A Tábua Ocre de Núbia (ou o Significado da Vida)

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Quadro VII: Cenas 1ª e 2ª.

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Quadro VII
O Sentido da Existência

Cena 1ª

 

     Ao acender-se a luz voltamos a ver o mesmo pano que no começo da obra: o busto do Secretário/Coordenador . As mãos estão a suster, um pouco nervosas, um papel enrugado com algumas anotações feitas à pressa.

Secretário/Coordenador.- (A interromper os aplausos) Peço desculpa, um momento de atenção… Façam favor de tomar nota de algumas modificações de última hora no programa previsto. A Direcção/Organização deste Congresso/Colóquio roga saibam desculpar esta contingência/incidente, de nenhuma maneira da sua responsabilidade/vontade, mas a conferência/palestra “A Tábua Ocre de Núbia ou o Polimorfismo Semântico no Egipto Faraónico”, prevista para esta hora, e sem dúvida uma das intervenções estelares desde Congresso/Colóquio, deve ser suspensa. A nossa distinta colega/discípula, a Doutora Maria Isabel Konstanz, a mais destacada embaixadora desta Universidade no mundo académico internacional, escusa a sua assistência por causas familiares que a obrigaram a ter que regressar antecipadamente ao seu lugar de residência…

     Corre inopinadamente o pano. Nesta ocasião as mãos desaparecem também com ele pelos laterais.






Cena 2ª


     Ao abrir-se o pano vemos já iluminada a cena. Consta apenas de dois assentos de automóvel situados na parte dianteira e no centro do cenário. Neles aparece sentado um par vestido com roupa de gala um tanto desarranjada.. Ele lembra, na sua caracterização, aquele professor Alexander Konstanz que falara das runas e contara algumas histórias tradicionais suecas. Veste agora fato escuro e gravatinha negra, desapertada, o colarinho aberto e um feixe de cabelo caindo pela fronte. Já não fala nem com sotaque sueco nem com sotaque etílico, ainda que na sua voz se apercebam as marcas que deixa atrás de si o álcool. Ela traz o cabelo atado, um vestido de noite escuro, de uma peça, com um casaquinho branco e um discreto colar. O homem, à esquerda, move as mãos e acena como se estivesse a guiar. Ela olha, às vezes para a frente, com um olhar perdido, às vezes de lado, a tentar vislumbrar uma hipotética paisagem na quase total escuridão. Há luzes que atravessam de lado a lado a cena, como automóveis de sentido contrário ou diferente. Quando falam entre eles olham para a frente. Mas também falam às vezes com a sua imagem reflectida nas respectivas janelas, e mesmo com os seus pensamentos, que moram para além desse reflexo.
     Para distinguir o Konstanz humano do representado no pano, vamos chamá-lo agora simplesmente Senhor Konstanz, e não Prof. Alexander Konstanz, como então. Um leve murmúrio de motor e ocasionais sons de trânsito acompanharão os diálogos.

O Senhor Konstanz.- Estás a ver como foi uma boa ideia deixarmos o carro no aeroporto…
A Senhora Konstanz.- Com o preço do parking, da autoestrada e o ferry-boat, teríamos apanhado cinco táxis ou feito vinte vezes a viagem de autocarro…
O Senhor Konstanz.- E andar a carregar as malas… Assim é mais cómodo e mais rápido…
A Senhora Konstanz.- Quais malas… se só trouxemos duas sacas de viagem…
O Senhor Konstanz.- Mas podíamos ter trazido… nunca se sabe…

     Há um silêncio pesado e uma longa pausa. O Senhor Konstanz recolhe o feixe de cabelo da fronte e finge concentrar-se no trânsito. A Senhora Konstanz fica a olhar para a janela e começa a falar para si.

A Senhora Konstanz.- Nunca se sabe… com efeito… Íamos para quatro dias e ficamos uma noite só… ainda duas sacas estavam a mais… Não, se afinal nos saímos bem: poupámos dois dias de parking no aeroporto… (olha um momento para ele e volta a falar para seu lado) Que outra coisa podia ter feito? Não ia levantar-me, no meio do Congresso, e começar dizendo….

