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SOBRE O SEU TEATRO
É verdadeiramente um exemplo de
vocaçom servida pola laboriosidade, a que representa a colecçom
dos cadernos da escola dramática galega publicados até a data,
e que agora se nos apresentam nos seus primeiros números
formando um conjunto compacto que nos permite apreciar
panoramicamente o esforço realizado. Desde ediçons e reediçons
populares de textos clássicos até as primícias de autores
moços de grandes esperanças, desde informes esclarecedores a
propósito de questons de técnica teatral até pequenos estudos
monográficos sobre obras dramáticas concretas, os Cadernos
oferecem ao estudioso do teatro galego, ao amante da arte
dramática, ao erudito e ao afeiçoado, materiais de conhecimento
que suponhem umha importante contribuiçom ao enriquecimento da
nossa cultura teatral e à educaçom popular neste aspecto
artístico, de transcendência social tam relevante. Nom podia eu
negar-me a pronunciar nesta ocasiom umhas palavras, como
contribuiçom entusiasta, ainda que modesta, à celebraçom de um
trabalho que merece a gratitude de todos os galegos. Podo
considerar-me como um colaborador a distáncia desta obra, pois
se bem nom se me pode estimar como home de teatro, escrevim
algumhas peças e pronunciei algumhas conferências que me
relacionam com estas actividades, e algumha amostra da minha
teima como autor e como crítico foi benevolamente incorporada à
série dos cadernos. Mesmo, dentro de reduzidos círculos
escolares, sendo professor em diversos centros, privados ou
públicos, de distintas cidades galegas, tenho montado alguns
espectáculos dramáticos, em galego, castelhano, francês e
latim, segundo as circunstáncias o aconselhavam; e ainda que
tais ensaios se podem considerar puramente domésticos, som
testemunho, a maior abundamento, do meu amor ao teatro, que me
dá, se nom autoridade, pretexto para comparecer hoje aqui,
requerido pola cordialidade do director da publicaçom, a quem
felicito pola sua dedicaçom, assi como a todos os que com
diversas funçons estám integrados na Escola Dramática Galega,
que nalgumha ocasiom botou mao de algum texto meu para
realizá-lo com esquisito gosto.
Por isso pareceu oportuno
aproveitar esta minha comparecência ante vós para tratar,
sequer seja de forma sumária, do meu próprio teatro, o que nom
deixa de produzir-me umha forte confusom; mas as persoas da minha
idade soem ser requeridas com freqüência como testemunhas de
acontecimentos sobre os que podem fornecer informes de primeira
mao, e nom podo negar que a minha mao é a primeira cando se
trata da minha própria obra. Os actores dos acontecimentos e as
testemunhas visuais dos mesmos nom sempre estám em condiçons de
fornecer informes objectivos sobre o que fixérom ou
presenciárom, mas representam um ponto de vista que é mui
específico, e que é mui natural que interesse conhecer ao
historiador ou ao curioso. Assi, com suma timidez, pois a
bailarina do strip tease ha estar mui convencida da
beleza das suas formas para despi-las publicamente sem desacougo,
avenho-me a tencionar a iluminaçom de alguns aspectos do meu
trabalho, sem a tranquilidade com que a consciência da sua
própria beleza pode conformar à profissional que a exibe.
