v2jguisantabuaocre009.html
Quadro V
Du Fu Chorou
Cena 1ª |
Ouve-se,
no escuro, a voz do Secretário/Coordenador. |
Voz do
Secretário/Coordenador.- A seguir, tem o uso da palavra
o Professor Sandro Constantini, do departamento de Estudos
Orientais da Universidade Marco Polo de Veneza.
O
desenho que vemos no pano, ao acender-se a luz, é o de
um homem de óculos grossos e grande careca, adornada nos
laterais por duas explosões de cabelo escuro,
enrodilhado em múltiplos caracóis que parecem molas a
ponto de saltar. Um bigode forte oculta o seu lábio
superior. Os olhos um tanto desorbitados contribuem a
conferir-lhe um carácter, diríamos,
eléctrico. |
Prof. Sandro Constantini.-
É para mim um prazer começar a minha exposição salientando os
pontos de coincidência com a tese anteriormente defendida, que
são muitos e importantes. Coincido, em primeiro lugar, com o meu
douto predecessor, na necessidade de revisar radicalmente a
suposta datação da Tábua Ocre de Núbia deduzida das
circunstâncias arqueológicas do seu achado. E, como ele, penso
que essa datação se deve realizar exclusivamente a partir dos
dados derivados da análise dos grafemas ou signos
representativos, ou, no seu defeito, entidades mediáticas, nela
representadas. Também coincido num certo ar de lenda, de
parábola paradoxal, do seu conteúdo. Mas sobretudo quero
salientar que coincidimos num dado fundamental: no carácter
inacabado, (incompleto gostaria eu mais de dizer) da
sua escrita.
Ora bem, dito isto, tenho
acrescentar que se equivoca completamente no alcance e no sentido
dessas necessárias revisões. Ele tenta trazer a
Tábua para o século III ou IV da nossa Era? Eu tenho conseguido
fazê-la chegar até ao século VIII. (Em tom pejorativo)
Ele tenta trasladar a sua localização, penosamente, uns 600 km
Nilo abaixo, de Abu Simbel a Tell-el-Amarn? Pois eu vou-a levar,
sem esforço, para muito mais longe: às gargantas do rio
Changjang, na China. Porque, sobretudo, se ele pretendia, com
aparente rigor, fazer crer que se tratava de uma mensagem
incompleta, com que podia temperar todas as saladas russas de
letras gregas que ele quiser
eu vou demonstrar, aqui e
agora, que não se trata tanto de uma mensagem incompleta como de
uma mensagem incompletada, e vou ser capaz de
reconstruir essa mensagem, sem necessidade de nenhum elemento
exterior, trazido de forma tão arbitrária como a sua. O meu
não é um retrato improvisado a pincel: é uma fotografia.
E, para isso, nada melhor
que observar o ecrã dos seus note books que suponho
já terão ligado na extensão correcta que lhes foi indicada na
documentação adjunta.
Ambas
as mãos saem por um lateral e voltam trazendo um
computador portátil, um pouco contraditório com o seu
nome, pois o seu tamanho supera, e bastante, o de
qualquer computador de mesa, por grande que a
mesa seja. |
Vamos
proceder à demo 4, a que podem aceder, situados na
directoria Tavola, dentro da janela View,
através do comando F1 Demo Impact @ Fu Enter.
As
mãos fazem de conta que carregam no teclado do
portátil. Uma série de luzes esvaídas (reconhecemos a
palavra menu entre elas, setas e indicadores)
reflectem-se no rosto do Prof. Sandro Constantini. As
mãos detêm-se um momento. O professor muda de tom e
fala como a alguém da Organização/Coordenação do
evento. |
Faz
favor
as luzes
pode abaixar
só um
bocadinho
é por causa destas cá de cima, que reflectem no
vidro e não deixam ver
Diminui
a iluminação do pano, e vemos com mais nitidez imagens
de palavras inglesas invertidas reflectidas no seu busto. |
Obrigado.