     Levanta-se, de facto, e vai para a direita, onde uns servidores de cena lhe aproximam uma estante com microfone, uma luz e umas folhas de papel, em que começa a ler para um público hipotético que se encontra realmente na sala. O Senhor Konstanz continua a guiar, muito longe dali.

     ….Minhas senhoras e meus senhores, muito boa noite: vou-lhes explicar, a seguir, de modo sintético, as fases por que tem atravessado a nossa vida, através dos restos arqueológicos que a sua evolução tem deixado. Podem ver, assim, na correspondente retroprojecção, dois pratos de plástico, acompanhados de dois copos de idêntico material, encontrados recentemente numas escavações realizadas na costa da Tunísia…

     Uns servidores trazem, sempre a rolar, dois grandes pratos cor-de-rosa brilhante, com as típicas molduras estilo “um uso só”. Colocam-nos, levemente separados, com dois copos de idêntico material a flanquear os laterais, de maneira a encherem todo o espaço disponível entre os bastidores e a estante (que se encontra na zona central, perto do “automóvel”).

     Não se trata, com efeito, de nenhuns restos de cerâmica fenícia, mas de restos de um piquenique abandonados, pouco civilizadamente, nalgum lugar escassamente frequentado do acampamento arqueológico internacional em que coincidimos, sendo ainda estudantes, e em que nos conhecemos e nos enamoramos, ou isso pensámos então…

     Os pratos fazem tímidas manobras de aproximação um de outro. Às vezes tocam, de leve, os cantos, e afastam-se logo. Outras ficam ligeiramente sobrepostos durante uns instantes. Os copos, no entanto, vão oscilando, manipulados pelos servidores para os respectivos lados, como se lábios invisíveis bebessem deles. Nunca nos seus movimentos ultrapassam, porém, a linha divisória ideal entre a metade direita e esquerda do cenário.

     Como podem apreciar neste lado da imagem, o álcool começa a estar presente nas nossa vida comum, mesmo antes de ela começar… Pois se bem pode ajudar a começar uma relação, serve também, com frequência, para acabar com ela…

     Depois de sucessivas tentativas e oscilantes viagens dos copos, os pratos acabam por se sobrepor completamente. Os servidores introduzem então um copo no outro, “escondem-nos” detrás dos pratos que, sempre a rolar, abandonam, junto a eles, a cena.

     Mas estamos a falar ainda na pré-história da nossa vida comum. O resto mais antigo da nossa história comum é este prato de faiança popular, que podemos observar na imagem, encontrado no fundo de um caixote, ao fazermos a última mudança…

     Os servidores regressam fazendo rolar um prato do seu tamanho com aspecto de faiança branca, modestamente decorada, e com múltiplas fendas e faltas no canto.

     Quero chamar a sua atenção para estas marcas do canto, que demonstram, para além do escasso valor do objecto, o muito tempo que foi utilizado, apesar da sua deterioração. E isto tudo constitui uma prova irrefutável das difíceis condições económicas por que atravessámos no começo, quando só eu trabalhava como professora assistente na faculdade, enquanto ele estava a tirar o seu mestrado, que só depois de quatro anos, e graças à minha influência no departamento, conseguiria acabar…

     Retiram o prato de faiança e voltam com outro de louça industrial, mas bem conservado, e com certos toques nórdicos na decoração.

