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Uma
fila de raparigas com altas e estreitas bandeiras de
diferentes cores, e saias não menos agitadas do que
elas, atravessam agora, sempre a correr, a cena. Ao fundo
vê-se apenas as luzes a girar. Um efeito sonoro muito
mais suave (pratos sobre tudo) acompanha esta acção. A
primeira traz uma bandeira vermelha, laranja a segunda, a
terceira branca, e dourada a quarta e última. |
Voz do Prof. Sandro
Constantini.- Passou o ardente Verão e o Outono de
folhas secas. Chegou o branco Inverno e passou, e voltou a sempre
nova e dourada Primavera
A
mão executa uma nova ordem no teclado, a que se segue
uma queixa electrónica monótona como um concerto de
viola chinesa solo que acompanhará a acção até quase
ao fim do Quadro. As luzes ficam quietas, de repente,
agrupadas numas poucas nuvens estáticas, que
quando se acende de novo a iluminação geral,
descobrimos que se correspondem com outras tantas
amendoeiras desenhadas no fundo, que aparecem assim
densamente carregadas de flor. O resto do pano representa
um desenho mais japonês que chinês, de um jardim
desenvolvido em sentido vertical, com um caminho bem
limpo que desce ziguezagueando, desde o alto até ao
primeiro termo, em baixo. O caminho organiza a
composição que consta de sebes, pedras, centros de
flores, árvores e lagos bem distribuídos de ambos os
lados. Num lateral, para a parte posterior, vemos um
canto de um polido pavilhão de madeira branca, que se
continua, idealmente, para além da margem. Tudo dá uma
sensação de ordem, natural e pouco rígida, de
luminosidade e paz. Diante dele aparece Wang de pé, a
olhar para a frente, como se acabasse de vir por aquele
caminho. Traz as calças bem postas, e tem uma postura de
dignidade extrema, com as mãos sempre enlaçadas sobre o
ventre. Ao seu lado um carrinho de mão cheio de erva
recém cortada e várias ferramentas sobre ele pousadas,
em perfeita ordem e brilhantes. Diante dele a grade está
aberta na sua parte central, e, a suster uma das lanças,
aparece Du Fu, curvado numa vénia. Nos laterais,
assomando apenas dos bastidores, surgem as cabeças de
vários vizinhos colocadas umas em cima das outras, a
observar a cena, que se anima quando começa a ouvir-se a
voz poliglota do sábio. |
Du Fu.- Nobre
Wang, pertence-vos o mundo, posto que vós ao mundo voltais a
pertencer. Sois o seu dono, pois sois o dono vosso. Foi dura a
prova. O vosso triunfo será assim mais eloquente.
Wang Cauda de Dragão.- Vosso é o mérito. Se
hoje sou um homem mais sábio do que era, é tão só graças à
vossa sabedoria. Falai com o meu filho, ele dar-vos-á o melhor
cavalo da eguada, com uma sela mongol e o seus alforges bordados
Du Fu.- Nada quero para mim. É suficiente
ver-vos de novo com tão bom juízo. Uma só coisa peço: não
gostava de me ir de aqui sem antes ouvir dos vossos lábios o
protesto da mais sincera amizade.
Wang Cauda de Dragão.- Parti com ela
Wang
faz uma profunda reverência. Du Fu vai-se. Nas caras dos
vizinhos há amostras de emoção e admiração. Quando
Du Fu sai, irrompem eles e rodeiam Wang, com atitudes de
respeito e curiosidade. |
Vizinho.- Nobre
Wang, todos estamos felizes de te ver entre nós e com tão bom
semblante.
Outro.- Todos pensávamos que o conseguirias.
Outro.- Todos admiramos o teu novo jardim.
Outro.- Como conseguiste essa relva tão fresca
e macia
Outro.- Como conseguiste sebes tão
perfeitas
Outro.- Como é que consegues, sobre tudo,
manter tão limpo o caminho. O meu está cheio sempre de pedras e
de folhas.
