Penacova, apesar de não ser uma aldeia lá mui grande, conta com uma
mitologia abundante e quiçá desproporcionada, difícil de manter viva
à medida que desaparece a sua povoação. Neste marco mitológico
destaca a Fonte como símbolo essencial do seu mito fundacional.
Inicialmente, as terras que pertencem hoje a Penacova estavam povoadas
por gentes que se repartiam polo vale em sete assentamentos diferentes,
espalhados por Aguiar, a Pedrosa, a Auguela, o Zebreiro,...
posteriormente os assentamentos reduziram-se a quatro e finalmente
decidiram juntar-se todos e construir a aldeia conhecida hoje por
Penacova. Todas as vivendas se construíram inicialmente ao redor da
fonte; esse foi, e é, o lugar chamado O Meio da Aldeia, ainda que na
actualidade, dês que a povoação se foi alargando pola Fonteuceira
fora, já não seja o seu centro geográfico.
Sim, ali no meio de Penacova ergue a Fonte
orgulhosa o seu arco de meio ponto, e protege com ele os seus mais de
dous metros de fundura. Toda ela revestida de pedra até à mesma
nascença onde abrolha a água com um bule-bule que só se pode perceber
quando é esvaziada cos caldeiros para ser limpada até que, como se
fosse de prata, reluz o seu interior. Ela é a riqueza de Penacova.
Durante centos de anos abasteceu de água a uma povoação inteira...
gente, terra e gado. Ao lado do arco foi construída uma poça que acada
a água que lhe sobra à Fonte. Um reguinho talhado na ancha pedra que
os separa vai carrejando a água para a poça, onde sacia a sua sede a
fazenda e que é esvaziada, ceivando-lhe o boqueiro para que a água saia
a cachão, a rolda polos vizinhos quando chegado o verão se reinstaura
cada ano o reparto da água, cada quem segundo os direitos de rega
herdados por cada terra. Sempre igual... "comprei esta mera e com ela
as sete horas de rega que lhe pertencem... hoje vem a mim a rolda, tapo
às doze e ceivo às sete; atrás de mim tapa o Maximino..." E aquele
reguinho liso, afundado polo passo da água e mais do tempo vai fazendo
o seu trabalho. No meio desse rego há uma cochinha mais funda onde
bebem as crianças... "tu és mui pequena, ainda não podes beber na
Fonte, ajoelha-te na pedra e bebe aqui na pipela" A Fonte era a riqueza
da aldeia, mas naquela sua fartura encerrava também os seus perigos. As
mães não se cansam de lho repetir às suas filhas e filhos... "À
Fonte não te me achegues, prendinha, que pode colher-te e depois não
tenho meninha..." E as crianças tardavam em querer-se achegar para
beber olhando para a fundura como sim o hão-de fazer de grandes... e
certo é que em toda a história lembrada nunca caiu ninguém nela.
Louvada e temida; partícipe da vida mesma, mas também da
morte se se terçar. Salvadora. Abafadora de lumes que ameaçaram o lugar. Salvou
casas e palheiros, combarros e ainda leiras de pão. Infinda fartura que nunca
na vida estinhou, ainda que o seu caudal se visse afectado polas obras que o
concelho de Os Mouros impôs sobre a vontade da gente. Noutrora, o verdadeiro e
legítimo concelho de Penacova se juntaria e co seu pedâneo à frente,
jamais teria permitido achegar aquelas gábias tão profundas a que
dessangraram assim a Fonte. Mas agora são-che tempos de água corrente nas casas e a da
Fonte só vai à mesa à hora do jantar, e já não é tão importante o
seu caudal. Ainda assim segue sendo visitada por todos os do lugar; incluso os da
Coanheira e os do Eiró, que têm fontes mais próximas, se vêm a
servir dela quando as suas no verão agostam. Mas ela, alheia ao passo do tempo, ou
à mudança de estação, sempre tem o mesmo caudal, e a mesma temperatura,
o que faz que se sinta mais fresquinha durante o verão, e mais borna no
tempo frio. Agora, quando os três homens da pia se arrimam adiante a beber
nela, ei-la frescura agradável.
Era a segunda noite perto da aldeia, e os três estiveram de acordo em
que antes de ir onde tinham escondida a pia deveriam dar uma volta polo meio
do lugar e comprovar que tudo estava tranquilo. Passaram ao lado da Fonte,
beberam, depois colheram o andante caminho do Penedo onde lhes aguardava
o início da travessia de hoje. Ovídio seguia a cargo do pinho e os
outros ocupavam cada um seu lado do carro. Caminharam um bocadinho mui a modo,
para evitar que o carro cantasse. O seu andar era tão passeninho que nem sequer parecia que se movessem. Apesar do vagar do seu caminhar
foram penetrando na aldeia. Reinavam o silêncio e mais a calma. Ainda mal
não chegaram onde o forno, que está quase no cabo da aldeia, quando lhes
pareceu sentir vozes. Pararam. Espreitaram e depois achegaram-se ao combarro onde
sempre fica algo de lenha das últimas fornadas e esconderam a pia e
mais o carro. Agora o forno não coze porque já vem o padeiro co pão à casa
e a gente não quer andar com esse trabalho de quentar e requentar. Ademais com
tão poucos como ficam para fazer pão, não dariam juntado lenha para manter
o forno. Agora o que se leva, em vez do pão centeio, é fazer ali
enchentes e foliadas quando chega a gente no verão. Assar ali uns cabritos ou uns
anhos, uns lagostins e mais umas empanadas... ainda que sempre há a que vem
lá coa encomenda do pão... "pois logo já que está quente deixai-me meter um
pãozinho que já trago a massa levedada, e só me resta dar-lhe a forma aí no
tendal..." E os olhos de todos os presentes tendem com ela... ritual
das suas infâncias que jamais esquecerão. E apesar da fartura que se anda a
cozinhar todos ficam pendentes do humilde pão... "olha que vigia bem o
pãozinho, não se nos queime..." E esta é tarefa difícil desde que na restauração
lhe meteram os tijolos refractários para minguar o pavilhão que se fazia algo
grande para tão pouca gente. "Escaralharam o forno, assim como está não serve".
