A Tábua Ocre de Núbia (ou o Significado da Vida)

 

Quadro I: Cena 1ª.

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ACTAS DO XXIV CONGRESSO INTERNACIONAL ACERCA DE
A TÁBUA OCRE DE NÚBIA
OU O SIGNIFICADO DA VIDA
Homenagem à Professora Doutora
Lady Elisabeth Morlay
in memoriam






AGRADECIMENTOS

Ao Benjamim Moreira Pereira,
ao José Luís Forneiro,
e ao José António Souto Cabo,
pela assessoria linguística.
Ao Carlos Quiroga,
pela assessoria em assessores
linguísticos.
À Gladys Prado, pela assessoria
botânica.
À Belém Sánchez pela assessoria em
matéria religiosa e literária.
Ao Jesus Pombo, pela assessoria em
matéria literária e escandinava.
Ao meu irmão Antonio, pela assessoria
desportiva.
E à Clara,
que me segredou os nomes ocultos de
todos esses génios.






Quadro I
Sessão Solene de Abertura e
Recepção dos Convivas


Cena 1ª


     Ao abrir-se o pano vê-se um outro pano, oh surpresa!, que traz desenhado, a grandes dimensões, o retrato vivo (e nunca melhor dito) do Secretário/Coordenador. Enche todo o alto e largo do cenário o busto de um velhote trajado como erudito ou professor universitário um tanto rançoso. Gravatinha de laço preta, monóculo, casaco escuro, colarinho apertado, cabelo branco muito penteado. Ouve-se a sua voz, ainda que a boca de tecido pintado não se mexa.


Voz do Secretário/Coordenador.- Boa tarde/noite, meus/minhas senhores/senhoras. É para mim uma grande honra que a Direcção/Organização deste Congresso/Colóquio tenha depositado nos meus fracos ombros a ingente tarefa de lhes dar as boas-vindas e desejar a todos uma feliz estadia entre nós. Suponho que já terão preenchido devidamente o vosso boletim de inscrição…


     Ao mesmo tempo que vai falando, aparecem pelos lados duas mãos enormes, que condizem com o tamanho do retrato, e são como uma continuação “natural” dos seus fracos ombros, que ficaram interrompidos nos limites do desenho. Duas mãos de papelão ou qualquer material similar, prolongadas, nos pulsos, por uns antebraços de tecido oco: punhos passados com a mesma goma que o colarinho, mangas da mesma cor que o casaco desenhado no pano do fundo. Podem apresentar, eventualmente, articulações nos dedos, ou estar feitas com uma substância bastante elástica que permita combinações de movimentos mais expressivas.
     São carregadas e manipuladas por operários/operárias de macacos azuis, ou actores/actrizes vestidos de preto ou com roupas evidentes de trabalho (camisolas frouxas, suspensórios etc.) Eles vão fazendo acenar, à vista do público, estas mãos gigantes, de acordo com as explicações e modulações da voz, compondo, com o busto pintado, uma espécie de bonifrate cuja estatura faria crer a todos os espectadores/espectadoras, chamem-se João ou Joana, que se reduzem a simples joaninhas.
     As mãos entram a imitar o gesto de se juntar, como se as boas tardes ou noites tivessem sido ditas com elas separadas. Cada vez que repete expressões do género “Congresso/Colóquio” ou “Direcção/Organização” a mão direita
* balouça, vertical, sobre o seu eixo, com leves pausas nas posições extremas, exactamente igual que quando dizemos “assim, assim…” Agora, ao referirem o boletim de inscrição, os actores/operários fazem avançar levemente a mão direita e viram-na para cima, numa clara manobra explicativa. Quando a voz indicar o lugar em que se encontra a Secretaria, aqueles que sujeitam a mão esquerda arrastam-na até ao proscénio na mesma vaga direcção que o texto.