A minha afeiçom ao teatro,
afeiçom que só esporadicamente pudem cultivar ao longo da minha
vida, data dos meus anos infantis. Os meus pais, no pequeno
Ferrol dos tempos da guerra europeia e o após-guerra imediato,
acudiam sistematicamente ao teatro Jofre cando o seu cenário nos
brindava algum espectáculo. Alternando com séries
cinematográficas que conseguiam grandes êxitos, como La
máscara de los dientes blancos, em que a rapaza que hoje
designaríamos como actante objecto era personage interpretada
por umha actriz que conheciamos polo pseudónimo de Pearl White,
ofreciam-se ao público actuaçons de companhias de teatro,
muitas vezes lírico, do que estava em voga em Espanha: comédias
de Benavente ou Linares Rivas ou Munoz Seca ou Arniches; peças
em verso de Marquina, Villaespesa ou Fernández Ardavin;
zarzuelas clássicas de Fernández Caballero, Bretón, Chueca ou
Chapí, ou mais modernas de Luna, Serrano, Vives, Guerrero ou
Alonso. Levavam-me quase sempre os meus pais com eles ao teatro,
e primeiro sentado num joelho do meu progenitor, e logo ocupando
umha butaca que me vinha mui ancha, eu escuitava os cínicos
alegados de Crispim, interpretado por Ricardo Puga ou os
maternais conselhos da senhá Rita, cantados por Sélica Pérez
Carpio. Ja moço, desde a minha humilde localidade de respaldo do
Principal de Santiago, continuei vendo teatro, o mesmo que
durante as minhas vacaçons em Ferrol ou as minhas primeiras
excursons a Madrid. Enrique Borrás em El alcalde de Zalamea,
Santacana em Espectros, Francisco Morano em El
collar de estrellas, Lola Membrives em Pepa Doncel,
Rosario Pino em Cristalina, Catalina Bárcena em calquer
comédia de Martínez Sierra, e outros muitos actores e actrizes
espanhóis de grande soada, suscitárom em mim nom só umha
secreta vocaçom de comediógrafo, senom de comediante. Com o
tempo, ainda que de jeito modesto, cumpriu-se algo daquela
primeira vocaçom, a de comediógrafo; em troca frustrou-se
inteiramente a segunda, pois na minha vida interpretei um papel
nas tábuas, ainda que para adoutrinar os meus pequenos actores
dos centros docentes em que trabalhei, tivem que assumir
provisionalmente nos ensaios, como director, a personalidade do
senhor Fuco... e até a da mesmíssima Pimpinela!
Felizes dias de Fingoi! Com
actrizes tam excelentes como as irmás Baamonde, as irmás
Herrero, as irmás Fernández, algumhas das cais ainda o ano
passado, neste mesmo local, recitárom versos do seu velho
mestre, e outras muitas rapazas e rapazes que hoje som
catedráticos, médicos ou advogados distinguidos, puxémos em
cena, para os alunos, os professores e as famílias de uns e
outros, nos locais do colégio ou fora deles, peças ou
fragmentos de Herondas, Plauto, Lope de Rueda, Lope de Vega, Li
Hsing-Tao, Seami Motokiyu, Baring, Courteline, Castelao,
Cabanilhas, e mesmo como anónima, umha versom ad usum
Delphini da Farsa das çocas, que foi a minha
primeira estreia, na cal Glória Baamonde, hoje casada em Oviedo,
e Carmen Fernández, hoje casada em Madrid, fixérom umhas
sensacionais Edelmira de Comido e Divina da Acea, admiravelmente
replicadas por Joám Carlos Teixeiro, que continua a residir em
Lugo, e que fixo um Jocas insuperável.
Em 1971 reunim num tomo o que me
pareceu mais legível ou visível do meu teatro. Fôrom quatro
peças, às cais em 1982 agreguei outras catro para constituir o
meu Teatro completo.
A mais antiga desta peças é O
filho, excluída na colecçom de 1971. Escrevim-na aos vinte
e três anos, recém-casado, e como estava ambientada na aldeia,
para a linguage dos campesinos pedim assessoramento à minha
mulher, que naceu e viveu de nena numha aldeia de Lugo, mentres
eu nacim e vivim de neno no bairro marinheiro de Ferrol.
Nesta peça apresentava um tipo
feminino que encarna o ideal cristao da Virge-Nai. A exaltaçom
simultánea da ideia de pureza sexual e a ideia de agarimo
maternal. Dous arquetipos femininos, a donzela e a nai,
contraditoriamente mitificados na Idade Média dentro da
sociedade europeia. Dous valores románticos da estimativa
religiosa tradicional nom conciliáveis senom na figura da Virge
Maria. Joana, na minha peça, professa, até a exaltaçom
irracional, a devoçom por ambos os princípios, e nom se
contenta com venerar a figura que no catolicismo os realiza
sobrenaturalmente, senom que sonha com realizá-los persoalmente
de algum modo na sua própria vida. A realidade impom-lhe a
virgindade estéril, que elege voluntariamente por aversom à
unión carnal com varom. Mas o seu pulo maternal é tam poderoso
que de algum jeito se crê favorecida com o dom milagroso de um
filho.
