A Tábua Ocre de Núbia (ou o Significado da Vida)

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Quadro V: Cena 3ª.

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Cena 3ª

 

     Uma fila de raparigas com altas e estreitas bandeiras de diferentes cores, e saias não menos agitadas do que elas, atravessam agora, sempre a correr, a cena. Ao fundo vê-se apenas as luzes a girar. Um efeito sonoro muito mais suave (pratos sobre tudo) acompanha esta acção. A primeira traz uma bandeira vermelha, laranja a segunda, a terceira branca, e dourada a quarta e última.

Voz do Prof. Sandro Constantini.- Passou o ardente Verão e o Outono de folhas secas. Chegou o branco Inverno e passou, e voltou a sempre nova e dourada Primavera…

     A mão executa uma nova ordem no teclado, a que se segue uma queixa electrónica monótona como um concerto de viola chinesa solo que acompanhará a acção até quase ao fim do Quadro. As luzes ficam quietas, de repente, agrupadas numas poucas “nuvens” estáticas, que quando se acende de novo a iluminação geral, descobrimos que se correspondem com outras tantas amendoeiras desenhadas no fundo, que aparecem assim densamente carregadas de flor. O resto do pano representa um desenho mais japonês que chinês, de um jardim desenvolvido em sentido vertical, com um caminho bem limpo que desce ziguezagueando, desde o alto até ao primeiro termo, em baixo. O caminho organiza a composição que consta de sebes, pedras, centros de flores, árvores e lagos bem distribuídos de ambos os lados. Num lateral, para a parte posterior, vemos um canto de um polido pavilhão de madeira branca, que se continua, idealmente, para além da margem. Tudo dá uma sensação de ordem, natural e pouco rígida, de luminosidade e paz. Diante dele aparece Wang de pé, a olhar para a frente, como se acabasse de vir por aquele caminho. Traz as calças bem postas, e tem uma postura de dignidade extrema, com as mãos sempre enlaçadas sobre o ventre. Ao seu lado um carrinho de mão cheio de erva recém cortada e várias ferramentas sobre ele pousadas, em perfeita ordem e brilhantes. Diante dele a grade está aberta na sua parte central, e, a suster uma das lanças, aparece Du Fu, curvado numa vénia. Nos laterais, assomando apenas dos bastidores, surgem as cabeças de vários vizinhos colocadas umas em cima das outras, a observar a cena, que se anima quando começa a ouvir-se a voz poliglota do sábio.

Du Fu.- Nobre Wang, pertence-vos o mundo, posto que vós ao mundo voltais a pertencer. Sois o seu dono, pois sois o dono vosso. Foi dura a prova. O vosso triunfo será assim mais eloquente.
Wang Cauda de Dragão.- Vosso é o mérito. Se hoje sou um homem mais sábio do que era, é tão só graças à vossa sabedoria. Falai com o meu filho, ele dar-vos-á o melhor cavalo da eguada, com uma sela mongol e o seus alforges bordados
Du Fu.- Nada quero para mim. É suficiente ver-vos de novo com tão bom juízo. Uma só coisa peço: não gostava de me ir de aqui sem antes ouvir dos vossos lábios o protesto da mais sincera amizade.
Wang Cauda de Dragão.- Parti com ela…

     Wang faz uma profunda reverência. Du Fu vai-se. Nas caras dos vizinhos há amostras de emoção e admiração. Quando Du Fu sai, irrompem eles e rodeiam Wang, com atitudes de respeito e curiosidade.

Vizinho.- Nobre Wang, todos estamos felizes de te ver entre nós e com tão bom semblante.
Outro.- Todos pensávamos que o conseguirias.
Outro.- Todos admiramos o teu novo jardim.
Outro.- Como conseguiste essa relva tão fresca e macia…
Outro.- Como conseguiste sebes tão perfeitas…
Outro.- Como é que consegues, sobre tudo, manter tão limpo o caminho. O meu está cheio sempre de pedras e de folhas.
Outro.- Mas, conta-nos, antes de mais, como foi que conseguiste sair da tua loucura.

