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SOBRE OS VELHOS NOM DEVEM DE
NAMORAR-SE
Pretendo expor com singeleza
algumhas ideias a propósito de umha obra importante do nosso
teatro, do teatro galego, umha obra que, se calhar, é a mais
representada das que se escrevêrom para as nossas tábuas. Nom
é o teatro galego, como alguns crêm, um ermo desprovisto de
textos, nem tampouco umha sucessom de ausências interrompidas
raramente por algumha representaçom. Nom. Houvo momentos em que
um movimento de teatro se desenrolou na Galiza com intensidade.
É verdade que estes movimentos que tendiam a criar no nosso
país umha literatura dramática e, sobretodo, o hábito da
representaçom teatral, nom calhárom nunca definitivamente; mas
isso é a história geral da nossa literatura e a história geral
do nosso país. Como um dos mais grandes poetas contemporâneos,
José Diaz Castro, tem indicado num famoso poema, a Galiza é
semelhante a Penélope: está dando sempre um passo adiante e
outro atrás. Hoje, vê-se na mocidade interesse pola
representaçom dramática. Entre os presentes, figura quem fai um
verdadeiro esforço por dotar de umha cena dramática à nossa
terra. Se a mocidade que vós representades, acolhe estes
esforços com interesse, podemos chegar a conseguir algo que é
indispensável para que se mantenha umha cultura: umha literatura
dramática, uns grupos de intérpretes estáveis, que podem fazer
muito pola galeguizaçom da Galiza.
Entre as obras dramáticas com que
contamos, figura como umha das clássicas esta tragicomédia de
Castelao, que intitulou o grande escritor e grande artista Os
velhos nom devem de namorar-se, peça estreada no teatro
Mayo de Buenos Aires durante a estadia deste ilustre exilado em
terras portenhas, e que tem merecido por um motivo duplo estudos
e análises que vam achegando-nos nom só à intençom íntima do
dramaturgo, senom tamém aos procedimentos técnicos empregados
para revelar-nos essa intençom, e às fontes literárias que
induvitavelmente contribuírom a plasmar umha das obras que
continua sendo das mais interessantes, das mais singulares dentro
da nossa literatura dramática.
A intençom imediata de Castelao
foi tratar o tema do velho namorado; um tema que por si mesmo
reúne elementos de tragédia e elementos de comédia. Trata-se,
naturalmente, do velho que se namora de umha moça. Porque,
decidido a namorar-se, o velho nom vai namorar-se de umha velha;
é absolutamente gratuíto o amor e, portanto, na fantasia, na
imaginaçom, no coraçom ardente e incontrolado do namorado, pode
desenhar-se a figura ideal que deseje e, entom, o velho elege
naturalmente umha moça. Resulta cómico, porque, naturalmente, a
possibilidade de umha consecuçom, de umha realizaçom desse
amor, tem caracteres de algo antinatural. A separaçom de anos
entre a moça e o velho -a moça na plenitude ou no começo da
sua mocidade, símbolo da vida que se desenvolve viçosa e
desejável, e o velho que está já dando os derradeiros passos
cara o sarego do Além- supom umha parelha mui desequilibrada, e
o desequilibrio é, precisamente, umha das fontes da comicidade.
Temos na literatura universal muitos exemplos de tratamento
cómico, humorístico, às vezes sarcástico, sempre satírico,
do amor do velho por umha moça, e nom digo dos amores do velho e
umha moça, porque, naturalmente, no paradigma ideal deste
superdrama, a moça nom corresponde aos amores do velho. E como o
amor exige um comportamento que parece que leva consigo umha
graça juvenil, umha agilidade mental e física que nom se podem
dar no velho, a torpeza do velho que trata inutilmente de fazer
os acenos próprios do amor, é um motivo de comicidade, porque
hai umha desproporçom entre os seus propósitos e a sua
capacidade de realizaçom.
