e hoje enterrara na lama um sapato que trazia esgalochado e molhara o calcanhar, polo que não pára de lançar ataques a Dom Narciso, quem semelha todo calmo e sempre com conselhos de como se hão-de fazer as cousas... —"mas que saberá este, se é um cura qualquer...!?" Não, aquele não era um cura qualquer, mas o Racha-Pedras desconhecia a história de Dom Narciso. Dom Narciso não fora um cura qualquer nunca, nem sequer antes de ser cura; ele, para começar, mália as ganas que tinha de se meter cura, contudo os pais... os devezos de que estudasse,... de o livrar de ter que estar atado à terra como lhes passa a eles,... que se não servia para outra cousa,... que volta e que dá-lhe, e que tal e que sei eu... Por conseguinte, o Narciso rematou no seminário e foi-se deixando levar. Ele era um moço alegre, mesmo tinha uma graça com ele que facilitava a relação com qualquer, polo que os curas do internato mui pronto ficaram seduzidos por ele e deixavam-lhe ir passando as mais das cousas que fazia, muitas não estavam bem de todo para um futuro ministro de El Senhor, não obstante já se formalizaria quando se ordenasse; isto que ele fazia agora eram cousas de rapaz, que com a idade e a ensinança iriam minguando. E assim foi indo este moço levado polas amparadelas dos que se ocupavam da sua formação espiritual, e que o converteram em cura. Cura feito e direito; assim, quase sem se aperceber, Narciso era o titular duma freguesia não mui afastada da cidade de Ourense. De hoje para amanhã convertera-se em Dom Narciso, atrás ficavam os muros de pedra do seminário que o agacharam durante uma mada ou duas de anos, e agora livre... Quem seria ele ali fora, sem a frialdade das pedras para dar acougo à sua juventude ainda por viver? Não tinha outro remédio que descobri-lo por si mesmo, e assim, com um talante quase que de explorador, sem ele nem o querer, começou a sua andaina de pastor.
     Aqueles dias primeiros na freguesia seriam no futuro lembrados por Dom Narciso como dias livres e felizes, nos que a ilusão era o temão que guiava o seu fazer quotidiano. Toda aquela gente mostrando-lhe respeito..., e não só na igreja, senão também quando se cruzavam com ele pola rua; mesmo os homens, que só de se achegarem ao sagrado já tiram a gorra da cabeça e lhe saúdam com esse aceno submisso, comunicandolhe a Narciso o reconhecimento da sua superioridade. E o Narciso começou de sentir-se grande, mesmo partícipe merecedor da bondade infinda do Criador... assim foi como começaram as suas ideações gloriosas...
     —Queres tirar duma vez! Sempre estamos na mesma... parece que este sempre anda nos viosbardos.
     Aquele Racha-Pedras sempre a tanger no Narciso; soltava-lhas sem sequer dirigir-se ou fitar para ele a metade das vezes; mas o abade hoje parecia não importar-se demasiado, andava o homem a olhar para dentro e não percebia muito as aguilhoadas que coa língua lhe lançava o canteiro; felizmente a roda lhe mantém o poder ocupado ao Racha-Pedras, senão este hoje saltava-lhe no pelejo ao cura; e tudo bem seguro que por causa de se lhe atoar o sapato na lama e ter que andar ao couchopé quando saíram do lameiro...
     À medida que o arraiar se achegava, Fontecova ia ficando atrás. A Fontecova, um manancial que fervia da terra, dava nome àquele frondoso vale. O lameiro em que rebentavam aquelas boas águas reverdecia, e já desde longe se diferenciava bem dos outros; mesmo se sentia latejar a água naquelas tornas sachadas de ano em ano. Fontecova é o primeiro manancial da freguesia de Penacova subindo polo caminho de Ameixeiras e não há viageiro da comarca que não entrara alguma vez a saciar a sua sede com estas ricas águas. Sim, a Fontecova é muito apreciada. E vá se agradecem os de abaixo o que lhes decorre. Tal é, que há uns anos quase entraram em litígio uns vizinhos porque os herdeiros do lameiro onde abrolha a fonte não se ocuparam de desentupir as tornas, e assim a água era toda sumida e consumida, sem que decorresse nem gota para os campos lindeiros dos vizinhos, que quase se atreveram a meter os seus sachos nas tornas da fontela. Tudo se arranjou polas boas, quiçá porque não lhe ligou de passar por ali a nenhum advogado, ou quiçá porque todos gostam de não ter que pleitear, ou quiçá por outras razões. Aprenderam todos daquela que a água da Fontecova não só pertence ao lameiro no que nasce rompendo os seus torrões, senão que os donos, logo de se servirem dela, devem-na deixar marchar para que livremente banhe outros lameiros próximos; e certo é que são muitos e bem deles os que se servem destas águas... Como delas se serviram os três homens, que logo de se saciarem, e dar de beber à pia que há-de estar sempre molhada, partiram e caminharam. Caminharam bem, e apesar da fraqueza mostrada polo encarregado do pinho, como frequentemente lhe lembra o Racha-Pedras: "se faria mais um mosquito que este palerma...!", essa noite atravessaram as terras lindeiras a Fontecova, e internaram-se nas carvalheiras da Lagoa. Aquela jornada avançaram avondo, ainda que não todos ou quiçá nenhum o pudesse reconhecer... tal era o seu fado. Esconderam a pia e os aparelhos e foram-se, cada quem por onde viera.
    
