A Tábua Ocre de Núbia (ou o Significado da Vida)

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Quadro V: Cenas 1ª e 2ª.

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Quadro V
Du Fu Chorou

Cena 1ª

 

     Ouve-se, no escuro, a voz do Secretário/Coordenador.

Voz do Secretário/Coordenador.- A seguir, tem o uso da palavra o Professor Sandro Constantini, do departamento de Estudos Orientais da Universidade Marco Polo de Veneza.

     O desenho que vemos no pano, ao acender-se a luz, é o de um homem de óculos grossos e grande careca, adornada nos laterais por duas explosões de cabelo escuro, enrodilhado em múltiplos caracóis que parecem molas a ponto de saltar. Um bigode forte oculta o seu lábio superior. Os olhos um tanto desorbitados contribuem a conferir-lhe um carácter, diríamos, “eléctrico”.

Prof. Sandro Constantini.- É para mim um prazer começar a minha exposição salientando os pontos de coincidência com a tese anteriormente defendida, que são muitos e importantes. Coincido, em primeiro lugar, com o meu douto predecessor, na necessidade de revisar radicalmente a suposta datação da Tábua Ocre de Núbia deduzida das circunstâncias arqueológicas do seu achado. E, como ele, penso que essa datação se deve realizar exclusivamente a partir dos dados derivados da análise dos grafemas ou signos representativos, ou, no seu defeito, entidades mediáticas, nela representadas. Também coincido num certo ar de lenda, de parábola paradoxal, do seu conteúdo. Mas sobretudo quero salientar que coincidimos num dado fundamental: no carácter inacabado, (“incompleto” gostaria eu mais de dizer) da sua escrita.
     Ora bem, dito isto, tenho acrescentar que se equivoca completamente no alcance e no sentido dessas necessárias revisões. Ele tenta “trazer” a Tábua para o século III ou IV da nossa Era? Eu tenho conseguido fazê-la chegar até ao século VIII. (Em tom pejorativo) Ele tenta trasladar a sua localização, penosamente, uns 600 km Nilo abaixo, de Abu Simbel a Tell-el-Amarn? Pois eu vou-a levar, sem esforço, para muito mais longe: às gargantas do rio Changjang, na China. Porque, sobretudo, se ele pretendia, com aparente rigor, fazer crer que se tratava de uma mensagem incompleta, com que podia temperar todas as saladas russas de letras gregas que ele quiser… eu vou demonstrar, aqui e agora, que não se trata tanto de uma mensagem incompleta como de uma mensagem “incompletada”, e vou ser capaz de reconstruir essa mensagem, sem necessidade de nenhum elemento exterior, trazido de forma tão arbitrária como a sua. O meu não é um retrato improvisado a pincel: é uma fotografia.
     E, para isso, nada melhor que observar o ecrã dos seus “note books” que suponho já terão ligado na extensão correcta que lhes foi indicada na documentação adjunta.

     Ambas as mãos saem por um lateral e voltam trazendo um computador portátil, um pouco contraditório com o seu nome, pois o seu tamanho supera, e bastante, o de qualquer computador “de mesa”, por grande que a mesa seja.

     Vamos proceder à “demo 4”, a que podem aceder, situados na directoria “Tavola”, dentro da janela “View”, através do comando “ F1 Demo Impact @ Fu Enter”.

     As mãos fazem de conta que carregam no teclado do portátil. Uma série de luzes esvaídas (reconhecemos a palavra “menu” entre elas, setas e indicadores) reflectem-se no rosto do Prof. Sandro Constantini. As mãos detêm-se um momento. O professor muda de tom e fala como a alguém da Organização/Coordenação do evento.

     …Faz favor… as luzes… pode abaixar… só um bocadinho… é por causa destas cá de cima, que reflectem no vidro e não deixam ver…

     Diminui a iluminação do pano, e vemos com mais nitidez imagens de palavras inglesas invertidas reflectidas no seu busto.

     Obrigado. Pois, se consideramos as formas gravadas na Tábua de forma isolada…

     A mão carrega num dado lugar e ouve-se um “bip”. Agora vemos uma só forma luminosa (que reproduz fielmente uma das que temos visto na Tábua) reflectir-se sobre o casaco escuro do orador. A mão carrega de novo. Novo “bip”.

     … uma a uma, ou de forma conjunta…

     A mão carrega várias vezes seguidas. Há uma sucessão de “bip” e os signos, já conhecidos, da Tábua, se vão projectando um a um, em ordem inverso de leitura, e com forma invertida, sobre o escuro tecido do casaco do orador.