O mesmo que dom Quixote resulta
cómico, resulta mesmo ridículo, tratando de impor a ordem moral
no mundo com umha armadura cheia de feluge e com um lançom
destartalado, assi o velho que intenta conquistar os amores de
umha moça com as escassas possibilidades de combate que a
natureza lhe oferece, é um motivo de comicidade explorado por
numerosos dramaturgos e por numerosos novelistas. "El viejo
y la niña", un tema moratiniano que foi tratado muitas
vezes de maneira mais ou menos piedosa para o namorado, mas
procurando de todas as maneiras um fácil -facilom, diria eu-
efeito cómico.
Mas, por outra banda, a situaçom
do velho namorado da moça, ainda que contenha esse elemento de
comicidade, se o consideramos desde umha perspectiva humana mais
profunda, contém elementos emotivos que apresentam um conflito
insolúvel e, portanto, trágico. O velho que se namora da moça
-e hai positivamente muitos velhos que se namoram de moças-
trata em realidade de prorrogar de algum jeito a licença de
viver que lhe concedeu a natureza e que está a ponto de
caducar-lhe. O conflito, o drama, remata ordinariamente, cando se
trata em termos de ordenaçom dramática, com a morte do velho,
como passa na obra de Castelao, pois é umha inexorável fada a
que determina a última soluçom disto tam antinatural e, ao
mesmo tempo, tan natural, como é o amor de um velho por umha
moça.
Castelao tratou o tema
tragicomicamente. Na superfície, no exterior, a obra é cómica,
humorística, e mesmo hai umha tendência satírica que responde
mais que ao desejo moralizante em Castelao, ao pudor que o impele
a rodear de umha circunstância de tipo humorístico umha
realidade demasiado amarga, que seria penoso apresentar, a
tragédia do velho, sem que umhas pingas de humorismo aliviassem
a tensom que num espectador atento e maduro pode produzir umha
situaçom definitivamente lastimosa como é a que presumimos,
como é a que postulamos.
Mas, em muitos aspectos, está
indicada, por baixo dessa superfície satírica e humorística, a
realidade antropológica da tragédia do velho namorado. Como
sabedes, a obra compom-se de três lances, em realidade de três
peças, mas três peças que som três realizaçons do mesmo
superdrama, do mesmo arquidrama. O drama que podemos induzir, o
superdrama que podemos erguer como modelo, considerando as
analogias das diversas realizaçons, tem, por suposto, como
protagonista, como actante-sujeito, ao velho, o velho em
geral. E, por suposto, tem como objecto à moça. Estes
som os elementos principais. Na realidade, com estas duas
personages poderiam resolver-se todas as cenas do drama de
Castelao. Mas hai umha realidade extrapessoal, a da Morte,
que é necessária para o desenlace da tragédia e que, às
vezes, aparece em Castelao mesmo personificada, mesmo
materializada em forma de personage. De maneira que a essas duas
personages fundamentais, o velho que se namora, a moça de quem
se namora o velho, e que, com certeza, em nengum dos três casos
lhe corresponde -ainda que num caso aceda a ser a sua dona-, a
essas duas personages hai que agregar essa outra personage
oculta, se querem abstracta, mas que se concreta às vezes em
figuras humanizadas, que é a Morte. Logo, hai outra personage,
que joga o seu papel, mas que, ainda que funciona formalmente
como antagonista do velho, nom é inteiramente indispensável no
desenrolo do drama. É o moço. A moça que rejeita o
velho, naturalmente está interessada por um moço. A mocidade
com a mocidade, as folhas secas com as suas companheiras. Aparece
o moço que, curiosamente, em Castelao, nom é nunca defrontado
com o velho; nom hai nunca umha cena em que estas duas
personages, que podiam parecer o protagonista e o antagonista
numha superficial leitura, se juntem para realizarem um duo de
oposiçom. Finalmente, temos a opiniom pública, o povo,
que é indispensável no drama de Castelao, porque vai comentar,
como o coro da tragédia grega, os amores do velho e da moça. E,
demais, hai uns adjuntos de algumha personage, adjuntos
do protagonista, que reforçam, que sublinham a sua posiçom.