Na edição de hoje, Nuestra Región pede aos cidadãos o favor de não fazerem mais ligações à direcção do jornal para dar informação sobre a pia, de não ser que a viram passar polas próprias ventas. O jornal dá queixas da enorme quantidade de ligações recebidas, muitas delas de bandarras e gandaias que nunca hão-de faltar, e que mantiveram todas as linhas do jornal ocupadas noite e dia...
     ...Diz-se que houve chamadas bem pândegas, se bem que disso só conhecem os vizinhos de Seixalvo onde os comentários foram espalhados por uma recepcionista de Nuestra Región. Segundo a tal rapaza telefonista seica houve uma mulher que se encheu de porfiar e porfiar, até ligou mais de duas ou três vezes, dizendo que aquilo só podia ser obra de El Demónio e que o único que se podia era rezar e confiar em El Senhor. Outro comunicante diz-se que insistiu em que ele vira a pia recentemente, embora não lhe diria a ninguém, excepto ao senhor milionário, onde é que ele a guichara. Outros afirmavam que viram a pia em sonhos e lhes falara dando-lhes a entender a onde é que se encaminhava, e cousas assim polo estilo.

*  *  *

     As noites seguintes transcorreram sem maiores intriquidências; o canteiro parecia menos enraivado co abade, se calhar porque a Lagoa era chã e o Perfeuto não se tinha que esforçar tanto e tampouco se lhe ençoufavam os sapatos, que por certo agora levava bem amalhoados; ou também quiçá porque Dom Narciso seguia ensimesmado com as suas cavilações e não lhe andava a dar conselhos a ninguém; ou se calhar fosse por ambas as razões ou talvez por nenhuma delas. O caso é que o ex-alcaide, que como de costume não tinha muito que dizer, gozava daquela calma que reinaria nas noites que lhes levou atravessar a Lagoa de Penacova. A Lagoa de Penacova, como o seu nome indica, é um terreno parcialmente asolagado, se bem que eles o atravessavam por uma parte enxoita. A planície vem-lhe bem a Dom Narciso para seguir cos seus pensamentos, que por certo traziam-no algo confundido... Como pôde ele, tão bem como começara a sua andaina, rematar onde rematou? Narciso seguia a relembrar os dias dourados da sua primeira freguesia, onde nasceram tantos sonhos... Aquele tanto respeito que sentia ele que lhe tinham todos... e a adoração que lhe mostravam as mulheres...! Esse era o seu deleitar sublime... ver-se assim admirado por esses seres que ele considerava doces e suaves, ainda que, para dizer a verdade, nunca os provara. Ele entrara tão novinho no seminário, muito antes de descobrir os sentires do corpo, e foi ali nessa pequena freguesia onde o corpo acordou, correu o trecho que lhe faltava, e alcançou a sua realização, igualando-se corpo e espírito. E sem decatar-se sequer de como, o Narciso passava o dia numa névoa de imagens quase proibidas que pouco a pouco se foram encarnando... e até acabou debuxando-lhes cara àqueles corpos imaginados. Agora já sempre a mesma cara, e a seguir também já sempre o mesmo corpo. Inevitavelmente, namorou. Ela converteu-se no ser mais maravilhoso do mundo de Narciso, o seu sol, o seu temão... e dado quem ele era daquela, a sua perdição. Novamente se ergueram os muros do seminário e Narciso e os seus superiores conferenciaram, e o Bispado sentenciou: "Vais-te ir a esta nova freguesia e não volverás ver essa mulher"... Ora ele amava-a... e até pensara... mas cedeu, deixou-se resgatar, deixouse arrapazar novamente polos seus mestres que tão benevolamente lhe aconselhavam e lhe perdoavam as suas fraquezas de homem novo.
     O bispo que havia daquela, ao que todos os de dentro se referiam como "O rechonchudo Severino", conhecia das debilidades do corpo; e ainda que ele nunca sentira essa classe de urgências ardorosas baixo as suas apertadas vestiduras, apertadas não por justas senão por enchidas, mesmo semelhava que se lhe ia sair o unto polas aberturas de entre botão e botão... e mais de um diz-se que recebeu uma botoada, ao sair um, comprimido pola gordura amoreada, propulsado... Pois este bispo, seica, entendia da fraqueza humana. Este bispo mole de corpo e espírito devezia polo chocolate e mais as roscas... era superior a ele, a sua cadeia escravizadora. Polas noites, antes de dormir, dom Severino rezava e rezava para evitar aquelas imagens obsessivas de cunquinhas coloradas com corninhos e um rabo afiado. Assim, a contar ave-marias, se dormia, e pronto o sorriso se debuxava no seu rosto... nos seus sonhos habitavam taças douradas com brancas asas, e ele fartava-se de dormir..., o que podia fazer um homem da sua condição? Mas à manhã vinham os remorsos por entregar-se assim nos sonhos. E por isso era um ser compreensivo. A Narciso serviu-lhe essa benevolência, polo menos para ir aguentando.
     Da Lagoa já faltava cada vez menos, e o Lombo, cheio de pinheiros, ficava aí mesmo a os aguardar quando rematasse o dia. Agora havia que marchar, e assim, como as outras vezes, trás esconderem a pia, esvaeceram-se os três homens.