Haverá que vigiar amiúde. A longa pá penetra no pavilhão e colhendo o pão no
seu colo, achega-o fora onde os olhos das crianças, hoje medradas, comprovam que já
vai estando...
Noutrora cozia o forno a metade dos dias do mês, e o primeiro em sair
eram as bolas das crianças... "Hoje coze a minha tia Dorinda, e fará-me
uma bolinha"... aquele dia sim que prestava a merenda... E prà festa... a
de roscões
que ali cabiam! Todas as mulheres a bater os ovos nos grandes caldeiros
de zinco, e entrementes fala-que-fala. Que longo era o processo... e elas
bate-que-bate e os seus homens quenta-que-quenta; e entre uns e outros
ia-se montando já ali a festa... "A ver se ides acabando de bater, que isto
já o temos quente e são horas de ir metendo..." Entretanto as crianças só
tinham uma cousa nas suas mentes... "que rematem, que rematem para empeçar a
lamber...!" E que longa a espera para meter os dedos no que sobrara ao
encher as formas... "mamã, já está batido?" "Logo, logo, já
vai estando" ... "e quanto mais vai tardar...?" "Aguarda filhinha, aguarda, que há que ter
mais paciência" E assim era como as crianças aprendiam a aguardar. Assim iam
depreendendo co ritmo próprio das cousas.
Saber aguardar é um dos princípios, ou assim polo menos o definiria o
filósofo da Índia, que regem a vida em Penacova. Porque o da espera
não se dava só o dia dos caldeiros de interior doce da víspora da festa.
Não, o de saber esperar impregnava cada dia, cada hora, cada segundo da vida... "mamã,
tenho um buraco na ponta deste sapato, quando me vão comprar uns novos?"
"Pois quando venha a feira, ...hoje estamos a primeiros,... pois por
aí polo catorze haverá que ir por eles a Ginzo" ... "Tenho fome, quando vai
estar o jantar pronto?" "Trai-me uns guiços mais de lenha que já o imos apurar" E
assim se ia construindo a fortaleza interior. O mais difícil, e prova
já definitiva de madureza dum rapaz, era andar no monte co gado e aguardar sem comer a
merenda. Claro que primeiro viera o adestramento... "Papá, comemos a merenda?" "Aguarda filha outro nada que depois o tempo rende e ainda
nos volve dar a fome" E a nena aguentava. E por fim, quando aquela hora chegava... "Vais buscar o bornal ali ao salgueiro onde o deixámos
colgado...?" Ela não corre, que voa, e já parece que polo caminho vai saboreando os
bocados. Depois comerão a modinho, mentres falam do que comem, e mais
do bom que está aquele pão e mais o mimo que o acompanha... tantinho toucinho ou um chouriço, ou o que houvesse, e ao remate se ligar de que
meteram uma onça de chocolate... ela colhe-a na mão e antes de comê-la
debate-se: "Se te como não te tenho, se te tenho não te como" e ao final dum
só bocado a chapa. E assim se ia construindo a habilidade que empapa
todo o fazer dos do campo: a espera. Saber esperar.
O mestre hindu ainda iria mais longe e afirmaria que esta nena, que tem
que aguentar as ganas de comer mentres passa o tempo que irá vagarinho,
olhando como pasce o gado, hoje no monte, como o próprio Siddhartha, praticará as três virtudes do sábio: esperar, jejuar, e meditar... e
quiçá não lhe falte razão, mas quem tem vagar para pensar nessas cousas agora...?
Os três homens da pia, após de dissimulá-la coa lenha, tiveram também
que esperar para indagar as origens daquelas vozes que pareciam vir do
fundo do lugar. Narciso, caminhando acachapado pola beira das meras da
cortinha, achegou-se à Fonte e sentiu que as falas vinham de mais longe. Eram umas
vozes procedentes da rua; o seu soar era de preocupação mas não de desespero. A curiosidade levou a Narciso a
achegar-se pola beira de atrás das casas para as eiras de Baixo; ali,
arrimando-se à parede, foi avançando polo lateral até que foi quem de entender o que diziam as falas... Não se
passava nada grave, eram os do tio Taranheira, que lhe paria uma vaca; Narciso
espreitou um pouco e regressou onda os companheiros a informá-los do que
se passava. Decidiram que seria melhor não achegar-se mais de momento e lá
ficaram, ao lado do forno. Depois foram procurar algo de lenha que
tivesse folha para cobrir melhor a pia e que não se visse nada; mas apesar de
que tudo estava bem coberto decidiram que um deles ficasse a curar dela. Ovídio
ofereceu-se voluntário, e nenhum dos outros o deu convencido de que ele
precisava descanso, que levara maus dias. Ele insistiu em que a ele era
a quem menos lhe iriam topar a falta durante o dia, e pediu-lhe aos companheiros que
se fossem tranquilos, que ele ficaria ali deitado debaixo do chedeiro
numa pouca palha, e teria vagar de descansar. Marcharam. Ovídio ficou só
para o resto da noite e mais o dia seguinte.