     … mas distanciada, tal e como foram gravados na argila, nada nos querem dizer. Mas, se os fazemos convergir no modo adequado…

     A mão carrega noutro ponto impreciso do teclado. Agora os signos começam a mover-se e concentrar-se, como moscas indecisas, sobre um ponto central. Ouvem-se uma série de sons electrónicos que ilustram o efeito, e quando cessa, todos os signos se ordenam formando uma figura que lembra, sem dúvida, a de um ideograma chinês qualquer (esperemos que sem nenhum significado inconveniente para algum espectador chinês por ventura presente, e, de todos modos, sempre o verá escrito do revés). Estoura então, incontinente, uma música oriental, executada também com sons sintéticos, directamente importados de Taiwan. O ideograma fica no centro, situado como alfinete brilhante alfinete da sua gravata, em sinal do triunfo inequívoco da sinologia aplicada.

     …resulta que todas essas formas sem significado aparente demonstram não serem senão partes constituintes de um único carácter ou ideograma de fácil leitura e inequívoca interpretação em Língua chinesa. É um carácter peculiar, imediatamente reconhecível, que resulta impossível ter sido formado por puro acaso ou capricho. Trata-se de um nome próprio. Esse carácter lê-se como Du Fu, e isso não pode designar outra coisa que um célebre autor chinês da dinastia T’ang (712-770 da nossa Era), o que resulta um dado incontestável à hora de uma datação correcta da Tábua.
     Mas o surpreendente não é isso, o surpreendente é que, experimentando novas combinações desses elementos gráficos…

     A mão executa um novo comando no teclado. As luzes voltam a desagregar-se, remexer de novo, sempre acompanhadas de uma espécie de toques de atenção electrónicos.

     …(e nisto quero salientar um ponto de coincidência com o primeiro orador, Prof. Dr. Alexis Konstantinos, respeito de uma certa natureza ambivalente da inscrição)…

     As luzes voltam a agrupar-se num novo carácter de carácter inequivocamente chinês. Repete-se no computador o efeito triunfal de música chinesa plastificada em Taiwan.

     …descobrimos que, a única combinação dotada de significado em mandarim T’ang, é esta, um epíteto arcaico, de difícil tradução, que poderíamos interpretar como “aquele que chora”, o “chorante”, o “choroso”, mas com uma desinência de passado. E daí resulta ou bem o nome de Du Fu revelar-se como uma sorte de “acróstico ideográfico”, de trocadilho caligráfico, do epíteto “choroso no passado”, ou, ao contrário, revela ser esse raro epíteto uma criação caligráfica realizada a partir do nome do poeta, considerado como paradigma de um estilo melancólico.
     Isso pouca importância pode ter para o nosso estudo, porque, seja como for, o transcendental para este assunto, é que a combinação destes dois ideogramas…

     A mão activa a “demo” no teclado. Agora as luzes cobram de novo independência, sofrem um processo de duplicação e reconstroem, um ao lado de outro, os caracteres dantes formados. O sucesso da demonstração fica sublinhado com um duplo acorde de música electrónica tradicional.

     …que devemos traduzir como “Du Fu, choroso no passado”, ou, com maior sentido “Du Fu chorou”, ou mesmo, numa versão mais livre, mas talvez mais exacta, como “Du Fu chorou, e não voltou a chorar”, só pode aparecer escrita num único texto literário, bem conhecido e estudado, uma formosa (hoje em dia Taiwan) lenda: a história de “Wang Cauda de Dragão”. E, se o meu erudito predecessor nesta tribuna, invocava nada menos que “três” documentos da colecção Hoffenmayer (144 B e 175 A e B) eu, ainda que podia invocar muitos mais, vou-me limitar a replicar-lhe apenas com os 84 e 163 da Colecção Wisman, por exemplo, ou os 128 B e C, e 184 C da Fundação Whistaker… e, como responde ele aos 187, 188 189 A, B, C, e mesmo D, da colecção Bollingen, e, que tem a dizer dos 572 e 572 B, da colecção Dislaten e os 243 B, e 258 C da colecção Weissmüller. Hem!?
     Resumindo, as nossas conclusões são que essa Tábua constitui realmente um exercício de aprendizado da escrita ideográfica chinesa realizado numa placa de argila por algum mercador árabe que tivesse contacto com as terras do Celeste Império, através da rota da seda. Esse exercício consistia na análise comparativa dos signos “Du Fu” e “Chorou”, de onde se deduz que a parte perdida da Tábua continha o desenvolvimento coerente da lenda, e que esses traços esparsos, teriam o carácter de “notas à margem”.
     De facto, na forma da fractura da zona inferior direita, parece-nos identificar alguns dos traços do signo com que começa dita lenda: essa linha crestada, característica do ideograma “Wang”, pois dito relato arranca dizendo textualmente:

     Começa a abrir-se o pano. A mão esquerda fica muda no seu canto. Mas a mão direita vai ficar, nesta ocasião, sempre activa no seu, debilmente iluminada, a executar no teclado, como se fosse um contra-forte, o acompanhamento musical de uma peça de Ópera Chinesa.






Cena 2ª


     A mão direita executa as ordens oportunas no teclado, que com sotaque electrónico de viola chinesa, realiza uma série de transformações nos signos. Vão-se espalhando por toda a parte, ficando sobrepostos ao desenho do pano do fundo, que representa um jardim chinês, cheio de encanto, mas sumamente desarranjado, com trepadeiras a crescer por toda a parte, caminhos cheios de ramos secos, sebes desmesuras. As luzes reflectidas o computador situam-se sobre ele acentuando a sua desordem, como pétalas pendentes de alguns ramos despidos, ou deitadas ocasionalmente pelo chão. No centro do cenário há uma espécie de cama baixa, ou reclinatório, com lençóis de seda e coxins bordados. Mesmo trás dela uma espécie de pequena balaustrada que separa este espaço do jardim.

Voz do Prof. Sandro Constantini.- “Wang Cauda de Dragão” era um ancião venerável da aldeia de Mei-Jiang, na bandeira de Ba-lin, que fora conhecido com o seu próprio nome de Wang Tsé até que um dia, quando ia atravessando o seu 70 Estio…

     A mão executa um comando no teclado, que se traduz numa série de sons electrónicos que lembram esses rufos de tambor acompanhados de pratos e outros instrumentos de percussão em desconcertante cascata, e que acompanha entradas ou saídas de personagens, importantes ou espectaculares. Pela esquerda aparece Wang Cauda de Dragão. É um velho de bata preta, folgada e longa, traz o seu boné na cabeça da mesma cor e o seu rabicho. Aparece maquilhado como máscara cómica, quer dizer, pele branca, com um círculo vermelho na fronte, faces e sobrancelhas marcadas, grandes suíças, brancas como o resto do cabelo. Vem correndo com as calças baixas os pés muito juntos, a executar fitas e estranhas manobras, com as mãos ocultas nas largas mangas a apertar alternativamente as fontes ou a nuca e o rosto. Aparece pelo lado do jardim e logo atravessa, sempre a ziguezaguear, a balaustrada. As luzes projectadas no fundo começam a oscilar, como se o mesmo vento que o agita agitasse as pétalas das árvores.

     …decidiu que lhe tinha crescido uma cauda de dragão, que o obrigava a realizar complicados movimentos para realizar as tarefas mais simples de cada dia. E não era isso tudo, também começou a dizer que as suas mãos eram dois macaquinhos inquietos que se lhe tinham escondido nas mangas….

     Wang detém-se, e com ele o efeito sonoro, e o oscilar de pétalas. A sua agitação transmite-se então aos braços. Aparecem ambas as mãos, que, despersonalizadas, começam a percorrer o seu corpo, a fazer cócegas nas axilas, a lhe puxar as orelhas, a brincar com o nariz, a perseguirem-se entre elas etc… Logo voltam a desaparecer por dentro das mangas e, apertando-se de novo a cabeça, retoma o seu circular oscilante ao redor da cama, para cair afinal dentro dela, de uma só atacada, como extenuado.

     Foi assim que decidiu ficar todo o dia na cama, porque ali, pelo menos, a cauda de dragão não o incomodava, e os macaquinhos parecia que gostavam de adormecer com ele, procurando a quentura do seu corpo.

     Wang ficou, não que deitado mas acocorado na cama, com os coxins a fazer ninho, as pernas encolhidas e os braços cruzados sobre o peito. Entram, pela direita, o Filho e a Criada.

     Antes de ser conhecido como “Wang Cauda de Dragão”, Wang Tsé tinha vivido muitos anos em paz e harmonia com um velha criada da família e o menor dos filhos que tivera com a segunda mulher.

