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A
mão direita apanha o cigarro do cinzeiro e vai levá-lo
à boca. E como a boca não está, fecha-se de novo
correndo o pano procurando que coincidam as
trajectórias. Mas antes de dar uma nova chupada,
Alexandre Costa Antunes, depois de reconstruído o seu
rosto, faz uma pausa, detém o movimento da mão e faz um
breve parêntese. |
Dr. Alexandre Costa
Antunes.- Claro que, tudo isto, teve um claro reflexo na
sua trajectória poética
Dá
por fim a chupada. Abre-se, porém, o pano de repente,
sem lhe dar tempo a exalar o fumo. Isso acontecerá no
escuro total que aparece detrás dele. Um fumo que surge
do nada e fica suspenso como uma névoa espessa.
Acende-se a luz e vemos
Fernando Pessoa a vaguear por essa névoa. Traz os mesmos
chapéu, cachecol e sobretudo, e as mesmas pastas debaixo
do braço que na cena anterior, embora se encontre muito
mais próximo de nós, e a caminhar noutra direcção.
Ouve-se a sua voz, mas o actor não abre os lábios. |
Voz de Fernando Pessoa.-
Sinto que sou ninguém salvo uma sombra / De um vulto que
não vejo e que me assombra, / E em nada existo como a treva
fria.
Volta
a fechar-se de novo o pano. A mão volta a levar o
cigarro à boca, que, depois de nova chupada, prossegue a
falar. |
Prof. Alexandre Costa
Antunes.- Não é o nosso intuito, porém, aprofundar
aqui e agora na obra de Fernando Pessoa, mas aclarar as
circunstâncias misteriosas da sua morte e/ou desaparecimento.
As coisas não correram
muito bem para esses tipos, que voltamos a encontrar alguns anos
depois, numa tarde de Novembro de 1935, no Martinho da Arcada,
conhecido restaurante na praça do comércio de Lisboa
Corre-se
o pano. A mão deposita o cigarro, quase acabado, no
cinzeiro. Fica, como é lógico, com a boquilha para
fora, a sair da borda. |
Interior
do Martinho da Arcada nos anos trinta. Cadeiras de
madeira e mesas de mármore e metal, sobre um soalho
axadrezado, que acaba mesmo ao pé do lugar em que ficou
o cigarro e o cinzeiro. Na mesa do fundo Fernando Pessoa,
com uma garrafa de vinho quase vazia e um copo, está a
escrever. Noutra mesa, em primeiro lugar, estão sentados
Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, a tomar café. A cena
parece em suspenso até que acaba de se abrir
o pano. Então estoura um barulho moderado e corriqueiro
de cafetaria de começos de século. Da boquilha do
cigarro sai uma linha de fumo cinzento, como se fosse um
tubo de escape. Ouve-se um efeito de motor de explosão.
O cinzeiro com o cigarro deslocam-se com movimento de
automóvel até desaparecer pela direita. E é quando,
por esse ângulo, como se tivesse estado à espera do seu
passo, salta ao passeio Ricardo Reis, que entra no
Martinho, saúda e senta-se com os seus companheiros. Há
entradas e saídas de fregueses e empregados, uns pelo
lado da rua, e outros pelos bastidores, em que supomos
que se encontra o balcão. |
Álvaro de Campos.-
(Saudando Ricardo Reis) Por um momento temi que o
atropelasse o carro!
Ricardo Reis.- (A sentar-se) Temeu?
Quer dizer: desejou
Álvaro de Campos.- Temi. Seria o primeiro
poeta, segundo as minhas notícias, a morrer desta nova e
fulgurante maneira. Teria sido inovador, pelo menos no último
momento. Uma glória que não merece, e que bem desejava para
mim
Alberto Caeiro.- Deixem-se de fintas de
salão
(Virando-se para trás, a assinalar Pessoa com a
cabeça)
Eis o nosso homem!