     Reparem agora na súbita mudança de motivos decorativos, que marca a nossa ida para a Suécia, motivada pela morte do pai, para tomar conta do negócio madeireiro familiar, e os meus esforços para me adaptar a uma universidade estrangeira e para conseguir que ele não se desvinculasse completamente do mundo académico…

     O prato é substituído por outro de porcelana muito mais “fina”

     Chegamos assim a uma época que podemos denominar de “ambivalência” ou “duplicidade”, em que existe, ao lado da “baixela do dia-a-dia” (que continua, a grosso modo, a tendência anterior) a “baixela das festas”, de que podem observar um exemplar na presente retroprojecção. Esta época está marcada pela nossa ascensão económica e académica. É quando obtenho a minha cátedra e lhe consigo um posto na faculdade, num departamento criado quase exclusivamente para ele, para evitar, se possível, o seu total embrutecimento…
     Porque assistimos agora à mais curiosa, e também mais característica, das evoluções…

     Retiram esse prato e regressam com fragmentos de um prato quebrado exactamente igual.

     Trata-se, com efeito, da denominada “Época dos pratos quebrados”, e a minha dúvida é sempre a mesma: por que se espera, para chegar a esta fase, para ter baixelas boas? Não resultaria mais económico passar directamente das fases anteriores para esta, e quebrar pratos menos caros? Mas enfim… de que vale lamentar-se, quando a esta, se segue uma fase ainda muito mais penosa…?

     Os servidores, depois de ter retirado os fragmentos, regressam com um prato reconstruído a partir desses fragmentos, grosseira e evidentemente colados. A Senhora Konstanz muda repentinamente de tom de voz, e acaba a frase seguinte sentando-se de novo no assento do carro, e a olhar “pela janela”.

     Santo Deus! Como podemos ter chegado até aqui?
O Senhor Konstanz.- Estás a ver? Pela 104 viemos muito melhor que pela E-22! Por aqui apanhamos directamente a autoestrada…
A Senhora Konstanz.- (A falar para ele, sem girar a cabeça)…Quando chegarmos à Lapónia darás a volta!
O Senhor Konstanz.- (A falar para si, sempre a guiar) É difícil viver com uma mulher que se crê mais inteligente que tu… mas muito mais difícil é viver com uma mulher que o é. (A virar o volante intensamente para um e outro lado) E, sobre tudo, se sabe que o é, e se tu sabes que ela sabe que tu sabes que o é. Que tenho sido eu dela, todos estes anos… o marido ou a sombra?

     Aproveitando uma curva à esquerda, o Senhor Konstanz abandona o seu assento por esse lado. Um servidor de cena, que aparece pelos bastidores da esquerda, coloca diante dele uma prancha de madeira recortada com a silhueta da Senhora Konstanz. Acende-se então uma luz do lado frontal do cenário e vemos que a silhueta continua pelo chão numa esteira negra que aponta para o foco, como se fosse a projecção de uma pessoa situada algures diante dele. Há outras sombras que se movem e circulam projectadas sobre o Senhor Konstanz e a prancha, como se nós nos encontrássemos “deste” lado de uma animada reunião, e só o Senhor Konstanz se encontrasse do outro.
     A Senhora Konstanz continua sentada no seu lado, a olhar pela janela, a compor um pouco o cabelo olhando-se no espelho à sua frente, a consultar um mapa de estradas, mas contudo vai pronunciando as frases que correspondem à silhueta que se encontra para além da fronteira do pensamento do Senhor Konstanz.

Voz da Senhora Konstanz.- Boa noite Doutor Sousa, como tem corrido tudo?… Ah! Sim?…Olhe, queria apresentar-lhe o meu marido, Alexander, é Director do Departamento de Escandinaviologia Submarina… Olá, Doutora Stue! Gostei muito do seu artigo… este é meu marido, o professor Alexander Konstanz… Olá, Göran, fica sempre combinado como dissemos? Óptimo! Já conhece o Alexander, meu marido?… Marta! Ó Marta…filha, quanto tempo há… temos tanto que falar! Ah! Lembras-te de Alexander, meu marido?

     O Senhor Konstanz tenta apertar a mão dessas sombras, com a fatalidade de emergir sempre pelo lado equivocado da silhueta. Às tantas abandona o seu refúgio e vai até ao extremo esquerdo, onde umas mãos lhe oferecem um capacete com chifres.