*  *  *

     Parece que o diário Nuestra Región se vai arrefecendo um pouco e cada vez publica menos notícias ou comentários referentes à pia, talvez seja para lhe tirar importância ao assunto e ver se a avalancha de ligações diminui, que seica por certo tem baixado bem nos últimos dias. E também se diz que algumas das ligações estão a ser estudadas a fundo, e que alguns informadores estiram já os seus longos dedos, mas nada, o milionário não solta um peso até que a pia fique no sítio em que estava, ou tão sequer localizada polas autoridades.
     Na edição de hoje, entre louvanças à colaboração do Bispado, Nuestra Región confirma que efectivamente as autoridades, após a sua visita à rua do Progresso, têm conhecimento exacto tanto da história da pia quanto da sua freguesia de procedência, e poderão iniciar o seu labor investigador propriamente dito...
     ...e não é mentira nenhuma, que agora os encarregados da investigação têm uma ideia sobre qual pôde ser a freguesia da que inicialmente se tirara a pia que agora desapareceu do museu. Mas dado que o Bispado não pôde corroborá-lo nem negá-lo, terão que ser os agentes quem confirmem a identidade da peça e mais da freguesia da que fora levada. Em primeiro lugar terão que confirmar que, efectivamente, nessa freguesia desapareceu uma pia e que, com efeito, se trata da mesma que desapareceu agora do museu. Também, enquanto, irão arrecadando pistas que lhes ajudem a descobrir quem a pôde ter levado a primeira vez, e estudar a sua possível relação coa desaparição mais recente. Para isto, os dous agentes vão ir visitar esse lugar e falar cos vizinhos.
     ...o nome desta freguesia, que fica polo sul da nossa província, será polo de agora omitido para não contaminar a atmosfera da investigação e enfastiar o êxito das pesquisas. O jornal seguirá a informar dos progressos que se produzirem.
     Na secção de sociedade, Nuestra Región informa-nos de que os promotores da iniciativa popular encaminhada a arrecadar fundos para uma nova pia, idêntica à primeira e se couber mais bonita —com incrustações de pedras semipreciosas ao redor da sua boca...—, afirmam que já quase juntaram dinheiro suficiente para a dita pia substituta, e que com ânsia aguardam o momento dessa realização. O jornal faz uma exaltação das iniciativas da vizinhança quando se trata de lutar por salvaguardar os verdadeiros valores da nossa sociedade.