Outro.- Mas, conta-nos, antes de mais, como foi
que conseguiste sair da tua loucura.
Wang
tem um brilho estranho na vista. Fala como a olhar de
lado, depois de ter feito um movimento absurdo com a
língua. |
Wang Cauda de Dragão.-
Oh! Nãos sabeis quanto sofri ao princípio, obcecado todo o dia
pela minha cauda de dragão. Quanta razão tinha aquele sábio
homem: a solução não estava senão nas minhas mãos
E
onde estavam as mãos? Nas mangas não: estavam os macacos
Mas encontrei-as um dia, errando, por acaso, ao pé do
pavilhão
Continua
com as mãos enlaçadas. Agora, porém, tinha-as cobertas
pelas largas mangas. Ao desenlaçá-la aparecem de novo
as mangas soltas. Curva-se para o carrinho e, pelo
furado, introduz o cabo de um pequeno sacho e de uma
foice, que assomavam. Das mangas sobressaem agora apenas
as folhas das ferramentas e o começo do pau. Agita-as
primeiro no ar, como um dragão heráldico. |
e
então acabaram-se para sempre os meus temores: se me crescera de
dragão a cauda, as mãos que me nasceram também eram de
dragão!
Logo
curva-se para diante, a fazer demonstração de como
escava e ceifa um dragão agrícola com farpas de metal. |
Com
farpas como estas não resultou difícil ir mantendo os diabos
verdes no seu sítio, antes de chegarmos a um acordo de paz.
Há
um suspiro e um movimento de comiseração entre os
vizinhos, mas algum deles, que ainda não reparou na
persistência do desvario, passa a gema do dedo pela
folha do sacho, admirando-o. |
Um Vizinho.- Que
bem aguçado o tens, e como brilha!
Wang Cauda de Dragão.- É que aos macaquinhos
lhes encanta limpar as unhas aos dragões
Deposita
com cuidado a foice no carrinho, e dessa manga sai uma
mão agitada que salta a recolher de entre a erva a pedra
de amolar e começa a brunir com frenesi a folha do
sacho. Wang Cauda de Dragão olha arregalado para a mão. |
Eles são tão gentis
Devo-lhes tanto! No começo só
sabiam incomodar
A
mão solta a pedra e sobe, a correr, até à cabeça,
beliscando as faces e balançando-se do rabicho. |
mas
logo fui conseguindo adestrá-los, e foram-me de grande ajuda.
Eles recolhem sempre os frutos para mim
Deposita
o outro sacho e dessa manga sai a outra mão, carregada
de amêndoas, que corre a introduzir na boca do seu dono
ainda que ele mova a cabeça como se não quisesse comer.
A outra mão regressa para dentro da manga e volta com
uma outra carga, que tenta introduzir também na boca sem
que a boca colabore. |
Se
soubésseis como gostam de me dar de comer. (Ri) Sem lho pedir,
às vezes
São tão dedicados
que até me coseram um
capelo nas calças, para levar a cauda
.
Vira-se
levemente e vemos que, com efeito, por baixo da bata
negra assoma um estranho apêndice, uma espécie de capa
fechada e acabada em bico, de igual tecido das calças, e
que arrasta pelo chão atrás dele. |
Agora
já não tenho medo do frio, ainda que este ano o Inverno não
acabe de passar. Não reparastes em toda essa neve coalhada nas
amendoeiras?
Um Vizinho.- Oh! Wang, como voltas a falar de
macacos, se acabamos de ver-te, diante de Du Fu, com as mãos
quietas e unidas, como homem nobre e de juízo?