O Senhor Konstanz.- Agora entendo por que os antigos Vikings gastavam aqueles capacetes de chifres…

     Calça o capacete e volta a situar-se por trás da silhueta da mulher.

     …Para poderem destacar sempre por trás das suas mulheres…

     Com efeito: os chifres do capacete sobressaem nitidamente por trás do contorno da cabeça da Senhora Konstanz. O Senhor Konstanz sai de trás dela a levar as mãos a barriga incapaz de conter as gargalhadas. Apagam-se as luzes e as sombras desse lado. Sempre a rir, volta a sentar-se ao volante do automóvel, onde consegue afectar certa seriedade. Mas não consegue reprimir um indício de riso, que sai da sua boca como assopro ou estouro. A Senhora Konstanz volta-se um segundo para ele, e depois para a frente.

A Senhora Konstanz.- Achas, de verdade, que estás em condições de conduzir!
O Senhor Konstanz.- (Muda o tom: ofendido) Pois não? Dormi umas horas no hotel. Dormi no táxi para o aeroporto, e estive todo o tempo deitado, na sala de espera. Dormi no avião. Fiquei mesmo um bocado… assim… adormecido, enquanto atravessávamos agora no ferry-boat… Não podia estar em melhores condições! Tu fica tranquila, que aquilo de ontem são águas passadas…
A Senhora Konstanz.- (Para si) Serão, em todo o caso, aguardentes passadas! Quando casei pensava que um homem escandinavo seria diferente… Mas nem todos se chamam Ibsen, nem mudam tanto as coisas de uma época a outra, nem de um a outro lugar. Na minha vida tenho descoberto que a única diferença entre os homens de um ou outro país radica na bebida a que lhes cheira o alento…

     Fica a olhar para a janela. Ilumina-se a luz no seu lado e aparece uma longa fila de homens vestidos com trajos típicos e a susterem recipientes típicos com bebidas típicas. Vão circulando, como arrastados por uma banda transportadora: um escocês com um copo de Whisky, um tirolês com uma jarra de cerveja, um andaluz com uma “copa de fino”, um gondoleiro com uma garrafa de “chianti”, Napoleão com uma taça de champagne, um varino com um cálice de Porto etc… todos saúdam o público, a sorrir de um modo estúpido e a alçar seus respectivos recipientes em sinal de brinde. Às tantas aparece na fila o Senhor Konstanz, tal e como vai vestido, mas com o capacete de viking na cabeça. Agora falta-lhe um chifre, que é com que ele saúda, brinda e bebe, empunhando-o igual a um copo, como aquele em que os seus antepassados costumavam tomar o hidromel.
     Ao vê-lo, a Senhora Konstanz alarma-se. Vira-se para o assento dele, que está vazio, ao mesmo tempo que se apaga a luz do seu lado.

     …Alexander! Alexander! Estás a ouvir?

     O Senhor Konstanz chega, a correr, da parte traseira do cenário. Senta-se de novo ao volante, e adopta a expressão de quem acaba de ser acordado de um sono profundo.

O Senhor Konstanz.- Eh? E não ia estar… Não berres assim! Um destes dias vais provocar um acidente!

     Mas logo volta a ensimesmar-se. Volta a enlaçar com o seu anterior parlamento.

     Mas houve um invento, melhor que o do capacete com chifres, para os vikings modernos não se sentirem ignorados nas festas da universidade…

     Conforme vai falando vai-se levantando. Acende-se a luz do seu lado e voltamos à silhueta da mulher e sombras que passam sobrepondo-se a ela. O Senhor Konstanz regressa à parte de trás, e calça de novo o seu capacete. A Senhora Konstanz, desde o seu assento, e a fazer coisas que nada têm a ver, volta a repetir a longa enfiada de saudações.

A Senhora Konstanz.- Boa noite Doutor Sousa, como tem corrido tudo?… Ah! Sim?…Olhe, queria apresentar-lhe o meu marido, Alexander,…(etc.)

