A Tábua Ocre de Núbia (ou o Significado da Vida)

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Quadro VI: Cenas 1ª e 2ª.

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Quadro VI
Invenção e Drama de Fernando Pessoa

Cena 1ª

 

     Ao acender-se a luz vemos o pano com a imagem do novo conferencista. Trata-se de um homem de meia idade, sem calvície, mas também sem um excesso capilar. O cabelo, bem colado à cabeça, apresenta tons oscilantes entre a prata e o azeviche. Olhos claros e vítreos, bigode fino, lenço perfumado e fato cinzento. Está a fumar um cigarrito, grande como uma bazuca, que a mão direita aproxima e retira da sua boca aproveitando as pausas, enxertado numa boquilha de plástico amarelo, não sabemos se de nicotina ou de nascimento.

Dr. Alexandre Costa Antunes.- Para nós, a questão da autoria da conhecida como Tábua Ocre de Núbia, não oferece dúvidas. Trata-se, evidentemente, de mais um heterónimo de Fernando Pessoa.

     Dá uma chupada no cigarro e da boca sai uma baforada de fumo.

     E vamo-lo demonstrar. Antes de mais, e como nos encontramos diante de um variado auditório com abundante representação estrangeira e internacional, por ventura não familiarizada com a obra, e sobretudo a complexa personalidade deste autor, vamos fazer, para todos eles, uma breve referência ao conceito e significado da heteronimia.

     Nova chupada. A mão esquerda atravessa o cenário, sai pela direita e regressa com um cinzeiro, de tamanho adequado ao do cigarro, em que a mão direita deposita, com um golpe seco, uma carga de borralho.

     Fernando Pessoa, segundo todos temos estudado na nossa juventude, não só assinou a sua obra poética com esse nome, o seu próprio e legal, mas também com outros vários, como os de Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis. Não eram estes pseudónimos, no sentido habitual do termo, mas autores de personalidade definida, bem diferençada, e às vezes mesmo contrária à de Fernando Pessoa. Um desdobramento de personalidade literária, considerado como um dos mais originais contributos à literatura portuguesa e universal contemporânea.

     Nova chupada. A mão direita deposita o cigarro por um momento e vai-se reunir com a esquerda ao centro do cenário a fim de realizar uma cesura importante.

     Até aqui a versão “oficial”, vamos dizer,… aquilo que a gente tinha tido sempre como certo. Mas toda esta construção teórica veio abaixo de raiz com a descoberta recentemente efectuada: membros autorizados do Departamento de Estilística Forense, que me honro de dirigir, procederam a abertura da tumba em que, se cria, repousarem os restos mortais do nosso ilustre vate, a fim de lhe realizar umas provas rotineiras de identificação do AND, e descobriram que o jazigo estava vazio.

     Depois de executar conjuntamente o malabarismo de um exagerado gesto enfático, a mão direita regressa ao seu cigarro.

     Não se pode expressar a convulsão que esta descoberta supôs no campo da história e crítica literária. Na tumba de Pessoa não havia pessoa nenhuma, e isso era bastante estranho. Felizmente contamos, no nosso Departamento, com pessoal altamente qualificado, que em lugar de começar a berrar “Pessoa ressuscitou, aleluia” ou coisas desse género, se preocuparam em não mexer nada, e com grande escrúpulo apanharam as marcas digitais que pudessem ter ficado no jazigo. A partir desta pesquisa, e do seu cotejo com as marcas localizadas noutros objectos pessoais do poeta que foram conservados, assim como de uma análise pormenorizada da sua obra literária, verificada nos laboratórios da polícia judiciária, temos elaborado a seguinte hipótese, a única que é capaz de dar razão satisfatória a todos estes factos…

     Dá uma última chupada. A baforada fica flutuando no ar no momento em que começa a correr o pano.






Cena 2ª


     O cenário aparece vazio, unicamente habitado por essa baforada. No pano do fundo a janela de uma mansarda através da qual distinguimos uma paisagem de telhados da Baixa lisboeta, e, ao longe, na fisga que abre uma intersecção de ruas, um bocadinho de azul enevoado, com um barco de vapor: o Tejo. Tudo em tons cinzentos e deslavados. Entardece. O interior do quarto está em penumbra.
     Há uma porta de cor incerta, de duas folhas, aldraba ovalada e fechadura perra. Ouvem-se pisadas na escada, vozes, tosses e algum risinho breve. Três cadeiras de palha, no centro, e um bengaleiro, ao lado da porta, constituem a única mobília. A mão direita empunha agora o seu cigarro como se fosse um ponteiro com que vai marcando o compasso e as pausas da sua voz.