Pola manhãzinha acordou co cantar dos pássaros que andavam a chamar
polo novo dia. Ovídio sentiu-se privilegiado por gozar daquele concerto
matutino, e até se ergueu e se arrimou à parede do combarro para olhar
como por trás dos penedos da Rainha Loba chegavam as primeiras raiolas de
sol. Respirou fundamente e deixou que aquele ar da manhã lhe acarinhara os
cabelos e a face. Durante o dia assomou muitas vezes o focinho àquele
seu miradoiro, sempre com escrupuloso tino para não ser descoberto. Desde
ali pôde ver os andares da gente de Penacova. O Primeiro que viu foi uma
moça que vinha com uma jarra de vidro a buscar água à Fonte. A moça
chegou, ajoelhou-se e bebeu; depois encheu a jarra e marchou de volta. E viu fazendas
passar e beber no poço da água, e viu gentes e mais cães, e a
carrinha do padeiro que passou para o Penedo a deixar-lhe ali o pão, e depois
foi-se a Penalapa, onde só fica um vizinho, e dali a um bocado viu-o passar lá por em
riba, polo caminho do Gorgolão. E Ovídio aguardou, no mesmo sítio
onde noutrora aguardavam as crianças enquanto desesperavam co seu olhar nos
caldeiros e relambendo os bicos. Aguardou, e teve assim maré de
praticar essa arte tão típica do lugar, a que a noite lhe devolvera os companheiros.
Não se fizeram rogados, não essa noite; Narciso e Perfeuto vieram cedo
e com eles cada um carrejava seu bornal com merenda. Ovídio, no alto da
moreia da lenha, tal que num trono sentado, comeu como um rei. Depois aguardaram um bom pedaço. Tempo não lhes faltava, porque ainda que a
lua estava pronta a se encetar, a Fonte estava ali mesmo e em nada de tempo
chegariam até ela. À pia ainda lhe ficava água da que lhe botaram no
Jardim, logo não havia apuro. Havia que assegurar-se bem primeiro de que tudo
estivesse preparado para dar esse passo em direcção do meio de
Penacova. Bem cruzada a meia noite meteram-se por entre as casas e percorreram a
aldeia com muito sigilo. Não se ouvia nem um chio. Todos dormem. Na
beira dalguma casa até sentiram roncadas. E um cão de acolá, perto da
Fonteuceira, que ladrava sem descanso, depois ficou também quedo. Tudo ficou quedo;
tudo menos eles, que volveram a colher a pia e começaram a sua andaina
a caminho da Fonte.
Cem metros escassos de distância que lhes levou mais de duas horas
andar. Iam tão a modichinho para que o carro não cantasse que apenas
davam desbastado. Por fim chegaram à Fonte. Deram-lhe água a fartura e eles
beberam de novo. Depois, adivinhando que a igreja era o próximo
destino, calcularam o que lhes levaria chegar com aquele passo que traziam. A
distância entre a Fonte e a porta do sagrado vinha sendo umas três vezes a que
acabavam de atravessar desde o forno. Não podiam tentar nada naquela
noite que ia mais de mediada, precisavam bem uma inteira. Buscaram o sítio
mais ajeitado na direcção desejada para deixar ali a pia escondida.
Encontraram, detrás duma casa velha, um palheiro de erva seca acabado de fazer,
exactamente ao lado dum sabugueiro. Por detrás da parede na que se
afincava o palheiro, e arrimado ao sabugueiro, havia sítio avondo para esconder
a pia e mais os trebelhos. Esconderam bem todo, desde fora não se podia ver
nada, nem sequer adivinhar que houvesse ali cousa nenhuma. Aproveitaram o
tempo que lhes sobrava para achegar-se à igreja e ver se as portas estavam boas de
abrir ou como era.
A porta pequena precisava duma chave, mas a grande
podia-se desfechar desde dentro movendo o enorme passador que se mete por um buraco feito
adrede na parede. Rodearam o edifício, indo pola esquerda do sagrado, e
abriram a janela que dá à parte traseira, e que fica por dentro algo
alta mas por fora a rés do chão. Desde ali empuxaram a folha da janela, e esta
cedeu um nada. Depois Dom Narciso, lembrando que por dentro, no peitoril, podia
haver trapalhadas, meteu a sua mão delgada e tirou para fora o que havia...
uma copa de vidro com tampa, na que, dês que desaparecera a urna do altar,
se guardam as hóstias consagradas que sobram; uma jarrinha diminuta,
também de vidro, para carregar água da fonte para misturar co vinho de missa;
e poucas cousas mais. Livre o passo de atrancos, foi Perfeuto o encarregado de
baixar por dentro da parede e ir às apalpadelas por entre as bancadas até dar
coa porta grande e comprovar que era fácil de abrir. Desfechou o passador e
assim comprovaram que tudo estava pronto para dar o passo definitivo à noite
seguinte. Perfeuto fechou de novo desde dentro, e caminhou até onde
estava a janela para esgardunhar pola parede arriba para fora, ali os outros
aguardavam para dar-lhe a mão e mais acotegar as chilindradas primeiro de fechar a janela,
não fosse haver um enterro ou algo e lhe topassem a falta. Depois
regressaram onde o palheiro que escondia a pia e os três estiveram conformes com
que ninguém iria ali rebulir detrás; este era um palheiro novo e a gente
ainda andaria a gastar o refugalho do velho. Por conseguinte, não era preciso
ficar ali de guarda durante o dia, nem sequer prudente, já que estando no meio da
aldeia alguém os podia sentir remexer e descobri-lo tudo. Marcharam cedo. A
noite seguinte será uma noite longa, uma noite na que haverá que ir
devagar.