     Mas, de repente, ouve-se o inconfundível som de um telefone móvel. O Senhor Konstanz tira um chifre do capacete e, afastando-se para um canto, começa a falar por ele. Enquanto a mulher continua com as apresentações, ele limita-se a saudar vagamente os convivas enquanto continua a falar pelo cornomóvel.
     A voz da mulher vai diminuindo até se confundir com o murmúrio geral da reunião. O Senhor Konstanz então põe uma mão no furado do chifre, afasta-o da orelha e comenta para o público, em tom confidencial.

O Senhor Konstanz.- …Desde que existem estes maravilhosos aparelhos já não posso dizer que não encontro com quem falar em todas as reuniões sociais…

     Destapa o telefone e volta a falar, a passear entre as sombras projectadas e o murmúrio da festa, seguido sempre pela luz de um projector. Ouvimos agora, ao fundo, o outro lado da conversa: trata-se da informação de estradas.

     Enorme coisa, sim senhor…. Neve na nacional 260… Não diga!…

     Volta a tapar o auricular e a falar para o público.

     Mesmo, às vezes, se não encontro ninguém a quem chamar, ligo o relógio falante, ou o serviço meteorológico ou a informação do estado das estradas… Sempre é melhor do que nada. Mas não é raro encontrar algum colega de trabalho, um antigo companheiro da tropa, um velho condiscípulo, com que manter uma conversa interessante…

     Destapa e volta a falar pelo telefone.

     …Sim, é boa, é boa, Gustav… E conhece o Gustav a história daquele tipo que está uma noite com um lençol, a fazer figura de fantasma, para assustar os vizinhos e, de repente…

     De repente soa um telefone. O Senhor Konstanz fica perplexo, a olhar para o seu chifre, sem conseguir compreender. Então tem um acordo. Tira o capacete, arroja-o junto com o cornomóvel e dirige-se correndo para o seu assento. A luz do projector que o acompanha converte-se, depois de se apagar a restante iluminação desse lado, numa das luzes dos carros com que se atravessam.
     O Senhor Konstanz segura como pode o imaginário volante e tira, do espaço aberto entre os assentos, um telemóvel verdadeiro. Continua a guiar com uma mão, a suster o aparelho com a outra.

     Estou… estou… Olá Hilde! (À mulher, em voz baixa, segredando) …É Hilde…
A Senhora Konstanz.- Tinha ouvido melhor da primeira vez.
O Senhor Konstanz.- Bem, bem… Sim, todos bem… Não, não se passa nada… Estamos óptimos… Vamos indo para casa… Passámos, sim, já passámos a fronteira… Não, ainda não entrámos na autoestrada… Nada estranho… Houve uma pequena demora, é tudo… As ligações, claro… que outra coisa podia ser senão?

     Começa a executar uma complexa manobra com o carro: detém-se a um lado. Mete a marcha atrás. Gira o volante e arranca de novo.

     Onde nos encontrámos exactamente? Deixe-me ver… Pois, devemos encontrar-nos na Lapónia, porque acabo de dar a volta…

     A mulher arranca-lhe o telefone da mão e continua a falar ela.

A Senhora Konstanz.- Olhe Hilde… Bem, sim… muito bem… O Congresso correu estupendamente… Correu tão bem que até chegou ao final dois dias antes!… Olhe Hilde, fique descansada… já chegamos… Não, não, agora vamos direitinhos para casa… Se quiser, deita o pequeno e vai-se embora… Nós temos chave… Como quiser Hilde, como quiser… por nós não faça… Está bem, está bem, se fica assim mais descansada, até já…

     Acena com o telefone na mão.