Álvaro de Campos.- Nunca melhor dito: o nosso
homem
Ricardo Reis.- Daria qualquer coisa por saber o
que estará a escrever
Fernando
Pessoa continua a escrever na sua mesa, enquanto se ouve
a sua voz de fora. |
Voz de Fernando Pessoa.-
Excelentíssimo Senhor Adolfo Casais Monteiro. Prezado
amigo: passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese
dos meus heterónimos
A origem dos meus heterónimos é o
fundo traço de histeria que existe em mim. Desde criança tive a
tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me
cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram
A
voz vai diminuindo até se apagar. |
Alberto Caeiro.-
Sei lá: algum poemazinho para alguma revistazinha, um livro
inteiro, a melhor, alguma enciclopédia talvez
Vejo que
já não lhes causa escândalo que ande por aí a publicar com o
seu próprio nome
Ricardo Reis.- Coitadinho! A mim dá-me
lástima: crê que existe
Alberto Caeiro.- A mim dá-me lástima, mas que
se comporte como se nós (enfatiza-o) não
existíssemos
Ricardo Reis.- A mim parece-me um herói
clássico: a lutar contra o destino não faz outra coisa senão
cumpri-lo
Como pode nos estranhar que tenha morto os pais?
Álvaro de Campos.- A obra que supera o
criador
Tinha eu razão em querer-lhe chamar Matias
Golem,.. o golem destruía também quem o criara,
não viram o filme?
Ricardo
Reis faz um gesto de escândalo. |
Alberto Caeiro.-
Para já, não foi tão grande poeta como tínhamos previsto. Um
medíocre que, aos 47 anos só tem publicado um livro
E com
o seu nome. Nós permanecemos no mais completo anonimato
Ricardo Reis.- Homem, alguns versos soltos,
alguma referência nalguma revista de escassa tiragem
Temos
que reconhecer que algo lhe devemos
Alberto Caeiro.- Nada comparado com o que lhe
demos
Álvaro de Campos.- Eu o que não lhe perdoo é
que o livro esse que lhe premiaram no Secretariado da Propaganda
Nacional não levasse o meu nome. Um Estado novo precisa de um
poeta novo
e aí estou eu
Alberto Caeiro.- Não, se todo o reconhecimento
é seu
e toda a obra nossa
Amigos, convoquei-vos
porque é preciso tomar uma determinação
Álvaro de Campos.- Mas o que quer que façamos,
Caeiro? Que nos aproximemos agora da sua mesa e lhe digamos: boa
noite, senhor Pessoa, eu sou Álvaro de Campos, e estes meus
colegas Alberto Caeiro e Ricardo Reis. Queria-lhe dizer que nós
existimos e que o senhor é que não existe. Vá-se embora, mas
dê cá o livro e esse prémio
Alberto Caeiro.- Algo haverá que fazer
Ele só constitui agora um obstáculo nas nossas carreiras
Ricardo Reis.- Alberto, intuo por onde é que o
senhor vai, e sinto arrepios
Alberto Caeiro.- Como o criámos, podemos
eliminá-lo
Álvaro de Campos.- Ora, isso é falar doutro
modo: o crime é a verdadeira arte do século XX.
Ricardo Reis.- Comigo não contem
O
último par que ficava no café levanta-se da mesa.
Recolhem um canotier e um chapéu de senhora
de entre uma longa fila de cabides dourados alinhados
numa tira de madeira estreita que percorre toda a parede
de lado a lado. Saem à rua e desaparecem
pela direita, depois de se ter atravessado entre a vista
do público e os conspiradores. |
Alberto Caeiro.-
Todos estamos nisto desde o começo, e todos havemos de estar
juntos até ao final
Se é um herói clássico também
terá que morrer. Vamos, agora ou nunca, é a nossa grande
oportunidade
Levantam-se
todos. Álvaro de Campos paga ao empregado. Enquanto
Fernando Pessoa continua enfrascado na sua carta, eles
vão até aos cabides e recolhem, com toda a
naturalidade, o mesmo chapéu, o mesmo sobretudo e o
mesmo cachecol que deixaram esquecidos na mansarda. Saem
do café com a mesma indumentária com que os víramos
aparecer na cena 1ª. Despedem-se apressadamente
desaparecendo cada um por uma diferente direcção.
