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Capítulo II: A Fonte da Auguela

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     A Auguela, apesar do seu nome, tem uma água mui boa, e os três caminhantes assim o apreciaram, mas já iam sendo horas de marchar. Estreando lua, logo de lhe dar o último golo à pia, começaram a andaina para o alto do Zebreiro, lá a Fonte da Cunca os aguarda. Aquelas são águas de altura e as próximas noites serão noites de muita subida nas que Dom Narciso segue sem apear o pinho, e isso vá se o manca. Por estes empinados montes muitas vezes quase perde o homem a consciência. Certamente vê-se-lhe apoucado e até por momentos semelha que lhe vai faltar o ar e vai desfalecer. Dês que deixaram a Auguela tudo eram costas; a terra chã das cavadas durara menos de uma noite. Aquele pedaço ainda fora tolerável e deixara-lhe fôlegos ao homem para tentar relembrar as suas vivências de jeito pausado. Ele queria a terra chã, ele queria dar volta para trás, mas não encontrava o jeito. Ele queria lembrar e relembrar os dias dourados da sua primeira freguesia, onde tudo era paz, respeito e amor... e não agradecia nada aqueloutras visitas inesperadas de imagens que eram mesmo aborrecíveis, sobre as que não tinha controlo, e que apareceram muito mais tarde na sua vida. Como aquela visão que o andava mesmo acossando dês que começara a subida.
     Naquela via-se a ele próprio com um saco ao lombo caminhando em pleno sol de meia tarde; e que haveria no saco? Ai, sim, o saquete estava atestado de livros, e como pesavam os condenados! Havia livros grossos e outros mais delgados, isso sim, todos eles velhos e escuros, e precisando uma amparadela; nalguns, antes de os ler, havia que mudar as folhas que estavam co de acima para abaixo. Dês que ele chegara à freguesia de Ameixeiras falara sobre o tema dos livros paroquiais co responsável da zona, mas estoutro, menos afeiçoado às leituras, não lhe dava tanta urgência ao assunto. Por fim  parece que coalhara a ideia da restauração. Sim, essa ideia fora de Narciso, o que não pensava ele era que para a levar a cabo o fariam assistir a uma juntança com todos os outros cregos da contorna. Porém ao outro, ao que chamam arcipreste, que leva duas freguesias ademais de mandar nos demais curas, não lhe amargava perder o tempo, que tem muito e não sabe como gastá-lo.
     Ele é certo que, ademais de mandar, diz missa em duas igrejas; e daquela os cregos já começavam de andar algo mais atarefados, não porque lhes aumentara a clientela, que vai a menos cada dia, senão porque são menos os empregados e têm que se repartir as freguesias; a uns tocam-lhes menos, como lhe passa o manda-mais, para isso manda, e a outros tocam-lhes mais, como lhe passa a Dom Narciso, que lhe vamos fazer. Esta espécie de chefe dos outros leva Os Mouros e Vilarinho, que por certo são duas freguesias que têm as igrejas mesmo pertinho uma da outra... uns dez minutos caminhando devagar. Ora que isso tanto tem porque este abade, que está ele mui bem cevado, tem dous carros; os dous da mesma cor e coa mesma documentação... para que malgastar. O ser o homem agradecido e engordar com tanta facilidade faz que alguns se refiram a ele como "O Cacholas", porque realmente lembra o pobre a um desses que... fora a alma e a figura... são como nós. Sim, ou se calhar ainda os do cortelho se semelham mais aos humanos normais que este cura de sotana sempre emporcalhada, ele sempre mal asseado; mas isso sim, bem motorizado. Diz-se que vê-lo comer dá risa e nojo... "um bocado no chouriço e o que resta para o bolsão e a colher outro, e assim enquanto durar o que há acima da mesa... depois vai-se para a casa com um fardel escondido por dentro da sotana cheio de chouriços encetados e pedaços de toucinho e magro, e o que dera arrebanhado... e a sotana resplandecendo desde longe coas pingadas da gordura..." O pobre não tem vergonha, até há quem lhe chama porco à cara e a ele tanto lhe tem. E apesar de não conhecer as normas para circular pola terra, nem topar melhor sítio para arrumar o carro que o meio e meio da estrada, ele vai-se salvando... se calhar o da mesma marca e cor dos dous carros é para que se lhe localize bem, não vá ser o Demo e o for Deus confundir, ligara o homem de ter que morrer na estrada. Pois como as freguesias lhe ficam mesmo uma à beira da outra, e com tanto carro, o homem não sabe que há-de fazer co tempo que lhe sobra logo de fartar-se de comer e de beber, que isso também lhe ocupa. Mas os dias no verão são longos e há que topar o jeito de enfastiar os outros mais ocupados com as suas muitas freguesias, e bem longe umas das outras. E isso que alguns, ou melhor dito algum, não tem nem carro; ei-lo caso de Narciso, ele é homem de caminhar, e amargar não lhe amarga, contudo há vezes que a cousa já é demais. Como aquele dia, que ainda por riba era no verão, e na Raia o ar que se bafeja neste tempo de seitura é mais seco que os fumos do Inferno, e ele co saco dos livros ao lombo. Certo é que se oferecera o mandariqueiro a o levar a ele, e mais os livros, até Vilamenor, onde se ia celebrar a reunião para tratar o tema. E assim combinaram: passaria por Ameixeiras, que ademais ficava de caminho, bem cedo de manhã, e recolheria a Narciso e a sua moreia de livros pesados. Os livros eram bons mas, co tempo e a falta de cuidados do predecessor de Narciso, baloreceram tanto que sem abri-los sequer já te entravam as ganas de espirrar com tantos mofos flutuando ao seu redor. Se não se lhes botava uma mão a bulir não durariam muito mais do que os pobres levavam rengueleado polas enormes gavetas do armário da... ali seria a sacristia se a houvesse, que numa igreja tão pequena não faz falta tal... o crego não toca a campa até que já está vestido, e ademais os refaixos não os quita, então digamos que esses caixões estão por ali aposentados perto do Santo António, que seguro que se sente ali mui bem tão abrigadinho, qualquer não o estaria.
     O Santo António tem algo de mão coas mulheres, que são as que distribuem os espaços e os atavios; ele anda mui bem pintadinho e tem mui bons mantéis. Outra que tinha bons mantéis é a Virgem do Carmo, mas esses caíram-lhe duma promessa que fizera a Maruxa da Cristalina quando se lhe pusera o meninho a morrer; e vá que bem lhe curou depois! Então ela buscou e buscou até que encontrou o melhor mantel que se puder comprar, e não lhe amargou gastar o dinheiro que daquela não sobrava. E contudo logo veio o Aurélio, que foi abade em Penacova, e marchou co raio do mantel para outra freguesia... E claro...! Quem se atreve a lhe dizer nada...? Ademais de lispar os mantéis, ainda arramplou com cousas de mais valor e mas ninguém disse nada, ou polo menos à cara... Oh, por detrás qualquer fala! O que levava as de perder dês que se desmantelara a igreja era o Santiago, até o deixaram ao pobre sem espada e agora anda o homem com um livro, e não era por ser Dom Narciso afeiçoado a ler, pois quando ele veio a Penacova para lhe botar uma mão ao seu colega Aurélio que não regulava o homem lá mui bem, o Santiago já andava metido nas leituras... quem sabe, quiçá foi algum desses anarquistas que diz que ainda há no lugar... ou algum inocente que pensara que como o Santiago mora em Compostela se calhar estranhava a vida universitária, e ademais ali em Penacova, a quem ia o pobre espetar coa espada...?
     Daquela, quando Dom Narciso passou por Penacova, já faltava pouco por escaralhar, de isso já se encarregara o titular da paróquia, o tal Aurélio, que por certo fez um bom trabalho, e logo vai e põe-se tolo... "Tolo, o que se diz tolo, diz-se que já estava, e que o dissimulava..." Outros dizem que de tolo nada, que faz o tolo mas que é mui avisado... o que se passa é que agora tem medo polas falcatruas que leva feito... Contudo, quando a Dom Narciso lhe mandaram ir substituir ao crego de Penacova, em parte por ser o que mais perto estava, ainda andavam, de milagre, alguns livros por ali. Ele juntou-os cos de Ameixeiras para restaurá-los todos. Daquela, Dom Narciso ocupava-se de quatro freguesias, e ei-lo cura a correr de missa em missa coa hóstia na boca, com perdão. Às vezes acabavam-se-lhe as existências e velaí o homem amassando e cozendo um pãozinho chato, a jeito de bica do testo, acima da prancha de ferro da cozinha, para repartir depois na missa. Não, algumas vezes não era fácil não ter carro para servir-se, co bem que lhe iria em ocasiões como aquela na que aguardou e aguardou polo seu colega-chefe, o da cabeça grande, e vendo que não parecia que se fosse apresentar não teve outro remédio que botar o saco ao lombo e meter-se ao caminho em pleno meiodia.