Estas som, pois, as personages essenciais do drama, ou do
superdrama de Castelao. O velho, a moça, o moço, a Morte, o
povo, e uns adjuntos.
No primeiro lance, o velho é o
boticário dom Satúrio, a moça é a Lela, o moço é
carabineiro, a Morte reveste a forma de mendicante; o povo nos
três lances está representado por umhas mulheres, que som
sempre as mesmas, ainda que com gestos, com acenos distintos,
segundo o carácter do drama que vam comentar. E, interessantes,
ainda que nom essenciais, som os adjuntos, constituídos neste
primeiro lance de dom Satúrio, polas irmás do boticário,
aquelas mulherinhas solteironas que lhe fam o pranto, o famoso
pranto, cando por fim el morre, envenenado com o seu próprio
solimám, por nom resistir a desilusom e a amargura do desdém de
Lela.
No segundo dos lances, estamos num
paço. Agora o velho é um fidalgo, o fidalgo dom Ramonzinho, um
fidalgo degenerado, que se prenda da moça Micaela, mui
semelhante à Lela na estrutura psíquica que Castelao nos
revela. Tamém tem um moço, que vai beneficiar-se da moça e
mesmo das generosidades pecuniárias, dos galanos com que
obséquia à moça dom Ramom. Neste caso, é um português. A
Morte está simbolizada no sapo que, numha cena expressionista,
ajuda a dom Ramom a exalar a alma, que tem a forma de umha
luzinha. E os adjuntos som agora os pais de dom Ramom,
representados por sendos retratos parlantes, que reprocham ao seu
degenerado descendente ter conduzido à desonra e à ruina a casa
petrucial e a nobre familia de que descende.
Estes dous lances, o de dom
Satúrio e o de dom Ramom, tenhem notáveis semelhanças entre
si, ainda que, do ponto de vista das figuras do drama, das dramatis
personae, este segundo drama se caracteriza por umha maior
riqueza. Hai várias personages que nom se dam nos outros dramas,
personages non essenciais, mas que vestem de um movimento e de um
colorido maiores neste lance que em nengum dos outros dous, a
peça de Castelao. Hai um rapaz que actua como os mensageiros das
tragédias gregas, e leva os recados de dom Ramom a Micaela. Hai
duas máscaras e dous espantalhos que bailam umha dança, que
podemos chamar macabra, no turreiro em que vai morrer, na lama,
embulheirado e bêbedo, dom Ramom. E hai um coro especial,
distinto do coro das mulheres.
Mas o terceiro lance, o de
Pimpinela, destaca pola sua singularidade frente aos outros dous.
O velho, Fuco, é um lavrador, um lavrador rico, mas, à
diferença de dom Ramom, que é, como dixemos várias vezes, um
fim de família, um fidalgo no que já nom se conservam as
possíveis virtudes da nobreza primitiva; ou de dom Satúrio,
que, a verdade, galanteia a Lela com umha certa malícia, com
umha certa tendência à sensualidade, que num velho resulta
libidinosidade; à parte destes dous velhos que, de um ponto de
vista moral -se quigéssemos focá-los de acordo com mais que
umha ética de conduta última, de acordo com umha etiqueta
social- som personages "negativas", com toda a
tragédia que comporta e com todo o respeito que nos merece a sua
desgraça, este senhor Fuco é um home honrado, limpo, que
pretende a Pimpinela, da que se namora, porque de Pimpinela nom
cabe outra soluçom que namorar-se, dada a figura que nos
apresenta Castelao (entre outras virtudes tinha a de falar mui
pouco; passa-se quase toda a peça dizendo "si" e
"nom" cando a nai e o pai a incitam a aceitar a boda
com o senhor Fuco, e somente ao final pronuncia aquel maravilhoso
monólogo em que lamenta a riqueza que a cobre e que nom compensa
a sua soidade, já viúva, e que começa: "¡Tantos panos
rameados...!"). Pois bem, Fuco é umha personage positiva,
porque, ainda que está, desde logo, fascinado pola beleza de
Pimpinela e está namorado fora de tempo do ponto de vista da
convençom social, nom tem nengumha das tachas que se lhe podem
apor aos outros dous velhos, o fidalgo e mais o boticário.