     Wang tem um brilho estranho na vista. Fala como a olhar de lado, depois de ter feito um movimento absurdo com a língua.

Wang Cauda de Dragão.- Oh! Nãos sabeis quanto sofri ao princípio, obcecado todo o dia pela minha cauda de dragão. Quanta razão tinha aquele sábio homem: a solução não estava senão nas minhas mãos… E onde estavam as mãos? Nas mangas não: estavam os macacos… Mas encontrei-as um dia, errando, por acaso, ao pé do pavilhão…

     Continua com as mãos enlaçadas. Agora, porém, tinha-as cobertas pelas largas mangas. Ao desenlaçá-la aparecem de novo as mangas soltas. Curva-se para o carrinho e, pelo furado, introduz o cabo de um pequeno sacho e de uma foice, que assomavam. Das mangas sobressaem agora apenas as folhas das ferramentas e o começo do pau. Agita-as primeiro no ar, como um dragão heráldico.

     …e então acabaram-se para sempre os meus temores: se me crescera de dragão a cauda, as mãos que me nasceram também eram de dragão!

     Logo curva-se para diante, a fazer demonstração de como escava e ceifa um dragão agrícola com farpas de metal.

     Com farpas como estas não resultou difícil ir mantendo os diabos verdes no seu sítio, antes de chegarmos a um acordo de paz.

     Há um suspiro e um movimento de comiseração entre os vizinhos, mas algum deles, que ainda não reparou na persistência do desvario, passa a gema do dedo pela folha do sacho, admirando-o.

Um Vizinho.- Que bem aguçado o tens, e como brilha!
Wang Cauda de Dragão.- É que aos macaquinhos lhes encanta limpar as unhas aos dragões…

     Deposita com cuidado a foice no carrinho, e dessa manga sai uma mão agitada que salta a recolher de entre a erva a pedra de amolar e começa a brunir com frenesi a folha do sacho. Wang Cauda de Dragão olha arregalado para a mão.

     … Eles são tão gentis… Devo-lhes tanto! No começo só sabiam incomodar…

     A mão solta a pedra e sobe, a correr, até à cabeça, beliscando as faces e balançando-se do rabicho.

     …mas logo fui conseguindo adestrá-los, e foram-me de grande ajuda. Eles recolhem sempre os frutos para mim…

     Deposita o outro sacho e dessa manga sai a outra mão, carregada de amêndoas, que corre a introduzir na boca do seu dono ainda que ele mova a cabeça como se não quisesse comer. A outra mão regressa para dentro da manga e volta com uma outra carga, que tenta introduzir também na boca sem que a boca colabore.

     …Se soubésseis como gostam de me dar de comer. (Ri) Sem lho pedir, às vezes… São tão dedicados… que até me coseram um capelo nas calças, para levar a cauda….

     Vira-se levemente e vemos que, com efeito, por baixo da bata negra assoma um estranho apêndice, uma espécie de capa fechada e acabada em bico, de igual tecido das calças, e que arrasta pelo chão atrás dele.

     …Agora já não tenho medo do frio, ainda que este ano o Inverno não acabe de passar. Não reparastes em toda essa neve coalhada nas amendoeiras?
Um Vizinho.- Oh! Wang, como voltas a falar de macacos, se acabamos de ver-te, diante de Du Fu, com as mãos quietas e unidas, como homem nobre e de juízo?
Wang Cauda de Dragão.- Ah… É que tenho descoberto que são macho e fêmea, e que já entraram na idade do namoro…

     As mãos correm uma ao encontro da outra e ficam na mesma atitude do começo, ainda que agora em vez de “enlaçadas” deveríamos dizer que estão “abraçados”.