     Sabes o que penso de falar e guiar ao mesmo tempo.
O Senhor Konstanz.- Não. Não sei o que pensas de falar, nem o que pensas de guiar, nem que fosses tão inteligente que pensasses em duas coisas ao mesmo tempo…
A Senhora Konstanz.- Sabes perfeitamente de que estou a falar. Nunca reparaste em que, desde que existem esses aparelhos, a lista de “últimas frases” da história tem aumentado largamente? Dantes só as personagens célebres diziam a sua frase derradeira, depois de muito a trabalhar, no leito de morte, como um legado para a humanidade. Agora qualquer um, em qualquer curva, pode deixar a sua última frase registada, através deles, sem dar por isso, no ouvido, a melhor, de um empregado dos Correios.
O Senhor Konstanz.- Pois não tinha reparado: uma maneira cómoda e rápida de fazer testamento… Está a ver um camião que vem para ti… e berras: tudo para o meu filho!… ou: tudo para o meu sobrinho! …sei lá… não está mal… Hei-de contar a Gustav…
A Senhora Konstanz.- (Séria e como ausente) Tudo para Uáris, tudo para Sístar, tudo para Amenotontapep…
O Senhor Konstanz.- O quê estás a dizer…?
A Senhora Konstanz.- Que talvez interessasse, no último momento, dizer alguma coisa diferente a que deixavas tudo ao teu filho ou ao sobrinho…
O Senhor Konstanz.- Então quê: que lho deixava tudo à minha sogra? (Ri)…ha ha… é boa! Hei-de lho contar a Gustav…
A Senhora Konstanz.- (Para si, a olhar para o telefone que tem nas mãos) Talvez a Tábua não seja tão diferente de um telefone móvel… Talvez quem a gravou precisava urgentemente de um, e começou a inventá-lo… O único… que não teve tempo de inventar senão o sinal de chamada… (Encosta-se, mas na janela)…Ah! Como gostaria poder pousar a cabeça num ombro e contar a alguém, devagar, a história que nos repetiam, no colégio, as freiras, de como estando um dia Santo Inácio de Loyola a jogar pelota basca com os seus companheiros de seminário…

     Vai girando, com o mesmo movimento de encostar a cabeça na janela e vai-se levantando do assento. Acende-se a luz no lado direito. Atrás dela uns noviços de hábitos negros jogam a lançar e devolver a bola contra uma parede imaginária que coincide com a linha que divide as duas metades da cena. A Senhora Konstanz vai passeando entre eles, como se lhes estivesse a falar sem eles perceberem.

     …alguém que acertou a passar por ali, foi-lhes perguntando um a um o que fariam se lhes dissessem que iam morrer antes de uma hora…

     Conforme ela vai passando, os noviços vão deixando o jogo e param a pensar.

     Todos começaram a procurar os meios mais eficazes de conseguir a contrição, o arrependimento e o perdão dos pecados…

     Todos falam resfolegando, não sabemos se pelo exercício ou se pelas pressas da última hora.

Um Noviço.- Eu iria procurar rapidamente um confessor…
Outro.- Não, eu inclinar-me-ia, melhor, pelos Santos Óleos, parece mais completo…
Outro.- Safa! E se não consegues encontrar um padre nesse tempo… Para mim o mais seguro seria um acto sincero de contrição e a reza de um bom Rosário…
Outro.- A leitura do Eclesiastes penso que é o mais recomendado…
Outro.- Para morreres como judeu! Não, o mais recomendado é o Apocalipse…
Outro.- Pois eu iria comprar todas as bulas e perdões que me permitisse a minha fortuna…
Outro.- O mesmo problema de antes… E se encontrasses fechadas as lojas? Para mim seria mais seguro assinar um papelzinho qualquer deixando todos os meus bens aos pobres…
A Senhora Konstanz.- Mas, quando foram perguntar a Santo Inácio…

     Encontra-se agora mesmo em frente de Santo Inácio, que acaba de recolher a bola e dirige-se para o grupo dos seus companheiros.