Pois, se consideramos as formas gravadas na Tábua de forma
isolada
A
mão carrega num dado lugar e ouve-se um bip.
Agora vemos uma só forma luminosa (que reproduz
fielmente uma das que temos visto na Tábua) reflectir-se
sobre o casaco escuro do orador. A mão carrega de novo.
Novo bip. |
uma a uma, ou de forma conjunta
A
mão carrega várias vezes seguidas. Há uma sucessão de
bip e os signos, já conhecidos, da Tábua,
se vão projectando um a um, em ordem inverso de leitura,
e com forma invertida, sobre o escuro tecido do casaco do
orador. |
mas distanciada, tal e como foram gravados na argila, nada nos
querem dizer. Mas, se os fazemos convergir no modo adequado
A
mão carrega noutro ponto impreciso do teclado. Agora os
signos começam a mover-se e concentrar-se, como moscas
indecisas, sobre um ponto central. Ouvem-se uma série de
sons electrónicos que ilustram o efeito, e quando cessa,
todos os signos se ordenam formando uma figura que
lembra, sem dúvida, a de um ideograma chinês qualquer
(esperemos que sem nenhum significado inconveniente para
algum espectador chinês por ventura presente, e, de
todos modos, sempre o verá escrito do revés). Estoura
então, incontinente, uma música oriental, executada
também com sons sintéticos, directamente importados de
Taiwan. O ideograma fica no centro, situado como alfinete
brilhante alfinete da sua gravata, em sinal do triunfo
inequívoco da sinologia aplicada. |
resulta
que todas essas formas sem significado aparente demonstram não
serem senão partes constituintes de um único carácter ou
ideograma de fácil leitura e inequívoca interpretação em
Língua chinesa. É um carácter peculiar, imediatamente
reconhecível, que resulta impossível ter sido formado por puro
acaso ou capricho. Trata-se de um nome próprio. Esse carácter
lê-se como Du Fu, e isso não pode designar outra coisa que um
célebre autor chinês da dinastia Tang (712-770 da nossa
Era), o que resulta um dado incontestável à hora de uma
datação correcta da Tábua.
Mas o surpreendente não
é isso, o surpreendente é que, experimentando novas
combinações desses elementos gráficos
A
mão executa um novo comando no teclado. As luzes voltam
a desagregar-se, remexer de novo, sempre acompanhadas de
uma espécie de toques de atenção electrónicos. |
(e
nisto quero salientar um ponto de coincidência com o primeiro
orador, Prof. Dr. Alexis Konstantinos, respeito de uma certa
natureza ambivalente da inscrição)
As
luzes voltam a agrupar-se num novo carácter de carácter
inequivocamente chinês. Repete-se no computador o efeito
triunfal de música chinesa plastificada em Taiwan. |
descobrimos
que, a única combinação dotada de significado em mandarim
Tang, é esta, um epíteto arcaico, de difícil tradução,
que poderíamos interpretar como aquele que chora, o
chorante, o choroso, mas com uma
desinência de passado. E daí resulta ou bem o nome de Du Fu
revelar-se como uma sorte de acróstico ideográfico,
de trocadilho caligráfico, do epíteto choroso no
passado, ou, ao contrário, revela ser esse raro epíteto
uma criação caligráfica realizada a partir do nome do poeta,
considerado como paradigma de um estilo melancólico.