*  *  *

     Atravessar o Lombo não lhes custaria muito a estes três homens, ademais era algo de baixada, não muito mas sim o justo para não ter que fazer força nas rodas daquele trebelho sobre o que levavam a pia. À lua faltava-lhe alguma noite para encher e essa tanta luz que lhes lançava ajudava-os a não precisarem dos faróis que a cotio levavam instalados em cadanseu lado do chedeiro para alumiar-se. Além disso, esta lua anunciava o minguante, e é esse o tempo que lhes resta para chegarem à Auguela, o segundo manancial do seu percorrido. Com um chisco de boa sorte rematariam o Lombo em três ou quatro noites e ainda lhes sobraria tempo e tempo antes da nova lua. Por este terreno, algo de bimbarreira, Dom Narciso anda ligeiro, às vezes até deixa aos outros dous atrás e se vai ele só coa carga. Esta ligeireza que semelha euforizante faz aparecer ao cura como menos sereno, menos calmo,... como se realmente andasse na procura de algo... Algo que parece esvaecer-se-lhe cada vez que tenta achegar-se. "Oh, claro, cara abaixo todos os santos ajudam, e este deve de estar abonado...!" Aquele Racha-Pedras não perdoava uma, não desperdiçava maré para lhe botar a Dom Narciso as culpas por qualquer cousa que este fizesse ou não fizesse. Esta vez, como outras, o alcaide quis dizer algo, quis de novo tentar suavizar a tensão que se respirava ao redor daquela pia, e que sempre ia dirigida do Racha-Pedras ao padre. O alcaide queria que não houvesse tensão, o alcaide estava afeito a ter todos os apoios, a mercá-los se fizer falta... por conseguinte ultimamente corrigia ao canteiro, porém, sem entrar em maior contradição com ele, e este já não lhe fazia tampouco muito caso, ou melhor dito, nenhum. Esta última vez o alcaide abriu a boca, mas antes de sequer bafejar o Racha-Pedras fechou-lha de contado: "Cala, cala, advogado, que tu só dizes parvadas, não te queres nem molhado nem enxoito, jogando sempre a duas bandas, assim nem perdes nem ganhas. Se não tens nada com jeito que dizer, caladinho ficas mais guapo". O alcaide emudeceu e mouminhou algo para os seus adentros sem que o outro percebesse.
     Dom Narciso, enquanto, ajudado pola inclinação do terreno, apurava o passo; parecia como se o seu andar se pusesse a um co seu percorrer interior, que hoje é dinâmico e rebordante de energia. Sim, Dom Narciso chegara à nova freguesia com uma maleta que não semelhava muito grande, ora sim cheia; ia carregada das ganas de o fazer tudo bem, cheia de sãos devezos e esperanças... desta vez seria o abade ideal, o bom cristão, o bom vizinho... Atrás ficaria aquele Narciso moço sempre com sede de louvanças, que se sentia tão grande polo respeito dos homens; agora seria um mais entre eles. Dom Narciso abriu a abandonada casa reitoral da freguesia e deu-lhe o uso que levava atrasado. Cavou a horta, criou fazenda, cortou a sua própria lenha, carregou esterco, e até começou de ir ao concelho para ajudar nos labores comunais: limpar poços, abrir os regos para a rega, ou o que fizer falta; um vizinho responsável, ele não quer viver só do conto como um cura. E claro..., as botas verdes de goma não ligam bem co negro da sotana... mal pensava ele que por aí lhe viriam as críticas. Ora ele não se desanimou, e seguiu co seu propósito.
     Aqueles eram já tempos de os curas começarem de se servir do automóvel... com varias freguesias para atender... mas o Narciso, fazendo um grande sacrifício, ia a todas partes a andar, às vezes dando que dizer, porque todos os curas da zona tinham carro; e alguns até vários. Como esse outro daí abaixo em quase chegando à Límia que tem dous da mesma cor e da mesma marca, mas só um com documentação; e assim lho diz aos guardas quando liga de o pararem por ir a contramão, ou deixar o auto no meio da estrada; mas os guardas não o multam, nem sequer o recriminam, "tenha você conta..." e é que o negro da sotana, que por certo sempre a leva emporcalhada, ainda pode co verde dos uniformes. Mas Dom Narciso não há-de levar sotana, e isso que bem que lhe ajustaria, pois ele tem o corpo direito e sem barriga, não como esses curas dos carros que andam a criar gorduras e que de não levar sotana semelhariam pipotes cheios de pingo.
     Narciso trabalha e não precisa das travaduras da sotana, a ele cumprem-lhe roupas que não pejem e permitam mover os músculos, roupas que lhe hão-de ir avantajadas, mas não demasiado, só o justo para caberem folgadas e facilitar o movimento necessário para o trabalho; com uns jeans, uma camisa do comércio e umas boas botas de bezerro, vai servido. As meias hão-de ser de lã. Porque ele é trabalhador, Narciso fez-se trabalhador e tira-lho ao lombo cada dia, e isso... confunde aos vizinhos e amola aos outros cregos, que engrunham os focinhos e pouco a pouco o vão isolando. Este cura, que cada dia parece menos cura e mais labrego em boca dos vizinhos, vai ficando mais e mais só. E cada dia lhe vêm menos fregueses à missa; e ainda quando o fazem, às vezes tem Narciso que ouvir o que não quer... Como aquele dia que o caneco do Rolo, que nem sequer à missa era capaz de ir sem levar um vaso demais, acirrado polos outros, disse-lhe em plena igreja: "hoje digo eu a missa, Dom Narciso, que você já não é cura nem é nada" E Narciso não teve outro remédio que colhê-lo polo braço para o botar fora... Achegou-o até a porta e ali deulhe um couce no cu; depois deu meia volta e todo ancho pôs-se a caminhar até chegar ao altar enquanto dizia: "pra colhões, eu!" Os labregos respeitam o homem que lhes ajuda no concelho, mas já não vêem nele ao cura, e a igreja fica vazia. Contudo Dom Narciso insiste: "Hoje vinheste só tu —dissera-lhe àquele moço um domingo— pois para si digo eu a missa e os demais que se arranjem sem ela" Enquanto, os curas de toda a contorna desprezam o que Dom Narciso simboliza... que caráfio é isso de que os curas trabalhem!? Isso Deus não o permita... E Dom Narciso descobre os sofreres desta vida. Os outros sotanas-pretas vão tolerando a Narciso porque lho ordenam desde acima, mas por detrás vêm a burla e mais a crítica. Dom Narciso vê-se só, predicando co exemplo mas só, predicando-lhes às paredes do seu horto...
     O labrego que surgia lá dentro deste cura começou a ver a vida doutro jeito, começou a vê-la como realmente fora pintada para o labrego: dura e escrava. Mas a quem dizer-lho, se já ninguém o escutava? Só os moços, e por desgraça desses cada dia ficam menos na freguesia. Mas ele resiste, e achega-se até Ginzo para ver à gente nova e falar-lhes da injustiça, do avassalamento, dos caciques, dos Guardias Civiles retirados, dos inspectores de granjas de UTECO (1)... estes dous últimos tipos humanos são os mais detestados por Narciso, que se por ele for fazer-se-ia com eles uma boa empanada para lha botar aos cadelos. Dom Narciso viaja no coche de linea, esses esfrangalhados autocarros da Vilaça, nos que te congelas ou te abafas, ou as duas cousas a um tempo; os sapatos vão-che ardendo enquanto pola janela, que não fecha, gela-se-che a cabeça. A linea dá mil voltas antes de chegar atarricada a Ginzo, vai percorrendo lugares e enchendo-se até que não cabe um cristo mais; a gente amorea-se polo espaço entre as ringleiras dos assentos, e até nos degraus... "Sente, sente Dom Narciso" diz-lhe alguma velhinha que o reconhece; mas ele declina a invitação e enquanto, ali de pé, aproveita a conjuntura para soltar o seu sermão sobre a injustiça, mas as suas palavras vão-se por cima das cabeças e fogem polos vidros rachados do autocarro. E o vazio entra no coração de Narciso, que já mostra tristura de pessoa abatida... que fazer? Como aturar a angústia, a soidade, o desprezo...? Por mais que ele tentava manter-se no bom caminho, não parecia obter resultados e vai passo a passo cavilando mais no que ele sente, em lugar de pensar melhor aquilo do que fala. E pensando na mágoa que o habita entra nos bares, onde não falta quem o convide a um vaso... "Beba, beba, Dom Narciso, que esta rolda vai minha" E Narciso bebe, e conversa, e sente-se melhor, e bebe e conversa, e bebe... e quase sem que se decate está metido no vinho.
     A Estrelinha do Luzeiro ordena-lhes a partida aos portadores da pia. Cada um vai por seu carroucho, e como sempre sem se despedir. O Narciso parece tão canso que até o Racha-Pedras o percebe e por primeira vez dês que compartem destino morde a língua e não arremete contra o curinha. E assim pensativos partem os homens cara ao dia.