     O plano inicial, tal e como lhe explicaram a Narciso, era jantarem todos juntos na reitoral de Vilamenor da Boulhoeira, onde os convidara o Laruças, alcunhado assim polos vizinhos de Penacova e outros lugares. O Laruças, apesar de não ser pessoa à que lhe encha dar, pois tivera o homem o detalhe de convidar ao jantar, e depois da enchente teriam tempo de falar de como seria melhor considerarem a devandita restauradela essa dos livros, que tão urgente lhe parecia ao abade de Ameixeiras. Por certo o lugar da reunião não fora escolhido por Narciso, que a casa do Laruças é a que mais longe fica de todas, não obstante, como o iam levar em carro, ficou o homem conforme. O que não lhe acabara de caber na sua cabeça de cura teimudo era a ideia de que o Laruças, nada conhecido polas dádivas senão por todo o contrário, se mostrasse tão generoso convidando ao jantar a tanta boca, seriam polo menos sete ou oito comensais. Que rareza era aquilo de que o Laruças se oferecera a dar nada, ele que até se se terçava era dos que, malpocado, ainda se atrevia a levar o que não era dele.
     Assim foi como lhe arramplou com uma porta de cerejeira ao tio João. Sim, já sabemos que a cerejeira não é a melhor madeira, mas ainda assim e tudo aquela era uma porta que dava que ver, tão enramada... já lhe oferecera o Maragato não sei quanto por ela, e ele de parvo não lha deu, e deixou-a ali debaixo da solaina exposta, afincada na parede. Mal pensava ele que na Terça-feira de confissão viria o Laruças, logo de repartir penitências, e não daria resistido à chamada da formosura da porta. Mas como ia o tio João adivinhar isso, o tio João não sabia muito de curas porque ele só ia à missa o obrigado —baptizados, casamentos, enterros... para que não se dissesse que ele era um desses que lutara contra Franco, e ainda que isso era certo e toda a gente o sabia, o tio João tinha que dissimular, não fosse que o foderam... mas ainda assim ele não conhecia bem os curas, e não podia imaginar que uma Terça-feira de confissão viria algum deles roubar aquela porta que ele já herdara. Ademais, ele pouco sabia do Laruças, que só vinha a Penacova aos enterros e ajudar no dia este da confissadela, que era cousa séria naqueles tempos. O tio João ficou amolado pola rouba da porta mas não quis o homem dar que falar e deixou a cousa assim, sem lhe pedir contas ao ladrão.
     Como tampouco as conhecia Dom Narciso, senão já se teria decatado, como lhe passou depois, de que aquilo de se juntarem em Vilamenor da Boulhoeira fora um plano argalhado polo Laruças coa ajuda e colaboração do da cachola grande. O que pretendiam era amolar a Narciso e ver se o espaventavam e se ia a dizer missa a outra parte; tão bem que eles estavam antes de chegar este padre trabalhador, e que ademais visita as tabernas. Não, beber não é que esteja mal mas... não tanto, e por riba em público. Mas estes dous tampouco conheciam bem a Dom Narciso nem a sua teimosia e resistência. Narciso estava afeito a caminhar e sofrer passando fome e até sede se fizer falha. Portanto, aquele dia, botou o pesado fardel dos livros ao lombo e caminhou duro até bater na porta da reitoral de Vilamenor da Boulhoeira, a mais de duas horas de caminho.
     Passava bem já da hora do jantar, mas estes, como eram curas, ainda andavam nela quando sentiram a pesada aldraba de ferro bater na porta de fora com uma força do demo. "Quem raios...!" E todos os cregos se puseram à espreita enquanto a criada do Laruças baixava asinha as escadas de pedra e lhe dava a volta à cravelha do portalão. O Narciso passou sem mediar palavra coa criadinha, à que porém dedicou uma olhada de esguelha; era aquela uma mulher pequena e estava algo desmelhorada, Narciso pensou que o Laruças não lhe devia dar boa vida, e isso ainda aumentou o seu reganho. Com aquele rauto dele passou ao meio do pátio e desde ali berrou-lhes aos de dentro, que estavam a guichar desde a janela que dá a fora quem era que petara. "Onde está o porco de Vilarinho que me deixou chantado?" Foram as palavras que subiram até à mesa na que ainda ficavam restos de comida e bebida. Foi um desses curinhas menores que estavam na reunião o que saiu ao patamar e lhe pediu a Narciso que passasse dentro, que não estava bem formar ali tanta liorta. O Narciso nem escutou àquele comparsa, e seguiu botando berros enquanto caminhava para a escada: "Parece-vos bonito, que enquanto vós estais aí jantando cos colhões sentados eu tenha que vir carregado co saco às costas Aguiar abaixo?"
     Por fim, passou para dentro e sermonou-os bem, falando da falta de palavra e do mal que estava isso de confundir a um e trapalatrá... os outros escutavam mas não ouviam nada, logo da comilotada, com aquela carne assada e um vinho que coroava, todo o sangue lhes baixara ao bandulho deixando as cabeças sem rego; e estas caíam de quando em vez co topeneio da sesta, e o Narciso acelerava-se todo ao ver que não lhe prestavam atenção. E coa fome que ele trazia! Pois comer não comera nada ainda que algo já molhara antes de sair de casa. Daquela, já à manhã cedo tinha que lhe meter algo ao corpo, senão não dava o homem encadilhado. Aqueles dias já ninguém em Ameixeiras, nem em Penacova, lhe fazia grande caso, e por riba estoutros sacerdotes que deviam de o animar e o apoiar vão e enraivam-no mais... pois era o que lhe cumpria! Narciso estava começando a fartar-se, e agora enquanto o lembra a caminho da Fonte da Cunca, fecha os olhos e puxa do pinho com tal serenidade que parece uma jugada. Ele nunca esquecerá a sensação causada pola dureza dos livros nas costas, e davam boa conta disso os maçoucados das suas carnes que duraram vários dias; mas aqueles trilhados contra as costelas, por feios que pareceram, não foram o que mais mancara a Dom Narciso, nem o que o levara a tomar medidas. Visto o que lhe fizeram, e ainda por riba se riram dele fazendo que o escutavam enquanto dormiam... aquilo não podia seguir assim. Teria que se preparar para defender-se dessas feras negras, algumas com sotana.
     Aquele dia, e mesmo na beira da Raia, decidiu que haveria de cruzar para comprar com que se defender, dele não se ia rir nem Deus. Tampouco era nada novo, outros muitos já a traziam, e a ele, que sempre ia andando, boa falta lhe fazia. Foi esta resolução a que lhe dera acougo aquele dia na casa do Laruças; e agora, ao lembrá-lo, sente o alívio que deveu sentir aquele dia, pousa o pinho e toma alento enquanto se relaxa com ambos os olhos fechados. Quando os abre vê o punho do Racha-Pedras que lhe vem direitinho às ventas, mas a tempo ele se agacha e esquiva o golpe, mas não o insulto que o acompanha: "Animal, que quase nos fazes cair! Quantas vezes te teremos que dizer que antes de parar avises!" Como já era hora para a partida aí morreu o conto e Narciso, sem dizer rem, marchou embora, como marchara aquele dia de Vilamenor da Boulhoeira, e para o outro dia à manhã colheu o andante caminho da fronteira, que daquela seica se diz que havia, ainda que ninguém de por aqui a vira. Mais adiante, logo de se informar, pensou que poderia terse aforrado aquela viagem, pois há muitos que lhe poderiam ter arranjado uma dessas pistolinhas sem ele se mover da casa; mesmo ali em Penacova diz-se que havia quem as trazia, e em Gomesende, e noutros sítios; mas então ele não o sabia e lá foi, e veio-se à noite prà casa carregado e sem medo já. Medo?... Ulo?