Isso pouca importância
pode ter para o nosso estudo, porque, seja como for, o
transcendental para este assunto, é que a combinação destes
dois ideogramas
A
mão activa a demo no teclado. Agora as luzes
cobram de novo independência, sofrem um processo de
duplicação e reconstroem, um ao lado de outro, os
caracteres dantes formados. O sucesso da demonstração
fica sublinhado com um duplo acorde de música
electrónica tradicional. |
que
devemos traduzir como Du Fu, choroso no passado, ou,
com maior sentido Du Fu chorou, ou mesmo, numa
versão mais livre, mas talvez mais exacta, como Du Fu
chorou, e não voltou a chorar, só pode aparecer escrita
num único texto literário, bem conhecido e estudado, uma
formosa (hoje em dia Taiwan) lenda: a história de Wang
Cauda de Dragão. E, se o meu erudito predecessor nesta
tribuna, invocava nada menos que três documentos da
colecção Hoffenmayer (144 B e 175 A e B) eu, ainda que podia
invocar muitos mais, vou-me limitar a replicar-lhe apenas com os
84 e 163 da Colecção Wisman, por exemplo, ou os 128 B e C, e
184 C da Fundação Whistaker
e, como responde ele aos 187,
188 189 A, B, C, e mesmo D, da colecção Bollingen, e, que tem a
dizer dos 572 e 572 B, da colecção Dislaten e os 243 B, e 258 C
da colecção Weissmüller. Hem!?
Resumindo, as nossas
conclusões são que essa Tábua constitui realmente um
exercício de aprendizado da escrita ideográfica chinesa
realizado numa placa de argila por algum mercador árabe que
tivesse contacto com as terras do Celeste Império, através da
rota da seda. Esse exercício consistia na análise comparativa
dos signos Du Fu e Chorou, de onde se
deduz que a parte perdida da Tábua continha o desenvolvimento
coerente da lenda, e que esses traços esparsos, teriam o
carácter de notas à margem.
De facto, na forma da
fractura da zona inferior direita, parece-nos identificar alguns
dos traços do signo com que começa dita lenda: essa linha
crestada, característica do ideograma Wang, pois
dito relato arranca dizendo textualmente:
Começa
a abrir-se o pano. A mão esquerda fica muda no seu
canto. Mas a mão direita vai ficar, nesta ocasião,
sempre activa no seu, debilmente iluminada, a executar no
teclado, como se fosse um contra-forte, o acompanhamento
musical de uma peça de Ópera Chinesa. |
A
mão direita executa as ordens oportunas no teclado, que
com sotaque electrónico de viola chinesa, realiza uma
série de transformações nos signos. Vão-se espalhando
por toda a parte, ficando sobrepostos ao desenho do pano
do fundo, que representa um jardim chinês, cheio de
encanto, mas sumamente desarranjado, com trepadeiras a
crescer por toda a parte, caminhos cheios de ramos secos,
sebes desmesuras. As luzes reflectidas o computador
situam-se sobre ele acentuando a sua desordem, como
pétalas pendentes de alguns ramos despidos, ou deitadas
ocasionalmente pelo chão. No centro do cenário há uma
espécie de cama baixa, ou reclinatório, com lençóis
de seda e coxins bordados. Mesmo trás dela uma espécie
de pequena balaustrada que separa este espaço do jardim.
|
Voz do Prof. Sandro
Constantini.- Wang Cauda de Dragão era um
ancião venerável da aldeia de Mei-Jiang, na bandeira de Ba-lin,
que fora conhecido com o seu próprio nome de Wang Tsé até que
um dia, quando ia atravessando o seu 70 Estio
A
mão executa um comando no teclado, que se traduz numa
série de sons electrónicos que lembram esses rufos de
tambor acompanhados de pratos e outros instrumentos de
percussão em desconcertante cascata, e que acompanha
entradas ou saídas de personagens, importantes ou
espectaculares. Pela esquerda aparece Wang Cauda de
Dragão. É um velho de bata preta, folgada e longa, traz
o seu boné na cabeça da mesma cor e o seu rabicho.