Pretende a Pimpinela como mulher e, como Pimpinela é mui pobre,
como Pimpinela vive realmente na miséria, os seus pais, um à
esquerda e outro à direita, tanto malham nela -dialecticamente,
com certeça- que conseguem convencê-la, e Pimpinela
sacrifica-se, nom sabemos bem se para desfrutar -cousa mui
natural numha rapaza- de "panos rameados", de refaixos,
de mantelos bonitos, ou para aliviar a miséria dos seus pais.
Pimpinela, pois, é umha boa filha, que tem um moço que nom é
um pícaro, como o som o português de Micaela e o carabineiro de
Lela; é um honrado lavrador. Mas ela deixa-se convencer polos
seus pais e casa com Fuco, que ha morrer pouco depois de casado.
Frente aos outros dous velhos que
nom conseguem as suas moças, este consegue-a, mas,
evidentemente, pouco desfruta dela, porque esse desequilíbrio
entre a mocidade e a velhez leva consigo tamém a morte de Fuco.
Morte que lhe dá a própria Morte, que neste caso aparece com os
seus atributos tradicionais na obra, para chegar um momento em
que, mediante um jogo de máscaras (que quiçá esteja inspirado
no teatro de Yeats, o dramaturgo irlandês), se identifica com o
próprio velho, a quem mata; quer dizer, Fuco realmente
suicida-se, como dom Satúrio, e, em último termo, como dom
Ramom, mas se dom Ramom se suicida a base de alcoolismo e
Satúrio se suicida conscientemente, porque nom pode suportar a
perda de Lela, Fuco suicida-se casando com Pimpinela, suicida-se
querendo realizar umha funçom, querendo encher um papel que
verdadeiramente nom responde à sua capacidade.
Pimpinela, debuxada com cores mais
amáveis que as lerchas de Lela e de Micaela, tem um rango de
co-protagonista neste lance, como podemos apreciar nom só polo
enfoque positivo que lhe deu o autor, senom tamém porque os
adjuntos do protagonista, que aqui aparecem, como nos outros
lances, som os pais de Pimpinela. Os adjuntos sublinham,
reforçam o papel do protagonista, mas neste caso é o papel de
Pimpinela o reforçado; constituem um séquito de duas pessoas,
mas de Pimpinela, nom de Fuco.
Esta obra, como vem vocês, esta
peça, que tamém tem um coro especial, distingue-se, pola sua
estrutura e pola sua intençom, um tanto das outras duas. E isto
obedece a que Pimpinela foi originariamente umha peça
independente. Eu recordo sempre cando Castelao, na praça do
Toural de Santiago de Compostela, me referiu o argumento desta
obrinha que tinha entom no tear da sua imaginaçom, ou, quiçá,
estava já em parte escrita nas quartilhas. Nom pensava entom
Castelao em fazer umha trilogia. Posteriormente, redactou os
outros dous lances: o de Micaela, antes de 1936; o de Lela foi
rematado em Nova Iorque em 1939, durante o mês do Natal. Ou seja
que, escrita "Pimpinela" independentemente, ideou
depois Castelao completá-la com dous lances mais que fossem
outras duas realizaçons do grande drama do velho namorado.
Como sabedes, hai tamém um
epílogo em que se reúnem os três velhos que se supom que já
morrêrom, e recebem noticias do que aconteceu às suas amadas
-no caso de Pimpinela, a sua viuva- depois de eles mortos.