*  *  *

     Vai lá perto de cumprir-se o mês desde a desaparição da pia e as autoridades seguem trabalhando na procura de pistas. Os últimos informes, segundo o que se filtrou ao diário Nuestra Región, parecem indicar que dous agentes foram despachados à freguesia da que fora tirada a pia no seu dia,
antes de vir parar ao Museu Arqueológico de Ourense. Lembra-nos também o jornal que é uma pequena freguesia, sem maior importância, lá no sul da província, na Raia, na que os dous investigadores deslocados ali durante uns dias se aplicarão para conseguir o que buscam. O jornal não duvida que estes dous oficiais, dada a sua profissionalidade e ofício, não tardarão em topar as peças que lhes faltam para completar o quebra-cabeças da misteriosa desaparição...
     ...e como se de um verdadeiro quebra-cabeças de pedra se tratasse, os dous homens empreenderam o seu labor. Duvidaram entre deslocarem-se cada dia desde Ourense ou parar num dos pequenos hotéis de Ginzo. Afinal optaram, decisão do chefe, por se deslocar diariamente desde a capital, afinal de contas nem fica tão afastada. Também, dado o seu conhecimento da reacção da gente das aldeias ante as autoridades, decidiram ir de incógnito, ainda que isto lhes fizer ter que aturar certas atitudes, que doutro jeito não teriam porquê tolerar.
     Num dos números que Nuestra Región publicou a passada semana ressalta-se como o milionário do que se viera falando anteriormente estabeleceu relações com algum dos pretendidos informadores que resultaram ser uns aproveitados que só tentavam tirar um peso do peto do pobre adinheirado.
     E como não, também nas páginas da passada semana assinalou um espaço Nuestra Región para ressaltar e louvar a organização vizinhal da cidade velha, e para o anúncio da apresentação dum livro de versos do poeta Budial, que terá lugar a sexta-feira dessa mesma semana na livraria do jornal.
     Polo que se vê, a Nuestra Región não chegaram os rumores que se criam polas ruas, segundo os quais as cousas andam revoltas, e onde antes havia consenso agora há desarmonia, sem dúvida produzida pola divisão de pareceres entre os vizinhos que integram a comissão organizadora da campanha de recolhida de fundos para governar o da pia. Diz-se que de não ser pola má fortuna a estas horas já teriam falado co escultor para lhe ir encarregando a encomenda. Seica se produziram enfrentamentos entre duas facções: por um lado estão os que defendem a postura inicial de todos, e querem começar quanto antes o projecto de reposição; por outro, estão os que após descobrirem que há tanto interesse no tema, querem gastar o que juntaram fazendo uma viagem ao Caribe, e que seja o milionário o que pague pola pia, diz-se que cada vez são mais os adeptos a ideia do Caribe.