Aparece maquilhado como máscara cómica, quer dizer,
pele branca, com um círculo vermelho na fronte, faces e
sobrancelhas marcadas, grandes suíças, brancas como o
resto do cabelo. Vem correndo com as calças baixas os
pés muito juntos, a executar fitas e estranhas manobras,
com as mãos ocultas nas largas mangas a apertar
alternativamente as fontes ou a nuca e o rosto. Aparece
pelo lado do jardim e logo atravessa, sempre a
ziguezaguear, a balaustrada. As luzes projectadas no
fundo começam a oscilar, como se o mesmo vento que o
agita agitasse as pétalas das árvores. |
decidiu
que lhe tinha crescido uma cauda de dragão, que o obrigava a
realizar complicados movimentos para realizar as tarefas mais
simples de cada dia. E não era isso tudo, também começou a
dizer que as suas mãos eram dois macaquinhos inquietos que se
lhe tinham escondido nas mangas
.
Wang
detém-se, e com ele o efeito sonoro, e o oscilar de
pétalas. A sua agitação transmite-se então aos
braços. Aparecem ambas as mãos, que, despersonalizadas,
começam a percorrer o seu corpo, a fazer cócegas nas
axilas, a lhe puxar as orelhas, a brincar com o nariz, a
perseguirem-se entre elas etc
Logo voltam a
desaparecer por dentro das mangas e, apertando-se de novo
a cabeça, retoma o seu circular oscilante ao redor da
cama, para cair afinal dentro dela, de uma só atacada,
como extenuado. |
Foi
assim que decidiu ficar todo o dia na cama, porque ali, pelo
menos, a cauda de dragão não o incomodava, e os macaquinhos
parecia que gostavam de adormecer com ele, procurando a quentura
do seu corpo.
Wang
ficou, não que deitado mas acocorado na cama, com os
coxins a fazer ninho, as pernas encolhidas e os braços
cruzados sobre o peito. Entram, pela direita, o Filho e a
Criada. |
Antes
de ser conhecido como Wang Cauda de Dragão, Wang
Tsé tinha vivido muitos anos em paz e harmonia com um velha
criada da família e o menor dos filhos que tivera com a segunda
mulher.
A
Criada e o Filho aproximam-se à cama, rodam-no com os
braços, falam-lhe mansamente num chinês cujo grau de
perfeição não nos consideramos capacitados para
julgar. Wang responde com monossílabos que parecem
resultar tão incoerentes aos seus interlocutores como a
nós. Vira-se para um e outro lado da cama, como querendo
fugir ou esconder-se dele. Num dado momento o Filho faz
menção de ir-se sentar na cama, a seu pé, mas ele
detém-no escandalizado: é o sítio onde deve cair a sua
cauda de dragão. |
Desde
que era Wang Cauda de Dragão, a criada e o filho não deixavam
de tentar devolver-lhe o juízo com longas e inúteis
práticas
Ao
passar a primeiro termo, as vozes tornam-se mais
inteligíveis e não só acusticamente. |
Wang Cauda de Dragão.-
Não
Digo-te que não
O Filho.- Vamos, pai, tem que sair
Wang Cauda de Dragão.- Não, que me pisam
O Filho.-
Não tem por que temer, vá com
cuidado
Wang Cauda de Dragão.- Se eu vou
mas há
muito apalermado que calca nela e diz que a não viu
O Filho.- Pai, você não tem nenhuma cauda de
dragão
Wang Cauda de Dragão.- Estás a ver
mais
um
Já nem na minha própria casa estou salvo
Até
meu filho é um perigo para mim.
O Filho.- Se o meu senhor pai sair da cama, juro
que andarei todo o dia com extremo cuidado para não lhe calcar a
sua delicada cauda de dragão
Wang Cauda de Dragão.- Então, reconheces que
tenho uma cauda de dragão?
O Filho.- Como quiser, mas saia da cama
Wang Cauda de Dragão.- E como pretendes que eu
saia, tendo, como tenho, uma enorme cauda de Dragão
?
O Filho.- Pai
A Criada.- Amo Wang, sei que sou apenas uma
pobre keba que já serviu seu pai, e a minha mãe já
tinha servido o pai de seu pai. Pela alma de todos eles
suplico-lhe: saia um bocadinho, ainda que seja só ao
jardim
No jardim não há ninguém, nem perigo de que
possam calcar essa cauda que tanto se empenha em ter.