Escrita a obra, que doze anos
depois obtivo em Buenos Aires o prémio Castelao de teatro, fum
perdendo simpatia polo tipo de Joana, que nom só chegou a
parecer-me psicopático, cousa que em realidade admitim desde que
o concebim, senom que chegou a semelhar-me desumano, e falto de
simpatia e atractivo pola sua aberrante conduta. Por isto, e por
rasgos de realizaçom da peça que ja estimava demasiado
convencionais ou anacrónicos, condenei-na à fogueira, mas nom
executei a sentença, e cando a relim ao tempo de ordenar o
material para a segunda colecçom, julguei-na menos
desfavoravelmente.
Desde que fora premiada em Buenos
Aires, o manuscrito experimentara várias sucessivas alteraçons.
Umha quase explícita interpretaçom freudiana da personage
chegou a parecer-me vulgar e grosseira, contraditória com o ar
de peça semihagiográfica e poética, como um mistério de
natal, piedosamente lírica, que pairava sobre o texto. Joana,
assi, com diversas emendas, perdeu muito do seu carácter
psicopático. Ficou mais bem como umha santa ingenuamente
confiada em excepcionais favores divinos, que afinal renuncia ao
seu secreto orgulho de sibila Casandra e sabe ser maternal
permanecendo afastada do amor de varom, ja sem obsessons
condenátorias das fraquezas da carne.
Tecnicamente, haveria que destacar
que é um drama de mulheres. As personages masculinas estám em
certo modo neutralizadas sexualmente, o Crego pola sua condiçom
de célibe, e os nenos pola sua idade. Caracteres, nom hai
propriamente mais que dous: Joana e Estrela. Esta é simplesmente
a mulher normal, na cal se fundem harmonicamente o instinto
amoroso e o instinto maternal. Contraponto da sua descarreirada
senhora, é ao cabo a que triunfa, arrastando a Joana à outra
banda do berce onde dorme o filho do pecado, agora aceitado pola
mística vinculeira na sua inocência natural.
A peça oferece nos seus três
quadros unidade de lugar. Um quadro que se desenvolvia na casa da
nai do neno e no cal se desvelava o mistério no trance da morte
daquela, pareceu-me afinal melodramático e ventajosamente
substituível pola notícia dos acontecimentos através do
diálogo das personages testemunhas; de jeito que a verdadeira
nai e a sua irmá, que na primeira versom apareciam em cena,
fôrom riscadas no elenco das dramatis personae.
Concebida essencialmente esta
peça, como todas as minhas, em funçom da sua representabilidade
cénica, tem finais de actos, ou de quadros, pensados com
referência ao seu dinamismo plástico. O primeiro acto remata
com o súbito estralar do climax da obra. Umha pequena
parrafada inecessariamente declarativa que no primeiro borrador
punha em lábios de Joana, foi subtituída por umha rápida
exclamaçom, composta de dous vocábulos, que estimei de maior
eficácia dramática.
A cena final da primeira parte do
acto segundo apresenta a complexa integradora dualidade amorosa
de Estrela num movimento como de ballet, acompanhado de
canto, em que a pendulaçom da moça entre a janela e o berce,
entre o parrafeio galante e a nana maternal, quer simbolizar na
sua estética oscilaçom a plenitude humana, a normalidade
psicossomática da moça montanhesa.
A cena final da peça, como fica
sugerido, apresenta plasticamente a normalizaçom dos sentimentos
da morgada, que aceita o filho que rejeitara no seu delirio de
pureza; de forma que o expósito contará agora com o agarimo de
duas nais. Joana acorda do seu sonho desumano.
