Contos do Outono

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A derradeira primavera

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Ali estava já a primavera com as suas cores próprias

    Ali estava já a primavera com as suas cores próprias... E os pássaros brincando, bulindo, namorando. E também a decrepitude do nada, o arrepio da soledade. A saudade da viagem inconclusa... O velho arregalando os olhos reflecte:
    -Possivelmente esta seja a minha derradeira primavera...
    Era pregunta ou resposta? Que se punha o velho com a bengala entre as mãos e a olhada extraviada no espaço. O derradeiro proprietário daquela extensão, que desde os tempos do medievo pertenceram à família, aflito com um pensamentto fixo. A morte, ele que muitas vezes arriscara generosamente a vida, por cousas sem importância umas, por nobres objectivos outras... E agora que tanta teima tinha com a morte. Desgostava daquilo!
    À memória do velho Fidalgo retornaram lembranças da sua mocidade. Naquela eira que agora ficava coberta de mato tinham-se celebrado tantos acontecimentos! Olhava parelhas bailando antigas valsas, ora moinheiras, depois tangos ao som do acordeão que ele próprio tocava e que agora aquela terrível artrose lho proibia. O velho Fidalgo sentado à sombra da velha pereira, mão sobre mão acima da bengala com a vista extraviada nas carvalheiras do fundo sangrava por dentro, via as malhas, os tascadeiros, os trabalhos do campo onde ele de jovem contemplara a beleza voluptuosa das raparigas que ali trabalharam. Representação cénica do mundo que ia esmorecendo polos recantos duma história que lhe não pertencia.
    -Já morreram quase todas... musitou.
    A antiga casa de pedra, o Paço como ele gostava de a denominar, encontra-se rodeada de muros ou de outros prédios que também pertenciam à propriedade dos Fidalgos... Desde que ele tem acordo ali jamais se falara nem do Norte nem do Sul nem do Leste... A parte de abaixo e a parte de cima... Assim era como se dizia, o vento vem de abaixo ou de arriba, e também de "Castro de Rei"... Isso quando vai nevar!
    Olhava em sonhos de acordado aquele miúdo que ele fora... Tal semelhava que transcorreram mil anos. Noutora houve no lugar tantos miúdos como pessoas adultas. Por que é que a ele lhe tinha correspondido viver naquele tempo? Um tempo tam apressado e que transforma tudo com uma rapidez de vertigem o hoje é o nada amanhã! Manhã é após... Ofícios que se extinguem no horizonte dum futuro hipotético.
    O velho Fidalgo já não pertence a este mundo, neste tempo. Não atinge ligar pensamentos e jeitos de viver dos de agora. Suas façanhas das que tanto ele se gabava, a ninguém já contava... Não há ouvidos que o aturem.
    Seguia com a olhada extraviada lá longe, percebia que a vida se lhe ia das mãos, entre os dedos, como as truitas aquelas que ia pescar ao ribeirinho do prado do Moinho. Tudo se ia, a vida, a estética do Paço... Agora começa a cobrir-se de mato todo, até nos telhados sai mofo. Tudo muda, que velocidade levam os acontecimentos! Ele ainda lembra quando nos seus anos moços, todas as crianças que visitavam o Paço falavam a nossa própria língua... Agora que cousas! Já começam até a falar inglês além do idioma da igreja. Essa língua de castigo dos antigos seminários. A ele isso dói-lhe, fere-o no coração. Um povo não pode morrer assim sem polo menos dizer NÃO!
    -Que é o que se passa nesta sociedade sem dignidade á que pertenço? Pergunta-se o velho. Sou eu um furtivo Quixote teimando pola defesa do ancestro? Não imagino uma árvore a renunciar à seiva que lhe oferecem suas próprias raízes... E sem embargo, percibo que nesta minha terra é que as cousas andam um bocadinho mudadas.
    Ele tem suas próprias regras éticas, quando concorda o seu duplo intelectual com as intenções ou acções da outra parte mais primária do seu ser ou duplo ordinário é que existe um bom comportamento... Quando as duas partes ou freqüências não sintonizam, algo vai mal.