*  *  *

     Numas quantas noites mais remataram de cruzar o Lombo, que é um outeiro coberto de pinheirais com grandes zonas ardidas. Depois baixaram à Auguela, onde fica a segunda das fontes polas que hão-de passar nesta andaria, e descansaram umas quantas horas ao redor da fonte que nasce no meio e meio da cavada dum vizinho de Penacova. As cavadas fizeram-se no monte vai lá para perto de trinta anos. Iam vir os pinos; o pedâneo, que daquela era o tio Serafim, deu ordem de que o que quiser podia fazer cavada para ele. Mais de um correra então coa enxada para sachar nas terras ao redor da fontela, mas só os primeiros puderam escolher essa sorte. Agora aquela fonte andava mui bem cuidada e dava as melhores morujas que se possam imaginar. Ainda há vizinhos de Penacova que se achegam até ali de quando em vez a trazer água para ir bebendo uns dias.
     Os três homens e a pia beberam e beberam daquela água, e depois sentaram ao redor da fonte e topenearam um chisco... claro, assim quedos a qualquer não o tenta o sono! Estes homens não tinham prática no diálogo: Dom Narciso, acostumado aos seus sermões... sempre aconselhando; o Perfeuto Racha-Pedras só sabia dar ordens, mandar, mandar, mandar... era o seu; e que dizer do ex-alcaide... esse não só dizia embustes senão que os cria ele mesmo e depois já não precisava escutar a mais ninguém. Não, de escutar não sabiam muito estes três, e agora não tinham público, nem fregueses, nem empregados, nem ninguém a quem largar o contido das suas cacholas, e andam algo confundidos. Que fazer ali no meio da noite tendo só o interior dum mesmo para dialogar, e não vendo com muita clareza? Só restava deixar que fosse o homem da moca, quem ditara a conversa, muda, e assim iam fazendo.
     Ao Narciso ficaralhe o pensamento prendido na silveira daqueles bares de Ginzo; ele, que agora era abstémio, polo menos no que respeita ao vinho e outras drogas que se possam engolir sem prescrição facultativa, não dava entendido como se fora metendo na bebida. Ele lembra a fortaleza que tinha e a firmeza dos seus propósitos e parece que não recorda a angústia com que o seu espírito tinha que carregar já desde a manhã; era como vestir um corpete que premesse de dentro para fora. Mas essa angústia esmagadora andava agora agachada, coa ajuda das pastilhas cada vez lembra menos, já nem sente... mas claro, agora com tanto tempo para espreitar... Agora, enquanto o sono lhe obriga a deixar pender a cabeça, vai vendo como os pensamentos se entrecortam com imagens que manam do fundo dos sonhos... são imagens desconcertantes que abrolham desse escuro mundo do que ele não tem controlo, e o que aparece é um homenzinho com um vaso na mão erguida; um homenzinho que se cambaleia, um homenzinho que cai e desde o chão segue a falar. Está rodeado de gente e ele pensa que o escuta... mas agora desde a claridade da noite na Auguela pode ver como aqueles do seu redor se dão de olho e riem enquanto ele solta o seu discurso sobre a injustiça e a escravitude. Felizmente essas imagens tremebundas se interrompem e o espertam do seu ser adormecido.
     Dom Narciso fica logo confundido, as lembranças que ele recorda não eram tão cruas nem tão vivas como estas que o visitam agora enquanto adorminha na Auguela junto à pia. Ele achega-se à pedra fria e interroga-se, que faria ele ali com aqueles dous homens aos que nem sequer conhecia? Claro que ele ultimamente não conhece a muitos que digamos, mas ainda assim aqueles dous não eram dos que iam à missa, e também é certo que ele leva já bem tempo sem freguesia nem fregueses. O alcaide lembra-lhe a Dom Narciso àqueles inspectores de UTECO que ele tanto aborrecera: bem entrado nos sessenta e com algo de bandulho criado pola falta de trabalho e a preguiça. O Racha-Pedras fazia-lhe pensar no cacholudo que sempre lhe lançava alguma para se rir dele quando ia aos trabalhos comunais co concelho, que se pouca cousa, mequetrefe, que se só estorvava, e até trabalhoso lhe deixava cair para humilhá-lo; e assim dia trás dia e ano trás ano enquanto durou a sua estadia na freguesia de Ameixeiras, última na que ele dissera missa e da que fora arrancado de jeito brusco e definitivo. E agora achava-se Dom Narciso ali com aqueles companheiros que ele jamais teria escolhido. Porquê era ele merecedor de tal castigo? Ele sabia que cara ao final não actuara bem de todo em Ameixeiras, contudo ainda andava o homem tentando de adivinhar como fora ou como não, quando se topou com aqueles dous, e prendido a eles ficava pola pia. Mas o porquê não o alcançava ainda nem de longe... e assim seguia cedendo ao sofrer; que por certo, naquele novo jeito em parte consistente em não saber, não lhe era de todo desagradável. Assim, deixando-se levar polo seu fado ia passando as jornadas nocturnas, que hoje eram descansadas, mas amanhã viriam as subidas e os esforços que levarão a sabe Deus onde. Aquela noite o Narciso bebeu muita água, quiçá por terem espertado nele ressacas passadas, esquecidas pola mente mas não polo corpo que as sofrera e agora as sentia. O pior ainda era quando à manhã havia que trousar até a figadeira; logo viria aquele nojo, o arrependimento e a rábia que não topando outra forma de expressão se encarregava de o devolver aos bares de Ginzo, ou às tabernas da freguesia. Mas agora só bebia água, dês que o meteram no psiquiátrico só bebia água, muita água. Donde lhe vinha toda aquela sede que parecia não dar saciado? Porque, de algures lhe teria que vir, não é? Dês que os batas-brancas se encarregavam da sua dieta bem suplementada com pílulas, venha água e mais água. Mas agora, vendo correr aquela tanta água que se espargia pola cavada abaixo, Dom Narciso sentia-se melhor, quase se sentia bem. E ainda teve tempo de perguntar-se que seria o que se andava passando polos miolos dos seus companheiros.
     Ainda que tanto o Racha-Pedras como o Rebenta-Ruas representavam para Narciso a duas castas de gente bem desprezadas por ele, e coas que ele nunca se juntaria, agora vendo-os assim, decaídos, coas cabeças topeneantes, sentiu compaixão; afinal de contas, ele tinha prática nesse assunto de compreender e perdoar, como lhe acai a um servidor da religião... ainda que ele não fosse um homem muito religioso. E Narciso fez um esforço e quis imaginar àqueles homens sendo bons e generosos; quis imaginar a filhos que os viam como heróis, quis imaginar a mulheres que os queriam, ainda que não os chegassem a amar, e também a vizinhos que os apreciavam ou tão sequer que os reconheciam como tais vizinhos,... e Narciso sentiu inveja. Eles, ainda que não conscientes disso, tinham filhos, ou quiçá os tivessem; eram casados, e ademais tinham vizinhos... enquanto ele ficava só; só e incompreendido, só e anónimo, só e no psiquiátrico, só e sem visitas, só e isolado... desaparecendo do contacto cos outros, desaparecendo das lembranças dos que o tinham conhecido, dos que quase lhe puderam ter sido amigos, desaparecendo do seu próprio pensar, desaparecendo... E Narciso fez um esforço por recuperar-se, por sentir-se de novo, por sentir-se novo, ou polo menos por sentir-se. Este esforço introspectivo, ao que ele não estava afeito, fez que Narciso corresse o sono e se mantivesse esperto o resto da noite, de jeito que deixaram de o amolar as imagens procedentes do seu passado inconsciente, se bem é certo que ainda o mancava a esteira por elas deixada e que o afundia na mais escura soidade. E ali em frente dos companheiros entregados às escrebadelas, obrigados polo sono, e portanto alheios a tudo, Narciso chorou, e foi ele quem se encarregou de avisar de que a Estrelinha do Luzeiro andava a pestanejar. Sem mediar palavras nem olhadas, os três homens, logo de se espreguiçarem e de cumprir com as obrigas últimas, partiram pola calada naquela manhã de Março, um Março que por sorte vinha tépido este ano; se o tempo seguia assim não teriam que aturar mais chuvas nem geadas.
     Na Auguela entraram na segunda lua e já com um pé na primavera viajariam ao altinho do Zebreiro onde se topa o terceiro manancial das suas obrigas. Mas isso há-de ser amanhã; agora há que partir, e os três homens marcharam asinha pisando sem decatar-se algumas das florzinhas amareladas de São Bento que a primavera espargira já nas abrigosas beiras da fontela.

