Seguindo o caminho do vento

Páxina Anterior

O Seminário

Páxina Seguinte

Um domingo pola tarde baixa daquele dia chuvoso e desapacível

    Um domingo pola tarde baixa daquele dia chuvoso e desapacível, Ricardo Aveiro saiu da sua aldeia, com bastante antelaçom ao horário previsto, em direcçom à paragem do autocarro de linha na estrada geral.
    O forte vento existente produzia uma gistra sumamente desagradável que ia empapando as pernas do transeunte solitário das corredoiras pola que corriam cachões de água.
    Já pola Arroteia, um caminho fundo e próximo à estrada, cheio de lama, o parachuvas que por vezes era desviado polo vento, sustinha-o com a mão direita fortemente. Aveiro sorteava as poças de pedra em pedra fazendo equilíbrios. Na mão esquerda levava uma bolsa com alguns livros e alimentos.
    Quando se situou no lugar da paragem do autocarro a chuva amainou um tanto. Ricardo colocava os fundos das calças e recudia as partes mais molhadas. Nuns instantes detivo-se um carro vermelho, Dodge-Dar. Um indivíduo desde dentro fazia-lhes sinais convidando-o a subir. Ricardo recolheu do chão a bolsa, fechou o parachuvas e introduziu-se no luxuoso veículo.
    -Chove, eh!
    -Chove -dixo o Ricardo com voz humilde e entrecortada.
    Pola rádio do carro falava uma voz feminina sobre a aguardente de Portomarim. Era uma interviu ao alcaide da vila e perguntava-lhe em espanhol:
    -Você que diria, "la aguardiente" ou "el aguardiente"?
    O conductor do carro, com ares de pessoa culta reagiu com violência à torpeza exibida pola locutora da rádio:
    -Mas será analfabeta! Que país...
    Depois fixo-se o silêncio por uns momentos. Seguia chovendo com força. Já iam atravessando a vila de Sárria:
    -Vas a Lugo, nom?
    -Vou...
    -Estudas?
    -Estudo...
    -No Seminário?
    -Sim.
    O condutor alargou o braço e trocou o sintonizador por várias freqüências. Nom gostou de nenhuma e deu meia volta ao interruptor.
    -Só fam ruído -exclamou o indivíduo.
    -Sim.
    A Ricardo entrou-lhe o sono de uma maneira irresistível. Entre adormecido e pensativo vinham-lhe à mente recordos e desejos. Contava mentalmente, e de maneira aproximada saíam-lhe já varios anos de estar namorado da Colensa.
    Em várias ocasiões tinham incluso emulado aos maiores nos jogos de criança... Ela fazia de esposa e ele de marido!
    -Dormes? -inquiriu o condutor do carro.
    -Nom... Bom, um pouco!
    O sujeito estoirou a rir e dixo:
    -Pensei que só sabias dizer afirmações!
    Ricardo limitou-se a sorrir e olhou ao senhor do carro.
    Ao chegarem a Lugo já deixara de chover. Entrarom no centro da cidade pola Av. de Ramom Ferreiro. Diante do Paço das Belas Artes desceu o Aveiro do carro. Deu-lhe afectuosamente as graças ao condutor. Ele sorrindo dixo...
    -Estuda muito, parlanchim!


