v2jguisantabuaocre002.html
Quando
acaba de desaparecer o pano com a figura do orador
descobre-se o mesmo rolo que as suas mãos acabam de
retirar, no meio de um cenário completamente escuro.
São, desta vez, os manipuladores que o desenrolam
permitindo ver, de pé, as mesmas figuras com que fora
enrolado, a formarem um friso hieroglífico: Um homem a
ceifar a sua seara de esquemas de espiga; uma rapariga
que sustém uma ave de altanaria prestes a iniciar o voo;
uma outra carrega o seu púcaro de água, curvada, ao pé
do pai Nilo; uma terceira ajoelhada, com as palmas
fechadas, a orar diante de um enorme olho que a observa.
O friso anima-se quando a voz do orador prossegue o
relato. Abandona o seu carácter hierático, não para
dar passo ao demótico ou ao cuneiforme, mas à vida
quotidiana simplesmente. |
Voz do Secretário/Coordenador.- Estava a
Núbia, muito antes da fundação do primeiro Império, povoada
de miseráveis homens primitivos, que tinham que se conformar com
apenas dois ou três deuses para sobreviver.
O
homem começa a agitar a foice, sem conseguir uma
abundante colheita. A primeira rapariga ameaça ir
lançar o seu falcão, que se limita, porém, a agitar as
asas sem largar o fino braço. A segunda repete uma e
outra vez a acção de levantar o púcaro, mas o seu peso
deve ser tal que torna a curvar-se e verter a carga,
tendo que o encher de novo nas águas do generoso Nilo,
que são umas riscas azuis, onduladas, desenhadas no
chão. A terceira limita-se a alçar e abaixar, uma e
outra vez, a cabeça diante do enorme olho, que cobra
também vida e segue o seu movimento com um vaivém de
pupila. |
Num daqueles pobres povoados,
espalhados nas duas margens do Nilo, morava Atonaton, um modesto
camponês, cujo nome, derivado de Áton (deus do sol, e o
próprio astro) poderia muito bem interpretar-se como
aquele que trabalha de sol a sol. Como era
previsível, tinha três filhas. A menor chamava-se Uáris, a
grácil, e dedicava-se a treinar o seu fiel falcão Anur, imagem
da Divindade, prodigioso na caça do rato.
A
primeira consegue finalmente fazer voar o seu falcão,
com o único senão de a levar sujeita nas suas farpas
durante o curto voo. |
A segunda, Sístar, a constante,
ajudava nos labores mais pesados da casa.
A
segunda, depois de muito pensar, decide verter metade da
sua carga pelo chão, com que consegue endireitar o corpo
e pôr-se a caminhar, em direcção à irmã menor,
chegando a tempo de a apanhar pelo braço antes de ela se
perder no ar. |
E a que mais anos tinha era
Amenotontapep, a formosa, que consagrava os seus dias a se
preparar para aquelas danças nocturnas que garantiam a
fertilidade do Nilo
A
terceira abre as mãos e descobre que no seu interior
estava a suster um estojo com lápis de lábios,
bâton rouge, e toda a paleta com que nenhum
pintor de gosto pintaria um rosto de mulher. Extrai do
seu interior o rimmel e começa a torcer com
ele celhas e pestanas. As do olho enorme que a observa,
que continua a imitar os movimentos dela, começam
também a se curvar e escurecer, aumentando a sua
presença e o seu tamanho. |
e a própria, coisa tanto
mais assombrosa, por quanto era característica demográfica
destes tempos lendários, todos os pais (pelo menos aqueles de
que tem ficado história) terem sempre três filhas!
Acabada
a sua toilette, a terceira vai-se reunir com
as outras duas. O pai, no entanto, consegue apanhar
finalmente as três espigas da sua seara e vai, fatigado,
ao encontro delas.. |
Atonaton trabalhava de manhã nos
campos e, ao meio-dia, despedia-se das suas filhas
Atonaton
dá um beijo na face à menor, e não consegue evitar ter
que lhe dar outro ao seu pássaro. Beija depois a
segunda, que, fazendo uma vénia respeitosa, consegue
desbordar todo o conteúdo do seu púcaro sobre o pai.