O Mesmo Vizinho.- Oh, nobre Wang, pobre Wang! Mas você falou com ele de uma maneira… com tanta rectidão, com tanta desenvoltura, com tão bom senso…
Wang Cauda de Dragão.- Bom, nisso não te deves fiar, porque um dia, há pouco, estando adormecido sobre a erva, entrou-me pela boca uma serpente. Uma serpente vermelha e sem vergonha… e agora é ela que fala por mim, e já tu sabes que falsas são e duplas… Por isso eu já não sei se mentiu antes, ou se está a mentir agora. Mas vou-me retirar, com a vossa licença: pressinto que se aproxima um novo nevão. Fechai a porta para sempre. Eu vou ficar no meu jardim. Há tanta paz por trás estas grades! Convosco nunca estaria tranquila a minha cauda. Mas, aqui dentro, tenho arranjado um pacto subtilíssimo com os meus demónios.

     Olha sorrindo, a piscar um olho e a inclinar a cabeça, para o carrinho de mão, com a folha da foice a brilhar sobre a erva.

     Eles renunciaram a me calcar nunca mais a cauda, em troca de eu lhes cortar, de vez em quando, o cabelo.

     Vira-se de costas e começa a ziguezaguear pelo caminho. Pára um momento e, parecendo lembrar alguma coisa, vira a cabeça para um dos vizinhos.

     Ah, por certo, para manter limpos os caminhos só é preciso passear por eles, quando se tem, como eu, uma cauda de dragão.

     Retoma o seu andar, sempre ziguezagueante, a arrastar sobre a terra o estojo vazio da cauda. Das amendoeiras em flor começam a cair pétalas.
     A figura de Du Fu reaparece pelo mesmo lado por que se tinha ido. Recolhe algumas pétalas do chão (algumas delas não são luzes mas pedaços de material fosforescente) e vai compondo com elas caracteres ideográficos sobre o tronco de uma árvore que se encontra nesse extremo.

Voz do Prof. Sandro Constantini.- E Du Fu, que, saindo da aldeia se tinha virado a contemplá-la de uma colina, e tudo tinha visto, dizem que, ali mesmo, escreveu, no tronco de uma árvore o seguinte poema, e que, ao acabá-lo, enxugou as suas lágrimas para sempre: “Nunca voltarei a Mei-Jiang / onde nevam, no Verão, / flores as amendoeiras. / Quantas vezes tens já visto passar a Primavera? / Sabes tu quanto pesa / uma pétala caída sobre a mão, / quando se viram tantas? / O mundo dói. / A vida é uma escolha / e às vezes preferimos / à pétala a loucura. / Por isso nunca perguntes, / ó árvore, / porque ante ti, este dia, / Du Fu chorou, / e não chorou já mais.”

     A voz do narrador muda subitamente de tom, ao mesmo tempo que a mão executa uma ordem no teclado.

     Lenda que constitui, no entender de muitos autores, uma crítica feroz do condutismo…

     O computador faz um ruído surdo. Sobre o fundo começa a reflectir-se uma chuva (melhor seria dizer um nevão) de asteriscos entre os quais se intercala, de quando em vez, a frase “failure error system 00085” escrita em ordem e em caracteres invertidos. O computador continua a emitir ruídos de vendaval electrónico. Vai diminuindo a luz, e vão ficando os asteriscos só no ar. A mão realiza intentos violentos no teclado. Desesperação que se deixa transluzir na voz.

     …Sinto-o muito, vamos ter que interromper… Devem ser coisas dos macacos, que voltaram a bailar sobre o teclado, e ficou presa a cauda de dragão do meu arquivo de sistema… ou não seriam pétalas e frio…?

     Faz-se escuro e silêncio total, em que se ouve a voz do Secretário/Coordenador, a interrompê-lo

Voz do Secretário/Coordenador.- …Obrigados, professor Constantini, obrigados… penso que a sua posição tem ficado suficientemente exposta… Tem a palavra, a seguir, o Doutor Alexandre Costa Antunes, da Universidade Nova de Lisboa.

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