    O Ricardo em todas as ocasiões que o intentara sempre desistira de se lhe declarar à Colensa. A vida seguia desenvolvendo-se quotidiana e monótona. As nuvens estavam pretas e cheias de sinais preocupantes. Formavam-se constantemete imagens. Faziam-se e desfaziam-se gigantescas cabeças no firmamento que figuravam homens, animais, aves, monstros... As luzes dos relâmpagos a cada pouco eram mais visíveis. A sonoridade dos tronos traziam lembranças dos foguetes da festa da aldeia a Ricardo Aveiro.
    Fazia um repasso lento e minucioso da sua curta existência. A festa anual da aldeia... Sentia como amargura e temor de que aqueles felizes instantes vividos nos anos passados deixaram algum dia de existir, como deixaram de existir tantas outras tradições camponesas. A "malha", os "fiadeiros"! As festas da sua casa de Vilavelha dadas polos pais ao final das colheitas. O entrudo cheio de cores vistosas e divertidos bailes que se prolongavam até ao longo da noite.
    Como uma premoniçom enviada polos instintos celestiais, sentia necessidade de recriar-se no recordo. Temia que o seu povo perdera as essências e as raízes.
    Nom entendia de impérios nem de políticas agressivas... Mas dava-se conta de que uma longa e pesada laje esmagava a consciência do seu país.
    -Uma criança singular!
    Agora Aveiro mora num terceiro andar do número 5 de uma rua que dá à ladeira sul da catedral de Lugo. Uma rua estreira e bela própria de uma cidade milenária como esta. O chão é de pedra... As casas som ao máximo de quatro andares. Onde mora o Aveiro é nova e de luxuosas escadas. Mármores nas paredes interiores da entrada e também nos passadiços dos andares que comunicam aos apartamentos. As portas da morada som de madeira cor cerdeira com verniz transparente. As mobílias estãm em concordância com a categoria da vivenda. No quarto de estudo do Aveiro, que está à esquerda da entrada, há um armário cheio de livros; uma mesa de carvalho torneada sobre a que descansam as mãos de Ricardo acima de um livro de filosofia. As cadeiras fam jogo com armário e a mesa, forradas de um pano de cor vermelha.
    Lembrava agora os esquisitos cuidados da sua irmã Maria, dez anos mais velha, para com ele os anos de criança. O irmão, Manel, trabalhava com o pai nas rudezas do campo.
    Vilavelha é uma maravilha no verão. As carvalheiras debaixo da casa dos Aveiro, com um leve desnível, davam uma cor verde forte à paisagem que impressionava muito aos visitantes, que nos últimos anos eram bastantes. As devesas mais imensas estavam ao Leste. Ao Norte grandes soutos com um verde menos brilhante e por cima dos soutos erguia-se ao longe o couto da Serra das Andorinhas.
    Ao Sul alguns prados separavam Vilavelha de Forcados. Para lá ia algumas vezes cuidar as vacas o Ricardo. Ao Oeste da aldeia misturavam-se carvalheiras com soutos, alguma avidueira por meio... E no horizonte o Castro; a montanha e as uzeiras e tojeiras que repovoam o monte.
    Ricardo Aveiro viera-se a Lugo a estudar para abade no Seminário. Morava na casa de uns familiares e tinha graves problemas de consciência. No Seminário a rigidez era aplastante. Todas essas cousas da entrega total, o sexo que se torna sujo. A proibiçom a falar idioma próprio e a reacçom positiva da sua família a tudo isto desconcertavam-no.
    Lembrava quando Colensa, que é a menina da casa, visitava Vilavelha acompanhada dos pais a passar aló parte do verão. Desde entom tinha um segredo que ninguém sabia. Amava-a com paixom raivosa. Já desde neno via nos seus olhos o fruto proibido e adorado. Colensa tinha três anos menos do que ele. Desde o alto da muralha de pedra observava-a, de incógnito, todos os dias passar para o colégio religioso onde ela estudava. As suas pernas longas e fracas, cabelo escuro e liso, á deriva polos ombros fam-lhe arrastrar-se polas corredoiras da paixom ao Aveiro.