Quando vai fazer o mesmo com a terceira, Atonaton tem um
gesto de dor e sai impelido para trás, como se tivesse
machucado o seu próprio olho com alguma parte mais
saliente da anatomia da filha. |
deixava o seu rústico lar e
as verdejantes veigas e encaminhava-se para o interior, onde o
deserto líbico se estirava até lamber, como uma língua
sedenta, as margens do Nilo
O
pai vai para o fundo, que se vai iluminando conforme
avança, ao mesmo tempo que a luz da zona das filhas vai
minguando até desaparecerem. Descobre-se, pintada num
pano, uma grande perspectiva de andaimes e construções,
uma mole de blocos de adobe onde se divisam numerosos
homens semi-nus a remexer baldes de lodo, a atar cordas e
paus, a carregar tábuas de argila, a bater com martelos
e perfurar com buris. Ouvem-se vozes em línguas
pré-ptolemaicas. Uma balbúrdia cálida de gritos,
ferramentas, e cânticos de escravos. |
Ali, os primeiros sacerdotes que
acudiram a socorrer aqueles povos necessitados, estavam a
levantar novos templos, para que fossem habitados por novos
deuses, e pagavam os pedreiros com duas cabaças de água de
cevada por dia, e a promessa de um carneiro branco da Etiópia
quando acabarem a obra
Quando
Atonaton está a pique de atingir o pano do fundo, e
antes de nos ver no delicado momento em que tem que
começar a ascender pelo andaime, apaga-se, de repente,
toda a luz da cena, fora a das mãos, que cobram
protagonismo, por um momento, e no proscénio insinuam um
gesto de mistério. |
Mas, uma noite
Cessa
o efeito sonoro anterior e ouve-se um grande estrondo
apenas, e logo o silêncio. |
Atonaton não regressou à
casa.
Pausa.
Acende-se de novo a luz do fundo. A imagem da perspectiva
desapareceu. Um monte de entulho jaz no chão. Cordas,
polés, blocos de barro seco espalhados por toda a parte. |
No dia seguinte as suas filhas,
alarmadas, correram ao lugar
Acende-se
a luz da filhas. A pequena vai correndo para o fundo,
ajudada pelo falcão, sempre adido ao seu braço, que lhe
faz dar um pulo no chão cada vez que tenta voar. Segue-a
a segunda, atarantada pela cântaro que não deixa de
carregar às costas. A mais idosa, por fim, acaba de se
observar no enorme olho e sai correndo. O olho vira-se
com ela e desaparece. Mas, no meio do caminho, tem um
acordo. Regressa para o mesmo ponto. O olho reaparece.
Dá uma última demão às pestanas e sai.
As duas mais
novas, ante o olhar sempre atento e expressivo da maior,
retiram, como mal podem, os cascalhos e aparece o corpo
do pai, exânime. Numa mão esticada sustém um pedaço
de placa de barro, e na outra um objecto que o orador se
encarregará de especificar. |
Não estamos ainda na época dos
grandes templos de pedra, e naqueles primitivos templos feitos
com blocos de argila eram frequentes estas coisas. Ali jazia seu
pai, com efeito, vítima de um desastre que, considerado do lado
positivo, lhe tinha proporcionado uma sepultura em sagrado, honra
só reservada a Faraós e Sacerdotes, e alguns operários da
construção afortunados.
Mas as filhas, incapazes de o ver
desde este ponto de vista, romperam a chorar desconsoladamente.
A
menor tenta enxugar as lágrimas, mas cada vez que o vai
conseguir, o falcão, ensaiando o voo, turra da sua mão
para cima. A meã verte as suas directamente no cântaro,
que transborda. Só a maior parece que consegue conter o
choro. De repente, porém, sente qualquer coisa estranha.
Corre até ao ponto de onde partira. Reaparece o enorme
olho, que traz uma pestana com a tinta do
rimmel derramada, e uma lágrima que assoma
entre o globo e a pálpebra. Recompõe-se, o olho
regressa ao seu estado anterior, e ela ao lugar onde
jazia o pai. |
Ali
jazia seu pai, sim! Numa mão ainda a suster uma placa de argila,
e na outra o buril com que trabalhava.