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     Nuestra Región, faz uma resenha no diário de hoje na que se adivinha qual vai ser o cometido, e mais o paradoiro, dos agentes lá pola beira da Rousia, mesmo correndo o risco de que alguém pudesse deduzir o lugar exacto ao que se dirigem. Mas o jornal, fazendo alarde do conhecimento que tem da realidade social do país, não duvida em fazer públicos estes comentários. Parece como se soubessem que as suas páginas nunca serão lidas lá por essa parte do mundo. Excepto por algum exemplar atrasado que algum visitante deixar para ajudar a prender o lume. É sabido que o papel do jornal é quase tão bom como a frôncega da gesta para pegar na labareda enquanto o lume não enteia, ainda que lareie mais asinha. De qualquer jeito, por se ligara de que os olhos se pousarem no papel antes de tempo, bastará com evitar a menção do nome do lugar.

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     Quando os agentes chegaram à freguesia olharam polos vidros da igreja para ver se dentro estava a pia. O relógio de pedra do campanário andava aí polas dez e meia da manhã, hora esta mui propícia para não topar às gentes do campo nas suas casas; e menos neste tempo de sementeiras e cavas, mas isso, como haviam de o adivinhar os agentes da cidade? A igreja semelhava vazia, excepto por uns bancos de madeira e dous ou três santinhos pequenos. Pia não viram.
     Entraram no lugar polo caminho da Ranha, e nada mais apagar o automóvel que levavam, avistaram a um homem de pêlo abrancaçado que se passeava, cigarro em mão, eira abaixo, eira arriba. Aquela, ainda que os agentes não o sabiam, era a eira da festa, mas agora não estávamos no tempo da festa e a eira estava vazia, excepto por esse indivíduo que se movia devagar pola sua superfície como se não tivesse pressa, como se não tivesse a onde ir. E claro que não tinha outro sítio a onde ir, mas isso os detectives, julgando polo passo do homem, já o intuíam; ainda assim quiseram avantar a andar e falar com ele não fosse que se escapasse. Aquele que eles viam não havia de marchar, mas, como iam eles adivinhar que aquele homem tinha por ofício o de gandaia? Senão, como ia ele andar a passear-se àquela hora naquelas manhãs de esterco, sementeiras, e vessadelas? Trás a olhada através dos vidros da igreja apuraram o passo cara ao homem do que saía um fio de fumo gris, e que agora visto mais de perto lhes parecia de pêlo como mais prateado, e isso que era novo. Aviaram o andar não fosse o demo...
     —Bons dias! Poderia dizernos você como se chama?
     —Pois claro que poderia, eu poderia lhes dizer a vocês como me chamo, mas depois vocês saberiam mais de mim que eu de vocês... Ora, também é certo que eu já sei que vocês não são de por aqui, senão não teriam arrimado tanto o auto ao alpendre, porque saberiam, inda que não fossem deste mesmo lugar, que esse alpendre está mui bem orientado e baixo o seu telhado nunca entram chuvas nem orvalhos, o que o faz atractivo para as andorinhas e polo menos quatro delas andam a fazer o ninho para este ano... eu não lhe vou contar a vocês, que ademais seguro que já o sabem, do danento efeito dessa lama na chapa, mas ainda lhe é pior o ácido das cagadas... mas não devem preocupar-se demais, pois este é lugar de muita água e sempre poderão vocês darl-he uma lavadela ao carro antes de marcharem e assunto arranjado... Vejo que a sua matrícula...
     E aqui foi onde o detective de mais idade e graduação o interrompeu porque lhe parecia que aquele homem não tinha intenção de parar ali. O detective ergueu algo a mão e disse:
     —Mire, agradecemos-lhe a advertência, e para que veja que não somos pontilhosos, pois não é preciso que nos diga você o nome; isso é, o nome tanto tem, se quer podemos-lhe chamar senhor... M, por exemplo.
     —Senhor M? Mas eu não me chamo senhor M, ademais não gosto muito de como se ouve: "senhoreme"... Por não dizer que por M começa a morte, e o medo, e a missa, e a merda, e ...
     —Vale, vale! Escusamos o nome, nós o que queríamos saber é se você sabe algo que nos possa dizer duma pia que havia em tempos aqui na igreja e que agora já não está, que deveu desaparecer já há uns quantos anos...
     —Claro! Para vocês que tudo o sabem medir, há uns quantos anos mas para mim a cousa se passou tal que ontem... e olhem vocês bem o que lhes digo, nessa pia recebi eu o meu nome, sim, sim... esse nome que me faz eu e que a vocês parece que tanto lhes tem, vamos, que o mesmo lhes dá lé como cré... pois não, a verdade é sempre única, como única há-de ser a sua fórmula e a palavra que a nomeia, olhem...