* * *

     Do que não se esqueceu Nuestra Región, no seu apartado de sociedade, foi de fazer referência aos da associação da cidade velha, que como todos nós lembraremos, dedicam-se a recadar fundos para mandar reconstruir a pia, ou polo menos essa era a sua intenção inicial. É de domínio público que andam agora divididos em três bandos. Por um lado estão os que querem reconstruir a pia com exactidão fotográfica a respeito da antiga, estes até diz-se que querem falar cos negociantes daquela comarca para extrair dos montes da freguesia donde nasceu a pia a pedra que seria precisa para a cópia, e em tais cousas andam enquanto tratam de convencer a uma das outras facções para que os apoie. Outro dos grupos também quer a reconstrução da pia, ora, porque não melhorá-la algo? E dado que dinheiro têm, seica o que querem estes é que ao redor da boca, a meia quarta da borda, se lhe faça um colar de pedras semipreciosas fazendo ondinhas para que diga mais bonita. Este assunto das pedrinhas de cores afasta-os dos puristas e faz que ninguém tenha maioria, e que a porfia siga viva. Entanto, o terceiro grupo, que já se distanciara dos outros há algumas semanas, segue cos olhos postos no Caribe e até andam a mirar agências de viagens e sítios aos que iriam de não ser polos teimudos dos outros.
     Felizmente há gente para animar-nos nestes tempos de monotonia, como o poeta Budial, que nos oferece um novo verso em Nuestra Región co que nos regala o sorriso. Seica diz também que a apresentação do seu livro não teve tanto êxito como em princípio coubesse augurar. Qualquer poderia concluir que o interesse das gentes destas terras pola palavra escrita, apesar dos poetas e escritores que daqui saíram, não medra.

* * *

     Dês que se fizera com aquela amiga de coronha recoberta de osso esbrancujado em Montalegre, ou quiçá em outro lugar, Dom Narciso não se sentia tão só; esta era uma seguidora fiel, a onde ia ele ia ela e se algo se passava ela responderia por ele, que mais seguridade precisa um homem? A primeira vez que a deixou ver em público foi numa dessas tabernas que ele frequentava; ergueu um nada o pulôver e tirou-a da cintura onde a levava oculta; sem mediar palavra com ninguém pousou-a mesmo perto da sua bebida como quem pousa o bilhete para que lhe cobrem. Naquela taberna quase sempre eram todos conhecidos dele, e se às vezes havia algum forasteiro já se lhe informava de quem era aquele cura. Narciso fazia o parvo mas de parvo não tinha nada, e bem via como lhe davam de olho aos que fitavam surpreendidos quando ele começava de discursar... "vem contente hoje o Narciso"... ele quase adivinhava os comentários que pola calada se faziam "é-che o cura de Ameixeiras, que lhe dá algo à bebida". Mas aquele dia quando pousou a sua pistola acima do mostrador, perto da cunca do vinho, ninguém se trujiu; não, não houve piscadela de olhos nem comentários polo baixinho. Outra vez sentia Narciso que retornava aquele respeito que noutrora sentira que todos lhe tinham lá na sua primeira freguesia. Por fim respeitado de novo, agora ninguém ria.
     O dono do bar, que era quem sempre estava por trás do balcão, era homem afeito a estas cousas, e foi o menos sobressaltado dos presentes. Na sua taberna, pola proximidade com um clube da estrada 505, entravam às vezes indivíduos de aspecto suspeitoso, e alguma vez vira-lhe a algum, quando arredou o casaco para tirar a carteira, assomar a coronha duma destas. Aqueles davam mais medo que Dom Narciso; aqueles aquelavam-te o ânimo só de vê-los. A vestimenta, essa face meia sem barbear, esses olhos apequenados sempre fitando com rancor, essa voz que arrelava as palavras, e os movimentos de gorila, eram os sinais que lhe serviam ao taberneiro para identificar a estes chimpa-figos que viviam nada mais que de lhe chuchar a bolsa a quatro coitadas. As pobres prostitutas sempre encerradas como toupas na cova-terra; sempre fechadas nesses prédios de Ginzo para que não pudessem fugir; só as deixavam sair quando o negócio o requerer, e daquela bem que as vigiavam. Estes sim que eram animais, e a estes temia o taberneiro, mas quando viu que Narciso sacava a pistola e a pousava acima do balcão, achegou-se a ele e disse-lhe polo baixo: "Guarde isso Dom Narciso, que ainda se vai meter você num compromisso" O cura sorriu para o taberneiro e disse: "de mim não se vai rir ninguém" e a seguir guardou a arma.
     Apesar de que a gente que havia na taberna não se assustou, eram os de sempre, os que se viam ali a cotio, sim que lhes sobressaltou um chisco a pistola. E se por acaso começaram a rir menos quando o cura estava a soltar uma das suas paroleadas, nenhum deles temia a Dom Narciso, sabiam que era um bom homem, se quadra algo tarabelo demais; mas, ai, tampouco ignoravam que o álcool e o ferro misturados não fazem boa jeira, e a partir de então andaram os homens com tino, e algum até deixou de ir por ali uma temporada até que comprovou que não se passava nada. E foi assim como o Narciso sentiu chegar até ele de novo aquele respeito do que ele tanto gostava. Começou de sentir-se poderoso, e ia cada vez apresentando àquela sua amiga de coronha de osso velho em mais encontros. Pouquinho a pouco toda a gente era sabida de que o Narciso portava arma. Já nunca saía da casa sem ela; a pequena pistola formava parte dos hábitos do sacerdote. Às vezes, estando na taberna, algum incluso lhe pedia que a ensinara, e ele não se fazia rogado; sacava-a, mostrava-a entrementes a cofiava como quem acarinha a um cãozinho, e volvia-a guardar. Alguma vez escutou a um dizer que aquela pistoleta era engraçada mas não era nada grande, que mesmo parecia um brinquedo, que ele sabia de gente que as trouxera desse mesmo sítio donde ele trouxera a sua e que eram do nove largo... Aquilo deixou a Narciso amolado; agora que tinha o homem tudo outra vez controlado vem esse comentário e... raios te partam, deixa ao homem desarmado! Esse mesmo dia se informou Narciso de quem eram os que traziam tal contrabando, e antes duma semana já tinha ele o seu nove largo. Ali, na mesma taberna, como sacara a pequena a primeira vez, sacou agora em vez desta a grande. Esta era negra, como um cão grande de raça; os que lá estavam calaram, até se diria que se assustaram. Dom Narciso ficou um nada surpreendido por aquele tanto silêncio, tampouco tencionava assustá-los; Narciso só queria respeito e não que lhe tivessem medo. O taberneiro olhou para Narciso, mas esta vez não abriu o bico. Narciso guardou a arma e diz-se que naquela taberna nunca mais a volveu sacar. Ele sempre a levava nos bolsos, ou na cintura, escondida, e sentia-se o homem mais seguro e mais respeitado sem ter nem sequer que ensiná-la.
     Coa boa sensação de ter atingido uma meta, marchou Narciso a saudar um novo dia, e o mesmo fizeram os outros dous homens. Levavam já um terço da subida ao Zebreiro. Desde onde deixaram hoje escondida a pia puderam ver a Veiga do Fojo e os Penedos da Cabana. Atrás, pola esquerda, ficava já a Vela de Penalapa. Os Penedos da Cabana, pola parte de detrás, chegam quase até Gomesende, formando uma serra que vai minguando a modinho até rematar numa espécie de sarriço estreito. Por detrás da Cabana passam as paredes dos lobos, que vão morrer lá na Veiga do Fojo, onde ficam, como o seu nome bem indica, os restos do que foi o poço onde caíam os lobos. Tanto as paredes quanto o fojo foram feitos há mais de cem anos coa finalidade de atrapar e dar cabo dos lobos, que eram as animálias que mais inçavam por estes montes.
     Eram tantos os que havia que às vezes matavam até vinte ovelhas duma volta, e a gente não teve outro remédio que artelhar o das paredes. Quando se faziam as corridas vinha gente de toda a província e espalhava-se por todos os lindes do Zebreiro; depois, quando tudo estava pronto e toda a gente no seu sítio, desde a Vela de Penalapa acendia-se o lume para avisar a todos de que começava a troula. A gente organizava uma autêntica verbena com instrumentos musicais tais como latas de azeite ou do pimentão vazias, caçoulas de ferro e chaves, e cousas desse estilo; e os animais espaventados polo barulho iam-se metendo mais e mais na boca das paredes. Já perto do final, onde aparecia o cocho —que era um buraco bem fundo— as paredes iam-se juntando. Àqueles pobres não lhes restava mais caminho que saltar e cair no fojo da morte. Os anos foram passando e do buraco só fica um resto quase inapreciável, o tempo e mais a falta de uso foram-se encarregando de cegá-lo. Das paredes fica algo mais, nalguns sítios ainda levantam bem, mas noutros estão esborralhadas. Dos lobos fica a memória; já só cria uma loba lá em Penacereija. Agora nestes montes há só javalis e corças e outros animalzinhos, mas lobos não, como daquela não, desses não ficam. Então tinha-se-lhes medo porque te comiam a fazenda, ou o que ligara. Nesses montes tão grandes se se te perdia algum animalzinho, lá ia. Havia uma cheia de cantares e coplas que davam boa conta desses acontecimentos, porém, também foram, como os lobos, desaparecendo; a alguns salvou-se-lhes, como às paredes, um bocado:

Chove, neva, escarrapateia,
fogem os lobos do monte prà aldeia.