Os detectives, desanimados pola falta de êxito das suas pesquisas,
dirigiram-se a Penacova com poucas esperanças de encontrar algo que lhes
fosse ajudar no seu labor. O do cura não saíra nada bem, e do que
atingiram cos vizinhos de Penacova tampouco tinham que alardear. Em que falharam?
Ou melhor... em que falhou o detective chefe? Já que a responsabilidade
foi sua, ainda que a culpa fosse de não poder seleccionar melhor as fontes
de informação. Penacova era um sítio tão pequeno que eles não
podiam desperdiçar o testemunho de ninguém, por conseguinte enquanto viam a
alguém já se apuravam a pilhá-lo, e claro, isso não lhes funcionara, e ainda por
riba co da camuflagem... Talvez as gentes daquele lugar não
respondessem bem quando estavam na presença de desconhecidos, e por isso a cousa
não fora adiante. Ou pôde ser que lhes tocaram primeiro todos os maus, e
agora os que lhes faltavam por ver eram os que haviam de falar. Algo lhes dizia
que não havia de ser assim, mas eles, sem desanimar-se, quiseram provar mais uma
vez. "Se desta volta não achamos nada que valha a pena, não
perguntaremos mais, e que seja o que tenha de ser." O detective chefe declarou assim
ao seu companheiro o plano de acção quando estavam já no auto a caminho da
aldeia, e prosseguiu "Riba, hoje a cousa vai ou racha" Riba ficou
quedo, não abriu o bico, em parte por não estar seguro de entender bem o que o seu
companheiro queria dizer, e em parte porque apesar de que as palavras se
dirigiam a ele, a entoação coa que se apresentavam indicava que não
era assim, e que não era precisa resposta alguma.
Chegaram, arrumaram o automóvel na eira da Festa. Não viram a Ciro.
Colheram o caminho que baixa para a Fonte, ali torceram à direita para
o meio do lugar, neste trecho não se cruzaram com ninguém. Quando se iam
achegar ao cruze que vai para o Eiró viram a um homem debaixo dum corredor. O
homem acabava de pousar algo no chão e dirigia-se à porta da corte, presumivelmente para
desfechá-la. Ao detective deu-lhe no corpo que aquele homem andava a fazer algo e quiçá não tivesse vagar para lhes
dispensar a eles; porém, e trás ver que pola aldeia não andava muita gente, decidiu
tentá-lo. Aquele homem pouco mais teria de sessenta e tantos, seria moço feito
quando ocorrera o da pia e ainda era o suficientemente novo como para lembrar a
história. Justamente o homem que tinham andado a procurar todos estes
dias. Agora faltava descobrir se lho quereria contar, ou se tinha tempo, ou...
já se verá! Apuraram o passo e desde a distância já lhe foram avisando da
sua intenção de falar com ele.
Eh...! Bons dias senhor...!
O homem soltou o fecho da porta e em lugar de desfechar deu a volta cara
a eles.
Bons dias, logo, para vocês também.
Mire, você seguro que já ouviu falar em nós... somos os que vimos
lá de Ourense para perguntar sobre a pia que havia em tempos aí na igreja e
que desapareceu.
Ah...! Mui bem, mui bem; sim já ouvi pra aí algo.
E o homem volveu botar a mão ao fecho, e esta vez sim desfechou e
empuxou para trás a porta.
Mas, seria você tão amável de
contestar-nos a umas perguntas sobre o assunto da pia?
Como não, vocês perguntem, que eu enquanto vou jungindo, que
senão depois faz-se-me tarde.
O Manuel, mentres falava, ia tirando a tranca, que afincada num buraco
feito adrede na parede sujeitava por detrás a outra folha da porta.
Depois empurrou-a coa mão até que se sentiu bater contra a parede do cortelho. Ali,
ainda deitadas, havia duas vacas grandes, uma amarela e outra mais
arruivada. Eles fizeram-lhe uma pergunta, mas o Manuel não a escutara, e seguiu a falar.
Vá, bonitas, que há que se erguer, que a manhã já vai logo
mediada! e olhando para os agentes acrescentou Hoje fez-se-me
algo tarde para jungir porque me enredei pra aí algo mais da conta coa esterroa duma mera de
batatas, que as estavam a comer as ervas e já davam vergonha. Elas referindose
às vacas já não estão sem nada, comeram tantinha erva, e agora
só jungo para levar o carro à poula onde tenho umas gavelas de estrume
já roçado, e mentres eu carrego elas têm vagar de pascer no lameiro. E
depois, ao meio-dia, trazemos o carro dos tojos para casa, que mesmo estão as cortes a
chamar por eles. Neste tempo, depois de tanto estercar para as
sementeiras, ficam as cortes varridas, e a fazendinha sem cama, e agora que já
metemos a erva toda, há que estar prontos para a carreja, que já logo vão lá
oito dias que rematámos a sega, e como dizia o outro... volta feita não tem pressa...
Mas perdoem vocês que eu falo muito, e a vocês isto seguro que lhes
aborrece...
Então, por primeira vez dês que andam coas suas perguntas por Penacova
adiante, o Riba abriu a boca e apurou-se a dizer a escape:
Não, disso nada, todo o contrário,
parece-me mui interessante o que você conta do seu trabalho...
