Seguindo o caminho do vento

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O encontro em Nantes

 

A luz quente e perfumada do dia faziam daquela cidade

    A luz quente e perfumada do dia faziam daquela cidade, berço de Júlio Verne, um lugar apaixonante. O frescor do Rio Loire trazia à memória do Aveiro os deslocamentos à ponte do Minho em Lugo, na estrada de Santiago. No seu coraçom entravam raios de sol que davam luz. Uma certeza estranha, inesperada e nova, empurrava-lhe suavemente os passos por um parque perto dos embarcadeiros de Nantes. A pesar da sua situaçom limite, o Aveiro sentia o coração inundado de nom sabia que alvoroço inconcluso. O seu instinto de aventureiro forçado segredava-lhe teimosamente que afinal, e depois de nom poucos meses na França, sem recursos e com a polícia pisando-lhe os calcanhos, encontraria ajuda de súpeto. Andara várias cidades francesas, contactara com alguns emigrantes galegos que fugiam dele como do demo... Os francos termiraram-se-lhe e já havia alguns dias que ao seu estômago nem chegava mais que fruta roubada nas grandes tendas... Ao passar por diante de uma taberna percebeu, pola transparència da janela, vários marineiros que riam e tomavam golos de cerveja sem parar... A curiosidade do Ricardo fixo que pegara o rosto à vidraça... O nariz machucado contra o vidro da janela dava-lhe frescor naquela manhã calorosa de um mês de verão.
    Um estranho impulso saído de um centro nervoso lançou-o à desesperada, adentrou-se na taberna e ainda nom tinha descido dous degraus de escada -uma pequena escada partia da porta de entrada para taberna um tanto subterrânea -em galego perguntou:
    -Alguém do meu país?
    Um silêncio espectante observou-se de imediato. Os marinheiros olhavam para o Ricardo. Quiçá acharam nele um chisco de loucura! Depois de vários segundos, alá no fundo alguém alçou a mão:
    -Vem cá...
    -Você de onde é? -perguntou-lhe Aveiro ao chegar perto do homem.
    -Sou do Porto. E você?
    Aveiro sentiu-se contrariado... Nom esperava, nom calculara o imprevisto. O português era um homem de uns quarenta anos, cabelo branco e estatura gigantesca.
    -Eu... Verá, pensei que vocè seria galego... Nom calculava que...
    -Galego! No meu barco há três...
    O espírito decaído e sem esperança do Aveiro alviscou com certo alívio a mão estendida do estranho. Ricardo conversava. Contava-lhe as peripécias que lhe tinham acontecido, sem trabalho nem dinheiro... O português lembrou que nessas circunstâncias tãm dramáticas tinha-se ele encontrado muitas vezes. Apresentou-se:
    -Chamo-me Raul...
    Com o longo braço, fez sinal ao camareiro para que servira a Ricardo uma cerveja e um prato de polvo com alho.
    -E como se chamam os galegos do barco?
    -O mais amigo meu, Luís; os outros António e Manuel...
    Depois de levar-se algo sólido o Aveiro para o estômago, Raul prometeu apresentar-lhe ao Luís:
    -É um homem jovem, assim como você.
    O Ricardo metia-se para dentro comida, tratando de encher um saco demasiado valeiro, em que golos de cerveja facilitavam o lavor. Remordia-lhe ter-se mostrado tãm desconsiderado ao descobrir a nacionalidade do Raul. Como se só os galegos tiveram a esclusiva do humanitarismo; pois até o momento nem se demonstrou!
    O murmúrio constante dos ocupantes da taberna -ouvia-se falar em muitos idiomas- impedia perceber com nitidez as palavras da conversa. O português punha a mão aberta detrás da orelha para melhorar a audiçom. Numa olhada para a janela o Raul sorriu e dixo estendendo o braço direito:
    -Aí vem o Luís...
    O Ricardo assomou à janela , que lhe dava justo à altura dos olhos e alviscou um indivíduo com uma carapuça preta caminhando lentamente. De longe a face nom se divisava com claridade; podia ser qualquer galego. Aveiro desistiu e esperou a que o Luís assomara pola breve escada. O murmúrio seguia, o português dei um golo à jarra de cerveja até que se lhe viu o fundo! No entanto Aveiro olhou novamente para a escada, observou fixamente e perguntou-se de que conheceria ele ao Luís? O Raul acenou-lhe, Luís aproximou sorrindo e ficou estupefacto... O cérebro do Ricardo retrocedeu entom uns quantos anos atrás. ¡Identificou-o! Dava saltos de alegria, expressando-a um chisco exaltado... Depois de tudo, foram dias de muita penúria.
    -Mas tu! -exclamou Luís.
    Aveiro abriu os braços e os dous antigos companheiros de pousada, na rua das Hortas de Lugo, fundirom-se num abraço. Ricardo até chorou emocionado... O português fazia cruzes incrédulo... Contou ao Luís como dera com seu amigo, apenas uns minutos antes.
    O convívio de ambos os dous na rua Hortas fôra breve,mas ainda ficavam anedotas das que falar:
    -E que foi daquela rapariga?
    Ricardo evitou a resposta e começou por explicar primeiro a sua precária situaçom.
    -Tranquilo, Ricardo, no nosso barco podes-te hospedar... Passaremos uns dias em Nantes, tenhem que nos reparar algumas cousas.
    -Que bandeira tem o barco?
    -Angolana...
    -Som certas todas essas histórias que contam dos navios angolanos, armas soviética, cubanas?
    -A imprensa capitalista tema que toca tema que emporca de merda! -dixo o Luís avultando-se-lhe as veias do pescoço.
    -Só transportades mercadoria oficial?
    -Transportamos carregamentos de madeiras exóticas da África a todas as partes do mundo...
    A conversaçom foi fescorrindo destendida, calmados os ânimos do Luís.