     A Criada e o Filho aproximam-se à cama, rodam-no com os braços, falam-lhe mansamente num chinês cujo grau de perfeição não nos consideramos capacitados para julgar. Wang responde com monossílabos que parecem resultar tão incoerentes aos seus interlocutores como a nós. Vira-se para um e outro lado da cama, como querendo fugir ou esconder-se dele. Num dado momento o Filho faz menção de ir-se sentar na cama, a seu pé, mas ele detém-no escandalizado: é o sítio onde deve cair a sua cauda de dragão.

     Desde que era Wang Cauda de Dragão, a criada e o filho não deixavam de tentar devolver-lhe o juízo com longas e inúteis práticas…

     Ao passar a primeiro termo, as vozes tornam-se mais inteligíveis e não só acusticamente.

Wang Cauda de Dragão.- …Não… Digo-te que não…
O Filho.- Vamos, pai, tem que sair…
Wang Cauda de Dragão.- Não, que me pisam…
O Filho.- …Não tem por que temer, vá com cuidado…
Wang Cauda de Dragão.- Se eu vou… mas há muito apalermado que calca nela e diz que a não viu…
O Filho.- Pai, você não tem nenhuma cauda de dragão…
Wang Cauda de Dragão.- Estás a ver… mais um… Já nem na minha própria casa estou salvo… Até meu filho é um perigo para mim.
O Filho.- Se o meu senhor pai sair da cama, juro que andarei todo o dia com extremo cuidado para não lhe calcar a sua delicada cauda de dragão…
Wang Cauda de Dragão.- Então, reconheces que tenho uma cauda de dragão?
O Filho.- Como quiser, mas saia da cama…
Wang Cauda de Dragão.- E como pretendes que eu saia, tendo, como tenho, uma enorme cauda de Dragão…?
O Filho.- Pai…
A Criada.- Amo Wang, sei que sou apenas uma pobre “keba” que já serviu seu pai, e a minha mãe já tinha servido o pai de seu pai. Pela alma de todos eles suplico-lhe: saia um bocadinho, ainda que seja só ao jardim… No jardim não há ninguém, nem perigo de que possam calcar essa cauda que tanto se empenha em ter.
Wang Cauda de Dragão.- O jardim é o pior, está cheio de demónios verdes…
A Criada.- E não serão as sebes que não corta?
Wang Cauda de Dragão.- …e já tu sabes como os demónios verdes gostam de calcar a cauda dos dragões!
A Criada.- E não serão os ramos que não poda, que chegam até ao chão?
Wang Cauda de Dragão.- Se visses que unhas e farpas eles têm, e que escamas aguçadas por toda a pele…!
A Criada.- E não serão as silvas e os espinhos que há tanto não limpa?
Wang Cauda de Dragão.- Claro que, eu reconheço ter-lhes pisado também alguma vez esse rabinho verde que andam a arrastar por toda a parte.
A Criada.- E não será a erva, que está a invadir os caminhos?

     Quando começa a falar o narrador, amo e criada continuam esta monódica conversa, em chinês, por baixo da voz dele.

Voz do Prof. Sandro Constantini.- Porque Wang Tsé, antes de ser Wang Cauda de Dragão, dedicava-se com grande esmero ao cuidado do jardim. A criada era muito velha para o fazer, e o filho muito novo, e, aliás, só se interessava pela caça do faisão no lago próximo. Desde o dia em que descobriu que lhe nascera uma cauda de dragão, fora rareando este trabalho, os caminhos foram-se fechando, e quando já não podia transitar por eles sem machucar a cauda contra as silvas, decidiu, por simples precaução, não voltar a aventurar-se por aquelas espessuras.

     Ao acabar, a voz e as palavras de ambos voltam a chegar com claridade aos nossos ouvidos.

Wang Cauda de Dragão.- E logo está o problema dos macacos…
A Criada.- Amo Wang, no jardim não há macacos…
Wang Cauda de Dragão.- Lá isso é. O meu temor é que entrem. Estes macacos que se escondem nas minhas mangas são malucos, e, se os deixasse brincar pelo jardim, não ficaria uma flor inteira.

     Continuam em voz baixa e em chinês.

Voz do Prof. Sandro Constantini.- E, assim, por dragões ou por macacos, o jardim foi-se abandonando à sua sorte, permitindo que o mato afogasse as flores.

     Voltam a falar de forma clara e forte.

Wang Cauda de Dragão.- Mas, sobre tudo, não posso sair, porque está muito frio…

     Vira-se rapidamente, num gesto infantil, na sua cama.