Ainda o Riba não rematara a frase e já se estava a arrepender de a ter
formulado... pois supõe-se que ele não deveria ter dito nada, e muito menos
aquele comentário tão determinante para a direcção da conversa. O
detective mais velho, que era intermédio em idade entre o seu companheiro e o
Manuel, não teve outro remédio que mostrar o seu acordo, não fosse ele ali
fazer-lhe àquele homem, que quase poderia ser seu pai, um desprezo. Ora, por
ganas não foi, porque mália a graça que lhe fazia a ele estar ali aos
viosbardos escutando àquele homem porolar sobre a vida do campo. Nem que ele não
soubera como era a cousa. Ele procedia das terras do Deza, duma aldeia pequerrecha na que lhe tocara lidar até que aprovou os exames para
polícia. Malditas as ganas que ele tinha agora de perder o tempo com aquelas
parvadas. Olha que não roçara ele tojos antes de ir para Santiago
àquela
academia que tanto lhe custara a seu pai pagar. Seu pai também tivera
vacas, e bem delas por certo, mas agora já só ficam três ou quatro... ele já
não está seguro, há tanto tempo que não vai por lá, e dessas cousas polo
telefone não fala. Claro que as de seu pai eram leiteiras, não como as que ele via
agora na corte do Manuel, que são galhardas e fortes. Muito ao seu pesar o
detective teve que reconhecer que aquelas eram uns formosos animais, e cos seus
correões enramados para lhes colgar as suas campainhas..., não, não
levavam chocalhos... E assim foi como o labrego que adormecia lá nas
profundidades dos miolos do polícia acordou de súbito, e sem saber como, disse:
Se quer eu posso-lhe ajudar, que a mim isso de jungir ainda não se me
esqueceu de tudo.
Ai sim? E logo donde vem sendo você? Se não é muito perguntar...
Da comarca do Deza, mesmo à beira de Lalim...
E enquanto eles falavam o mais novo olhava para o seu chefe, e não
acreditava no que via... mesmo semelhava outro; por primeira vez viu
como a cara do seu superior se relaxava enquanto lhe botava a mão àquele
jugo, que em olhos do catalão deveria ser levado a um museu... que peça bem
talhada na madeira, e polida polos anos e as mãos que tantas vezes a colheram
para, sobre as molidas, pousá-la na cabeça das vacas e depois atar... E o
labrego-detective escutou-se a si próprio perguntando polas sogas que, segundo disse o Manuel,
ia cosendo seu pai, que para isso ainda se arranjava... e que bem
cosidas estão! Coas polegadas em cruz, com uns malhões delgados para
que não mosseguem ao animal na cabeça. Ainda que só lhe toquem aqui onde nasce o corno,
mas esta é-che zona delicada...
Ai, vá que o é! Ainda uma vez um homem daqui deste lugar,
vendo-se acurralado por um boi que andava ceive pola veiga de Sampaio, não teve
outro remédio que repor-se cara a ele... e meteu-lhe tal cajadada, dantes gastavase
muito o cajado justamente a rentes do pêlo, onde se apegam o coiro
e o corno; e o boi caiu ao chão como um trapo; depois ergueu-se e marchou meio
desorientado... Mas o Emílio era-che um homem que... amiguinho, havia que
tirar o chapéu... Dantes aqui havia muita gente digna de admirar...
Riba estava determinado a não intervir mais, já bastante tivera coa
sua estreia momentos antes. Ora tampouco era preciso já, porque o pobre
detective de Lalim estava-se vendo acurralado em si mesmo... e o labrego, que
tantos anos estivera lá dentro dele agachado, sem causar maiores desassossegos, estava agora
tirando-lhe o mando e dirigindo; ele próprio se pasmava quando escutava os falares que saíam da sua própria gorja,
até lhe mudara o sotaque e falava agora com voz menos afectada e mais
harmoniosa. O seu companheiro teve que torcer as orelhas com as mãos para adiante
para entender o que o seu chefe dizia, enquanto seguia admirado pola transformação daquele homem. Que dianhos lhe tinha passado para mudar
até a fala? Como ia o Riba adivinhar que o seu chefe levava um labrego
dentro, um labrego que aquele dia colhera as rédeas e dirigia o fazer. Com que
naturalidade se desenvolvia hoje o seu chefe, com que serenidade de
carácter; e por primeira vez o frio respeito que sentira até então por ele
trocou-se em afecto. Mas lá dentro do seu superior não tudo era tão fácil; o
polícia, que queria só passear-se pola cidade, revolvia-se como as serpes e
vinha-lhe roubar do prazer que tanto lhe estava a prestar.
Temos tempo o que quisermos, pois se tal vamos com você e
conta-nos polo caminho disse o detective enquanto seguia a cruzar a soga por
riba da cabeça da Marquesa.
Isso estaria bem, que eu gosto da companhia.
E eu também dissera o Riba, mas ele próprio se deu conta de
que os outros não o ouviram, ainda que a ele tanto lhe tinha, ele
sentia-se afortunado de estar ali presenciando a arte de jungir. Uma arte da que
ele só ouvira falar, e não amiúde pois este ofício que de tanto durar semelha eterno, não
só para quem o observa senão para quem o pratica já passou; este ofício já
passou. O próprio Manuel não ignora isto...
Mete-lhe um bom saculeão co ombreiro aí por baixo mentres apertas a
soga, que essa Marquesa é-che uma condenada que torce o pescoço a propósito, e se não repara um sempre
há-de ficar folgada. Em câmbio, a esta Toura é uma ledícia jungi-la...
mira, é melhor que tu te passes para este lado e eu me encarrego da Marquesa que já lhe tenho o falho tomado... pois nem
tem jeito que te deixe a ti o pior trabalho quando aqui hoje és o meu
convidado.
O Manuel passou por trás do detective, ao que quiçá deveríamos
começar a chamar Rafael, pois esse é o nome que lhe puseram seus pais, ou
senão Canchés, que era o nome que lhe deram de pequeno na aldeia... e tudo
por ter as pernas um nada torcidas, cancheadas no meio para fora. Depois
foram-lhe endireitando e já ninguém lhe chamava assim, ainda que agora mesmo ele
pouco se teria importado. O Manuel, que quer ser educado, passou por
trás dele e mostrou-lhe como tinha que fazer-se coa Marquesa, que era algo pícara
e escapava da juntura. Em câmbio, a sua companheira, que tinha a força
dum boi, era outra cousa. A Toura era doce para o amo, que podia levá-la
como se ela falara...