    Espreitando naquela basta floresta que todo o invade sente que uma cuitelada de gume afiado lhe sega os aços. O coração bate mais forte e o sangue flui aos borbulhões... Toda a história da sua vida chega nítida apresentada num filme a branco e preto.
    Os carvalhos que estava a contemplar eram os que ele já vira ali plantados de miúdo, e seguramente os que contemplaram seus passados... Entre as paredes velhas do Paço tinham aninhado as andorinhas da sua vida... Um e outro ano vinham elas anunciando nova vida, alegravam a existência... Agora, quem sabe, o velho Fidalgo já tem dúvidas, seguramente seja o derradeiro ano em espreitar as evoluções das belas aves, aqueles pássaros aos que ele permitira numa ocasião fazer o ninho na cozinha em contra da opinião dos outros membros da família. Daquela era moço e tinha força para impor o seu critério. Hoje teme tudo, não tem qualquer autoridade, um simples roce de um miúdo correndo, um garabulho que se lhe entela entre as pernas pode ser causa de que termine com seus ossos no chão.
    O cavalo deteve-se no pátio, ele desde o chão, observava na linda rapariga magra montada no animal. Estendeu os braços e ela, fixando suas brancas mãos nos ombros do moço desceu polo seu corpo insinuando-lhe o sexo ao rapaz. Os dous com os pés no chão cara a cara, olhadas de namorados, com efeito, aquela imagem ficara gravada no cérebro do agora velhote, decrépito e triste. Contemplando as carvalheiras centenárias lembrava seu primeiro contacto físico com aquele seu amor impossível, eis um paraíso perdido e jamais achado, aquele amor proibido que jamais se lhe iria da memória. Mas também morrera já, quase tudo morrera na vida do velho Fidalgo. Nesta altura alegrava-se de não ter .filhos porque se assim fosse seguramente teriam morto. Os seus noventa e cinco anos pesam-lhe tanto que por vezes sente a história no seu próprio corpo. O passado atormenta-o, tiralhe a respiração, aflige-lhe o espírito. Pola tardinha baixa retira a seu quarto, ainda que dorme muito pouco, gosta de passar horas e horas sentado na velha cadeira de cerdeira com almofada de plumas de galinha. Na mesma cadeira na que agora ele tem estranhos pensamentos, fez a última reflexão, antes ali sentara seu pai e seu avô, e quem sabe quantos mais? Na velha biblioteca do Paço estão depositados os escritos do seu bisavô. Fora um homem que gostou de assentar por escrito os acontecimentos da família, do Paço e da bisbarra, até do país...
    Quarenta feixes de papéis escritos guardavam seu legado. Ele não os lera todos, mas ainda assim marcaram a sua vida os pensamentos do seu bisavô escrutados naqueIa quase ininteligível letra. O amor à terra, às cousas próprias, além da língua e cultura de seu povo, era uma tradição na sua família até chegarmos aos fins do século XX. Nesta altura da história sentia-se atraiçoado por algumas ramas da família onde já não se importava esse princípio guardado zelosamente desde que um herdeiro desta casa fora degolado a conseqüência de ter dado apoio moral e militar ao Mariscal... Mas já todos tinham morto, aqueles que se afastaram da consigna ou princípio familiar pereceram de jeito traumático, e no mesmo lugar, no Paço como se uma maldição os fosse aniquilando... O velho Fidalgo sempre dizia que as almas dos seus passados, atraídos e humilhados se vingaram daqueles seres arredados por vontade própria desta linha traçada polos filósofos da conduta... O que noutras partes do mundo seria uma atitude de inércia normal e de continuação das raízes dum povo, o próprio, converteram-se nesta terra maldita em heróica defesa realizada só por umas quantas famílias... 
    O Paço possui dous andares, catorze janelas principais, cinco alcovas matrimoniais, com as suas dependências secundárias... Uma sala central de vinte metros de longitude por dez de longo. No primeiro andar encontram-se as despensas, cozinha, tulha e no cabo a adega.
    Numa porta do interior já apenas se pode ler, entre as pegadas dos séculos, a legenda seguinte:

            Todos os amadores do nosso são benvindos à presente casa. És tu digno de tal honra?

    A moça viera passar ao Paço o fim de semana... Ela nascera na cidade, o velho Fidalgo tinha naquela altura seus mesmos anos. O pai da rapariga saíra do Paço de uma das muitas ramas que se difundiram polo mundo... Até no Brasil havia uma destas ramas.
    Pela tardinha baixa só a moça, ele e alguns membros do serviço interrompiam a calma absoluta no Paço. O piano emitia os sons de uma marcha, ela com seus frágeis e longos dedos dava-lhe a força suficiente às trécolas... Ele acarinhava seu cabelo com as duas mãos apoiando a frontal das pernas nas costas da intérprete. Na sala central os quadros dos antepassados contemplavam-nos indiferentes. Numa determinada altura da partitura ela incorporou-se e beijou-o apaixonadamente exclamando:
    -Meu amor... Tocar o piano produz-me desejos de ter-te dentro de mim...
    O moço colheu-a pola mão e em silêncio dirigiu-se à sua alcova... Uma cama de.ferro com quatro pés simulando quatro gatos arrodelados em posição de dormitar. Para o teito do quarto os quatro pés finalizavam em quatro pontas afiadas semelhando um mastro de bandeira... A moça líbida, possuída de excitação brincava histérica enquanto o rapaz colhido fortemente com as mãos à cabeceira da cama e para arriba, ficava assustado da violência da menina que finalizava os movimentos acima dele gritando:
    -Não, por favor, não...
    Num destes movimentos violentos saltou acima da cama uma e outra vez tal como uma trapezista na malha de botar, ele atemorizado incorporou-se variando de posição as pernas... Nesse momento ela tropeçou e foi parar com o seu magro pescoço à ponta afiada que semelhava o mastro, na cabeceira da cama... O sangue saiu aos borhulhões, um leve suspiro surdo foi o último sinal de vida da filha única duma das ramas da família...
    Agora o velho fidalgo no final dos seus dias todas as noites dialoga com aquela bela moça... Que terrível accidente!
    -Senhor, senhor, gritava à porta do quarto a criada.
    -Que queres? -ouviu-se uma voz grave e lenta.
    -Tem o pequeno almoço na mesa, senhor.
    -Vou...
    O velho estava incorporado com as costas acima do travesseiro ençurulhado. Lembrava a sua infância, já toda a sua existência se convertera num recordar estúpido e entristecedor. Aborrecia-o, mas não podia tirar da sua mente aqueles recordos, uns roiam-lhe o interior, outros serviam-lhe para ainda ter algo de esperança. A voz tépeda, amável e caridosa da sua mãe ressoa polos interiores do Paço nas noites, nas últimas noites do velho, que um dia fora um jovem herdeiro e apetecido polas mulheres contemporâneas. Dessa situação é que se tinha aproveitado. Mais dum coração morrera de tristura pola indiferença do velho Fidalgo...
    Muitas cousas destas figuravam no "Livro Sagrado da Família"... Era um grande volume de Folhas em branco onde cada geração ia anotando a história da família... Ele tinha dó porque o "Livro Sagrado" quase não o tinha acrescentado com algo digno de ser inserido para que os descendentes pudessem ler o que acontecera nesta altura da história.
    -Senhor, tem o pequeno almoço já frio!
    -Dá-lho ao cão... Não me apetece.
    -Senhor, tem que comer... -rosna a criada zangada.
    Polos quartos e passadiços ouve-se uma voz de miúdo gritando o nome do velhinho.
    -Senhor de Fidalgo... Senhor, onde é que está?
    Quando a voz já estava perto, ele disse:
    -Cá estou, rapazinho, cá.
    -Ó, senhor, encontrei umas letras que não compreendo bem. Quer vir comigo?
    -Onde é que estão essas letras, meu meninho?
    -Acima da porta que dá à nossa casa...
    -Bom -interrompe o velho-, essa era antes a porta principal, agora dá para a casa do caseiro... Não é preciso que vá, meu caro, lembro-as de cor:

                        "Os ancestros desta casa
                        não atrairás
                        porque então muito
                        pouco tempo viverás"

    -É por isso que a gente diz que está maldito este lugar?
    -Quem é o que diz isso? -zangou-se o velho.
    -Todos os que chegam ao lugar... Os que vêm da cidade não querem entrar cá ainda que lhes dêem açúcar com manteiga!
    -Olha, nessa mesinha há dinheiro, colhe três moedas, anda, por valente e não ter medo de bobagens...
    -Eu medo não tenho, diz meu pai que nada tenho a que temer. E que é o que são os ancestros?
    -Os ancestros são as cousas que nos ensinaram os nossos passados, rapaz, são as nossas raízes!
    -Quem escreveu essas letras, senhor Fidalgo?
    -Um homem que morreu cá nesta casa há muitos anos, mandou que as pugessem antes de que uns soldados lhe cortassem a cabeça, meu rapaz.
    -Que maus eram esses soldados, verdade senhor Fidalgo?
    -Certamente, meu amigo.
    O rapaz desapareceu da mesma maneira que chegou... Correndo polos quartos e passadiços do Paço solitário e escuro.
    Eram as quatro da madrugada, o vento batia forte na janela do quarto do velho Fidalgo, ele encostado à cabeceira da cama aguardava a borboleta, de asas frágeis e amarelas, sorriso limpo e magras carnes de jovem moça.
    A porta do quarto abriu-se de súpeto e ela entrou com um candeeiro na mão direita... toda de branco, translúzido vestido de seda natural.
    -Hoje chegas tarde, minha borboleta, borboleta do meu amor!
    -Meu caro, tarde? De que tempo é que tu falas? Por ventura numa eternidade existe a tardança?
    Ele riu, passou as mãos pola cara e incorporou-se uma miguinha.
    -Tu falas na eternidade, mas eu ainda tenho os pés neste mundo... Às vezes não acredito nestes nossos encontros, penso em que me estarei a pôr louco... O Paço está sem herdeiro e a única possibilidade é que venha o último Fidalgo jovem que há e que mora no Brasil. Mandei chamá-lo e sei-que disse que vinha para dentro de uns meses. Creio que não viverei para então.
    -Tu viverás eternamente no Paço como eu, meu bem. Ninguém poderá derrubar o nosso castelo de amor eterno!
    -Sim, minha borboleta. Lembras quando fazíamos amor, ou era em sonho?
    -Não, em sonhos não; tu é que não acreditas?
    -Sim, já sei. Todas as noites o fazíamos, tão real e brutal como naquela tarde desgraçada em que tu, minha borboleta, ficaste pendurada do teu lindo pescoço.
    Alguém batia na porta fortemente. O velho Fidalgo acordou muito incomodado.
    -Quem é?
    -Sou eu, senhor. Tem o pequeno almoço acima da mesa. São as dez horas.
    -Já vou.






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