Wang Cauda de Dragão.- O jardim é o pior,
está cheio de demónios verdes
A Criada.- E não serão as sebes que não
corta?
Wang Cauda de Dragão.-
e já tu sabes
como os demónios verdes gostam de calcar a cauda dos dragões!
A Criada.- E não serão os ramos que não poda,
que chegam até ao chão?
Wang Cauda de Dragão.- Se visses que unhas e
farpas eles têm, e que escamas aguçadas por toda a pele
!
A Criada.- E não serão as silvas e os espinhos
que há tanto não limpa?
Wang Cauda de Dragão.- Claro que, eu reconheço
ter-lhes pisado também alguma vez esse rabinho verde que andam a
arrastar por toda a parte.
A Criada.- E não será a erva, que está a
invadir os caminhos?
Quando
começa a falar o narrador, amo e criada continuam esta
monódica conversa, em chinês, por baixo da voz dele. |
Voz do Prof. Sandro
Constantini.- Porque Wang Tsé, antes de ser Wang Cauda
de Dragão, dedicava-se com grande esmero ao cuidado do jardim. A
criada era muito velha para o fazer, e o filho muito novo, e,
aliás, só se interessava pela caça do faisão no lago
próximo. Desde o dia em que descobriu que lhe nascera uma cauda
de dragão, fora rareando este trabalho, os caminhos foram-se
fechando, e quando já não podia transitar por eles sem machucar
a cauda contra as silvas, decidiu, por simples precaução, não
voltar a aventurar-se por aquelas espessuras.
Ao
acabar, a voz e as palavras de ambos voltam a chegar com
claridade aos nossos ouvidos. |
Wang Cauda de Dragão.-
E logo está o problema dos macacos
A Criada.- Amo Wang, no jardim não há
macacos
Wang Cauda de Dragão.- Lá isso é. O meu temor
é que entrem. Estes macacos que se escondem nas minhas mangas
são malucos, e, se os deixasse brincar pelo jardim, não ficaria
uma flor inteira.
Continuam
em voz baixa e em chinês. |
Voz do Prof. Sandro
Constantini.- E, assim, por dragões ou por macacos, o
jardim foi-se abandonando à sua sorte, permitindo que o mato
afogasse as flores.
Voltam
a falar de forma clara e forte. |
Wang Cauda de Dragão.-
Mas, sobre tudo, não posso sair, porque está muito frio
Vira-se
rapidamente, num gesto infantil, na sua cama. |
O Filho.- Olhe,
meu pai, (A assinalar para o jardim) as amendoeiras estão a
perder a flor. Dos seus lábios ouviram meus ouvidos miúdos que
essa era a folha do calendário que mudava da Primavera ao
Estio
O
Filho, com a frase, vai-se curvando, a fazer aceno de se
ir sentar no outro canto da cama. O pai detém-no com um
golpe delicado no ombro e movimento de cabeça que
assinala para o lugar da cauda, e logo
proscontinua. |
Wang Cauda de Dragão.- É
isso que eu digo: que não pára de nevar
E a minha cauda
é tão delicada para o frio
!
A
mão do narrador executa novas ordens. Repete-se, ainda
que mais modesto, o rufo de atenção. A Criada fiel e o
Filho saem correndo sem mover o corpo, e com os braços
engessados numa posse determinada, que é como costumam
entrar e sair de cena os heróis orientais. Wang fica na
cama, de costas ao público, a olhar como o jardim se
desborda e degenera. |
Voz do Prof. Sandro
Constantini.- Desesperados de o levar à razão, seus
familiares e servos foram procurar o poeta Du Fu, às altas
terras de Kuizhou, nas três gargantas do Changijang.
