A Tábua Ocre de Núbia (ou o Significado da Vida)

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Quadro VI: Cenas 3ª e 4ª.

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Cena 3ª

 

     A mão direita apanha o cigarro do cinzeiro e vai levá-lo à boca. E como a boca não está, fecha-se de novo correndo o pano procurando que coincidam as trajectórias. Mas antes de dar uma nova chupada, Alexandre Costa Antunes, depois de reconstruído o seu rosto, faz uma pausa, detém o movimento da mão e faz um breve parêntese.

Dr. Alexandre Costa Antunes.- Claro que, tudo isto, teve um claro reflexo na sua trajectória poética…

     Dá por fim a chupada. Abre-se, porém, o pano de repente, sem lhe dar tempo a exalar o fumo. Isso acontecerá no escuro total que aparece detrás dele. Um fumo que surge do nada e fica suspenso como uma névoa espessa.
     Acende-se a luz e vemos Fernando Pessoa a vaguear por essa névoa. Traz os mesmos chapéu, cachecol e sobretudo, e as mesmas pastas debaixo do braço que na cena anterior, embora se encontre muito mais próximo de nós, e a caminhar noutra direcção. Ouve-se a sua voz, mas o actor não abre os lábios.

Voz de Fernando Pessoa.- “Sinto que sou ninguém salvo uma sombra / De um vulto que não vejo e que me assombra, / E em nada existo como a treva fria”.

     Volta a fechar-se de novo o pano. A mão volta a levar o cigarro à boca, que, depois de nova chupada, prossegue a falar.

Prof. Alexandre Costa Antunes.- Não é o nosso intuito, porém, aprofundar aqui e agora na obra de Fernando Pessoa, mas aclarar as circunstâncias misteriosas da sua morte e/ou desaparecimento.
     As coisas não correram muito bem para esses tipos, que voltamos a encontrar alguns anos depois, numa tarde de Novembro de 1935, no Martinho da Arcada, conhecido restaurante na praça do comércio de Lisboa…

     Corre-se o pano. A mão deposita o cigarro, quase acabado, no cinzeiro. Fica, como é lógico, com a boquilha para fora, a sair da borda.






Cena 4ª


     Interior do Martinho da Arcada nos anos trinta. Cadeiras de madeira e mesas de mármore e metal, sobre um soalho axadrezado, que acaba mesmo ao pé do lugar em que ficou o cigarro e o cinzeiro. Na mesa do fundo Fernando Pessoa, com uma garrafa de vinho quase vazia e um copo, está a escrever. Noutra mesa, em primeiro lugar, estão sentados Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, a tomar café. A cena parece “em suspenso” até que acaba de se abrir o pano. Então estoura um barulho moderado e corriqueiro de cafetaria de começos de século. Da boquilha do cigarro sai uma linha de fumo cinzento, como se fosse um tubo de escape. Ouve-se um efeito de motor de explosão. O cinzeiro com o cigarro deslocam-se com movimento de automóvel até desaparecer pela direita. E é quando, por esse ângulo, como se tivesse estado à espera do seu passo, salta ao passeio Ricardo Reis, que entra no Martinho, saúda e senta-se com os seus companheiros. Há entradas e saídas de fregueses e empregados, uns pelo lado da rua, e outros pelos bastidores, em que supomos que se encontra o balcão.

Álvaro de Campos.- (Saudando Ricardo Reis) Por um momento temi que o atropelasse o carro!
Ricardo Reis.- (A sentar-se) Temeu? Quer dizer: desejou…
Álvaro de Campos.- Temi. Seria o primeiro poeta, segundo as minhas notícias, a morrer desta nova e fulgurante maneira. Teria sido inovador, pelo menos no último momento. Uma glória que não merece, e que bem desejava para mim…
Alberto Caeiro.- Deixem-se de fintas de salão… (Virando-se para trás, a assinalar Pessoa com a cabeça)… Eis o nosso homem!
Álvaro de Campos.- Nunca melhor dito: o nosso homem…
Ricardo Reis.- Daria qualquer coisa por saber o que estará a escrever…

     Fernando Pessoa continua a escrever na sua mesa, enquanto se ouve a sua voz de fora.

Voz de Fernando Pessoa.- “Excelentíssimo Senhor Adolfo Casais Monteiro. Prezado amigo: passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos… A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram…”

     A voz vai diminuindo até se apagar.

Alberto Caeiro.- Sei lá: algum poemazinho para alguma revistazinha, um livro inteiro, a melhor, alguma enciclopédia talvez … Vejo que já não lhes causa escândalo que ande por aí a publicar com o seu próprio nome…
Ricardo Reis.- Coitadinho! A mim dá-me lástima: crê que existe…
Alberto Caeiro.- A mim dá-me lástima, mas que se comporte como se nós (enfatiza-o) não existíssemos…
Ricardo Reis.- A mim parece-me um herói clássico: a lutar contra o destino não faz outra coisa senão cumpri-lo… Como pode nos estranhar que tenha morto os pais?
Álvaro de Campos.- A obra que supera o criador… Tinha eu razão em querer-lhe chamar Matias Golem,.. o “golem” destruía também quem o criara, não viram o filme?

     Ricardo Reis faz um gesto de escândalo.