    Amá-la! É a chamada que lhe fez o coraçom. Beijar aquela fronte, aqueles lábios abundantes e bonitos! Encarnados como as cerejas e atraentes como o ímão. Mas à vez o Seminário, os estudos da teologia impediam-lhe até o poder sonhar sem se considerar um pecador. A moralidade, a alma, o espírito do Ricardo debatia-se num constante combate a morte com a "rectitude" dum futuro predicador e os seus desejos reais, sãos e cheios de sinceridade.
    Nos tempos livres escrevia poesia para a amada que logo rompia por nom se atrever a contar os desvelos nos que se desfazia o seu ser.
    No entanto alguém abriu a porta da entrada ao apartamento. Era Colensa com os livros debaixo do braço que dá a boa tarde com voz trémula:
    -Parece que vens sufocada?
    -É que está o elevador fora de serviço... E como che foi pola "fábrica" de abades?
    Um silêncio momentâneo observou-se no quarto de estudo.
    -Nom muito bem. O de filosofia expulsou-me... É grave!
    Ricardo ergueu-se da cadeira e deu uns passeios curtos polo quarto. Ela pousou os livros em cima da mesa e com suavidade e ternura foi-se achegando a ele. Ela acariciava-lhe os joelhos e mirava-lhe profundamente aos olhos. Foi entom que aclarou erguendo-se:
    -Eu quero que saibas que che acaricio pola desdita de te terem expulsado. Nom acreditas?
    -Pois claro, meu amor... Quero dizer, Colensa!
    Ela com uma forte gargalhada voltou ao sofá como buscando as mãos e miradas do Aveiro.
    Na casa havia um silêncio total. Só se ouvia no quarto de estudo os palpitares de dous corações jovens. Sedentos um do outro, desejosos de experimentar o amor; de entregar-se sem preconceitos nem travas dogmáticas.
    -Tenho-che que informar -diz Ricardo- da minha adoraçom por ti... Nom sei como dizer!
    Ela sorriu e nom se amostrou demasiado surpreendida.
    Do final do apartamento veio um ruído de se ter aberto depressa uma porta. De súpeto incorporarom-se os dous:
    -Pensei que estavas só? -dixo ela.
    Ele encolheu os ombros foi-se assomando lentamente à porta do quarto. O apartamento tinha dous passadiços longos que partem da entrada. Um defronte à porta exterior e outro à esquerda, depois de ter passado o gabinete de estudo. Ao final do passadiço longo, duas habitações grandes. Ao final do outro, duas mais, e antes, a cozinha.
    -Ah! É você?
    -Sou. Botei uma sesta impressionante -diz rindo o senhor Paraná.
    O senhor Paraná é o pai da Colensa. Todos lhe chamam assim por ter estado de novo na Argentina. Som famosas, para os conhecidos da família, as grandes histórias que conta da sua estadia nesse país.
    Depois de falar do tempo e de cómo iam os estudos, o pai da Colensa ausentou-se prometendo voltar para o jantar. A tormenta já se fora e caía agora uma forte enxurrada.
    -E como vamos arranjar o da tua expulsom? -perguntou Colensa.
    Aveiro sorriu socarrom e dixo:
    -Era só para te dar pena e assim favorecer a minha declaraçom.
    Ela montou em cólera. Chamou de tudo ao Aveiro. Nom concordava que a gente tiver que botar mão de subtilezas para obter as cousas. Ele tentou acalmá.la com todas as desculpas que encontrava no seu vocabulário dogmático e clerical.
    -Já sei -dixo ela franzindo a testa -que os abades sodes capazes de fazer crer no que vós nom acreditades!
    A ela ao falar de abade entrou-lhe de repente certa preocupaçom. Como? Beijando a um rapaz que iria para "predicador"! Aquela ideia atormentava-a, dava-lhe muitas voltas na cabeça. Mas por outra parte sentia um atraimento feroz, bestial e incontrolável polo Ricardo. Nom podia seguir assim... Mas à vez uma só mirada penetrante dele deixava-a hipnotizada, paralisada!
    A tudo isto a mãe dela veio de fora; entrou e perguntou ante o silêncio que havia no quarto:
    -Vocês em que pensam?
    O Ricardo ergueu-se da cadeira na que estava pensativo e imerso nas suas cavilações. Olhou com detenimento à mãe de Colensa, senhora Andreia, e dixo :
    -Eu... Amanhã tenho um exame de filosofia.
    -Pois a estudar! E tu, Colensa, nom estudas também?
    -Sim. Estou olhando o que tenho para amanhã.
    Colensa puxo-se a revistar livros que trazia; ainda os tinha en cima da mesa do quarto de estudo.