O Filho.- Olhe, meu pai, (A assinalar para o jardim) as amendoeiras estão a perder a flor. Dos seus lábios ouviram meus ouvidos miúdos que essa era a folha do calendário que mudava da Primavera ao Estio…

     O Filho, com a frase, vai-se curvando, a fazer aceno de se ir sentar no outro canto da cama. O pai detém-no com um golpe delicado no ombro e movimento de cabeça que assinala para o lugar da “cauda”, e logo proscontinua.

Wang Cauda de Dragão.- É isso que eu digo: que não pára de nevar… E a minha cauda é tão delicada para o frio…!

     A mão do narrador executa novas ordens. Repete-se, ainda que mais modesto, o rufo de atenção. A Criada fiel e o Filho saem correndo sem mover o corpo, e com os braços engessados numa posse determinada, que é como costumam entrar e sair de cena os heróis orientais. Wang fica na cama, de costas ao público, a olhar como o jardim se desborda e degenera.

Voz do Prof. Sandro Constantini.- Desesperados de o levar à razão, seus familiares e servos foram procurar o poeta Du Fu, às altas terras de Kuizhou, nas três gargantas do Changijang.

     Logo regressam, praticamente na mesma postura, trazendo entre eles o poeta Du Fu, máscara nobilíssima, de longa barba escura e esse alto capacete, enfeitado com grinaldas e bandeirinhas, que só pode cobrir cabeças sábias. Cessa o efeito sonoro e eles recuperam o andar normal. Filho e Criada precedem Du Fu, sempre a falar-lhe com grande respeito, em voz baixa e em correcto mandarim. As luzes projectadas contra o fundo começam a oscilar e cair como pétalas, e ficam agrupadas desordenadamente na zona inferior, a atapetar os caminhos.

     Du Fu era considerado o homem mais sábio de todo o Celestial Império, e a sua opinião era solicitada em todos os assuntos transcendentes e delicados, fossem de agricultura, economia, política ou caligrafia.
     Eles explicaram-lhe as estranhas manias em que fora caindo Wang, e a absoluta impossibilidade de o devolver ao seu bom juízo. Du Fu prometeu curá-lo, mas pôs uma condição.

     Du Fu alça a voz, deixando abaixo o seu erudito chinês.

Du Fu.- Tereis que fazer tudo quanto eu disser, sem vos importar que possa parecer estranho ou duro… E agora, deixai-me a sós com ele.

     Saem ambos, sempre de costas. Du Fu aproxima-se de Wang, que continua a olhar, acocorado, para o seu eriçado jardim, onde as pétalas continuam a cair copiosamente dos ramos à terra.
     Permanece ao seu pé, em atitude recolhida, até que Wang, sempre a olhar para o jardim, começa a falar-lhe sem se importar com quem.

Wang Cauda de Dragão.- Não deixa de nevar. Quanto demora este ano a chegar a Primavera!
Du Fu.- Eu só vejo como caem as pétalas brancas das amendoeiras. O Verão está à porta.
Wang Cauda de Dragão.- (Virando-se para ele, alarmado) Pétalas diz o tipo! Estás a dizer que tu vês pétalas?
Du Fu.- Pétalas, sim, pétalas brancas das amendoeiras…
Wang Cauda de Dragão.- (Faz uma indicação violenta com a cabeça) Muito cuidadinho para não me esmagar a cauda! Não passes dessa marca do chão. É pelo meu filho. Ele também vê pétalas.
Du Fu.- Prometo não passar se me demonstras que o que estamos a ver são flocos de neve e não pétalas…
Wang Cauda de Dragão.- De que cor dirias tu que são os meus cabelos?
Du Fu.- Brancos.
Wang Cauda de Dragão.- Pois bem, esta manhã, quando saí, pela última vez, ao meu jardim, eram morenos, escuros e brilhantes como a pele de um búfalo que ainda não deixou de mamar. Ao regressar, no espelho, estavam brancos da nave que caía. As pétalas sacodem-se, não aderem tanto tempo, como esta neve densa, nos cabelos.

     Du Fu vai achegando-se por trás, acocora-se ao seu pé, e põe-lhe uma mão no ombro.

Du Fu.- Ó meu bom Wang Tsé, o que tu tens é medo de envelhecer, como todo o mundo!
Wang Cauda de Dragão.- Tchist! Não fales tão perto nem tão alto: podes acordar os macacos…

     Uma mão emerge da manga. Sobe, a reptar, pelo braço do sábio, puxa-lhe da barba e volta rápida para dentro.