Voz do Dr. Costa Antunes.- O 8 de Março de 1914 reúnem-se, numa mansarda da rua da Conceição Jerónima, três indivíduos de duvidosa filiação…

     Ouve-se a chave na porta e o ranger da fechadura. Abre-se a folha. Entra uma rajada de luz da escada.

     São eles: Álvaro de Campos. Faz-se chamar engenheiro, mas seu nome não aparece em nenhum registo…

     Entra Álvaro de Campos, que se vira para trás, sempre a dar grandes vozes, a falar com Alberto Caeiro que sustém a porta para que passe, diante dele, o Ricardo Reis.

     …Ricardo Reis, sem profissão nem morada conhecida…

     Entra Ricardo Reis.

     …e Alberto Caeiro, de quem só sabemos que tem trabalhado eventualmente em imprecisas actividades agropecuárias. Segundo as nossas notícias é ele o arrendatário da mansarda e o instigador da reunião…

     Entra Alberto Caeiro, que acende a luz e fecha atrás de si a porta. Álvaro de Campos tira um chapéu de feltro que trazia e deixa-o no alto do cabide, e põe-se a sacudir alguma água ou humidade do nevoeiro que lhe ficou na roupa.

Álvaro de Campos.- O que eu lhe diga, amigo Caeiro: este país só admite um solução: arrasá-lo!
Alberto Caeiro.- (A desembrulhar um pobre cachecol que trazia ao pescoço) Ó engenheiro Campos, não se pode ceifar o trigo em Outubro… Não acha que o país já está suficientemente arrasado?

     Entre as cabeças de ambos irrompe a de Ricardo Reis, por trás do cabide, onde está a colocar o seu velho sobretudo pardo.

Ricardo Reis.- O distanciamento é melhor solução: deixá-lo ficar assim é maior castigo que lhe prender fogo!

     Todos trazem pastas, papeis esparsos e revistas, que deixam encostadas contra o bengaleiro

Voz do Dr. Costa Antunes.- Todos três confessam manter actividades poéticas…

     A mão ficou com o cigarro bastante baixo, com a boquilha colhida entre o polegar e o índice, a chama orientada para o centro da cena. Alberto Caeiro aproxima-se dela e põe diante, para aquecer, as mãos, como se se tratasse de uma braseira de carvão. Os outros, sem deixar de sacudir a roupa, dirigem-se para as cadeiras.

Alberto Caeiro.- Então, senhor engenheiro, voltaram a devolver-lhe aqueles poemazinhos seus, tão eléctricos, que enviara o mês passado para A Águia?
Voz do Dr. Costa Antunes.- …não remuneradas, e com escassa publicidade e difícil publicação…

     Alberto Caeiro repara em que eles ficaram de pé e indica as cadeiras.

Alberto Caeiro.- Façam favor…
Álvaro de Campos.- (A sentar) Qual Águia? A Galinha de Páscoa, seria mais correcto dizer! Não, tinha razão há um bocado, cá o Reis, (Vira-se para ele) …não se acostume, ó Ricardo: é só uma fraqueza passageira… Mas tinha razão: é melhor ignorá-los. Um país que não nos compreende, não nos merece. Somos mentalidades superiores.
Ricardo Reis.- Eu nada lhes enviei, nada me rejeitaram… A minha carreira literária, sem eu nada ter feito, começa a ultrapassar à sua. O Álvaro conhece a fábula da raposa e as uvas?

     Álvaro de Campos levanta-se exaltado, fazendo quase cair a cadeira.