O empregado chega até à
mesa de Fernando Pessoa. Fica de costas, tosse e fala num
suspiro. |
O Zé do Martinho.-
Ó doutor, desculpe, mas a gente tem que fechar
Fernando
Pessoa alça a vista surpreendido. Olha o relógio e
sorri. |
Fernando Pessoa.-
Já vou, ó Zé. Já vou
O
Zé retira-se. Pessoa começa a recolher as coisas.
Levanta-se. Vai para os cabides e fica desconcertado.
Olha para um e outro lado e não percebe nada. Não sabe
o que fazer. Na dúvida regressa para a mesa. Tira de
novo a pena e os papeis. Faz de conta que não se tem
mexido do sítio quando o Zé regressa e começa a
recolher as cadeiras. |
O Zé do Martinho.-
Desculpe, ó doutor
Fernando Pessoa.- Eu sei
eu sei
Mas
olhe, ó Zé, podia-me fazer um imenso favor?
O Zé do Martinho.- O que o senhor mandar,
doutor Pessoa
Fernando Pessoa.- (A pegar um momento na
garrafa vazia) Traga-me mais uma de tinto
O Zé do Martinho.- Doutor Pessoa, mas
Fernando Pessoa.- Eu sei, eu sei
Há
quantos anos venho cada noite cá
? O Zé nem se lembra. É
o único favor que lhe peço
Traga-me mais uma garrafa de
tinto
É a última, juro-lho
O Zé do Martinho.- (A retirar-se com a
garrafa vazia) Doutor Pessoa, se não fosse você
Fernando Pessoa.- (Detendo-o) Mas olha,
ó Zé, que seja a garrafa de tinto mais escuro e espesso que
tiveres na adega
O Zé do Martinho.- (A desaparecer pela
direita) Ó doutor Pessoa, se não fosse você
Pessoa
retoma a sua escrita. Volta-se a ouvir a voz fora dos
lábios. |
Voz de Fernando Pessoa.-
Parece que tudo se passou independentemente de mim. E
parece que assim se passa. Se algum dia eu puder publicar a
discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos,
verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na
matéria
O
Zé regressa com a garrafa. Faz aceno de ir servir, mas
Pessoa detém-no com a mão. |
Fernando Pessoa.- Não
faz falta, pode-se retirar
É só um bocadinho.
O Zé do Martinho.- (A se retirar) Ó
doutor Pessoa, se não fosse você
Fernando
Pessoa afasta a taça. Apanha a garrafa, levanta-a e bebe
directamente dela. Encontra-se ligeiramente virado para
esquerda, com o corpo quase todo de perfil. Quando
começa a beber vemos, como em transparência, como o
líquido escuro vai enchendo todo o seu corpo, desde os
pés até à cabeça, até todo ele desaparecer e se
confundir com a escuridão do fundo. |
O Zé do Martinho.-
(A regressar com o pano de limpar as mesas) Oh, doutor
Pessoa!
Mas
a única voz que se ouve é a de um outro doutor, que
começa a falar um segundo antes de se fazer escuro
total. |
Voz do Dr. Costa Antunes.-
Ora, a nossa tese é: se Pessoa escreveu no século XX em Lisboa
e não existiu, pode perfeitamente ter escrito uma tábua de
argila em Egipto, há mais de catorze mil anos, sem ter por isso
que existir então
*** Este seria outro ponto possível onde fazer uma
pausa, se se considerar necessário, conforme o especificado em
nota final.