Logo
regressam, praticamente na mesma postura, trazendo entre
eles o poeta Du Fu, máscara nobilíssima, de longa barba
escura e esse alto capacete, enfeitado com grinaldas e
bandeirinhas, que só pode cobrir cabeças sábias. Cessa
o efeito sonoro e eles recuperam o andar normal. Filho e
Criada precedem Du Fu, sempre a falar-lhe com grande
respeito, em voz baixa e em correcto mandarim. As luzes
projectadas contra o fundo começam a oscilar e cair como
pétalas, e ficam agrupadas desordenadamente na zona
inferior, a atapetar os caminhos. |
Du
Fu era considerado o homem mais sábio de todo o Celestial
Império, e a sua opinião era solicitada em todos os assuntos
transcendentes e delicados, fossem de agricultura, economia,
política ou caligrafia.
Eles explicaram-lhe as
estranhas manias em que fora caindo Wang, e a absoluta
impossibilidade de o devolver ao seu bom juízo. Du Fu prometeu
curá-lo, mas pôs uma condição.
Du
Fu alça a voz, deixando abaixo o seu erudito chinês. |
Du Fu.- Tereis
que fazer tudo quanto eu disser, sem vos importar que possa
parecer estranho ou duro
E agora, deixai-me a sós com ele.
Saem
ambos, sempre de costas. Du Fu aproxima-se de Wang, que
continua a olhar, acocorado, para o seu eriçado jardim,
onde as pétalas continuam a cair copiosamente dos ramos
à terra.
Permanece ao seu pé, em
atitude recolhida, até que Wang, sempre a olhar para o
jardim, começa a falar-lhe sem se importar com quem. |
Wang Cauda de Dragão.-
Não deixa de nevar. Quanto demora este ano a chegar a Primavera!
Du Fu.- Eu só vejo como caem as pétalas
brancas das amendoeiras. O Verão está à porta.
Wang Cauda de Dragão.- (Virando-se para
ele, alarmado) Pétalas diz o tipo! Estás a dizer que tu
vês pétalas?
Du Fu.- Pétalas, sim, pétalas brancas das
amendoeiras
Wang Cauda de Dragão.- (Faz uma indicação
violenta com a cabeça) Muito cuidadinho para não me
esmagar a cauda! Não passes dessa marca do chão. É pelo meu
filho. Ele também vê pétalas.
Du Fu.- Prometo não passar se me demonstras que
o que estamos a ver são flocos de neve e não pétalas
Wang Cauda de Dragão.- De que cor dirias tu que
são os meus cabelos?
Du Fu.- Brancos.
Wang Cauda de Dragão.- Pois bem, esta manhã,
quando saí, pela última vez, ao meu jardim, eram morenos,
escuros e brilhantes como a pele de um búfalo que ainda não
deixou de mamar. Ao regressar, no espelho, estavam brancos da
nave que caía. As pétalas sacodem-se, não aderem tanto tempo,
como esta neve densa, nos cabelos.
Du
Fu vai achegando-se por trás, acocora-se ao seu pé, e
põe-lhe uma mão no ombro. |
Du Fu.- Ó meu
bom Wang Tsé, o que tu tens é medo de envelhecer, como todo o
mundo!
Wang Cauda de Dragão.- Tchist! Não fales tão
perto nem tão alto: podes acordar os macacos
Uma
mão emerge da manga. Sobe, a reptar, pelo braço do
sábio, puxa-lhe da barba e volta rápida para dentro. |
Du Fu.-
Presta-me, então, muita atenção: estás a ver o teu jardim?
Wang Cauda de Dragão.- Estou a vê-lo
nevado
Com
efeito, já não fica uma só pétala de luz nas árvores
e todas jazem, esparsas, pelo chão. |
Du Fu.- Pois a
tua cabeça está como o jardim
Wang Cauda de Dragão.- Nevada
Du Fu.- Não: desordenada, abandonada, cheia de
más ervas, ou de boas, mas que crescem sem controlo e não
deixam nascer outras melhores e novas
A tua mente é como
um jardim confuso, invadida de si
E então
Du
Fu empurra-o suavemente. Wang rola da cama ao chão, e
por ele cai rolando até ao outro lado da balaustrada.