Alberto Caeiro.- Para já, não foi tão grande poeta como tínhamos previsto. Um medíocre que, aos 47 anos só tem publicado um livro… E com o seu nome. Nós permanecemos no mais completo anonimato…
Ricardo Reis.- Homem, alguns versos soltos, alguma referência nalguma revista de escassa tiragem… Temos que reconhecer que algo lhe devemos…
Alberto Caeiro.- Nada comparado com o que lhe demos…
Álvaro de Campos.- Eu o que não lhe perdoo é que o livro esse que lhe premiaram no Secretariado da Propaganda Nacional não levasse o meu nome. Um Estado novo precisa de um poeta novo…e aí estou eu…
Alberto Caeiro.- Não, se todo o reconhecimento é seu… e toda a obra nossa… Amigos, convoquei-vos porque é preciso tomar uma determinação…
Álvaro de Campos.- Mas o que quer que façamos, Caeiro? Que nos aproximemos agora da sua mesa e lhe digamos: boa noite, senhor Pessoa, eu sou Álvaro de Campos, e estes meus colegas Alberto Caeiro e Ricardo Reis. Queria-lhe dizer que nós existimos e que o senhor é que não existe. Vá-se embora, mas dê cá o livro e esse prémio…
Alberto Caeiro.- Algo haverá que fazer… Ele só constitui agora um obstáculo nas nossas carreiras…
Ricardo Reis.- Alberto, intuo por onde é que o senhor vai, e sinto arrepios…
Alberto Caeiro.- Como o criámos, podemos eliminá-lo…
Álvaro de Campos.- Ora, isso é falar doutro modo: o crime é a verdadeira arte do século XX.
Ricardo Reis.- Comigo não contem…

     O último par que ficava no café levanta-se da mesa. Recolhem um “canotier” e um chapéu de senhora de entre uma longa fila de cabides dourados alinhados numa tira de madeira estreita que percorre toda a parede de lado a lado. Saem à “rua” e desaparecem pela direita, depois de se ter atravessado entre a vista do público e os conspiradores.

Alberto Caeiro.- Todos estamos nisto desde o começo, e todos havemos de estar juntos até ao final… Se é um herói clássico também terá que morrer. Vamos, agora ou nunca, é a nossa grande oportunidade…

     Levantam-se todos. Álvaro de Campos paga ao empregado. Enquanto Fernando Pessoa continua enfrascado na sua carta, eles vão até aos cabides e recolhem, com toda a naturalidade, o mesmo chapéu, o mesmo sobretudo e o mesmo cachecol que deixaram esquecidos na mansarda. Saem do café com a mesma indumentária com que os víramos aparecer na cena 1ª. Despedem-se apressadamente desaparecendo cada um por uma diferente direcção.
     O empregado chega até à mesa de Fernando Pessoa. Fica de costas, tosse e fala num suspiro.

O Zé do Martinho.- Ó doutor, desculpe, mas a gente tem que fechar…

     Fernando Pessoa alça a vista surpreendido. Olha o relógio e sorri.

Fernando Pessoa.- Já vou, ó Zé. Já vou…

     O Zé retira-se. Pessoa começa a recolher as coisas. Levanta-se. Vai para os cabides e fica desconcertado. Olha para um e outro lado e não percebe nada. Não sabe o que fazer. Na dúvida regressa para a mesa. Tira de novo a pena e os papeis. Faz de conta que não se tem mexido do sítio quando o Zé regressa e começa a recolher as cadeiras.

O Zé do Martinho.- Desculpe, ó doutor…
Fernando Pessoa.- Eu sei… eu sei… Mas olhe, ó Zé, podia-me fazer um imenso favor?
O Zé do Martinho.- O que o senhor mandar, doutor Pessoa…
Fernando Pessoa.- (A pegar um momento na garrafa vazia) Traga-me mais uma de tinto…
O Zé do Martinho.- Doutor Pessoa, mas…
Fernando Pessoa.- Eu sei, eu sei… Há quantos anos venho cada noite cá…? O Zé nem se lembra. É o único favor que lhe peço… Traga-me mais uma garrafa de tinto… É a última, juro-lho…
O Zé do Martinho.- (A retirar-se com a garrafa vazia) Doutor Pessoa, se não fosse você…
Fernando Pessoa.- (Detendo-o) Mas olha, ó Zé, que seja a garrafa de tinto mais escuro e espesso que tiveres na adega…
O Zé do Martinho.- (A desaparecer pela direita) Ó doutor Pessoa, se não fosse você…

     Pessoa retoma a sua escrita. Volta-se a ouvir a voz fora dos lábios.

Voz de Fernando Pessoa.- “Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria”

     O Zé regressa com a garrafa. Faz aceno de ir servir, mas Pessoa detém-no com a mão.

Fernando Pessoa.- Não faz falta, pode-se retirar… É só um bocadinho.
O Zé do Martinho.- (A se retirar) Ó doutor Pessoa, se não fosse você…

     Fernando Pessoa afasta a taça. Apanha a garrafa, levanta-a e bebe directamente dela. Encontra-se ligeiramente virado para esquerda, com o corpo quase todo de perfil. Quando começa a beber vemos, como em transparência, como o líquido escuro vai enchendo todo o seu corpo, desde os pés até à cabeça, até todo ele desaparecer e se confundir com a escuridão do fundo.

O Zé do Martinho.- (A regressar com o pano de limpar as mesas) Oh, doutor Pessoa!

     Mas a única voz que se ouve é a de um outro doutor, que começa a falar um segundo antes de se fazer escuro total.

Voz do Dr. Costa Antunes.- Ora, a nossa tese é: se Pessoa escreveu no século XX em Lisboa e não existiu, pode perfeitamente ter escrito uma tábua de argila em Egipto, há mais de catorze mil anos, sem ter por isso que existir então…

     Grandes aplausos*** .




*** Este seria outro ponto possível onde fazer uma pausa, se se considerar necessário, conforme o especificado em nota final.

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