    Passeavam por uma zona de arvoredo; uma suave e perfumada brisa acaricia-lhes com delicadeza maternal a cara. O barco impressionara muito a Ricardo, ainda lhe parecia mentira, nom acreditava... Nom seria produto de algum alucinógeno? Contava toda a história do encadeamento do director da Galeria, também referente à sua situaçom jurídica na actualidade. Quando a conversação adquiriu tonos de amizade, Luís contou que os tripulantes do barco forma escolhidos por valores ideológicos. Todos crêem, como meta superior, na elevaçom da classe operária à direcçom da pátria libertada:
    -Por vezes, levamos carregamentos de armas para entregar a movimentos de libertaçom...
    O Aveiro pasmou, entusiasmado sentiu desejos de conhecer; quiçá levado mais por um afãm de jornalista frustrado, que nos trabalhos para a Galeria desenrolara essa afeiçom, que por convencimento ideológico. Pola sua cabeça passavam ideias de colaborar naquelas missões que lhe descrevia seu amigo. Encontrava-se numa situaçom tãm agoviada que qualquer cousa seria menos dura do que a fome. Luís sentia certa amizade por ele. Estava desejoso de lhe ajudar. Foi quando decidiu apresentá-lo ao capitão. Um angolano, preto, de uns quarenta anos, os pretos enganam!
    -Para ser enrolado é preciso saber certas teorias de Marx e Lenine. Sentir identificaçom com a revoluçom angolana! -informava-lhe Luís.
    -Tu és comunista?
    -Sou.
    A firme resposta deixou pensativo ao Aveiro. Emudeceu por uns instantes. Tomava agora cerveja em "Le Marinier" -um bar frequenatado por marinheiros.
    Ricardo sentia dúvidas de aderir ao comunismo. Ele, que sempre se considerou um progressista, mas tanto como comunista? Sabia-se um patriota galego, isso sim. Um simpatizante da soberania nacional se cabe, mas comunista? Nom se podia definir ideologicamente naqueles momentos... Tampouco se encontrava em situação de desprezar a oportunidade. A fim, essa doutrina animava internacionalmente aos movimentos nacionalistas de librtaçom. Portanto, ali estava o sítio de quem tiver como bandeira a defesa da justiça e da dignidade humana e a soberania dos povos. Intentava convencer-se a si próprio. Almoçaram os dous amigos num restaurante do centro de Nantes. Luís puso-se de roupa nova e Aveiro asseara também um tanto. Para a noite estava previsto o encontro com Agostinho, o capitão. Pola meia tarde o Luís ausentou-se para falar primeiro do assunto com o chefe de máquinas se era possível adiantar a entrevista com Agostinho. Entretanto, numa cafetaria periférica Ricardo tomava um conhaque sentado a uma mesa desde a que se podia ver perfeitamente a rua, ao fundo, e num pequeno jardim, jogavam umas crianças despreocupadas polo que lhes rodeava. Os raios do sol eram agora menos severos... Ao longe soavam graves e chorosas as buzinas dos barcos que partiam dos peirãos na zona portuária de Nantes. Ante a tardança do interlocutor, Aveiro começou a sentir-se inquieto... Folheou num livro que formava parte da sua escassa bagagem... Aqueles últimos dias dormira de banco em banco polas ruas ajardinadas da cidade. Nom isento de sobressaltos e preocupações para nom ser detido pola polícia local.
    Aveiro lembrava com saudade cada detalhe da sua criança em Vilavelha. Àquela hora da tarde, os pôr-de-sol tornavam-se excepcionais, maravilhosos... Os alvoroços dos nenos ouviam-se de aldeia em aldeia, transportadas as vozes infantis polo suave vento, semelhavam concertos celestiais, harmoniosos e sublimes; os ladridos dos caões alegravam aquelas tardes baixas que já ficavam para sempre longe!
    -Mas que sucede? -inquiriu Luís ao pé da mesa ante o lamentável estado do Aveiro.
    -Nada...
    Restou importância ao sentimentalismo que o embargara... E interessou-se polo que dixeram no barco.
    Luís informou que aquela noite poderia dormir no seu camarote:
    -Amanhã falará-nos o capitão...
    -Estou-che muito agradecido.
    -No próximo porto entregaremos um carregamento de armas. Seguramente Agostinho está pensando em ti para realizar a missom...
    Agora o Aveiro duvidava se o Luís comentava aquilo para ir mentalizando-o ou realmente nom sabia mais?
    -Onde será a entrega?
    -Descarregaremos o resto da madeira em Vigo...
    O Ricardo alçou a voz indignado. Nom se podiam aproveitar dele daquela maneira tãm desumana. Uma cousa é colaborar e outra bem diferente seria expor a própria vida! O Luís tranquiliza nele. Um prolongado silêncio interpuxo-se. Depois o Aveiro interessou-se polo volume do material.
    -Som umas vinte metralhadoras, cinco lança-torpedos e cem caixas de cartuchos e algumas armas curtas... A entrega está prevista fazê-la a uma organizaçom, nom conheço por razões de segurança, no monte Arneiro, baptizado assim ocasionalmente.
    -Isso significaria meter-me na boca do lobo!
    -Agostinho perguntou-se me conhecias bem a zona... Também se tinhas permisso de conduzir. Tem-lo?
    -Tenho, mas a zona nom conheço mais do que a poda conhecer algum galego!
    -Bem. Sairias do porto de Vigo, com um carro todo-terreno alugado, até o lugar indicado. Ali terias um contrassinal. Isto fai-se de noite, e se por algum motivo te intercepetam terias que dizer que as armas procedem da França por via terrestre... Sempre afirmando desconhecer ao que as entregou.
    Sem dúvida o Luís sabia-se bem a liçom. A Ricardo rondava-lhe uma pregunta:
    -Tu fizes-te alguma entrega?
    -Sim. Uma vez em Nicarágua, mas ali foi uma entrega muito grande. Um camiom carregado até ao cume! Era só muniçom...