Quando retiravam estes objectos das
suas mãos, a fim de lhe dar digna sepultura
As
filhas arrancam-lhe a placa e o buril das mãos, para
logo cobrir de novo o corpo com os cascalhos que tinham
retirado antes. A maior observa o buril, primeiro com
atenção, e logo com desprezo, e volta a deitá-lo no
entulho. Soma-se imediatamente às outras duas, que olham
com curiosidade crescente a placa, a lutarem por qual
delas há-de ter na mão. |
descobriram
que o pai tinha gravado na placa, possivelmente já caído no
chão, entre os cascalhos e sentindo-se morrer, uns signos
estranhos
Vai
diminuindo a iluminação que incide nas irmãs. |
Eram
formas que para nada lembravam as figuras que os sacerdotes
mandavam gravar nas paredes dos templos. Mas, de qualquer modo,
elas percebiam que o pai algo lhes queria dizer, desde o Além,
com aqueles traços rabiscados nos seus derradeiros momentos.
A
luz apaga-se completamente, e durante uns momentos as
três irmãs desaparecem. As mãos recobram a vida e
repetem os movimentos que realizaram quando arrastaram a
primeira folha e acenderam o retroprojector. O jorro de
luz irrompe do alto, não ilumina, porém, folha nenhuma,
mas as três irmãs sentadas num mesmo penedo, a olhar e
estudar a tábua de argila deixada por seu pai. Mesmo por
trás delas vê-se o falcão pousado na asa do púcaro,
braço menos comprido e suave que aquele a que estava
costumado. Num ecrã situado no fundo projecta-se agora,
a grande formato, uma imagem da mesma Tábua de argila
que tínhamos visto antes, mas menos deteriorada e de
tamanho maior. |
E
foi assim que abandonaram quaisquer outras ocupações
O
falcão voa, arrastando o púcaro, até às águas
sintéticas do Nilo. Carrega-o e volta, com mais
dificuldades, para casa, onde não se esquece de
observar, incrédulo, um grande olho de ave que repete os
movimentos do seu. |
e dedicaram-se ao estudo e interpretação da tábua
.
Aquele pode-se dizer que foi, ainda que não se conte, o primeiro
Congresso acerca da Tábua Ocre de Núbia.
As três pareciam concordar no
significado do primeiro signo
.
As
três assinalam com o dedo para o mesmo ponto, e fingem
entender, com grandes movimentos de cabeça e esforçados
sorrisos. |
Tudo.
A
menor levanta-se e mima, de forma hieroglífica, a
palavra Tudo com um amplo movimento de
braços abertos, levemente arqueados, com as palmas das
mãos viradas para cima, que não deixa de lembrar, com
efeito, a primeira das formas representadas. As outras
assentem, e cada uma por seu turno se levanta e repete,
com os seus próprios braços, a interpretação da
anterior. Sempre entre grandes sorrisos e amostras de
cordialidade, e fazendo coincidir cada gesto com um
Tudo do orador. |
Não
coube a menor dúvida: Tudo. Aquilo significava
Tudo, estava claro.
Voltam
a sentar-se todas três e retomam o estudo da placa. |
No
segundo signo houve também unanimidade.
A
meã, tem uma ideia e levanta-se, berrando em
hieroglífico (quer dizer acenando vivamente) a solução
ao enigma: dois braços estendidos na mesma direcção,
que dão, ou destinam, qualquer coisa a alguém. Gesto
que não deixa de lembrar, também, a dupla risca
irregular escavada na argila. |
Para.
O segundo signo lavrado na tábua era Para. Todas
três concordavam de novo no Para.
A
cada Para do narrador, cada irmã repete,
alvoroçada, idêntico gesto. Voltam a sentar, em grande
harmonia, e concentram-se outra vez na tábua. |
As
diferenças começaram, porém, na interpretação dos seguintes.
A
menor tem, por sua vez, uma ideia. Incorpora-se e executa
um grácil movimento de braço que acaba com a palma da
mão dirigida a ela própria. |
Uáris
interpretou-o como Uáris.
Ao
vê-la, a segunda põe-se em pé, não sem certo ar de
suficiência, e, depois de fazer um pequeno gesto de
negação com a cabeça, bate fortemente com ambas as
palmas no peito, como a dizer Cá estou eu! |
Sístar
estava certa de ler Sístar
É
a vez de a maior se erguer. Dirige um olhar de desafio a
ambas, incha o peito, e passa a mão pela longa
cabeleira, a se descrever em toda a extensão do seu
conceito. |
E
Amenotontapep não duvidava de que ali estava escrito o seu nome
completo, sem uma só falta de ortografia.
E, como em qualquer outro
Congresso, promoveram-se imensas questões, afinal, por escassas
divergências na interpretação!