     Numa ocasião perdeu-se-lhes o cavalo a duas irmãs, vizinhas de Penacova, e o pândego que havia daquela na aldeia ofereceu-se a lhe botar o responso para que estivesse o animal a salvo; mas confundiu-se e em lugar do responso saiu-lhe a cantiga que ainda ressoa hoje polo lugar:

Lobos que andais polos montes
avivai bem os sentidos
que anda o cavalo da Flores
e o da Mercedes perdido.
E se os lobos não o topam
que o esfandanguem cem mil diabos.

     "Ai, dianhos te não levem, tu é que a arranjas...!" As duas mulherzinhas ficaram desesperançadas. Daquela no Zebreiro havia muita vida. Agora, de descontado os javalis, as corças, os teixugos, os raposos, os coelhos, as gardunhas, as doninhas, toda uma cheia de pássaros e outros animalzinhos pequerrechos como o ouriço-cacheiro, já só ficam estes três homens da pia. Também é certo que lá no pico mais alto dos montes da contorna está a emissora desde onde se vigia para que não ardam os pinheiros. O Zebreiro agora está coberto de pinheiros, e há que guardar de que não venha um lume e os larpe. Um homem que dedicou alguns anos da sua vida a esta vigilância foi o Ciro. Subia aí pola tardinha caminhando até acima; já sabemos que ao Ciro não lhe amarga caminhar. Mas agora já nunca sobe arriba, mas é só por mor de não andar ele lá muito bom. Agora há outros mais novos que sobem. Pois logo mais lhes vale aos da pia ter conta dos faróis, não vão ser avistados desde o alto. Claro que, se não vêem lume, quem pode crer que ande alguém polas touças ou os pinheirais...? "Será a Santa Companha", chancearão os dous vigias e seguirão a velada "dorme tu que eu já miro, e depois cambiamos".

* * *

     Nuestra Región segue sem mencionar o destino dos agentes que supostamente seguem lá pola Raia na procura de informação, ou se calhar já se vieram e não se sabe nada.
     O que sim menciona Nuestra Región é que, segundo parece, o adinheirado cidadão que diz-se que se oferecera a dar uma boa mão de bilhetes àquele que proporcionasse informação fidedigna, segue com essas intenções, porque não tem tido sorte e não pôde polo de agora fazer a sua boa obra. Pola sua porta passeiam-se diariamente pessoas a procurá-lo. Apesar de que o jornal não dava pistas do domicílio do tal rico, seica houve quem o adivinhou, e desde então não pára de lhe chegar gente à porta. Ali o seu criado, ou se se preferir, secretário, tem ordens de não soltar nem um real. Ele disse que até que se veja a pia ele não dá nada, que senão não é obra benéfica e nem sequer lhe serve para reduzir impostos. Pois também tem razão o homem, ao ter de fazer uma boa obra que lhe vai, seguramente, contar no Além, porque não que seja qualificada de benéfica e que também lhe sirva no aquém? Há quem quer fazer o bem, e tem dinheiro com que fazê-lo, mas não pode... e diz-se que anda o coitado do homem amolado.