     —Mire..., a nós não nos interessam os nomes, o único que queremos saber é se você sabe algo da pia!
     —Pois claro que sei algo da pia, os que parece que não se decatam são vocês... não lhes acabo de dizer que eu recebi o nome nessa pia? E sim, já sabemos que quando te escolhem um nome não se sabe ainda se vai ser bonito ou feio até muito mais tarde, porque o nome fá-lo a pessoa... e o dia que te molham a cabeça na água ainda o nome está de estreia, ainda que depende de quem to escolhesse, também tem a sua história, quase sempre se escolhe aquele do que gostam os padrinhos, afinal de contas eles são os que te levam à pia. Vocês sabem quem era o meu padrinho? Como o vão saber...! Porque se o soubessem já se teriam decatado que não me podia chamar 'Senhoreme'... eu figuro-me que 'Senhoreme' só se pode chamar...
     O agente mais novo escacaranhava-se com o riso e ao mais velho iam-se-lhe apequenando os olhos e engrunhando o coiro da testa.
     —A nós tanto nos tem quem se possa chamar senhor M ou quem não. Olhe, se você não sabe nada da pia, pois diga-no-lo e não nos faça perder mais o tempo e ao mesmo tempo tampouco perderá você o seu!
     —Mas eu não lhe disse que eu sei muito da pia? Se não vão topar a ninguém que saiba mais que eu dessa pia...! Dessa ou de outra qualquer de todas as pias que há aqui neste lugar... por exemplo, sabiam vocês que só aqui há mais de trezentas pias...? Das quais polo menos cem são de madeira; a estas últimas é mais apropriado chamá-las barquelas, e que...
     —Mire, não nos interessam essas trezentas pias ou barquelas, a nós só nos interessa a pia que havia na igreja, e parece que você não nos está a dar informação, polo que será melhor marcharmos a ver se topamos alguém com quem poder falar.
     —Eh, que eu não os mandei vir, eu só me limito a responder às suas perguntas... Ora, se você —ele dirigia-se só ao mais velho dos agentes, o mais novo estava algo mais retirado tentando dissimular o seu sorriso— não entende mais que de cousinhas mui concretas, pois mais lhe vale sair daqui e ir-se embora... e ademais não são trezentas pias ou barquelas; desculpe mas eu disse trezentas pias, das quais polo menos cem são de madeira, e a essas é apropriado chamá-las barquelas, mas às outras duzentas não, não senhor, não o é; para que me entendam... é como se eu dissera: havia ali trezentos automóveis, dos quais cem eram furgonetas, seguro que a você não lhe parece apropriado que dissera que havia trezentas furgonetas, vamos digo eu... e perdoe o exemplo mas parecia-me a mim que você não colhera o matiz..., e é que se bem todas as barquelas são pias, não todas as pias são barquelas, nem servem para fazer a velha rima:

Vaite névoa nevoarela
filha do cão e da cadela
Vai comer a lavadura
que te ficou na barquela

     ...e se repetes estas palavras a névoa, por fecha que ande, acaba afastando; também senão está um perdido, pois coa névoa perde-se o tino, e se andas por fora ou num monte sem carreiro...
     O Ciro percebeu então de que aquela névoa que agora apartava era a que saía polo tubo de escape do Ford Escort gris que já se afastava caminho adiante...
     —Quanta pressa traziam esses, assim não se pode falar sequer... —disse o Ciro para si, enquanto seguia a olhar com certa nostalgia como o automóvel se afastava, e com ele as possibilidades de companhia; pois neste tempo de sementeira todo cristo anda nos eidos e ele aborrece-se um pouco; se tão sequer lhe deixassem a taberna aberta...
     Em ocasiões como estas o Ciro era mais consciente da sua singularidade, ele era diferente dos demais... que não serviam para outra cousa que não fosse trabalhar; não, ele estudara nos livros, e prova tinha para todo aquele incrédulo que a quisesse ver. Debaixo da cama guardava Ciro uma mala cheia deles; alguns já se vão vendo velhos, mas ele muito os estima... "ai, se eu não me tivera juntado com más companhias... hoje seria eu alguém e de mim não se ririam!" E tampouco se riem tanto, pois sabem que leu nos livros, e ademais... "olha para aí que bem vive!"








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1 UTECO -
Sigla da organização de cooperativas agro-pecuárias ourensãs, organismo que agrupava a muitas granjas na província de Ourense nos anos 70-80, de estrutura e funcionamento caciquis.

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