Falaremos entom um pouco desse epílogo. Agora temos traçado o
esquema das personages. Mas o drama tem tamém unidade polo que
se refere às situaçons. A sintaxe narrativa fai que estas
situaçons se combinem de distintos jeitos, mas, ao meu juizo,
podem reduzir-se a sete. Hai sete cenas, sete situaçons, que nom
coincidem exactamente com as cenas em sentido material, com a
entrada ou saída das personages, que resumem todo o drama. Nom
hai mais que essas situaçons mesmo nas três realizaçons. Sem
cuidar demasiado pedantescamente, mesmo por um prurido ridículo
de método rígido de homogeneidade, das caracterizaçons das
situaçons, eu apontaria estas:
Umha primeira situaçom, que se
pode dar naturalmente antes ou depois, em que o velho
solicita, requer de amores à moça; o velho tem que fazer
à moça umha proposiçom que no caso do velho Fuco é umha
proposiçom limpíssima, de matrimónio; nos outros casos nom
chega a perfilar-se. Nom cabe a menor dúvida de que se Lela ou
Micaela quigessem, dom Satúrio -apesar das suas irmás- e dom
Ramom -apesar dos retratos de seus pais- teriam aceitado contrair
matrimónio com as moças, mas estas nunca pensaram em semelhante
cousa; tratam de obter o máximo proveito do velho, fazendo-lhe
conceber esperanças, coqueteando com el, a fim de que esta
relaçom com este carcamal redunde no próprio proveito.
Pimpinela é tam honrada como Fuco, e aceita casar com el; erro,
naturalmente, mas erro digno de gabança, porque está inspirado
mais que nada, no desejo de sair da miséria, de tirar da
miséria aos seus pais mais que de sair ela mesma da miséria, e
quiçá, por umha equivocada e simpática tendência a vestir com
vestidos vistosos, para poder luzir-se com as suas amigas, desejo
inocente de umha mocinha da idade da nossa heroína. Hai tamém
inevitavelmente umha outra situaçom em que se verifica por parte
de alguém a censura dos amores dos velhos. No caso de
dom Ramom som os seus próprios pais desde os retratos que
adornam o salom; nos outros casos, resolve-se de distinto jeito
esta situaçom, mas tamém se dá.
Hai um duo de moço e moça,
um duo, diríamos, de tenor e soprano. Enfrentam-se o moço e a
moça: o português e Micaela, o carabineiro e Lela, o moço e
Pimpinela. Hai um concertante entre o velho e a gente:
as mulheres que representam a opiniom pública. Hai umha cena
em que se anúncia a catástrofe; hai umha situaçom em
que esta se produz; e hai um epílogo que fai que
remate anticlimaticamente cada um dos lances da obra.
E, logo, vem este epílogo geral,
um epílogo em que no cemitério em que estám enterrados os
três velhos que nom sabíamos que eram convizinhos, estes, pola
noite (Castelao lembra aqui a sua primeira obra literária de
importáncia, Un olho de vidro. Memórias dum esquelete),
dialogam a propósito do que sucedeu depois da sua morte, porque
lhes traem notícias do mundo dos vivos. Este epílogo, por muito
valor que tenha do ponto de vista das cenas expressionistas que
contém, amera um pouco, ao meu juízo, a peça, porque parece
que quer converté-la numba peça moralista, cando na realidade
é umha peça existencialista. Insistir em que os velhos nom
devem de namorar-se é um pouco pueril, porque a tendência do
que se acha a dous passos da morte a aferrar-se à vida nom se
sujeita a um código moral nem é por si mesma imoral. Aí cedeu
Castelao, se calhar, ao sentimento de que a gente ia procurar a
liçom didáctica e ver o ridículo da conduta dos velhos, porque
estava acostumada ao sainete, à comédia satírica, que
apresentava as cousas deste modo; ou, se calhar, em Castelao, na
sua velhez, surdiu algum amor por algumba moça, e umha
autoconsciência de repressom determinou-no a castigar-se
simbolicamente nesse epílogo. Nom penetremos agora na
consciência de Castelao, nom tentemos fazer investigaçom
freudiana nem moral subjectiva, e limitemo-nos a dizer que queda
um tanto desfigurada a peça existencialista, em que se mostra
simplesmente que os velhos se namoran, com este epílogo, em que
se sustém, de maneira nom mui convincente, que os velhos nom
devem de namorar-se.