* * *

     Os homens da pia seguem sem descanso, noite vai e noite vem, a sua escalada para o alto do Zebreiro. Às vezes mesmo lhes custa topar sítio polo que possam ir esgardunhando. Na parte das touças tiveram sorte porque a rodeira segue aberta; aquela é uma rodeira feita durante vários séculos, por ela encheram-se de subir carros e mais carros que ano trás ano baixariam carregados de lenha para quentar as lareiras de Penacova, e ainda outras doutros lugares onde havia menos monte. Organizavam-se os carretos, com sete ou oito jugadas, e levava-se a lenha a Ginzo, ou onde for preciso. Hoje já só sobem de quando em vez os tractores, mas avonda para manter o vieiro aberto. Logo as touças vão ficar detrás e adiante aguardam as plantações dos pinheiros. Andar por entre estas árvores de folhas afiadas tem a vantagem de estar bem protegidos e contra à manhã poder marchar sem ter que levar muito trabalho em esconder a sua mercancia. Às vezes acodem às devassas, e se vão na direcção atinada, usam-nas como se fossem caminhos; nestes casos têm que andar com mais cuidado para não ficar muito ao descoberto, ora que aqui no meio destes montes quem os vai pensar. Se alguém os visse faria o mouco para que ninguém possa dizer que virou tolo.
     Dom Narciso segue a puxar polo pinho, ora com força, ora com raiva, e enquanto e assim, tira também da memória e vai vendo o homem como foi que ele veio bater àquele cárcere do que o tiraram asinha para o levar ao psiquiátrico no que ainda passa os dias, e do que tem que escapulir-se para vir cumprir co seu destino. O Narciso estava afeito a que o andaram trazendo e levando, e mais ou menos ele sabia quem manejava os fios, mas agora não tinha nem a mais remota chispa de claridade sobre quem, ou quê, dirigia os seus andares. O único que sentia ele era que uma força o empurrava monte arriba e que não podia detê-la, nem sequer sabia o homem se queria pará-la. Algo lhe transmitia a sensação de que por primeira vez se dirigia a algures. Mas não é novidoso que Dom Narciso se sinta bem sendo guiado, a isto está-che ele bem afeito, quiçá afeito demais, e portanto não tinha lá muita manha co de dirigir-se só, e cada vez que o tentava acabava perdendo o norte e outra vez o pilhavam e o amarravam curto, como faziam agora os senhores das batas brancas.
     Mal pensavam todos naquela residência que Narciso fosse capaz de argalhar extravagantes artimanhas para escapulir-se, e fazê-lo ele sozinho. Ele já descobrira que se estás calado e não dás que fazer, pois és considerado bom e bem se vê que vais curando; e que melhor jeito de estar calado que não estar! A ausência pode ser mui informadora das andanças de qualquer se se conhece, mas se se pensa que esse vulto de almofadas é um homem que descansa, logo não te diz nada. E a ausência passa pola calada noite trás noite polo leito de Narciso. Ora, a Narciso não se lhe pode esquecer esconder as pílulas de diversas cores que lhe dão a tomar antes de ir à cama; ele faz como que as engole enquanto as oculta como pode baixo a língua, depois cospe-as no retrete e lá vai o homem curando. Se as enviasse para abaixo não teria outro remédio que ocupar de noite o sítio das almofadas, e claro, isso não é o que ele tem que fazer. Ele não está quase nunca seguro do que deve ou do que deve não fazer; ora, co das pílulas não tem dúvidas. Oxalá tivera as cousas assim de claras quando se dedicara a acumular armas.
     A cousa começou por uma pistola pequena, logo seguiu-lhe o negro nove-largo, e mole e mole, como diziam as más línguas, montara o homem uma armaria na reitoral. Ora, muitos não acreditam no que se ouve: "isso são lendas e trapalhadas". Uns que sim, outros que não, mas sem criada que o pudesse ir falando, porque Narciso não tinha a ninguém para servi-lo, não se podia estar certo de tudo. Se tão sequer tivesse uma criadinha... Narciso sempre soube governar-se só, ou ao menos ele ia-se arranjando; às vezes algum de brincadeira perguntava-lhe que como era que não tinha criada para servir-se dela como os outros curas... que colhesse uma, que não fosse parvo. Ele meio a sério meio a brincar admitia estar cansado, mas que o seu cansaço não lhe vinha dos trabalhos que lhe podia aforrar a criada senão de ter que aturar a tanto alpavarda na freguesia, é que não há Deus que os dê levado a caminho, e isso que ele tentara-o tudo... e mas olha que de nada lhe serviu. Mesmo agora, dês que conseguira essas amigas de ferro, algum domingo em lugar de tocar a campa botava-lhe uns tiros ao ar desde o pátio; mas não vale, os de Ameixeiras perderam a fé completamente, ou já não têm nem vergonha, e não visitam a igreja mas que quando se vêm obrigados, alguns cos pés por diante... E Narciso ei-lo a protestar, agora as suas dissertações em lugar de versar sobre a injustiça e a humilhação só falam do que ele quereria que se passasse, e isso que nem sequer ele o sabe. Portanto anda o homem danado e vai dizendo que já foi falar co bispo e que lho deixou bem claro: "...que se não me cambia de freguesia, que caso" Mas nada, o bispo não o cambiava de freguesia e o Narciso andava doente sem ter sequer moça buscada. Porque será o que fosse mas, a diferença de outros curas, a Narciso nunca se lhe conheceu moça. Se a teve sabe-o ele, mas de falar por essa causa não te deu nada. E claro, sem moça, como ia casar o pobre do abade?
     Ali seguia em Ameixeiras. O porquê o bispo não lhe cambiava de freguesia ninguém o sabe, é um desses mistérios inexplicáveis. Mas não seria de estranhar que ao bispo lhe custasse algo muito encontrar outro que quisesse vir para o posto de Narciso. Ameixeiras, depois de que uns moçotes se montaram uma vez, há já muitos anos, a cavalo dum cura, não tem mui boa sona entre os abades. E isso que depois fizeram-lhas pagar; ai fizeram, fizeram, a um deles, que era primo do Colmeias, mataram-no daí a logo da broma. Bem seguro que o tal crego dera conta dele, e naqueles tempos a Guardia Civil não se fazia rogada. O caso é que pouco a pouco a distância entre o Narciso e os vizinhos de Ameixeiras foi medrando e o que se via vir era um divórcio traumático. Se o bispo o tivesse escutado...
     Algumas cousas diz-se que são bem certas, como quando dizia a missa com as pistolas no altar pousadas. Era um contraste bem grande ver aquela pistola tão preta perto da Sagrada Hóstia tão branca. No entanto os que dizem que fez muitas vezes uso das armas em público mentem, ele só as ensinava; e quando tirava tiros era em privado, ora claro... ele não podia impedir que os vizinhos de Ameixeiras os escutassem. Mas o Narciso em público só disparou uma vez, e pôde ser um acidente, quem o sabe, isso nunca se dará aclarado. O caso é que a Dom Narciso foram-lhe apondo cousas, como mulheres não tinha... filhos não se lhe podiam apor... pois a ordenar-lhe histórias!
     Escusado é dizer que ele cos outros abades não se levava dês que... desde sempre, dês que chegara à freguesia. Estoutros faziam que não o conheciam e só se juntavam com ele nos enterros de obrigado; nestas ocasiões Narciso aproveitava para zangá-los; melhor dito ele tentava-o, porque os outros não lhe faziam caso nenhum, nem sequer o escutavam. Narciso andava ao dele, e enquanto os outros ainda andam no adro co defunto, às voltas co "ora pro nobis" dos responsos pagados, ele aguarda dentro da igreja e vai falando. E os outros que não param de cantar e ele dá-lhe que dá-lhe a falar. Dentro há gente que o escuta, ou ao menos que não tem outro remédio que ouvi-lo. Algumas destas pessoas são maiores, ou estão cansas por ter vindo ao enterro a andar e querem ir pilhando sítio, que depois enchem-se as bancadas e logo de pé não se está nada bem. Ele qualquer que for o motivo que os fez entrar a sentar, eles estão ali e a Narciso, aborrecido de esperar, já lhe abondam como público, enquanto os outros curas não entram e anda o funeral polo sagrado. Algumas vezes diz-se que dizia: "tanto a chiba de Vilarinho como a cabra de Vilamenor, já podiam parar de berrar e ir comer verças às hortas" e cousas assim.
     Claro que se bem se mira, a quem não lhe rende o tempo numa igreja aguardando? Ele nas igrejas já se sabe... e até há gente que não dá passado o tempo nem com missas nem com cânticos. Como dizia o Afonso logo de sair ao adro: "minha madrinha, que longa se me fez a missa, ai, como me rende aqui o tempo! Cada segundo uma hora... E ali a fazer que rezo, e sem entender nada de nada, só movendo um chisco os beiços para não passar vergonha...!" Parece que isto de se aborrecer na igreja não é nenhuma novidade; e se ainda por cima já tens aquilo mui visto, como deve de lhe passar a Narciso, pois não fica outro remédio que o tomar com paciência. E a paciência não era precisamente o que lhe sobrava por aquele então a Dom Narciso. Sobrar, sobrar, há quem diz que o único que lhe sobravam eram as armas; é que... onde se viu outra...?
     A alguns vizinhos parece-lhes mentira que a Guardia Civil não tenha feito algo, saber bem que o sabem, porque uma cousa é fazer o cego, e outra querer-nos fazer cegos a todos. Houve vezes que a sacou mesmo na presença deles, e eles foram-se para outro lado. Como ainda lembram todos os que estavam presentes na antiga escola de Ameixinhas (lugar que não deve ser confundido com Ameixeiras) aquele domingo de eleições. Narciso cumpria coa sua obriga, ele no fundo sabia mais que muitos o que tinha que fazer mas não encontrava o jeito, e ainda por riba agora coa bebedela tudo se lhe punha anuviado... mas contudo ele cumpria co seu dever e antes de dizer a missa sequer, ia votar. E isso que bem reganho que lhe dava porque, como toda a gente sabe, no concelho de Os Mouros tudo está sempre amarrado; é-vos este um concelho onde, se se me apura, há mais caciques que gente. Ele o caso é que aquele dia as cobrejantes estradas andam transitadas polas furgonetas carregadoras dos votantes; vazio irá detrás o autocarro oficial. Há quem diz que uma vez dentro da dekauve lhe dão à gente o boletim para que saibam por quem têm que votar; há quem diz que lhe cambiam a que levam se não é do partido deles... Mas isso nem sequer teria sido preciso, Os Mouros e a sua comarca andam ainda enraizados nos hábitos tradicionais e de todos é sabido que o intercâmbio é a chave de toda interacção social. Se o voto fosse secreto toda a gente poderia ir votar sem medo, mas ele que vai ser! Todos sabem a quem dá um o voto, e sendo assim, pois não o vais dar a câmbio de nada e que pensem que tu és parvo, pois logo... aí vai o boletim... vá a câmbio doutra cousa que me deste, ou fizeste, ou hás-de dar ou fazer... e senão para que nabiça ia um ir lá tocar a chanca. Nos Mouros contam-se cos dedos duma mão os que votam só para escolher representantes, e ainda te sobram dedos. O voto de Narciso tampouco é secreto para ninguém, e não é porque a Igreja se presente às eleições, ou que ele fosse a votar-lhes; ele é um homem de ideias e ainda que vista os hábitos as ideias não as perde. Os outros curas tampouco as perdem e o domingo desde o púlpito sagrado muitos deles fazem propaganda, nem proibições nem o caralho. E todos, ao sair da missa, direitinhos a lhe votar àquele que disse o abade. Ora Narciso não é como os outros e por isso as cousas não se lhe arranjam. Mira que já lho dizia sua mãe "filho, não faças isso... olha que na terra dos lobos há que uivar como eles" mas a Narciso não se lhe dobra a língua para uivar como os outros, e anda o homem só e meio calado. Aquele dia das eleições, e logo de introduzir o sobre co boletim polo buraco da urna, sacou Narciso a pistola e em presença de todos os da mesa e muitos outros que havia, apontou-lhe à caixinha transparente, na que já se viam três ou quatro furgonetas de votos, e enquanto os canos da sua arma roçavam o metacrilato dissera: "arranjai-vos, que senão arranjo-vos eu!" Mas os papelinhos seguiram ali pousados tão inertes como antes; e uma vez mais os votos, apesar da advertência de Narciso, não se arranjaram. Aquela vez diz-se que há quem viu como a parelha da Guardia Civil saía da casinhola para não ter que o ver. A Guardia Civil só andava ali para que ninguém não fosse depois dizer o que não era; e que não fossem vir logo a denunciar aos honrados trabalhadores das furgonetas por dar-lhes o boletim aos que carrejavam. Os guardas civis eram testemunhas do bom transcorrer e da normalidade com que a gente entrava, só, e quase sempre polo seu próprio pé, e votava. E nem seria cousa com jeito ter que prender o cura, e isso em domingo e tudo, e sem ter permissão, e..., deixa andar! E assim foram passando os meses e os anos, e as eleições..., e mas não vale...
     Aquela noite fizera-se-lhe mui curta a Narciso, e até teve que ser avisado polos companheiros de que eram horas de ir parando. Desde a devassa que sobe em direito das touças, tudo para acima, até a Regueira Funda, que vai ter ao pé do Penedo do Leão, podia ver como a Estrelinha do Luzeiro pestanejava em presencia daquela claridade que queria vir; e os três homens apuraram-se a esconder tudo e ir-se bulindo asinha.