     … No caso de o não terem cumprimentado, esta Direcção/Organização, sugere que o façam com maior brevidade possível, para o que lembramos que a Secretaria/Menagement (enfatiza a pronúncia deste último termo, com um sotaque que atravessa o Canal: começa sendo inglês e acaba sendo francês) deste Congresso/Colóquio se encontra situada à esquerda, no vestíbulo de acesso a esta sala, onde poderão receber, aliás, informação acerca de visitas turísticas guiadas e outras actividades facultativas. Aproveito para lhes indicar que, à vossa direita, podem encontrar um serviço de cafetaria onde se servem também refeições rápidas durante os intervalos do meio-dia. Aqueles que gostarem de refeições mais repousadas, dispõem de um variado Restaurante Internacional no piso superior.


     As mãos, direita e esquerda, continuam a reproduzir as indicações da voz. Quando fala do piso superior, todos os manipuladores da mão respectiva carregam-na sobre os seus ombros e alçam os braços a fim de a elevar à maior altura possível. Felizmente para eles, a voz abandona os meandros explicativos e retoma o anterior tom doutoral, que as mãos acompanham com os movimentos adequados.


     Antes de começar, porém, com a primeira Sessão de Trabalho e as palestras/debate que podem consultar no Folheto/Programa, distribuído à entrada, a Direcção/Organização pede-me que realize uma breve exposição/introdução acerca do estado actual da questão, a fim de melhor contextuar as intervenções que vão seguir-se.
     O tema deste Congresso, como resulta ocioso dizer, não é outro senão a famosa Tábua Ocre de Núbia, essa misteriosa tábua de argila achada nas proximidades de Abu Simbel, nos finais do século passado, durante uma missão arqueológica rotineira nos arredores do Templo de Ramsés II.
     Esta tábua apresenta, como podem comprovar na retroprojecção…


     Uma mão desaparece pela direita e reaparece trazendo arrastada uma folha de papel da sua mesma escala (melhor seria dizer um tapete) que deixa depositada dentro do cenário. Naturalmente não é ela quem a desloca. Os seus manipuladores só imitam o gesto, a arrastar pelo chão as gemas desses dedos de papelão, como se varressem com uma vassoura gigante. São outros servidores de cena, fardados como eles, que a empurram do lado oposto até ela ficar enchendo o lado direito do palco. A outra mão finge carregar num botão situado algures fora da cena e acende-se um jorro de luz vertical desde o alto do cenário que ilumina, com a intensidade e a direcção da lâmpada de um retroprojector desses que abundam nas salas de conferências, a pretensa folha. Nela aparece uma reprodução fotográfica da Tábua. Um pedaço de argila que algum dia deve ter sido rectangular e que agora apresenta todas as irregularidades precisas para ser o mapa de um país de contorno acidentado, embora a sua parte superior pareça mais rectilínea e melhor conservada que o resto, como cantis do fim, ou do começo, quem sabe?, do seu reduzido Universo. Dentro dele, irregularmente dispostas, aparecem, como muito bem continua a dizer o Secretário/Coordenador…


     … uns signos gravados, pertencentes a uma escrita até à data ignorada… Hummm, desculpem, acho que está mesmo ao revés…


     As duas mãos, manipuladas pelos seus correspondentes “varredores” fingem girar a folha sobre o seu centro, ainda que tenham que ser outros manipuladores que realizem o trabalho de facto. O Secretário/Coordenador hesita. As mãos e o conjunto dos manipuladores ensaiam novos giros para a deixar, finalmente, na mesma posição anterior.