A sua transformaçom é resultado
de umha luita interior entre os elementos patológicos e os
elementos saudáveis da sua estrutura anímica. Para expressar
isto, como no fim do acto primeiro, abandona-se a técnica de
representaçom objectiva realista que se mantém no resto da
obra. No que nesse final vemos nom é o que perceberiam os
sentidos de umha testemunha indiferente, senom a versom que Joana
ha dar-se a si mesma da apariçom do neno. De jeito que as
condiçons das categorias de espaço e tempo som alteradas nesta
cena, que nos abre o mundo interior de Joana. Tamém no diálogo
desta com a Desconhecida, salta às tábuas o diálogo íntimo da
própria Joana, a luita consigo mesma. Triunfa a Joana moça, que
intercambeia o seu aspecto com a Joana madura, assi que a que se
situa enfrente de Estrela no final do drama é a actriz que
representa a Joana ao longo da obra, mas agora representa a
Desconhecida, que é a que espiritualmente habita agora na forma
exterior de Joana, mentres que a Joana visionária, enferma ou
megalómana, se alongou na forma da Desconhecida, perdendo-se na
noite.
Isabel arranca de umha
ideia, profundamente modificada no curso da execuçom, e que
brotou numha conversa com um amigo que cria dispor de
possibilidades para fazer representar a obra umha vez escrita.
Isto explica que eu repetisse em certo modo nas personages de
dona Júlia e Rosalia as de Generosa e Estrela que aparecem em O
filho. Som personages que na nova peça cumprem
fundamentalmente a funçom de informar ao espectador, mediante o
seu diálogo, a propósito dos antecedentes da comédia. Som a
criada velha e a criada nova. A situaçom suposta é a mesma. A
criada moça acaba de entrar ao serviço na casa, e é informada
pola criada velha dos precedentes que o autor necessita pór em
conhecimento do espectador. Ante a perspectiva de umha pronta
representaçom de Isabel, e estando relegada a primeira
peça ao limbo das obras manuscritas sem esperanças de ver a
luz, recorrim por motivos de urgência à contaminatio,
tomando de O filho duas personages e umha situaçom que
me convinham para Isabel. Mas Estrela, e a própria Generosa,
tenhem o seu papel autónomo na economia de O filho,
muito mais acusado, sobretodo o daquela, que os de Júlia e
Rosalia em Isabel. Estrela, se nom é indispensável
como elemento do drama persoal de Joana, desempenha um importante
papel técnico na realizaçom desse drama tal como autor o
apresenta, encanto a normalidade da criada contrasta com a
anormalidade da senhora, que é conduzida finalmente à
normalizaçom através da pressom da Desconhecida, ou seja da
própria Joana moça e cheia de força vital. E esta
desconhecida, que representa as reservas positivas que dormiam em
Joana, é figura que nos seus traços essenciais responde ao
mesmo modelo que Estrela.
Em Isabel, como em O
filho, o essencial é a tensom entre a ilusom e a realidade.
Mas mentres na peça anterior, o processo vai da ilusom à
realidade, e é um processo de saneamento, em Isabel o
processo vai da realidade à ilusom, e é um processo de
saneamento tamém. A realidade é a viuvez de Mário, que
recupera ilusoriamente a sua mulher. Mas esta recuperaçom
ilusória remove a neurose da personage, com o que se revela
positiva. A outro nível, podemos assentar que tamém nesta obra
se impom a realidade, porque a segunda Isabel é umha realidade
viva, mentres que a primeira, morta, é umha realidade ilusória
na vida do seu marido. No entanto, a peripécia em Isabel
é menos radical que em O filho, pois, como sugere o
diálogo monológico com a Desconhecida, em Joana hai um cámbio
completo de atributos, e Joana aceita plenamente a realidade,
quer dizer, a verdade, mentres que a curaçom de Mário, que
tamém aceita a realidade, se verifica sem que a verdade se
reconheca, pois Mário, intencionalmente, nom cambeia de mulher,
ou nom contrai novo matrimónio, senom que aceita a Isabel II
como idêntica a Isabel I. E, por suposto, a própria Isabel II
aceita essa identidade. Em O filho, afinal, a realidade
desaloja a ilusom. Em Isabel ocorre mais bem o
contrário.
Ainda que a psicologia na segunda
peça oferece mais refinamento que na primeira, nom hai em Isabel
cenas expressionistas ou simbólicas. Por duas vezes, em O
filho o espectador vê o invisível, vê o interior de
Joana. Nada semelhante hai em Isabel, na cal umha técnica
completamente realista nos fornece a visom do que realmente
veriam os olhos dos presentes nos acontecimentos. Neste sentido,
a peça mais moderna é menos moderna -menos vanguardista, menos
experimental- que a anterior.