Todas
as irmãs repetem, a mais e mais furiosas, os três
gestos relativos à frase completa. |
Tudo
para Uáris. Tudo para Sístar. Tudo para
Amenotontapep
Onde radica a diferença? Numa palavra
só!
Mas custou caro a palavra
Todas
seguram como podem a tábua e começam a puxar, cada uma
para si, até a quebrar em três partes, que cada uma
aperta com força contra o peito. A imagem projectada
quebra-se também, e os pedaços resultantes se perdem
pelas margens do ecrã, ficando o fundo novamente às
escuras. |
Porque,
lá isso sim, aquilo em que todas as irmãs pareciam concordar
completamente, era em que o verdadeiro fim da Tábua e dos sinais
ali gravados, não podia ser outro que servir a um pai agonizante
para lhe dizer às suas filhas qual das três ia herdar a pequena
casa de barro e palha, a seara que o Nilo roubava sete meses ao
ano, e as duas cabras do incipiente rebanho.
Ilumina-se
no fundo um novo pano com a imagem de um Faraó de ouro,
de tamanho faraónico. Ao mesmo tempo irrompem, por ambos
os lados do cenário, dois pés dourados, que devem
gastar igual talha de calçado que o do fundo. As três
irmãs vão-se afastando, cada uma com sua parte da
tábua. Uma fica de costas, diante do Faraó do fundo, e
as outras duas chegam até aos extremos, onde fazem as
oportunas vénias aos imponentes pés. Todas três
repetem, com as vozes levemente desencontradas, idêntica
ladainha ante os seus respectivos monarcas. |
As três irmãs.-
Filho do Sol, venho de um longínquo país para mostrar-vos uma
nova forma de escrita desconhecida de todas as outras nações.
Deixou-ma meu pai como herança, nesta mesma Tábua em que me
deixa inteira posse de tudo quanto tinha. Com a vossa licença
ensinar-vo-la-ei
Este signo que vedes tem por significado
tudo, este outro, ao seu pé, deve ser lido
para, e este terceiro, meu próprio nome é, e este
que segue
Mal
começou a ladainha, a voz do narrador vai sobrepondo-se
por cima dela, numa polifonia um tanto dissonante. |
Voz do
Secretário/Coordenador.- E daí se originara, segundo
conclui a lenda gravada no cofre em que apareceu a Tábua Ocre de
Núbia, a dispersão das Línguas, e as três ordens de escrita
conhecidas pelos egípcios do Império Novo. A saber: a
hierática, empregada por eles próprios, a cuneiforme que usavam
assírios e babilónios; e mais aquela outra silábica em que
balbuciavam os gregos das ilhas e do ultramar.
Não aclara, porém, que irmã deve
ser responsabilizada por cada tipo de escrita ou família
linguística. E também não sabemos a qual delas pertence o
fragmento ali guardado. Mas isto é tudo quanto admitimos hoje em
dia como certo: que apareceu uma Tábua de argila Ocre na Núbia,
com umas inscrições desconhecidas, e rodeada por esta estranha
lenda. É a vez de a Ciência falar e que se calem as lendas. Os
meus distintos colegas terão, com certeza, muito a dizer acerca
das últimas hipóteses relativas ao seu significado.
O
discurso do orador deverá concluir mais ou menos ao
mesmo tempo que as explicações das três irmãs, que se
foram espraiando por todos e cada um dos signos gravados
nos seus fragmentos. Então uma voz insuspeita e tripla,
a dos Faraós ou Monarcas de cada uma delas, romperá o
silêncio, com um tom cavernoso, mas surpreendentemente
parecido àquele que empregaria um quadro médio ao fazer
uma pergunta insidiosa depois de receber uma explicação
que julgasse prolixa. |
Voz dos Faraós.-
Uma pergunta
. E se o primeiro signo já significava
Tudo, para que vou ter, então, que apreender eu o
resto?
Apagam-se,
de modo repentino, as luzes. No escuro aparece projectada
a grandes dimensões a imagem da Tábua que tínhamos
visto no começo, sobre a qual se ouve ainda,
sobrepondo-se a aplausos provenientes, quem sabe se dos
altifalantes ou do público, a voz do
Secretário/Coordenador, a anunciar: |
Voz do
Secretário/Coordenador.- É para mim uma honra/prazer
ceder este estrado/palestra, segundo o previsto no
Programa/folheto, ao meu distinto colega/discípulo, professor
doutor Alexis Konstantinos, da Universidade de Atenas/O Pireu