     …ou não será, talvez, melhor assim?… (Pausa, hesita de novo) …Enfim, que, como estão a ver, tudo é misterioso neste pequeno pedaço de argila. Para já, pode ser igual final ou começo de qualquer coisa que não sabemos, então, como era que começava ou acabava.
     A própria existência dela é um enigma, sobre o qual se têm baralhado as mais variadas hipóteses. A sua datação é imprecisa, ainda que saibamos que tem que pertencer a uma época muito mais remota que a dos templos citados, por razões evidentes que logo vão entender. Porque o mais curioso desta Tábua é que se trata de um resto arqueológico da Antiguidade… Bom, não me estou a explicar bem… Isso seria o normal. Mas este é um resto arqueológico duplicado… Não, não estou a duvidar da sua autenticidade. Quero dizer, em resumo, que já era considerado como resto arqueológico na época de Ramsés II. E estamos a falar dos anos 1290 a 1224 antes de Cristo…


     Uma mão “empurra” a folha para fora, enquanto a outra “arrasta” uma nova reprodução para o interior do palco. É uma folha mais comprida que a anterior, que atravessa o proscénio de parte a parte. Nela aparecem os corpos de alguns actores/actrizes vestidos à moda da XIX dinastia, deitados em posições tão hieráticas como hieroglíficas. Entremeados com eles podem-se ver também diversos objectos, olhos, aves, taças, púcaros, espigas, com que formam um sistema de signos orientados de acordo com o ponto de vista do orador.


     A Tábua foi encontrada no interior de um cofre de pedra calcária, profusamente decorado com diversas inscrições hieroglíficas que, como podem comprovar na figura seguinte, correctamente interpretadas, querem dizer…

     A mão direita começa a percorrer a linha de homens/mulheres/objectos/letras traduzindo em alta voz a sua mensagem cifrada.


     “Que a mão de Osíris que derrama bênçãos sobre o nosso divino Faraó, senhor do centro do Universo…

     Quando a mão acaba a “primeira linha” retorna ao começo, com o intuito de ler uma “segunda linha”. Então os corpos dos actores começam a mexer e a passar os objectos de umas mãos para outras, adoptando novas posturas. A mão vai animando os “signos” ao seu passo, como se fosse o papel quem corresse diante dela. Os lábios continuam a interpretar o discurso que se desenvolve diante deles como uma cadeia humana a transportar antiguidades egípcias.


     “…e que a luz de Ámon-Rá, que faz resplandecer a sua coruscante Tiara, guiem os meus passos e sejam testemunhas de como eu…”

     Ao “ler” a linha de objectos e figuras humanas, a mão do orador, sem querer, toca no pé de uma delas, que começa a agitar-se por causa das cócegas, pousando e recolhendo, alternativamente, o seu cântaro e adoptando de cada vez diferentes posturas.


     Não… “de como tu”… Não… “de como sempre”… Não… “de como nunca”…
     Bom… realmente… como uma interpretação literal seria prolixa de mais, vamos tentar resumir o seu conteúdo….

     Ambas as mãos “apanham” o papel pelo extremo superior, erguem-no no ar, sempre ajudadas pelos manipuladores, até o deixar perfeitamente vertical. Facto que calha às mil maravilhas para os actores/letras fugirem, com os seus objectos, pelos bastidores fora. As mãos enrolam, então, este longo tapete de papel, formando como um cilindro branco que retiram, com delicadeza, por um lateral. A iluminação geral, quer a que incide sobre o pano que representa o orador, quer aquela que representa a lâmpada do retroprojector, vai diminuindo a pouco e pouco, à medida que a voz do Secretário/Coordenador se vai tornando a mais e mais misteriosa e narrativa.


     Narra, nem mais nem menos, a história (ou talvez seria mais exacto dizer “a lenda”) desta pequena tábua de argila gravada. Fala da sua origem e do modo como foi descoberta…

     Antes de a luz amortecer por completo vemos como se vai correndo o pano do fundo. O rosto do Secretário/Coordenador vai-se franzindo, não tanto pelas suas preocupações académicas ou organizativas, como pelas simples necessidades da transição. Um discreto efeito musical acompanha a acção. As mãos ficam ainda um pouco iluminadas, nos extremos do cenário, a perder protagonismo. A seguir, como de leve, o discurso da voz, que continua a sobrevoar a cena que se abre por trás.


(*) Direita e esquerda do actor.

 

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