Esta até se teve que afazer a que lhe chamáramos Toura, pois
também era Marquesa quando a mercamos lá em Gomesende. Compramo-lha ao tio
Justo, e inda agora quando a vê lá no monte se se juntam os gados, ele
chama-a Marquesa, e ela bem que cho conhece, apesar do novinha que era quando se
veio para onda nós. Daquela já vinha amansada, e olha tu que também a
amansaram à direita, como estoutra que nós tínhamos na casa; e
tivemos que ensinar à Toura, que era mais nova, a ser jungida à esquerda, e parece
que não lhe custasse aprender. E agora pode ser jungida às duas mãos, e
digo-te eu que com poucas vacas se pode fazer isso.
Olha, que bem sabe jungir você, a mim já se me acabava a soga e a
você ainda lhe dá para outra volta.
Não faço favor nenhum, é-che o ofício que tenho, e não me amarga
tampouco ter que fazê-lo.
E enquanto dizia isto ia colocando o temoeiro nas mossas do meio do
jugo, nesse espaço que fica entre as cabeças das vacas, e que as
distancia; depois mandou-as ir de ceia-cú e elas recuaram, sem ele precisar de aguilhada,
até que estiveram postas cada uma pola sua beira, rente ao carro.
Então o Manuel ergueu o pinho e afincou-o no ombro, para logo o amarrar ao jugo co
temoeiro, mentres dizia...
O carro está preparado, agora a ver se a mulher nos dá a merenda
por se nos desse algo de fome... "Aurora, olha que eu já che estou pronto
pra me ire...! Trazes-me logo esse bornal abaixo se fazes favor...? E mete algo aqui pra
estes amigos..."
A seguir das palavras do Manuel baixou ligeira a Aurora,
poder-se-ia dizer que não lhe dera tempo de cumprir coa sua encomenda. E assim era, ela
já tinha a merenda pronta e por triplicado para quando ele ordenar de
marchar. Ela escutara a conversa e já ia por diante do planeado por o Manuel e
os forasteiros.
Olha que cho meti neste de material que é algo mais avantajado do
que o que levas a cotio para ti só.
E enquanto falava alongou o braço, desde o penúltimo banço da escada,
achegando o bornal para o seu homem. O Manuel colgou-o ao ombro e dedicou um sorriso à sua mulher. Os dous forasteiros saudaram à mulher
e deram-lhe as graças por pensar assim neles. Ela, sem rematar de baixar a
escada, respondeu os seus saúdos e disse "não se merecem" O Manuel
chamou a jugada adiante, e sacaram o carro da corte. Rodou pola rua do Eiró
e dirigiu-se ao caminho das Lamas do Santo. O Manuel e o Rafael iam diante
conversando, o Riba ia detrás à espreita. Chegaram à poula e
soltaram. Enquanto as vacas pasciam, em baixo no lameiro, eles carregaram o carro
cos tojos. Tinha razão Manuel, não eram muitos. Depois puseram-se à merenda.
Sentaram à sombra do carvalho, evitaram a do vidoeiro que diz-se que não é
tão sã, e entre bocado e bocado foram falando. O Rafael já se
esquecera completamente do detective e o Riba seguia a observar.
Estou seguro de que tu com esta jugada já tens carrejado mais
grandes carros que o que hoje te ajudamos a carregar...
Pois não te enganarias, que com estas duas já tenho carregado mais
do que me daria o tempo para contar...
E o Manuel contou-lhes das valentias da sua jugada. Dos carretos de
lenha que trouxeram este mesmo ano da decota de uns carvalhos das
touças do Castelar. Contou-lhes do muito que ele era quem de meter no carro duma vez,
e do bem que o fazia cantar... "não podias nem andar cem metros sem
untar o eixo... não se fosse a queimar de tanto fretar contra das treitoiras...
e ao o untar sentias como o unto rijava tal que se o rustriram numa caçoula" Ao
Manuel enchia-se-lhe a boca falando do valentes que eram as suas vacas, sobretudo a
Toura, que já vencera a dous bois cos que tinha lutado... "e isso há
mui poucas que o façam"... e que em toda a comarca não havia outra que se
pudesse igualar com ela...
Pois é, estas duas pode que sejam a minha última jugada... mas
enquanto eu viver delas não me hei-de desfazer... ainda que nos façamos bem
velhos...
E logo não tens filhos que continuem coa lavoura?
Não homem, não. Tenho um rapaz que se marchou para Alemanha
quando era novo, esteve lá alguns anos e fez dinheiro. Agora voltou mas
para aí em Ginzo e disto não quer saber nada... também como não precisa... e
ademais se ele vier gastaria só o tractor, assim que quando eu morra
tudo morrerá comigo...
O Rafael enchera-se de mágoa, mágoa de que todo aquele mundo que ele
hoje revivera fosse desaparecer... E quem era ele para falar, se tinha
um capital de primeira lá no Deza abandonado. Ele não era quem de dar exemplo a
ninguém...
Deve de ser bem duro não ter quem lhe possa herdar a um no ofício.
Podes estar bem certo, e senão pergunta-lhe
a teu pai, já verás o que te diz.