Álvaro de Campos.- Safa! Eu ir suplicar à galinha essa… Deixe-se de águias, de raposas e galinhas… O que eu fiz foi provocá-los… Antes de publicar lá, eu corto as veias! Mandei-lhes os poemas como uma forma de insulto… Eles nem perceberam! Tente você, se calhar é mais do seu gosto…
Alberto Caeiro.- (Deixa a chama do cigarro e vai-se sentar ao pé deles) Ó rapazes, deixem as disputas para quando forem célebres, e vamos ver se agora arranjamos a maneira de nos ajudar para o conseguirmos juntos…
Ricardo Reis.- Caro Alberto, se o que quer é propor-nos mais uma revista, (assinala para uma das pastas que ficaram ao pé do bengaleiro) pegue nos meus poemas e deite-os na braseira… (Acena para o cigarro) Antes a morte heróica que a vida reles…
Alberto Caeiro.- Poderia, se tiver vergonha, assinar com pseudónimo, e se fosse com vários, melhor: parecerá que colaboram mais poetas…
Álvaro de Campos.- Ah! O senhor é muito delicado… Nada de revistas literárias… Horácio nunca foi assinante… Seja coerente, escreva em rolos de papiro! Mas a poesia dos novos tempos tem que ser escrita em meios novos! Uma revista acho-a mesmo insuficiente: o que deveríamos era escrever um telegrama!
Voz do Dr. Costa Antunes.- Os vizinhos do imóvel queixaram-se de uma forte e continuada gritaria…
Ricardo Reis.- O que este país precisa, vou-lho dizer de vez, ó Álvaro, sem querer ofendê-lo, não são mais revistas literárias… mas um (enfatiza o “um”) só poeta… Um poeta novo, e não uma nova combinação de poetas gastos.
Álvaro de Campos.- Ora essa! E o poeta “novo” é… você, o dos papiros…?
Ricardo Reis.- Estou convencido de que você coroaria com os louros de Calíope tão só o mais rápido telegrafista…
Alberto Caeiro.- Vamos, vamos… que isto vai acabar em duelo…
Álvaro de Campos.- Óptimo! Façamos um duelo entre os três, e aquele que sobreviva, fica com a obra de todos!
Ricardo Reis.- É cansativo. Ter que lhe furar os rins, ó Álvaro, é ofício de açougues e não de cavalheiros. A sua obra, sem pretender menosprezar, não vale o esforço.
Álvaro de Campos.- Pode ser a pistola, que é mais rápido, e fica mais moderno. Ah! E se quero para mim os seus poemas, é só para lhos publicar no Almanaque.
Ricardo Reis.- E não podia ser simplesmente a sorte? Estão a ver: os três a atirar os dados, e no meio uma taça de cicuta…
Álvaro de Campos.- Se puder ser com soda, estou de acordo.
Ricardo Reis.- Seja! Neste país não há lugar senão para um poeta. Diga lá o seu padrinho…
Álvaro de Campos.- Diga primeiro, o senhor, o seu…
Ambos ao mesmo tempo.- Alberto Caeiro!!!

     Rompem a rir. Mas o Caeiro ficou, desde há tempo, na cadeira, arrimada ao cigarro, a olhar o seu lume, pensativo.

Alberto Caeiro.- Deixem de troçar agora… Rapazes, aqui há tema de estudo! Aqui há tema!

     Os outros arrastam também suas cadeiras e vão-se sentar ali ao pé dele, os olhos de todos centrados nessa chama.

Álvaro de Campos.- (Ainda a gracejar) Ah! A combustão: um dos grandes assuntos líricos do nosso tempo!
Ricardo Reis.- (Igual) Sempre que não se tratar de uma revista literária intitulada “A Chama”.
Alberto Caeiro.- (Continua com o olhar fixo no lume) Como estivemos tanto tempo ao redor dessa ideia sem cair nela! É tão simples! É tão simples como três e dois serem cinco. Muito mais simples do que isso. É tão simples como um e um e um serem um!
Álvaro de Campos.- Retire-se de ao pé da braseira, Alberto, deve produzir emanações tóxicas!
Ricardo Reis.- Deixe-o: deve de sofrer de uma crise mística. Está a falar da Santíssima Trindade.
Alberto Caeiro.- (Volta-se para eles, em tom normal, cada vez mais exaltado) Lá isso é! Trata-se, nem mais nem menos disso. Olhem, rapazes, vamos falar todos com franqueza. Nenhum de nós é assim…um grande poeta.
Ricardo Reis.- Se te estás a referir aqui ao amigo telegrafista, concordo.
Alberto Caeiro.- Deixem isso, estou a falar de algo que nos pode dar fama e dinheiro. Não somos grandes poetas, mas também não somos poetas ruins. Vamos supor que somos tão só meios poetas. Ora calculem: meio poeta, mais meio poeta, mais meio poeta, quantos poetas são?
Álvaro de Campos.- Poeta e meio… Gosto sim. “Eu sou um poeta”. “É um prazer: eu sou poeta e meio”. Ser o primeiro poeta decimal da história: há maior glória?
Alberto Caeiro.- Não. Três poetas medíocres, como nós, podem fazer um grande poeta. Basta sermos um. Todos nós padecemos um mesmo defeito que nos impede de sermos grandes poetas: uma visão simplificada da existência. Mas o que é defeito tomados um a um, pode ser virtude, considerados em conjunto. Um poeta capaz de albergar as nossas três visões, seria, sem dúvida, um grande poeta… Falávamos de escrever cada um com vários pseudónimos, e a solução é fazer exactamente o contrário.
Ricardo Reis.- (Já mais a sério) Estás a insinuar que assinemos os três com o mesmo nome?
Alberto Caeiro.- Não faz falta. Continuraremos a assinar cada um com o nosso próprio…
Álvaro de Campos.- (Também interessado) Então?
Alberto Caeiro.- Temos que estar dispostos a converter-nos, cada um de nós, num pseudónimo de um outro poeta, de um grande poeta. Um poeta capaz de nos inventar aos três…