* * *

     Logo de deixar a Ciro, co seu fio de fumo ainda seguindo-lhe, os detectives detiveram o carro a meio caminho entre a Coanheira e a Lajeira, perto dum souto de castanheiros, e baixaram andando polas poulas. Em chegando perto das casas do Eiró avistaram uma mulher que andava apanhado verças numa horta rente ao caminho, pola parte de abaixo. Era uma mulher já metida em anos, pequeneira, pouco mais levantava que as verças nas que depenicava uma folha aqui e outra acolá, com tino de não deixar umas covelheiras mais despidas que outras; se a viram logo foi polo contraste da cor. Vestia toda inteira de preto, com excepção dum avental riscado, um desses que se cingem à cintura com uns arrebites que atam cara atrás. A mulher erguera a olhada quando sentiu o carro e viu como dous desconhecidos baixavam campo abaixo; quando viu que eles se achegavam à sua mera, botou a apanhar nas verças fazendo como se não os vira...
     —Bons dias, senhora.
     —Buenos-dias...
     —Olhe, nós vimos de Ourense e estamos interessados em qualquer informação que nos possa dar sobre um assunto que se passou...
     O homem seguiu falando e acrescentou nova informação, mas a tia Maria não escutou além dessa primeira frase. Na cabeça da mulher ressoaram fortes as palavras: "Ourense"... "interessados"... "assunto que se passou"... e co zunido dos ecoares dessas poderosas palavras não pôde ouvir mais nada; e isso que ela para andar nos noventa e tantos anos ouvia bem.
     —Olhem, eu sou-lhes velha e já não sirvo mais que para apanhar aqui duas verças para o caldo...
     —Não, se nós não queremos que você faça nada, nós só queremos informação sobre uma pia... se você nos pudesse responder a umas perguntas...
     De novo esse ressoar aboujador das palavras que, ressaltando elas, acovilham as outras, deixando-as assim escangalhadas por entre as perneiras das verças: "queremos informação"... "responder"... "perguntas"...
     —Mas olhem o que lhes vou dizer, aqui neste lugar, coma nos outros da sua comarca, que têm ido a menos nos últimos tempos e já não hã tanta gente como havia dantes... que vai haver! Se aqui eram polo menos oitenta os vizinhos de jugada e agora ficam dous com vacas, e isso poucas... mas agora leva-se mais o ter ovelhas. Ai, quem o diria algum dia! Essa Veiga cheia de vacas e Deus te livre de que entrasse ali uma ovelha, e agora...
     A Maria decatouse dos acenos de impaciência que os homens manifestavam sem querer e apurou-se a acrescentar:
     —...pois bem, ainda assim e tudo, há gente que entende algo, eu não sirvo para nada..., dês que um vai velho só serve para ir passando o tempo que lhe puder restar.
     —Sim, senhora, entendemos bem o que nos quer dizer e sabemos que quando um vai para velho a memória vai indo a menos e...
     A Maria não aguardou que o detective rematara o discurso sobre as fraquezas da memória, e não perdeu tempo em agarrar-se àquela palavra como o náufrago a um canhoto, e apurou-se a dizer :
     —Isso é..., a memória não lhe me serve para nada..., olhem lá...! Hoje à manhã quando me ergui,... cedo porque eu não gosto de estar à preguiça esperta na cama, de perder o tempo na cama não gosto nadinha..., homem se estivéssemos no inverno ainda tinha um passe... pode um estar ali quente até que esteja o lume aceso, mas agora neste tempo que vai bom... pois não gosto de lacazanear e ergo-me cedo... Pois verão, quando me ergui almocei, e agora se mo perguntassem não lhe saberia dizer o que comi, ou o que não..., ainda que eu, desde há muitos anos sempre almoço o mesmo; mas desde que um vai velho já não che é o mesmo...; desde que um tem o caminho andado não vale..., quem fosse novo outra vez e sabendo o que sabe...!
     —Pois ainda não é você tão velha, e seguro que sabe mais do que você pensa...
     "Sabe"... "sabe"... "sabe"..., que teimosos eram aqueles dous! Melhor dito um, o mais velho, porque o mais moço ainda não desfechara a boca...
     —E eu que vou saber, eu não lhes sei nada, se dantes deica pouco não íamos à escola, e ademais só havia o Catón e o Silabario, como vamos nós saber... não, não, nós como quem diz não sabemos nada, perguntem-lhe vocês aos novos que esses agora lêem muito nos livros e não é milagre que saibam, co tempo que lhe dedicam não fazem favor; mas uma já não serve para falar coa gente..., uma só serve para ir chouchando enquanto Deus o quiser.
     —Depois havemos de ir falar coa gente nova do lugar mas primeiro queríamos que você nos dissesse se sabe algo relativo a uma pia que desapareceu...
     —Não, eu não lhes sei nada da pia que desapareceu, ademais disso há tantos anos que qualquer se vai acordar agora ...
     —Então você... acorda-se?
     —Eu? Eu como me lhe hei-de acordar...! Aos meus anos! Foram vocês os que o mencioram trazendo a cousa ao rego, e não eu..., eu já não se pode um fiar do que se acorda e do que não. Agora nós, chegado este tempo, que pouco nos resta já por andar, só servimos para estorvar..., estorvar e dar trabalho.
     Os agentes insistiram e insistiram mas não puderam tirar cousa com jeito daquela conversa. Amolados por não obter muita mais informação que da primeira, foram-se rua fora caminho do Eiró. Bem que lhes amargou deixar a velha com as suas verças mas nem fazia jeito forçá-la muito, ao cabo ela parecia algo confusa, e quem sabe, se calhar era certo que lhe não defendia muito a memória. Contudo e isso eles tiveram que bulir de ali co rabo entre as pernas, ou como se diz por Penacova... "saiu-lhes a porca furada"
     O agente mais novo parecia não alvoriçar-se muito; andava ele algo distraído olhando para a paisagem que neste lugar parecia sobrar por todos os lados. Ele viera de Barcelona destinado a Ourense uma temporada, e ainda andava o homem tentando entender a língua e mais a paisagem, ambas as duas cousas irmãs na estranheza para ele. Coa língua já se ia defendendo na cidade, mas quando chegou a esta aldeia compreendeu de que tinha que afundar algo mais, encontrava muitas palavras que não tinha jeito de acotegar no seu delgado dicionário; mas ele insistia e co passo do tempo havia de ir aprendendo. Palavras e carvalhos, assim tudo revolto, verde e são, entravam polos seus saturados sentidos e iam fazendo o seu efeito; "sim homem, sim, se o que faz falta é querer..."; e a ele vontade não lhe faltava, foi por isso que quando se decidiu a vir desde a beira do Mediterrâneo pensou que de seguro as similitudes do galego co seu catalão natal lhe facilitaria a sua adquisição, polo menos à primeira. Claro que quiçá lhe teria sido melhor ir um chisco mais arriba no território galego, digamos por exemplo à Corunha; ora, se calhar ir ali não lhe servia para os seus propósitos de adquirição da língua. Diz-se que muitos habitantes daquela cidade, apesar de passarem a vida inteira nela, não conseguiam aprender nunca, logo a escolha não fora tão má como pudesse parecer. Ourense, e em particular esta zona da Raia, tem um jeito de falar bem diferenciado, e às vezes custava-lhe entender o que dizia a gente ainda que fosse sabendo o que queriam dizer as palavras. Olha o catalão, para que logo nos venham dizendo que são... o que não são... Já gostaria eu de que outros, mesmo alguns de dentro da casa, fossem..., eu bem me entendo.
     Entrementes, a tia Maria seguia na horta: "por sorte marcharam... pensei que não me dava livrado deles, que dianhos andarão a procurar,... e mira que vir-me cá com isso da pia... como que alguém vai ser tão inocente de lhes crer que andam interessados pola pia... a mim não me enferram, alguma outra cousa terão tramada... e claro, não lho vão dizer assim a qualquer; pois logo de mim tampouco vão levar muito..." A tia Maria, como a maioria das viúvas e outras pessoas que passam muito tempo em soidade, tinha o são costume de falar só... De que outro jeito ia senão ela escutar a voz humana? E certo é que quando uma fica viúva por muito tempo estranha tanto a voz do companheiro, e estranha tanto a voz de dentro... A Maria havia já tempo que se afizera a escutar só a sua voz, e por isso não era fácil que agora alguém chegasse e lhe fizesse dizer o que ela não quer só por não dar aturado os devezos de falar. Se os agentes tivessem ficado por ali acochados perto do cadabulho da horta, teriam escutado o que a Maria acabou dizendo sobre da pia; porque já que lhe lembraram a cousa ela aproveitou-a para manter a sua conversa, pois certo é que quando um conversa só custa-lhe mais encontrar temas sobre dos que falar. Mas os agentes tinham tanto apuro por encontrar informantes que não puderam perder nenhum do seu precioso tempo espreitando a uma velha. Ademais, se alguém os via, que ia pensar? E como iam eles adivinhar que ela falava só? Consequentemente os dous homens recolheram as suas ânsias de saber e foram-se rua abaixo; ali no meio do lugar toparam-se com gente mais nova.