    À noite apresentarom-no à tripulaçom. Pola manhã cedo o capitão comunicou-lhes, depois de falar com o Luís, que o Aveiro era membro do navio "Paulo Figueira". Faria a entrega na Galiza, explicou com detalhe... No dia seguinte zarpariãm com rumo ao porto de Vigo, os arranjos terminaram-nos antes do previsto.
    -Grave o mapa na cabeça -indicou o capitão-. No lugar marcado em vermelho... É o monte baptizado com o nome Arneiro. Às doze da noite, no cruzamento dos caminhos assinalados, está um tal Natxo Uzua... Com um foco aceso dará três aperturas de luz lentamente, logo um parpadeio cada meio minuto justo, e assim até dez, indicando chegado o momento. Você fará o mesmo respondendo...
    Ricardo tomou apontamentos num papel e com ar grave fez numerosas perguntas que o capitão foi esclarecendo.
    Aveiro até a hora de zarpar mostrou-se inquieto,nervoso, aflito... Perguntava, falava com a voz trémula e apagada. Nunca fizera uma travessia tãm longa em barco.


    O mar estava em calma, a viagem transcorria com normalidade; mas ainda assim o Ricardo fazia numerosas excursões aos serviços! O chefe de máquinas informou sobre a possibilidade do corrimento da madeira, já que as adegas nom iam mais de mediadas... Um contratempo que fizo retrasar a chegada; navegava-se devagar... Ricardo inspeccionava constantemene as zonas vulneráveis, temeroso de uma desgraça. Por primeira vez começou a falar em termos marinheiros. Ao princípio confundia proa com popa, estribordo com bombordo. Às quarenta horas de travessia erguera-se uma muralhada que batia no estribordo com certa força.