No seu assunto, que versa sobre os
mistérios da personalidade, que destrui a rigidez teórica da
personalidade definida e intransferível, a comédia pode lembrar
o teatro de Pirandello, que o autor desconhecia cando a escreveu.
Mas nada é inteiramente novo de baixo do sol. Nem Joana nem
Isabel brotárom em mim como sugestons de precedentes
literários. Mas lembro que assistindo a umha representaçom de Campo
de armiño, de Jacinto Benavente, observei que a separaçom
do filho cando se averigua a verdade da sua origem, e a sua
posterior readmissom, porque o sentimento maternal se impom à
realidade da filiaçom, é um motivo comum às duas obras. Polo
demais, o nó mítico de O filho, a maternidade
virginal, nom é o fundamento da obra de Benavente. Esta mais bem
nos remete a El abuelo de Galdós, encanto exalta a
filiaçom espiritual, sentimental e voluntária, face à
material, legal e genesíaca. Maior impressom me fixo a
semelhança da minha Isabel com a peça de Pirandello Come
tu mi voui, cando a conhecim através da versom
cinematográfica de Greta Garbo.
Externamente, Isabel pode
parecer umha peça de intriga, suspensom e mistério; umha
comédia policíaca, se queredes, ainda que nela nom hai crime
algum. Vejamos como funcionam neste sentido as cenas finais dos
actos.
A do primeiro aspira a suscitar
umha brusca surpresa na consciência do espectador.
Aparentemente, está viva umha persoa que a todo o longo do acto
fora considerada morta.
A do segundo acto marca a crise da
situaçom criada com a apariçom de Isabel. Esta comporta-se em
todo o acto segundo conforme os supostos indicados ao final do
acto primeiro; mas as palavras que um visitante lhe dirige, e com
as cais remata o acto segundo, criam umha crise na situaçom.
Temos agora umha indicaçom segura de que se nos vai dar umha
explicaçom do mistério. Temos umha pista.
O terceiro acto, efectivamente,
trai-nos essa explicaçom. Mas a cena final, em que Mário e
Isabel ficam sós frente a frente, desenvolve-se como se aquela
explicaçom nom se produzisse. El fuma, ela cose, falam de
trivialidades domésticas, e o pano cai sobre umha normalidade
conjugal que sabemos fictícia. É um final atípico. Um final
que nom pom fim, senom continuidade na situaçom que críamos
crítica, e que resulta nom sê-lo. A ilusom tomou o lugar da
realidade. Nom so Mário, senom Isabel, os amigos, os criados, o
próprio representante dos ideadores da ficçom -como a mesma
"impostora"- aceitam a ficçom, aceitam a impostora, e
cando cremos que o ilusionado e a ilusionista, sós connosco, vam
comportar-se como gentes que estám no segredo e que entre eles
nom necessitam dissimular, vemos, ouvimos, observamos que se
comportam de modo tal, que a ilusom da última cena do acto
primeiro foi assumida por eles como verdadeira realidade.
Efectivamente, nom hai nada que secretear, nom hai nada que
dissimular, nom hai nada que dizer. Só que é duvidoso que uns
jornaleiros podam rematar umha obra, pois as chuvas causárom
muitos desperfectos, e nom se dispom de persoal suficiente.
O ano de 1948 escrevim três
peças. A primeira delas, em três actos -ou lances-, como Isabel,
renuncia tamém na visualizaçom da trama a todo procedimento que
nom seja realista. É tamém umha comédia psicológica, e ainda
que agora nom hai esses jogos de ósmose entre a realidade e a
ilusom que hai em Isabel e em O filho, pois as
cousas que vemos suceder no cenário em A sombra de Orfeu
transcorrem dentro da mais absoluta verosimilitude material, a
análise psicológica parece-me mais matizada que a das peças
anteriores, onde propriamente nom se estudavam individualidades,
senom situaçons ou modelos típicos de reacçom humana perante
problemas existenciais. Aqui o autor acha gosto em traçar os
perfis de seis mulheres, três delas em alto-relevo, as outras
três em relevo menos salientado, que bolem arredor de umha
figura masculina consagrada à sua vocaçom artística como
suprema finalidade da sua vida, e que, dotado de um forte poder
de atracçom sobre as mulheres, e perfeitamente capaz de
valorizar o encanto feminino, subordina totalmente à sua
relaçom com a música a sua relaçom com o sexo oposto, e com
heróico egoísmo se abstém de aceitar laços que pudessem
comprometer a sua dedicaçom a própria obra de compositor.