     Álvaro de Campos levanta-se num pulo. Abraça Alberto Caeiro, arrastando-o na sua alegria, e também as cadeiras de ambos.

Álvaro de Campos.- Oh, meu Caeirozinho! Você é que é grande! Anular-nos os três num único ser… um puzzle de poetas… e que isso tudo, escreva, faça versos, intervenha nas polémicas literárias…. Oh, quando se apercebam os de A Águia!!

     Arrasta no seu ímpeto também o Ricardo Reis. Abraçados em apertada pinha, começam a circular pela sala, a festejar já o seu triunfo.

Ricardo Reis.- É o que eu dizia: não faremos mais uma revista, fabricaremos um único poeta.
Alberto Caeiro.- Já não teremos que nos bater em duelo para poder fazer das obras dos três uma.
Ricardo Reis.- Não há lugar, debaixo do Sol, senão para um poeta: sê-lo-emos os três. Será a clássica efígie: o riso e o pranto numa máscara só.
Álvaro de Campos.- É a despersonalização do eu… a aniquilação do indivíduo… Nada mais febrilmente contemporâneo: inventar o nosso próprio deus… Gozemos irmãos, fundamo-nos num abraço aniquilador. Um ente artificial será o nosso autor, e o autor também da nossa poesia… Ficaremos reduzidos a máquinas de escrever… Hurra!
Alberto Caeiro.- Teremos que lhe buscar um nome, e inventar uma vida! Por isso digo: viva!
Voz do Dr. Costa Antunes.- …E assim foi que nasceu Fernando Pessoa.
Ricardo Reis.- Só falta o brinde!
Alberto Caeiro.- Sinto, meu co-pseudónimos, ou como quer que se diga… Nada tenho aqui a esse efeito…
Álvaro de Campos.- Pois não há-de faltar. Vamos, amigos, não tenho crédito em nenhuma tasca, mas aqui ao pé mora um meu colega, um escriturário da Baixa que se chama Bernardo Soares, que se empenha em me fazer ler coisas que escreve. Um tipo depressivo, mas devoto de Baco, como diria cá o Ricardo. Vamos-lhe fazer uma visita, e contar-lhe os nossos planos. Se estiver “inspirado”, podemos considerar-nos convidados.

     Ao mesmo tempo que ele fala vão indo todos para a porta do fundo, sem deixar de se abraçar e rir. Caeiro é o último a sair e apaga a luz antes de fechar a porta. Ainda se ouvem, cada vez mais longe, as vozes deles a descer a escada.

Voz de Alberto Caeiro.- É necessário que ele mande, antes de mais, uma carta a alguma revista…
Voz de Álvaro de Campos.- Temos que lhe fabricar um carácter neurótico e esquisito…
Voz de Alberto Caeiro.- Que vos parece chamar-lhe Ricardo Alberto Campos!
Voz dos outros.- Por deus, Alberto…
Voz de Álvaro de Campos.- Chamemos-lhe Matias Golem, o poeta de barro…
Voz de Ricardo Reis.- Algo que soe natural e misterioso…
Voz de Alberto Caeiro.- …Eu conheço um Tenente Pessoa…

     Caiu a noite. O interior da mansarda está quase completamente às escuras. Fica tudo em silêncio. Uma luz começa a iluminar o bengaleiro do fundo, onde eles deixaram esquecidas as suas coisas. Debaixo do chapéu, dentro do sobretudo, e com o pobre cachecol ao pescoço surge um indivíduo de bigode curto e óculos. Anima-se. Curva-se levemente. Apanha as pastas do chão, e com elas apertadas contra o corpo, dá um simples passo antes de se apagar completamente a luz.

Voz do Dr. Costa Antunes.- Os vizinhos asseguram que essa noite se ouviram passos na mansarda, pouco depois de a terem abandonado aqueles três indivíduos…

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