Du Fu.- Presta-me, então, muita atenção: estás a ver o teu jardim?
Wang Cauda de Dragão.- Estou a vê-lo… nevado…

     Com efeito, já não fica uma só pétala de luz nas árvores e todas jazem, esparsas, pelo chão.

Du Fu.- Pois a tua cabeça está como o jardim…
Wang Cauda de Dragão.- Nevada…
Du Fu.- Não: desordenada, abandonada, cheia de más ervas, ou de boas, mas que crescem sem controlo e não deixam nascer outras melhores e novas… A tua mente é como um jardim confuso, invadida de si… E então…

     Du Fu empurra-o suavemente. Wang rola da cama ao chão, e por ele cai rolando até ao outro lado da balaustrada. Berra algo assim como “Ah, minha cauda!”, ou coisa pior, mas é já em chinês. Du Fu incorpora-se então, de repente, e, volvendo-se para o público, começa a proferir gritos destemperados, num mandarim imperioso e cerimonial, acompanhados desse movimentos codificados, estereotipados e rotundos, com que se acompanham as velhas epopeias e os discursos transcendentes.

Voz do Prof. Sandro Constantini.- …Du Fu condenou-o a viver encerrado naquele jardim…

     As mãos executam uma nova ordem no teclado. Estoura o mesmo efeito de rufos e metais, muito mais forte e brilhante que nunca. Irrompem, pelos laterais duas filas de servidores de cena, fardados com botas altas, couraças de cores, capacetes de bico e máscaras de monstros diversos. Trazem nas mãos longas lanças de madeira que vão encanando nuns furados praticados oportunamente na balaustrada. À sua passagem as pétalas amontoadas na parte inferior do pano começam a agitar-se e revolver-se, como se fossem sacudidas pelos numerosos e ágeis pés. Wang, por trás da sua linha, não deixa de fazer gestos de desespero, levando as mãos, metidas nas mangas, à fronte, ou percorrendo, com elas fora, o corpo entre espasmos.

     Disse-lhe: do outro lado a grade tem uma única porta. Mas, para saíres, terás que poder chegar ali… Terás que ser capaz de cortar a erva, limpar o campo, arranjar as sebes, cavar a terra, enxertar as árvores, podar as roseiras, ordenar os caminhos, controlar o viço e o pulo constante da vida vegetal…

     Du Fu continua as exclamações rituais com seus grandes gestos, tão incompreensíveis como as palavras.

     Tudo isso não são coisas que se possam fazer com dois macacos. Para sair do teu jardim terás que ser capaz de sair da tua loucura, como hão-de sair as mãos das mangas. No meio do jardim existe um pavilhão em que costumavas guardar, quando o cuidavas, as tuas alfaias e apetrechos. Quando cheguem as neves de verdade poderás agasalhar-te no interior, mas para isso terás que ser capaz, primeiro, de consertar as partes estragadas, cuidar das tuas alfaias e usar as ferramentas. Terás que distinguir o frio do calor e o Verão do Inverno. Terás que aceitar que passa a Primavera. A natureza cuidará de ti. A vida tem mais força que a loucura, e antes de morrer preferirás aceitá-la como é ela. No interior do jardim tens árvores de fruto, hortas e tudo quanto precisares para o teu sustento. Sabendo ser seu dono serás dono de ti. O caminho da razão é agora o mesmo que o do teu jardim. O teu ofício será cuidá-lo e ordená-lo. Nesse dia poderás sair por fim dele e da loucura, mas terás que deixar, dentro dele, antes primeiro, a tua cauda de dragão.

     As filas de servidores, que não deixaram de desfilar correndo ao longo do cenário, quando acabam de colocar todas as lanças vão colocando umas outras, sem ponta, atravessadas nas verticais, formando uma grade detrás da qual fica Wang Cauda de Dragão, sem deixar nunca de fazer espaventos. Este momento deve coincidir com o final do discurso. Fazem-se então mais intensos os rufos de tambor e toda a confusão de percussões que atroam o cenário. A mão executa uma nova ordem no teclado. As pétalas, ao fundo, voam em etéreo redemoinho, como poeira dos dias. É quando um foco se fecha sobre Du Fu, quieto e com os braços estirados, a grade e Wang que não deixa de mexer. Faz-se silêncio um silêncio total, e um escuro que o não é porque ficam a girar, suspensas, as luzes em forma de traços caligráficos ou pétalas.

 

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