Como se resolvem do ponto de vista
técnico os três lances da peça? Estám escritos a base de
cenas realistas, cenas realistas que podem ter a aparência de
momentos de obra costumista, de teatro rural, mas pontuadas por
cenas expressionistas, como por exemplo no primeiro lance a
apariçom dos múltiplos boticários. Cando dom Satúrio decide
lembrar os seus anos de estudante de Compostela, colhe a guitarra
e pom-se a tocar "Sola y triste, sola se queda
Fonseca...", começam a agromar boticários idênticos a el,
que fam o coro com a guitarra e com a voz. Evidentemente, nom
pretendeu Castelao aqui continuar dentro do tom de realismo que
caracteriza as outras cenas.
No caso do segundo lance, o
diálogo de dom Ramom com os retratos dos seus pais, naturalmente
tamém é simbólico e expressionista. E no caso do lance de
Pimpinela, a cena da morte do senhor Fuco, com aquel jogo de
máscaras entre o próprio senhor Fuco e a Morte que acaba por
ser o senhor Fuco, maneira enormemente expressiva,
expressionista, de indicar que o senhor Fuco se dá morte a si
próprio, está dentro das características mais acusadas do
teatro expressionista alemám, por exemplo, do teatro
judeu-alemám e mesmo tamém do teatro simbolista da escola
anglo-irlandesa representada por exemplo por Yeats, a quem sem
dúvida leu Castelao.
Isto polo que se refere à
estrutura da peça. Digamos agora algo nesta segunda parte, que
é a derradeira desta conferência, a propósito das fontes desta
obra. Em primeiro termo, hai a ideia de que os velhos se namoran,
que é umha ideia comum, é um tópico; som freqüentíssimos no
teatro castelhano, no teatro russo, no teatro francês os
desenrolos deste tema, ainda que quase sempre tratados com
impiedosa comicidade, como lostregaço, como tralhaço satírico
sobre as costas do velho, que já se inclina cara a sua tumba. Em
Castelao está presente esta tradiçom; nom se atreveu a
apresentar o velho como um herói nimbado pola austeridade, pola
majestade da tragédia grega e limitou-se a insinuar
soterranhamente este terrível drama da tendência ao amor, que
é tendência à vida, do home que se sente murchar, sem
sublinhá-lo aparentemente. Quiçá haja algum elemento, algumha
vivência recolhida da vida pessoal de Castelao, ou da vida de
alguém que el conheceu, que contribui a dar coerência e
consistência ao tratamento deste motivo. Mas nom cabe dúvida
que Castelao, que era um home de grande cultura, sobretodo de
grande cultura artística, conheceu textos literários que
pudérom influir decisivamente na resoluçom de diversos
problemas técnicos da sua obra e que sem dúvida tamém
determinárom a funçom de determinadas cenas. Em primeiro termo,
Castelao, no ano 1921, estava em Paris; com umha bolsa de viage
da Junta para a Ampliaçom de Estudos, viajou por França,
Bélgica e Alemanha, a fim de realizar estudos que correspondiam
à sua condiçom de pintor, e escreveu um Diário
-publicado postumamente- em que se recolhem dados que nos
interessam a propósito das suas visitas ao teatro Fémina, onde
Nikita Balieff à frente da sua companhia do Teatro do Morcego de
Moscovo, apresentava sketchs, apresentava cenas e breves quadros
dramáticos, nos cais evidentemente se inspirou para a resoluçom
de vários problemas técnicos, tomando ideias que estám
expressadas nas maquetas de Remisoff e de Soudeikine feitas para
estas representaçons do Teatro do Morcego, o teatro de la
Chauve-Souris, como se lhe chamava em Paris, e que
conhecemos através dos exemplares da revista Comoedia
illustré, que Castelao conservou e que estám hoje
depositados no Museu de Pontevedra.