Necessita ser livre, e por isso rompe o seu vínculo com Mariana,
joga sem queimar-se com o lume perigosíssimo de Madalena e
mantém um trato assepticamente amistoso e profissional com
Luisa. Excepto esta, devota servidora do mestre, que é feliz com
a confiança e estima do mesmo, sem nengumha veleidade erótica
ostensível, as demais misturam a admiraçom artística com a
inclinaçom galante, o que fai impossível umha comunicaçom
afectiva duradoira com el. Orfeu refuga ser devorado polas feras
que o ameaçam com as fauces da sua feminidade enervante, e o
Mestre conserva só ao seu carom a feminidade da sua fiel e digna
colaboradora, feminidade sublimada em dedicaçom profissional, e
que só a custa dessa sublimaçom mantém a privilegiada posiçom
de sombra familiar do Mestre, a quem nom inquieta e que,
naturalmente, a estima como preciosissimo coadjuvante da sua
obra.
A indolência, e mesmo a
desconfiança do artista perante a mulher que pode pertubar o seu
matrimónio com a musa, fica patente na cena final do acto
primeiro, tam decepcionante para o que espera, como alguns
indícios poderiam sugerir, o triunfo do erotismo.
O final do acto segundo revela a
disposiçom para a luita de Mariana e Madalena, cada umha das
cais vê a Rafael segundo as suas respectivas experiências e
temperamentos.
O do terceiro pom de manifesto que
ainda que nessa luita vence aparentemente Madalena, o objecto da
disputa nom está disposto a alhear a sua independência, que
mantém com implacável decisom.
Comédia com unidade de lugar, como
Isabel, e de mais cingida unidade de acçom, é mais
irónica e lúdica, como corresponde à condiçom das suas
personages, que aqui som todas artistas. Creio que os seus
procedimentos técnicos som menos "benaventianos" que
os de Isabel. Cando um crítico regista como ingénua ou
convencional a frase de Mariana: "Todas vivemos longe, menos
Madalena", dirigida às suas amigas, que, naturalmente,
sabem mui bem onde vivem, esquece que Mariana nom tenciona
informar ao espectador, através de umha redundáncia
inverosímil, de um feito sobre o que mais adiante se fornecem
dados, senom urgir a necessidade de nom demorar a marcha,
relembrando as distáncias que hai que percorrer, para remover a
resistência a emprender o regresso das persoas que se mostram
renuentes a encetá-lo.
A Farsa das çocas
baseia-se num relato popular recolhido em Sam Sadorninho por umha
minha discípula, hoje catedrática nesta cidade. Tomei-me,
naturalmente, todas as licenças que me prouvérom na
dramatizaçom da história, e resolvim os problemas de ambiente e
personages estilizando todo segundo as fórmulas da farsa
semiguinholesca. Os convencionalismos e a ruptura dos mesmos
estám utilizados com finalidade humorística, como é o caso das
autopresentaçons das personages, os apóstrofes dos mesmos ao
público e outras técnicas. E umha obra caricaturesca, que
admite umha leitura social ou simplesmente lúdica, inteiramente
inserida no contexto galego rural.
Tamém hai estilizaçom em A
árvore, mas de outro tipo. Parece-me que neste auto, que
trata do amor -totalmente ausente na Farsa das cocas,
onde o motor da acçom é o interesse económico-, ainda que hai
ironia, e mesmo certa esperpentizaçom, mais chaplinesca que
valleinclaniana, a substáncia do assunto é de um
existencialismo mui sério, mesmo trágico. Dando um tratamento
moderno à história bíblica da árvore da ciência, encena-se a
expulsom do Paraíso e a conversom do amor, que devia dar
felicidade ao home, em causa da sua desdita.