* * *

     Estas noites de lua cheia eram de grande ajuda para os três homens, que assim não tinham que alumiar-se cos faróis nem passar medo de ser descobertos. Os medos que eles traziam, em particular os de Narciso, eram-che bem outros, bem não escuros e frios. Os temores que se rebuliam dentro do peito de Narciso vinham-lhe da sua cabecinha, pois por aquele solitário Zebreiro lobos dos que amedrontar-se já não havia. Mas apesar da muita luz que a lua derramava na devassa pola que eles subiam, aquelas noites foram as mais negras, as mais escuras e criminais para Narciso. Ele via como aquele homem, ou crego, que protagonizava o seu passado, andava já sempre desencarreirado. Era a sua uma cruzada perdida e mal levada por ele. Agora já só em contra dos caciques da zona. Não ficava nunca claro, nem sequer para ele, quanta gente caía dentro dessa categoria. De seguro que ademais dos clássicos, os de toda a vida, os que toda a gente pode distinguir polos seus traços identificadores: bem mantidos, soberbos, e com mal gosto para quase todo, especialmente para vestir, Dom Narciso também incluía entre os caciques contra os que erguera aquele combate de falares incendiários, aos inspectores de granjas de UTECO e aos guardas civis retirados. Cada quando que ele agora se topava com um desses, montava um cristo verdadeiro. Às vezes até saca a sua arma e então a cousa vai piorando. E claro, via-se vir a desgraça. Agora até no sagrado se enfrentava a estes indivíduos, para ele indesejáveis; mais dum, seica farto de o ouvir, faz por evitar todo o possível contacto que os possa pôr num compromisso. Apesar do cautelosos que se volveram alguns, particularmente para não dar que dizer, há vezes que a ocasião requer a presença dum. Como lhe passou ao Saturnino no enterro da sua tia em Ameixeiras.
     O sobrinho da Hermesinda era um dos caciquinhos de pouca monta repudiados por Narciso, um desses que entre outros têm o ofício de carregador de furgoneta no dia das eleições; felizmente, vivendo noutra freguesia eram mínimas as ocasiões nas que se cruzavam ele e o abade. Mas morreu a Hermesinda e o tal sobrinho não teve outro remédio que assistir ao funeral que tinha lugar em Ameixeiras. Já estava a defunta no sagrado, pronta a entrar na igreja, quando por entre as caras dos ali presentes avistou Narciso ao cacique. Interrompe os "ora pro nobis" e os "secula seculorum" e algo rosnou baixinho. Depois começou a dizer que a Hermesinda era uma ateia que nunca lhe ia à missa e que não deveria ter sepultura no sagrado... E ele é certo que a Hermesinda ultimamente não assistira com frequência a cumprir coa sua obriga do domingo, mas por razões que lho impediam, pois desde fazia já algum tempo ficara a mulher tolheita de tudo, e não lhe valiam as pernas para nada, quase não se podia mover. O Narciso não pára de rosnar e rosnar, e os vizinhos surpreendidos por aquele despropósito não sabem o que hão-de fazer e olham uns para os outros até que finalmente todos os olhares se dirigem ao sobrinho da defunta, ao Saturnino, para ver que é o que se faz, pois ele é o mais achegado dos da gente dela. A Hermesinda tivera um filho de viúva mas morrera-lhe e agora só lhe ficava uma irmã e o sobrinho para defender o seu nome. Aquelas tantas olhadas acurralam o Saturnino, e mais que ajudá-lo põem-no cara ao precipício. Não tem outro remédio que obrigar o abade a que cumpra co seu dever de sacerdote. E assim, com essa determinação, começa a caminhar em direito ao abade, enquanto a cara se lhe vai acendendo polo reganho e a vergonha que já são inevitáveis, e diz-lhe que aquilo ele não o permite, e que será polas boas ou polas más, mas ele enterra a defunta. Então foi quando o Narciso tirou a arma do peto e apontou ao Saturnino enquanto lhe dizia: "se te moves meto-te um tiro" O Saturnino ficou cravado no chão como um espeque e o encarnado da cara trocou-se em céreo. Narciso segue-lhe apontando enquanto lhe diz que não se apure, que ele não quer matá-lo, só pretende capá-lo, e por isso lhe vai tirar aos colhões.
     Nesse momento todas as olhadas vêem como, efectivamente, a inclinação dos canos do nove largo indicam que a bala, de sair disparada, passaria por essa zona de entrepernas, mesmo onde se juntam as brilhas e se decolgam as partes. Alguns dos presentes, que não gostam do caciquinho, sorriem, e para os seus adentros, bem que se alegram do que ali se está a armar. Mas ninguém abre a boca, e a cousa continua. Narciso segue coa teima de que ele à velha não a enterra e que em vez disso lhe vai enterrar um cacho ali ao sobrinho, um cacho que lhe sobra porque ele não é homem nem é nada... Aquilo semelha estancado e mesmo parece que vai durar eternamente. Alguns pacificadores começam de falar... "que remate co enterro e logo depois já terá tempo de lhe arranjar lá as contas ao sobrinho..." mas nada, Narciso segue na sua postura e apontando ao Saturnino. Estava tão atento ao que se passava por diante dos seus olhos que não se apercebe de que por detrás se lhe vai arrimando um homem, um guarda civil retirado, vizinho do Saturnino, e até amigo dele.
     O guarda retirado, acostumado a actuar pola sua conta e sem permissão de ninguém, decide então meter-lhe uma punhada ao cura no braço co que aponta, para ver se solta a pistola. Todos viram como o braço de Narciso baixava e a arma se disparava. Um homem caiu ao chão, todos pensam que está morto. A bala, trás passar por entre os joelhos do Saturnino, foi bater no pé do João, um moço de Penacova que estava ali no enterro como o resto dos vizinhos. Ao João levaram-no à urgência e tudo ficou em nada, a bala não lhe causara mais do que uma ferida leve. Aquilo parecia-lhes aos que o atenderam um milagre... o projéctil atravessara o artelho e não causara nenhum dano nem em osso nem em ligamento nenhum.
     O João volveu logo para a casa sem rancores para ninguém: "Ele a mim não me tirava, foi sem querer". Ao João não lhe fizeram assinar nenhuma declaração, mas aquilo não livraria a Narciso do castigo. Narciso foi levado num furgão da Guardia Civil, diz-se que os chamou o colega retirado, o encarregado de lhe meter a punhada afortunada... A reitoral onde morava o Narciso foi esquadrinhada e por fim soube-se a verdade sobre a lenda das armas; já sorriem os que assim o antecipavam: em casa de Narciso havia muitas armas de Deus, ademais das pistolas havia escopetas e rifles e até uma metralhadora. Os refistoleiros dizem que só de munições encheram uma teiga, que de enchê-la de grão levaria uns treze quilos. Ninguém parece alegrar-se, excepto o guarda civil e o cacique, do que lhe passou a Narciso. Uns dizem que o pobre está tolo, outros que se foi da bebida... e todos parecem estar de acordo em que se alguém tomara medidas antes, isto não teria porquê ter passado, já que tanto o bispo como as autoridades estavam informadas das andanças do cura. As gentes de Ameixeiras, o mesmo que os das freguesias vizinhas, sabem que a eles ninguém lhes faz caso até que algo que já não tem remédio se passa... "Pois anda que não estava toda a gente sabida do que se passava e do que não"