Aquela frase última do Manuel cravou-se dentro do Rafael, que lembrou a
conversa que não fazia ainda muito mantivera com seu pai, que seguia
coa teima de que se tinha que ir morar mais perto e botar mão da vida...
que ele já não defendia para a granja e os lavradios... E desde tão longe, desde
quase a mesma beira da Rousia, por fim recebera ele a mensagem das palavras de
seu pai. Agora vê que eram as palavras dum náufrago, e não as dum pai
caprichoso que o quisesse controlar a ele... Que mal entendera ele o seu velho. E
que bem lhe fizeram as palavras do Manuel, até se esquecera da pia. Agora, ao a
lembrar de novo, a Rafael entra-lhe a curiosidade; mas é uma curiosidade de labrego
que quer saber como foi que se sacou daqui, e não uma ânsia
profissional de detective. Lançou-lhe uma pergunta a Manuel de tal jeito que ele não a
pudesse rejeitar:
Qual dirias ti, Manuel, que foi a cousa mais pesada que viste
carregar num carro em toda a tua vida? O Manuel sorriu e disse...
Já vejo por onde vais, tu queres-me levar à pia..., mas não che é cousa
tão fácil de explicar...
Pois homem, aqui entre nós, devo admitir que tenho as minhas
curiosidades por saber como se deu sacado da igreja e mais do sagrado.
E isso mesmo me pergunto eu... e deixa-me
dizer-che que ainda que eu não sei nada, não tinha pensado contar-vos cousa nenhuma, mas tu caralho...,
ganhaste a minha confiança, e agora não tenho outro remédio que
responder eu também. Sei que posso confiar em ti. Ademais já che disse que não
se sabe bem o que se passou... e tampouco ninguém presta já atenção a estes
falares.
E Manuel foi-lhes contando como crê ele que tiveram de fazer para sacar
a pia da igreja, porque tanto ele como os outros vizinhos tinham a sua
teoria sobre o roubo bem elaborada e aperfeiçoada nas muitas conversas e
pensares... E com uma mistura de raiva e triste pesar polo acontecido,
conta-lhes como teve que ser de noite quando a levaram... porque ninguém
escutou nada... como tiveram que ser vários os ladrões, pois é uma
pia mui grande e mui pesada... como ninguém sabe quem foi mas toda a gente os
conhece, e como a ele lhe enfastia que esses moinantes sigam passeando-se
entre a gente alheios à justiça e aos castigos... Rafael perguntou-lhe
quem foram logo os que a levaram...
Isso ninguém o sabe... mas todos sabemos que foram eles... quem ia
ser mais que os curas?
Mas ainda que fosse o abade... alguém lhe teria que ter ajudado...
Pois ajudariam-lhe os outros, que os curas também têm força... e não
fazem favor... co mantidos que estão os condenados...! E bem seguro que
ali onde o transformador da luz um camião estaria à sua espera para
levá-la... mesmo ali onde entra o do Pito para carregar os bezerros quando há que
empontál-os para o matadoiro...
E para onde a levariam?
...como tenho que mandar eu a uma bezerra, filha da Marquesa, que
agora já não me atrevo de a amansar, e se souberas o que me amarga...
mas assim é a vida... uma almalha tão boa, parecida à mãe. O pai é-lhe
de Ameixeiras... aqui em Penacova já não há boi para botar às vacas,
quanto mais...
E porque levariam a pia?
E eu que che sei filho..., levariam-na para a vender como fizeram cos
santos e as outras cousas, que havia muitas e bem delas, e agora está a
igreja vazia... e a parva da gente, que é uma ignorante, começando pola minha
Aurora, eia, a lhe dar aos curas para que comprem isto ou aquilo... Eu
se fosse vós falava co abade a ver se se lhe escapa algo... que ele saber
tem-no que saber.
Co senhor abade já falámos, fomos lá o outro dia mas esse tal
Aurélio já não lhe anda lá mui bem da memória, e não nos soube dizer cousa com
jeito.
Não, se o Aurélio não estava aqui aquela temporada. É certo que
já tinha levado os altares e os confessionários e mais os santos e as roupas
todas que deixara o seu predecessor. Mas a pia não, a pia levou-se estando aqui o
Narciso, que viera uma temporada a substituir ao Aurélio, que depois de
roubar à igreja diz-se que não se sentia o homem lá mui bem; teria remorsos...,
afinal de contas tinha que seguir a mentir cada dia desde o altar e
predicar o "no robarás" a uma gente que seria incapaz de roubar nem o valor
duma agulha; e a gente ter-lho que aguentar... Mas os remorsos não o mataram, não
tivesses medo, e depois de ali a nada ainda veio de segundas para aqui e
tivemos que o aturar até que por fim se marchou de vez. Mas a pia já
não estava quando ele veio de segunda... claro que isso não impede que fosse obra
dele, os curas sabem também operar desde a distância, afinal de fontas ele
seguia a ser o mandaricas da freguesia ainda que o Narciso dissera os responsos
por ele... Não penso eu que o tal Aurélio se deixasse tirar assim um
caramelo da boca... se calhar é que não se atrevia; porque de ali a logo de levar
os altares e todo o demais, tratou também de levar o homem de pedra que
marca a hora co sol lá no arranque do campanário. Mas então o Emílio, o mesmo que
tombara ao boi coa sardoada, disse-lhe: "se lhe põe você a mão em riba ao homem de
pedra não volva subir a Penacova para dizer a missa, porque não baixa";
e daquela bem seguro que artelhou outro plano para asegurar-se de que não lhe
botassem a ele a culpa...
E não protestaram vocês... nem nada?
E a quem lhe íamos reclamar? Quem nos ia escutar...? Graças se
não nos botavam as culpas... os curas têm-che estudos e sabem-se cobrir bem para não
ser descobertos... e ademais conhecem à gentinha e actuam como o lobo
que sabe por onde vai a vezeira... Eu era novo daquela, acabava de casar e
tinha à mulher esperando um filho... e já não lhe pude pôr Dario naquela pia.