Wang Cauda de Dragão.- Ah
É que tenho
descoberto que são macho e fêmea, e que já entraram na idade
do namoro
As
mãos correm uma ao encontro da outra e ficam na mesma
atitude do começo, ainda que agora em vez de
enlaçadas deveríamos dizer que estão
abraçados. |
O Mesmo Vizinho.-
Oh, nobre Wang, pobre Wang! Mas você falou com ele de uma
maneira
com tanta rectidão, com tanta desenvoltura, com
tão bom senso
Wang Cauda de Dragão.- Bom, nisso não te deves
fiar, porque um dia, há pouco, estando adormecido sobre a erva,
entrou-me pela boca uma serpente. Uma serpente vermelha e sem
vergonha
e agora é ela que fala por mim, e já tu sabes
que falsas são e duplas
Por isso eu já não sei se mentiu
antes, ou se está a mentir agora. Mas vou-me retirar, com a
vossa licença: pressinto que se aproxima um novo nevão. Fechai
a porta para sempre. Eu vou ficar no meu jardim. Há tanta paz
por trás estas grades! Convosco nunca estaria tranquila a minha
cauda. Mas, aqui dentro, tenho arranjado um pacto subtilíssimo
com os meus demónios.
Olha
sorrindo, a piscar um olho e a inclinar a cabeça, para o
carrinho de mão, com a folha da foice a brilhar sobre a
erva. |
Eles
renunciaram a me calcar nunca mais a cauda, em troca de eu lhes
cortar, de vez em quando, o cabelo.
Vira-se
de costas e começa a ziguezaguear pelo caminho. Pára um
momento e, parecendo lembrar alguma coisa, vira a cabeça
para um dos vizinhos. |
Ah,
por certo, para manter limpos os caminhos só é preciso passear
por eles, quando se tem, como eu, uma cauda de dragão.
Retoma
o seu andar, sempre ziguezagueante, a arrastar sobre a
terra o estojo vazio da cauda. Das amendoeiras em flor
começam a cair pétalas.
A figura de Du Fu reaparece
pelo mesmo lado por que se tinha ido. Recolhe algumas
pétalas do chão (algumas delas não são luzes mas
pedaços de material fosforescente) e vai compondo com
elas caracteres ideográficos sobre o tronco de uma
árvore que se encontra nesse extremo. |
Voz do Prof. Sandro
Constantini.- E Du Fu, que, saindo da aldeia se tinha
virado a contemplá-la de uma colina, e tudo tinha visto, dizem
que, ali mesmo, escreveu, no tronco de uma árvore o seguinte
poema, e que, ao acabá-lo, enxugou as suas lágrimas para
sempre: Nunca voltarei a Mei-Jiang / onde nevam, no Verão,
/ flores as amendoeiras. / Quantas vezes tens já visto passar a
Primavera? / Sabes tu quanto pesa / uma pétala caída sobre a
mão, / quando se viram tantas? / O mundo dói. / A vida é uma
escolha / e às vezes preferimos / à pétala a loucura. / Por
isso nunca perguntes, / ó árvore, / porque ante ti, este dia, /
Du Fu chorou, / e não chorou já mais.
A
voz do narrador muda subitamente de tom, ao mesmo tempo
que a mão executa uma ordem no teclado. |
Lenda
que constitui, no entender de muitos autores, uma crítica feroz
do condutismo
O
computador faz um ruído surdo. Sobre o fundo começa a
reflectir-se uma chuva (melhor seria dizer um nevão) de
asteriscos entre os quais se intercala, de quando em vez,
a frase failure error system 00085 escrita em
ordem e em caracteres invertidos. O computador continua a
emitir ruídos de vendaval electrónico. Vai diminuindo a
luz, e vão ficando os asteriscos só no ar. A mão
realiza intentos violentos no teclado. Desesperação que
se deixa transluzir na voz. |
Sinto-o
muito, vamos ter que interromper
Devem ser coisas dos
macacos, que voltaram a bailar sobre o teclado, e ficou presa a
cauda de dragão do meu arquivo de sistema
ou não seriam
pétalas e frio
?
Faz-se
escuro e silêncio total, em que se ouve a voz do
Secretário/Coordenador, a interrompê-lo |
Voz do
Secretário/Coordenador.-
Obrigados, professor
Constantini, obrigados
penso que a sua posição tem ficado
suficientemente exposta
Tem a palavra, a seguir, o Doutor
Alexandre Costa Antunes, da Universidade Nova de Lisboa.