     Agora andam todos os da freguesia à espreita a ver o que fazem co crego... "Para aqui que não se lhes ocorra mandá-lo outra vez", dizem alguns; "já verás que pouco dura no cárcere", dizem outros; "coitado homem", dizem os mais deles. Não, a gente não queria a Narciso de volta, um homem que faz essas cousas, ainda que seja por causa do álcool, não serve para cura. Com este acontecimento, e outros do mesmo estilo, as gentes de por aqui já aprenderam a fazer-se escolhidas, e depois disso têm-se visto abades rejeitados por alguma freguesia. Como lhe passou ao Laruças da Boulhoeira. A cousa vinha passando dês que o Aurélio, que era o pároco de Penacova e outra freguesia daí abaixo, tolejara de tudo e tiveram que o substituir; à primeira viera Dom Narciso a dizer algumas missas, se calhar cada quinze dias ou assim, pois o homem não dava feito. Depois, quando se passou o que se passou no enterro da Hermesinda, pois claro, já não pôde vir mais o Narciso e daquela o bispo quis mandar o Laruças. Então foi quando os vizinhos de Penacova, especialmente uma mulher que vai muito à missa, se revolveram como as cobras. Telefonaram ao bispo desde o locutório da taberna, onde estava o único telefone que havia daquela, e asseguraram-lhe que se vinha o tal da Boulhoeira já podia estar preparado porque ninguém lhe iria à missa; e claro, o bispo não se atreveu e mandou a esse rapaz que há agora.
     Narciso fora detido e julgado num santiamém. Meteram-no no psiquiátrico, pois somente a tolémia podia justificar o fazer da Igreja naquele assunto, e só a loucura podia dissimular um chisco a ençoufada face desta instituição, que por certo, não anda ela lá mui limpa por este lado da terra. Sem contar a sotana do Cacholas de Vilarinho, que vai sempre emporcalhada, nem os costumes do Laruças de arrepanhar o que não é dele nem de Deus, ficam, e ficarão, outras muitas cousas por limpar e aclarar. Por exemplo, que feito foi dos altares da igreja de Penacova. Quando o Aurélio, o abade desta freguesia, que por certo viera corrido a pedradas da de Medouchos —ainda que aqui isto tardou em se saber—, pois quando ele levou os altares disse que os ia queimar ali no pátio da reitoral de Aguins, a outra freguesia da que também se encarregava. Mas ninguém cheirara ao ardido, nem vira bafeirada de fumo nenhum... daquela ainda não estava tão tolo como para destruir coas chamas aquela beleza; tolo pôs-se depois, e não é milagre, de novo um fá-las mas depois, de velho, paga-as. É certo que aquelas colunas torneadas cos seus cangalhos de uvas, e santinhos, e mil chinguilinadas, precisavam um repasso. Os dourados já diziam grises, e os prateados não se distinguiam das manchas de humidade. Precisavam que alguém lhes botara uma mão, mas não assim. O Aurélio pedira-lhes aos homens de Penacova que lhe ajudaram a carregá-los num carro e levá-los à reitoral de Aguins. Primeiro seica fizera contas de enterrá-los, mas logo se se desenterrassem seria um escândalo, e disse que melhor os queimaria, que era ainda mais fácil. O que fez ou não fez só ele o sabe. Por conseguinte o de Narciso já chovia sobre molhado e o próprio bispo era conforme com colhê-lo e confiná-lo..., ora não no cárcere, que isso diz mui mal. Melhor que seja um tolo: vamos, asinha a crucificá-lo. E assim foi como o Narciso se encontrou naquele psiquiátrico. Ali soube que era um doente e que iam a tratá-lo, mas a ele já tanto lhe tinha. Primeiro viria a desintoxicação do álcool: coa ajuda dumas pílulas e umas injecções nem se aperceberia de que lhe faltava o vinho. E era certo, o Narciso andava à primeira como um fantasma adormecido polos andares daquela residência. Depois, pouco a pouco, foi espertando um algo, mas seica não tem mostrado muitos devezos de se recuperar. Os doutores parecem não dar co cerne da sua loucura, mas também lhes está custando encontrar indícios que lhes permitam confirmar que já está bem e soltá-lo. Tudo isto mantêm-no secreto os batas-brancas e diz-se que andam algo danados por não dar entendido o que é que lhe passa a Dom Narciso; porque parecer parece um tolo, mas depois não parece que o seja deveras.
     Entretanto, no Zebreiro as lembranças iam empurrando a Dom Narciso monte arriba, tal que um cavalo, caminho da Fonte da Cunca. Parecia-lhe que já não tinha mais nada para tirar do saco escuro dos miolos, porém não sentia o homem alívio nenhum; nem lhe parecia que aquela nova possessão, ou reconstrução, ou como quer que se lhe chame, o levasse a sítio nenhum. Ali apegado àquela pia seguia ele, e mesmo se tinha figurado que porventura era tudo um sonho e que agora co susto, onde houvera um disparo e tudo, teria acordado... Mas não era assim, e sabia que teria de seguir algo mais naquele caminho nocturno. Como um condenado que não conhece a duração do seu castigo, assim se sentia Narciso. E que madurecido andava! Já não sabia em que lado afincar o pinho para turrar daquele chedeiro tão carregado. Em ambos ombros tinha esfoladuras que já lhe levantaram a pele mais duma vez... as fêveras do seu coiro passaram nalguma ocasião a se fundir coas do tecido do lenço da camisa. As maniotas iam-se acumulando umas por riba das outras; aquela era uma dor física impossível de aturar, e às vezes via-se o homem na obriga de se esconder como se fosse um animal e com ambas as mãos sujeitar bem o pinho e apoiálo no lombo dobrado, e mesmo na cabeça. Quando chegou ao alto, mesmo ao pé da fonte, soltou o pinho e decatou-se de que aquela fora a sua última jornada na dianteira, já não podia mais. Ele seguiria às voltas coa carga, ora para o pinho já não lhe davam os fôlegos. Deixou-se cair ao longo da fonte, co olhar no céu estrelado. A terceira lua estava pronta a começar, e ele seguia sem muita clareza, fora ou dentro. Os três homens tiveram quase meia noite de descanso e tempo para saciar as suas sedes e cumprir co ritual de dar de beber à pia; depois esconderam a vida que levavam e deixaram o Zebreiro até a noite seguinte. Aquela última subida escorrichara-lhes as forças a todos, por sorte amanhã começaria o descenso, e bem seguro que seria mais fácil. Mas isso seria amanhã.

* * *

     O diário Nuestra Región leva vários dias sem oferecer cousa com jeito sobre o tema não resolvido da pia. Tudo se vai em bons desejos, mas sem nada que aportar aos seus leitores. Assim, alguns, devecidos polas novas que não chegam, começaram a mandar notas de protesta à redacção do jornal, acusando-os de falta de formalidade; porque ora nem se menciona o tema ora se se trata é de jeito casqueiro, pouco sério. Algumas das cartas recebidas nos seus escritórios parece que levam mui má raça, segundo os comentários do próprio jornal, e não merecem ser arejadas na sua publicação. O diário afirma que se alguém tem algo positivo e de ajuda, que o pode comunicar, e se não é assim, que não lhes façam perder o tempo.
     Contudo e isso a gente segue a vê-las vir sem nada fiável sobre assunto que nos concerne e preocupa.
     Contudo, os da cidade velha seguem coa sua dança de infrutuosas reuniões e não saem disso, não dando-lhe a Nuestra Región nem sequer uma escusa para seguir falando deles tão sequer, e tampouco é cousa de lhe botar a culpa ao jornal por não nos oferecer informação do bem que esta organização resolve as suas diferenças. Não se pode fazer notícia se não se tem algum indício, ainda que seja mínimo, ainda que seja mentira... mas algo, sobre o que criar. A verdade seja dita, nem estes da cidade velha, nem as autoridades, lhe estão facilitando nada a Nuestra Región a sua tarefa informativa.

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