Berra algo assim como Ah, minha cauda!, ou
coisa pior, mas é já em chinês. Du Fu incorpora-se
então, de repente, e, volvendo-se para o público,
começa a proferir gritos destemperados, num mandarim
imperioso e cerimonial, acompanhados desse movimentos
codificados, estereotipados e rotundos, com que se
acompanham as velhas epopeias e os discursos
transcendentes. |
Voz do Prof. Sandro
Constantini.-
Du Fu condenou-o a viver encerrado
naquele jardim
As
mãos executam uma nova ordem no teclado. Estoura o mesmo
efeito de rufos e metais, muito mais forte e brilhante
que nunca. Irrompem, pelos laterais duas filas de
servidores de cena, fardados com botas altas, couraças
de cores, capacetes de bico e máscaras de monstros
diversos. Trazem nas mãos longas lanças de madeira que
vão encanando nuns furados praticados oportunamente na
balaustrada. À sua passagem as pétalas amontoadas na
parte inferior do pano começam a agitar-se e
revolver-se, como se fossem sacudidas pelos numerosos e
ágeis pés. Wang, por trás da sua linha, não deixa de
fazer gestos de desespero, levando as mãos, metidas nas
mangas, à fronte, ou percorrendo, com elas fora, o corpo
entre espasmos. |
Disse-lhe:
do outro lado a grade tem uma única porta. Mas, para saíres,
terás que poder chegar ali
Terás que ser capaz de cortar
a erva, limpar o campo, arranjar as sebes, cavar a terra,
enxertar as árvores, podar as roseiras, ordenar os caminhos,
controlar o viço e o pulo constante da vida vegetal
Du
Fu continua as exclamações rituais com seus grandes
gestos, tão incompreensíveis como as palavras. |
Tudo
isso não são coisas que se possam fazer com dois macacos. Para
sair do teu jardim terás que ser capaz de sair da tua loucura,
como hão-de sair as mãos das mangas. No meio do jardim existe
um pavilhão em que costumavas guardar, quando o cuidavas, as
tuas alfaias e apetrechos. Quando cheguem as neves de verdade
poderás agasalhar-te no interior, mas para isso terás que ser
capaz, primeiro, de consertar as partes estragadas, cuidar das
tuas alfaias e usar as ferramentas. Terás que distinguir o frio
do calor e o Verão do Inverno. Terás que aceitar que passa a
Primavera. A natureza cuidará de ti. A vida tem mais força que
a loucura, e antes de morrer preferirás aceitá-la como é ela.
No interior do jardim tens árvores de fruto, hortas e tudo
quanto precisares para o teu sustento. Sabendo ser seu dono
serás dono de ti. O caminho da razão é agora o mesmo que o do
teu jardim. O teu ofício será cuidá-lo e ordená-lo. Nesse dia
poderás sair por fim dele e da loucura, mas terás que deixar,
dentro dele, antes primeiro, a tua cauda de dragão.
As
filas de servidores, que não deixaram de desfilar
correndo ao longo do cenário, quando acabam de colocar
todas as lanças vão colocando umas outras, sem ponta,
atravessadas nas verticais, formando uma grade detrás da
qual fica Wang Cauda de Dragão, sem deixar nunca de
fazer espaventos. Este momento deve coincidir com o final
do discurso. Fazem-se então mais intensos os rufos de
tambor e toda a confusão de percussões que atroam o
cenário. A mão executa uma nova ordem no teclado. As
pétalas, ao fundo, voam em etéreo redemoinho, como
poeira dos dias. É quando um foco se fecha sobre Du Fu,
quieto e com os braços estirados, a grade e Wang que
não deixa de mexer. Faz-se silêncio um silêncio total,
e um escuro que o não é porque ficam a girar,
suspensas, as luzes em forma de traços caligráficos ou
pétalas. |