Em 1969 puxem-me a redigir em Lugo
o Auto do prisioneiro, longo tempo meditado, e que é a
mais expressionista das minhas peças. Como os autos sacramentais
do teatro clássico espanhol, utiliza as personages simbólicas,
ainda que sem sacrificar a sua aparência individual.
Evidentemente, contém muitos elementos de sátira social, mas a
sua raiz última é o problema da transcendência: do que pode
haver, se hai algo, tras a porta que permanece fechada mentres o
Prisioneiro vive. Existe o Director? Isto perguntava um
espectador tras umha representaçom desta peça nesta cidade.
Essa pergunta constitui o assunto da obra. Com relaçom a ela
tem-se falado de Beckett e de Kafka. Na época em que se estreou,
cando se considerava imoral em certos meios toda literatura
independente, uns interpretárom-na benevolamente como dirigida
contra a sociedade de consumo, e outros, detectando nela umha
postura ideológica incompatível com o materialismo dialéctico.
Eu creio que tencionei refletir numha forma moderna, poética e
incisiva, a angústia do home engaiolado na sua finitude, mas com
umha fáustica sede de além. Destas catro peças últimas falei
algo no prólogo ao volume que as contém, e nom desejo
repetir-me. Nom direi, pois, mais delas.
A última das minhas obras de
teatro é umha comédia política. Muito tempo a incubei, mas
até 1980, precisamente na Corunha, nom pudem pôr-me a
escrevê-la. Se alguém se molesta em interpretá-la, pode chegar
à conclusom de que é umha apologia de classe militar, ou bem
que é umha sátira contra a mesma. Tamém cabe interpretá-la
como progresista e como conservadora, como de esquerda e como de
direita, e até como de centro. O pensamento que quixem
desenrolar é o da ambigüidade das posiçons políticas, e, como
harmónico deste motivo, o da inanidade das luitas civis, o da
identidade íntima dos ideários políticos opostos, o da
escravitude dos chefes com relaçom às massas e o da
manipulaçom das massas polos chefes. O acto primeiro
desenrola-se no Quartel Geral das forças conservadoras. O acto
segundo desenrola-se no Quartel Geral das forças progressistas.
Som inteiramente paralelos. Num é noutro bando aparecem o chefe
inteligente, paciente e objectivo; o colaborador profissional,
cortês e frio; o político profissional, que domina a retórica
da propaganda. Som duas entidades de igual magnitude, de
idêntica estrutura. Comprendem sectores moderados e sectores
radicais. Só se diferenciam na orientaçom do seu esforço. Uns
tendem ao leste e outros ao oeste, uns à esquerda e outros à
direita. Sem um rígido esquematismo, que daria à peça um ar de
farsa que nom tem, os dous primeiros actos oponhem-se quase cena
a cena, personage a personage. O General Branha e o General
Dragom, o General Brandariz e o General Bravo, o Ministro de
Informaçom e a Ministra de Propaganda. Salvo o signo, a cor
branca ou negra, escuitamos as mesmas soflamas, contemplamos as
mesmas atitudes, observamos as mesmas convençons, estimamos os
memos valores. O acto terceiro reduz a sintese a tese e a
antitese manifestadas nos anteriores. Os chefes ponhem-se em
contacto e revelam-se idênticos. A guerra e inevitável, porque
as asas extremas de ambos os bandos som irreconciliáveis, e
querem esmagar-se mutuamente; mas essa guerra é inútil, porque
ganhe quem ganhe, os chefes comprometêrom-se a manter a mesma
posiçom. Tenhem que luitar, ainda que os seus ideais sejam
idênticos, porque a força dinámica está nas posiçons
extremas, e estas chocam. Mas umha destas posiçons será
eliminada pola vitória do ganhador, e este eliminará logo a
força do bando vencedor homóloga e antagónica da esmagada. Nom
é possível a paz entre Branha e Dragom, mas si o acordo, porque
realmente estám de acordo, e ainda que vam luitar, vam triunfar
inevitavelmente ambos, ja que o sobrevivente realizará a
política comum.
O terceiro acto desenrola-se em
terreno neutral, e por vez primeira enfrentam-se os dous chefes.