    O 24 de Julho, às sete da manhã chegava o barco angolano "Paulo Figueira" ao porto de Vigo. Desde esse momento Ricardo preparava as anotações no camarote do Luís. O 25 pola noite realizaria-se a entrega precisa. A polícia andaria ocupada nas escoltas das autoridades que se deslocariam a Compostela e também em reprimir os "saltos" que estavam organizados para a noite no centro da cidade se, como estava previsto, a manifestaçom era atacada polos agentes da "ordem".
    -Nom tens fome? -perguntou Luís a seu amigo.
    -É que este horrível cheiro que desprende a comida...
    -Um barco não é um hotel!
    -Já...
    O Ricardo removia no prato com o garfo, a simples vista pareciam feijões, mas bem distintos! As comidas anteriores nom as achara tãm desaboridas... De onde sairia o cozinheiro? -perguntava o Aveiro.
    Ao cair a noite o Luís situou um carro, alugado, numa rua perto do peirão. Um "Land-Rover" azul escuro. As caixas com o material já estavam listas! Ricardo memorizava os detalhes, o capitão conversava afável e seguro do novo camarada...
-A missão será exitosa! -animava Agostinho.


    No 25 luzia o sol em Vigo esplendidamente; pola rádio emitiam-se notícias de graves incidentes ocorridos na manifestaçom dos nacionalistas galegos em Santiago... A inquietaçom apoderava-se do Aveiro.
    -Tranquilo! -animava o Luís. Quanto mais ruído haja em Santiago melhor!
    -Às doze da noite?
    -Por que nom?
    Às dez da noite situava o carro Luís a poucos metros do barco... Num momento de pouco trânsito de gente pola zona carregaram as caixas, momento tenso e que oferecia certamente perigo.
    -Com naturalidade... -ordenava o capitão.
    Fazia poucos dias apresaram um barco angolano em Noruega acusado de contrabando de armas, cumpria actuar com sigilo! Agostinho dava ordens desde o interior do navio... Ricardo guardava o plano das estradas. Sem falar com ninguém, às dez e trinta minutos conectava a chave do contacto e punha em marcha o carro. Os tripulantes do "Paulo Figueira" recolheram para o comedor. O capitão retirou ao camarote e deixou ordem de ser avisado quando regressara o Ricardo. Detrás dele forom os demais. Só ficaram no comedor Raul, o português, e mais Luís. Para os restantes o problema já era alheio; Luís dava passeios polo comedor. O português fumava um charuto apoiado na porta que comunicava com a cozinha, entanto Aveiro ia guiando o Land-Rover polas poeirentas estradas secundárias de terra dentro da comarca viguesa.
    -Se o atrapam está perdido -cavila Luís.
    Entre passeio e copo de vinho, o tempo ia transcorrendo devagar. Luís olhava tantas vezes para o relógio que lhe parecia que as agulhas nom se moviam... Comprova com o ouvido o seu funcionamento e logo empreende outro passeio!


    Às duas da madrugada entrou o capitão no comedor a perguntar se regressara o Ricardo.
    -Ainda não -dixo o português.
    Luís calou e seguiu passeando no curto espaço. Teriãm que dar as quatro horas da madrugada as agulhas do relógio para que Ricardo Aveiro assomara polo barco:
    -Como foi? -apressurou-se Agostinho.
    Ricardo sorriu e guardou uns momentos de silêncio. O que era um bom sinal -cavilou Luís. Ao menos ele regressara!
    -Como tarda-che tanto? -perguntou Luís.
    -Diz algo... -zangou-se o português.
    -Confundim-me de caminho e fum dar o outro cruze, a uns dous quilómetros do lugar previsto...
    -Fises-te a entrega? -interrompeu Agostinho.
    -Fixem. O Natxo estava acompanhado por três indivíduos.
    -Amanhã zarpamos para Angola -informou Agostinho. Hoje convido-vos a um golo de Madeira! O carregamento "oficial" e "oficioso" já fôra desalojado do navio. O capitão ausentou-se uns instantes e logo apareceu com várias garrafinhas... Os rostos rezumavam satisfaçom. Atrás ficavam os perigos. Em Luanda aguardava-lhes outro carregamento de madeiras exóticas que levariãm logo a Lisboa.
    O Ricardo sentia angústia, saudade. Ignorava se a situaçom poderia normalizar-se algum dia. Mas as circunstâncias eram aquelas e havia que aceitá-las.


    O 26 de Julho, às duas da tarde, zarpava o "Paulo Figueira" do porto de Vigo. E pouco a pouco a costa galega vai ficando atrás. À memória do Ricardo chegam confusas imagens misturadas de recordos difusos... Vozes elevadas e misteriosas remacham na sua recepçom auditiva. Apodera-se dele um estado de inconsciência progressivo provocado por uma indecisom... À medida que o vento adquire mais violência, a muralhada fai que o barco baile a um compasso infernal.
    Uma gigantesca onda aproximou-se acompanhada de um destelhante relâmpago. O barco elevou-se de súpeto uns sete metros e deu um giro de noventa graus... A água cobriu a superfície de coberta... Ouvirom-se gritos e estalos do navio por todas as partes...


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