     …”O que tu farias, se te dissessem que ias morrer antes de uma hora?”
     Ele respondeu-lhes, simplesmente…

     Santo Inácio responde com tranquilidade. Não só como se não tivesse medo da morte, mas também como se não se tivesse fatigado. A Senhora Konstanz continua o seu deambular deixando livre o espaço entre ele e os colegas, para o santo lhes dar a eles a resposta da pergunta que acabam de formular pela sua boca.

Santo Inácio de Loyola.- Eu continuaria a jogar à bola…

     Todos ficam admirados com a resposta. Alguns ajoelham-se diante dele, outros querem beijar-lhe a mão. A Senhora Konstanz vai-se afastando do grupo.

A Senhora Konstanz.- E é que era tal o seu estado permanente de graça, que não tinha que fazer mais nada para se salvar.

     Chega até ao pé do carro, mas antes de se sentar, pensa um momento.

     Ora, o que eu gostava de saber é…

     Marca um número no telefone. Começam a ouvir-se um sem número de telemóveis, não se sabe onde. Os noviços e Santo Inácio interrompem as sua poses beatíficas e tiram dos largos bolsos dos hábitos os seus correspondentes telefones. Quando pousam a orelha no aparelho, a Senhora Konstanz formula a pergunta, através do seu, com um marcado sotaque telefónico.

     O que dirias tu, se fosses morrer dentro de cinco segundos?

     As vozes dos noviços são agora altissonantes e atrapalhadas, como se a linha tivesse interferências e os berros de uns não deixassem ouvir os outros. Falam, naturalmente, com os seus telefones.

Um Noviço.- Ó Lopes, ouviu, venda Têxteis e compre Metalúrgicas, ouviu, Metalu…(O Noviço cai fulminado, o telefone fica a dar sinal de ocupado)
Outro.- O carro novo? Um foguete! (Idem)
Outro.- É que aí ninguém sabe como levar um negócio?! (Idem)
Outro.- Amanhã de manhã, se Deus quiser…(Idem)
Outro.- Diga ao Carlos que vá….!! (Idem)
Outro.- …uma coisa: como se fazem ovos moles? (Idem)
Outro.- A empresa é minha, se não está de acordo, rua…! (Idem)
Santo Inácio de Loyola.- Qual golo! Se foi fora de jogo! Serginho passa a Pintinho, Pintinho finta e…

     Santo Inácio aproveita o gesto da finta para se contorcer, antes de cair fulminado. Sobre um campo semeado de noviços fulminados todos os telefones desligados começam a soarem como grilos.
     A Senhora Konstanz volta a sentar-se no carro. Desliga. Cessa o efeito sonoro. Deixa o telemóvel no seu sítio e apaga-se a luz do lado direito. Mas ainda tem um pensamento que segreda à imagem que deve projectar na janela.

A Senhora Konstanz.- Não sei por quê, mas tudo isto traz-me à cabeça uma frase que ouvi dizer ao (atrapalha-se) Konstanti…ninovitch, aquele cura russo… e que me parece que encerra, de uma maneira muito mais exacta, que eu nunca acertaria a definir, o que eu penso da vida…

     Acende-se por um instante, de novo, o lado direito. Atravessa-o o mesmo Cego que sarara São Nicário, vestido da mesma maneira, e a repetir a mesma frase, acompanhada de idênticos gestos e movimentos.

O Cego.- …Venderam-me um milagre, e faltavam-lhe os anjos!

     Com passo decidido o Cego “sai” pela fronteira imaginária entre ambos os lados, apagando-se, consecutivamente, a luz do lado direito. Mas tanta é a decisão do Cego, que continua a avançar por trás do assentos, a ultrapassar essa fronteira. Nesse momento acende-se a luz do lado esquerdo. O Cego atravessa-o com o mesmo passo, repete a frase, e desaparece pelos bastidores da esquerda.

O Cego.- …Venderam-me um milagre, e faltavam-lhe os anjos!

     Apaga-se a luz desse lado. O Senhor Konstanz, que estava a olhar de esguelha para aí, fixa a atenção no trânsito e enfia o seu pensamento.