Este acto foi o primeiro que escrevim, precisamente nesta cidade,
no verao de 1980, portanto antes do intento de golpe militar do
23 de Fevereiro de 1981. Digo isto último porque nesse acto dous
generais se ponhem de acordo para realizar um golpe militar. Mas
o ambiente da minha peça nom é o das intrigas políticas, senom
o da guerra civil. Nom se trata da guerra civil que dessangra
Espanha entre 1936 e 1939. Os chefes da minha obra pouco se
parecem aos chefes daquela guerra real. Ambos som caudilhos
militares, e nengum reproduz os rasgos do único que existiu na
nossa guerra. Excepto que um se apoia na direita e outro na
esquerda, nada os diferencia, e, afinal, o mesmo dá que vença
Joám ou que vença Pedro. Mas como o drama está concebido de
jeito realista, utilizei a minha experiência da guerra civil
espanhola para dar verosimilitude a acçom. Fala-se de quinta
coluna, fam-se mútuas acusaçons de crimes de guerra,
pronunciam-se palavras que fôrom realmente pronunciadas.
"Catro colunas do nosso exército convergêrom sobre Gaibor,
mas quiçá seja a quinta a que desplegue a primeira bandeira
nossa na Casa de Governo da capital". Som palavras
atribuídas a Mola, postas aqui em boca do Ministro de
lnformaçom dos brancos. "Imporemos a nossa vontade com a
vitória". Som palavras de Franco. "Renunciamos a todo
menos à vitória" era umha consigna dos anarquistas.
"Nom passarám" foi o lema dos defensores de Madrid.
"Gaibor será a tomba da subversom reaccionária"
adapta a fórmula propagandística "Madrid será la tumba
del fascismo".
O diálogo dos chefes no terceiro
acto é o caroço da obra, e todo o demais som antecedentes ou
consequentes desse momento crucial. Os dous primeiros actos
apresentam aos dous antagonistas. O terceiro enfrenta-os. Como o
Heitor e o Ulisses de Giraudoux, entendem-se; mas como é
inevitável que haja guerra de Tróia, é inevitável que se dê
a batalha de Gaibor. Sem embargo, calquer que seja o resultado
desta batalha, o porvir político de Gurlándia será o mesmo: um
golpe de estado militar que imponha uma situaçom de centro.
A posiçom do autor perante a
matéria ideológica que organiza em condutas dramáticas é a de
cronista imparcial. Nom hai nengumha preocupaçom
propagandística, nom hai nengumha caricatura. Nom hai nengum
maniqueísmo. Sentiria muito que um director progressista
caracterizasse de maus aos combatentes do primeiro acto, ou um
director conservador fixesse o próprio com os do segundo. Cada
quem defende a sua causa na peça o melhor que pode, mas som dous
turnos, um para cada bando, os que se concedem. E se no diálogo
dos chefes se propugna umha terceira soluçom, a responsabilidade
é dos chefes, nom minha. Pode-se pensar: dous homes de honor com
verdadeiro sentido patriótico. Ou tamém dous chefes que pactam
um engano às massas que os apoiam. Umha apologia da democrácia
ou umha sátira da oligarquia. A vida pública, como a privada,
pode ter interesse dramático independente das condutas éticas.
Contra o meu costume, os dous
primeiros actos rematam com cenas neutras, porque som pura
preparaçom do enfrentamento do terceiro. Este si tem um final
marcado, ainda que o feito de que o cenário esteja vazio, e as
únicas vozes que se ouvem sejam a do relógio e a do canhom,
dé, segundo creio, algumha originalidade técnica a este
desenlace.
Ja nom hai tempo para que falemos
de O redondel, de 1951, adaptaçom num acto para teatro
infantil do complicado drama chinês de Li Rsing-Tao O
círculo de giz. Foi representada duas vezes em Fingoi.
Glória Baamonde, actriz mui excelente, fixo a primeira o papel
de Hai-Tang. A segunda vez incorporou essa personage a mesma
aluna que fixera com anterioridade umha impecável Pimpinela,
Carmen Herrero. As duas fôrom as minhas discípulas tamém na
Universidade.
Queridos amigos: devo rematar e
remato. Muitas graças poja vossa atençom, e as minhas excusas
por ter-vos entretido tanto tempo falando de mim mesmo. Nom o
volverei a fazer.