Sous l'oeil des ancêtres,
baixo a olhada dos devanceiros, era umha das peças em que se
combinava umha arte refinada, a música, a poesia, a cenografia e
que evidentemente é a fonte da cena em que dom Ramonzinho sofre
os reproches dos seus pais. A mesma combinaçom de popularismo e
de estabilizaçom artística, que caracterizava este teatro
russo, é a que resplandece na obra de Castelao, que em Paris
sonhava com criar em Pontevedra um teatro de arte como o que lhe
oferecia o grupo de Balieff.
Destes anseios falava Castelao com
o seu amigo Otero Pedraio, e este, que, por certo, na sua
tragédia A lagarada tinha roçado o tema da relaçom
erótica entre velho e moça, escreveu em 1934 umha série de
guions ou esboços de peças para o teatro de arte ao cal
Castelao continuava dando-lhe voltas. É a série publicada logo
com o nome de Teatro de máscaras. Pois neste teatro
achamos, no texto número um, caras de personages pintadas no
decorado, como no decorado do final de "Pimpinela". No
texto número dous, um velho, Cacharaças, bêbedo e caído na
lama, de onde surde um sapo, todo o cal nos fai pensar no fim de
dom Ramonzinho. O texto oitavo de Teatro de máscaras
intitula-se "As bodas do português", e este português
assemelha-se ao galám de Micaela. No texto número onze achamos
espantalhos, como em Os vellos; e se nesta peça do
rianjeiro o fidalgo oferece leiros a Micaela em troca de bicos,
em Otero Pedraio, texto número cinco, o fidalgo do paço de
Laiovento lembra um parente que dava por um bico de moça três
ferrados de sementeira. Hai, pois, nestes esquemas dramáticos,
que estavam em poder de Castelao, motivos que aparecem, seja
coincidência ou influência, na obra estreada em Buenos Aires.
Haveria tamém que estudar as
possíveis pegadas em Castelao do teatro anglo-irlandês. No
número 3 da revista Nós aparece umha nota sobre Yeats.
No 8 travamos conhecimento com a peça deste autor Cathleen
ni Houlilan, que Vilhar Ponte puxo em galego. Risco ocupa-se
no número 26 da moderna literatura irlandesa, e menciona a
Yeats, Edward Martyn, George Moore, Lady Gregory, Synge, Lord
Dunsany, George Russell. Os homes de Nós
interessavam-se muito por estes autores por causa do seu
nacionalismo e o seu celtismo. Em várias peças de Yeats,
especialmente as que imitam a técnica do teatro "Nó"
japonês, achamos precedentes possíveis ou analogias curiosas
com motivos ou situaçons de Os velhos. A borboreta que
sai da boca do sábio em O relógio de areia, lembra a
luzinha do lance segundo. O jogo de máscaras da morte e o velho
na cena quinta do terceiro lance, é semelhante ao jogo de
máscaras de Cuchulain na peça de Yeats Emer sente ciúmes
umha vez. A cortina que pode estar decorada com espargidas
figuras de dançantes em O rei da torre do relógio grande,
é análoga ao pano parlante do final de "Pimpinela".
Por mui interessantes que sejam
estes estudos de literara comparada, já nom dispomos de tempo
para aprofundar neles. O teatro russo do Morcego, como o
irlandés da Abadia, potenciam o popular e tradicional
estilizando-o artisticamente. Eram bons modelos para Castelao,
que tinha a mesma filosofia em matéria de arte dramática.