    Sem mais, a senhora Andreia foi direira à cozinha. Já era hora de começar a preparar o jantar.
    Na rua dos Cravos -assim se chama onde moram- no número 5 janta-se cedo; devido à doença do senhor Paraná. As comidas pouco salgadas faziam-se, por vezes, insuportáveis para Ricardo. Mas pouco a pouco ia-se afazendo.
    Colensa recolheu is livros e foi-se para a sua aula de estudo. O Aveiro ficou longo tempo cavilando no sucedido...
    Nom podia acreditar. Uma grande satisfaçom interior percorria-lhe as veias. O caminho seria longo e com muitos obstáculos, mas o mais difícil ficava resoluto: a declaraçom mútua de amor era um facto agradável e irreversível à vez. O estudo da filosofia, a teologia e as restantes matérias do "seminário" já nom eram tãm nefastas e insuportáveis. A noite viera-se acima e a luz artificial alumiava o habitáculo. Mas no coraçom de Aveiro via-se melhor que a pleno dia...
    Tinha ganas de que chegara a manhã para contar a boa nova aos companheiros. Era um grupo de cinco estudantes do seminário que formavam um clãm secreto de rebeldia dentro do liceu: "Os cinco de Lucus". Mais que algo para conspirar tratava-se de um núcleo de amigos para se contar as penalidades da repressom atroz. O Ricardo tinha-lhes falado do seu amor! Todos tinham um amor... Afonso Almeida esrava enamorado da livreira da Rua Nova. José Ribeira saía aos domingos às escondidas com uma empregada, uma rapariga magra e linda, de Monforte de Lemos. O Pedro Rivelo gostava da quiosqueira do Campo da Feira. Toninho Regueiro nom tinha, de momento, amor que lhe tirara o sono pola noite.
    O Ricardo ouvia à mãe da Colensa dixer que viria jantar um amigo da casa. O Delegado da Fazenda. A senhora Andreia pedia-lhe à filha que fira pondo os talheres e demais serviços no comedor. Ela protestava:
    -Amanhã tenho um exame de física. Nom podo!
    O Aveiro, que nom estava estudando, ergueu-se e dixo com suma amabilidade à senhora Andreira:
    -Permita-me que eu ponha a mesa, senhora.
    A mãe da Colensa acreditava o jeitoso que era o Ricardo. Incluso nun instante de sinceridade exclamou:
    -Que lástima de rapaz, desperdiçar-se estudando para "corvo preto"!
    Nom era lá muito católica a senhora Andreia. Tampouco o senhor Paraná aceitava os ditados da Santa Sé.
    Já logo do jantar o amigo da delegaçom da Fazenda e os pais da Colensa tomavam café numha das habitações que dá à muralha, convertida em sala de TV. O Aveiro e a Colensa "estudam" no quarto da entrada. Botaram longo tempo em silêncio fiando para os olhos, logo ele incorporou-se e colocou-se à sua beira, com as mãos acariciando-lhe a cabeça. Ela estava sentada na cadeira. De súpeto deu um brinco e passou-he as mãos por detrás do pescoço. Ele, excitado, colheu-a pola cinta e debruçou-a em cima da mesa. A porta do quarto, entreaberta, deixava passar os murmúrios dos pais dela e do convidado.
    A mesa ia-se movendo até à parede... Ele estava indeciso. Ohava para a porta com desconfiança: decidiu-se a lhe tirar os botões da camida.
    De súpeto ouviu-se ao amigo da delegaçom da Fazenda que se despedia dos pais na outra sala. O Delegado teria que passar por diante do quarto de estudo para sair à rua. Ela pegou um salto e abotoando as prendas descolou-se para junto da porta e fechou-a. Ele passava a mão polo cabelo num intento de se pôr visível. Logo Colensa subiu as calças apressurada, sentarom-se a fingir estudar... O amigo da Delegaçom interessou-se por eles:
    -Que sigam vocês assim... -dixo abrindo a porta. Chegarãm longe!
    Com um leve sorriso o Ricardo moveu os ombros e nom respondeu.
    O senhor Paraná dixo das excelências do estudante no Seminário, também da sua formidável força física no desporto.
    Alguém fechou de novo a porta, desde dentro ouvia-se aos pais da Colensa e ao convidado falar das cousas materiais... negócios, investimentos...
    O Ricardo olhava para a Colensa e sorria. Ela assentia e punha cara de contrariedade.

Páxina Anterior

Ir ao índice de Páxinas

Páxina Seguinte


logoDeputación logoBVG © 2006 Biblioteca Virtual Galega