Todos ficamos danados, mas então não sabíamos mais, e fizemos o único que
sabemos fazer bem por aqui... aguentar... E olha que se nos levam feito
quatro, e não só os cregos, não... Ora isso sim, eles levam a palma das
falcatruas.
Enquanto escuta, pensamentos pouco benévolos para cos ladrões das
igrejas ocupam o pensamento de Riba... e isso que ele não sabia até
onde podia chegar aquele fada do Aurélio, quem uma vez no enterro dum moço
novo de Ameixeiras se atreveu a dizer que "Deus escolhia a quem pagava
a pena salvar e a quem não... e que havia que ser mui bons para poder
gozar de tal privilégio..." E mil merdas mais saíram ainda cagadas pola sua
boca enquanto Ameixeiras se tinha que despedir daquele moço e entregar-lho
à terra... Um moço que não chegava aos vinte anos, são e forte, a quem
o Minho coas suas trampas em forma de remoinhos arrancara dos seus pais, e dos
seus amigos, e dos seus vizinhos, e de nós todos... E vem o lobo do Aurélio
e faz-nos sentir de novo desprotegidos, indesejáveis nos olhos de Deus e
impotentes no nosso destino... e todos sabem que o disse porque o moço
estava-se deixando medrar a barba e já não ia pola missa e também depreendera a falar de
dignidade e de justiça, e de respeito, e de direito a pensar por nós
mesmos... E no seu enterro vem a animália do Aurélio e coa sua cruenta falta de
piedade derriça nos corações dos presentes como fera na carniça... enquanto
à gente lhe começa a ferver o sangue e cheia de rábia sai ao átrio e
debate-se em que fazer... Uns querem-lhe ajustar as contas mas outros os refreiam, e uma vez mais, a gente faz o
único que sabe fazer bem: aguentar, aguentar e dizer amém... Se Riba chegasse a saber isto... mas ele, como havia de o
saber? E o reganho que sentia foi-se-lhe dissipando quando ficou de novo prendido nos
falares do Manuel...
E logo então já perdestes a esperança de a volver ver?
Eu não acho que a possa já ver em vida, mas isso não quita para
que chegue um dia em que os homens se tornem civilizados e aprendam a
respeitar que as cousas têm o seu sítio, e que a esse, e a nenhum outro,
pertencem, e ninguém lho deve usurpar nem mudar, nem... mas isso são os meus
pensares quando me colhe para aí o sentido, abofé, como penso que antes do fim
do mundo a nossa pia há-de volver ao seu sítio, ainda que alguns já não o dêmos
acordado...
Pois que esperanças tão honoráveis tem você para o ser humano...
Não sou eu só o que cavila nisso; aqui entre nós,
hei-che dizer que em Penacova não há pessoa de mais de trinta e tantos que não tenha a
esperança de que um dia a pia volva.
E porque ninguém nos quis falar no tema quando andámos a
perguntar?
Pois em parte porque não há muito que dizer, e ademais éreis uns
estranhos... agora eu já vos conheço, mas tudo leva o seu tempo...
isto é-che como todas as cousas, por mais que te mates, e corras, num mesmo dia
não podes juntar a sementeira coa sega. E também em parte porque a gente
não gosta de lembrar as desgraças que se levam passado... assim polas boas,
sem que seja por uma boa razão...
Ora, nós tínhamos uma boa causa, nós também buscávamos a pia.
E para que a buscáveis, se se pode saber...? Acaso a ides retornar
aqui ao seu sítio?
Não, nós nem sequer sabíamos que este era o seu sítio...
Pois aí tens a tua resposta, não lhe dês mais voltas. Vós
andáveis ao vosso, e nós ao nosso... E digo eu, quando será o dia que andemos
todos para o mesmo sítio? Porque assim não chegamos a nenhures, já o vistes vós
mesmos... e aqui já começamos a estar fartos...
Produziu-se um silêncio trás do qual Manuel ergueu arriba e disse: "Já
vão sendo horas de se pôr a andar!" Não se sabia se se referia a
que já eram horas de ir jungindo ou se se estava a referir a esse
caminhar da gente para um mesmo fim. Ou quiçá tudo fosse parte duma mesma cousa. Tangeu as vacas
para arriba, jungiram, levaram o estrume à casa. Manuel insistiu-lhes muito em
que ficaram a jantar... mas Rafael disse que não tinham nada de fome,
que depois do bom almoço que ele lhes dera já se escusava jantar... que
lhe agradeciam o convite mas que deveras não podiam... e que já passariam
outro dia que lhes ligara de vir a Penacova.
Pois logo tomo-vos a palavra e aqui vos aguardo; cada quando que
venhais sereis bem recebidos. Esta casa e o que há nela estará ao
vosso dispor e ao de quem convosco tragais.
Agradecendo a amizade coa que o Manuel os despedia marcharam para o
carro. Como sempre, o mais velho era o que guiava. Quando já baixavam
da Ranha, Rafael disse-lhe a Riba "Hoje, se ti não tens outro compromisso, em
lugar de parar na cidade vamo-nos chegar até às terras do Deza, que a mim já
me vão sendo horas de dar por ali uma volta" "Irei com sumo gosto
com você" "Pois logo não se fale mais, e podes-me tratar de tu, que eu não sou tão velho...
poderíamos ser irmãos... e hoje vou-te ensinar uma terra bonita de verdade...
uma das zonas mais formosas que há no mundo... já verás, já". E
marcharam a caminho das terras do Deza; nem sequer se acordaram de parar em Ourense.
Não volveram tampouco por Penacova.
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