O Senhor Konstanz.- Que estupidez! Era o que me faltava! Vir-me a mim com essas… Ora, eu consegui pô-lo no seu lugar na festinha que deram depois…

     Aparece, ao pé do carro, uma travessa com uma série de copos, como se os estivessem a oferecer ao condutor. O Senhor Konstanz deixa o volante. Vira-se para ela. Sorri com um brilho de muitos graus. Apanha, mal pode, um dos copos. Acende-se a iluminação desse lado. Vemos que um empregado que se tinha curvado para lhe oferecer a travessa, se incorpora e se retira. Várias sombras desfilam projectadas sobre o que deve ser um animado cocktail, cujo barulho acompanha a acção. Vemos também algumas personagens em relevo, entre as quais identificamos alguns dos oradores que intervieram. O Senhor Konstanz fica sentado de lado, como se os assentos do carro o fossem da sala em que tem lugar a “festinha”. Bebe lentamente. Mas descobre num grupo, ao fundo, o padre Alexei Konstantinov, a falar com Alexis Konstantinos, Sandro Constantini e um indivíduo com aspecto hindu. Incorpora-se com certa dificuldade e avança para eles. O pope encontra-se de costas e o Senhor Konstanz bate respeitosamente no seu ombro.

     …Desculpe a menina, mas… teria a grande honra de me conceder o imenso prazer de dançar consigo esta valsa?

     O padre Alexei Konstantinov volta-se surpreendido.

     Oh!, desculpe, não me tinha apercebido… O senhor já sabe, eu… só ver uma saia, e perco o sentido…!
O Padre Alexei Konstantinov.- Se o que quer é provocar-me, Konstanz, perde o seu tempo. Eu não preciso de gracejar para o meter a ridículo! Faça favor, retire-se! Chegou de patetice com o espectáculo que deu esta tarde…
O Senhor Konstanz.- (A tocar ofensivamente a touca) Olhe, sempre me perguntei… isto que trazem vocês à cabeça, que é… um aeroporto para as moscas… ou é que têm, por baixo, o crânio com essa forma… Ouvindo as críticas, por assim dizer, que o senhor me fez, dá mesmo vontade de pensar…
O Padre Alexei Konstantinov.- … Vá para a cama… não acabe de estragar a sua carreira…
O Senhor Konstanz.- Ah, não! Agora compreendo a sua utilidade. É um excelente lugar, sim senhor, um excelente lugar… para deixar o copo, enquanto a gente fala consigo…

     Deixa, efectivamente, o seu copo depositado em cima da cabeça do pope, que se inclina para diante, vertendo-o sobre ele.

O Padre Alexei Konstantinov.- É o nosso dever de humildade… inclinar a cabeça ante quem nos tem ofendido…
O Senhor Konstanz.- O que vou é desmembrá-lo, freira barbuda…!

     Vai-se contra ele, tentando inutilmente dar-lhe um murro. O pope, porém, consegue encaixar-lhe a sua resposta. Os outros tentam arredá-los.

Alexis Konstantinos.- Deixe estar, Konstanz, foi você que começou…
O Senhor Konstanz.- Cala, que sei bem que és da sua paróquia… Tu também vais pagar as tuas ofensas contra a estirpe de Odin!

     Vai-se contra ele. Sandro Constantini tenta, no entanto, sujeitar o padre Alexei Konstantinov, que lhe propina uma potente cotovelada antes de acometer de novo ao Senhor Konstanz.

O Padre Alexei Konstantinov.- Larga-me tu, maoista!

     O indivíduo com aspecto hindu tenta mediar entre eles, e só consegue levar pancada de ambos lados. Afinal conseguem rolar todos pelo chão, momento em que interrompe uma sombra que se projecta sobre o ridículo grupo: a silhueta da Senhora Konstanz. Faz-se um silêncio, o Senhor Konstanz olha para ela com lágrimas nos olhos. A sombra desaparece tão rapidamente como apareceu, deixando trás de si um som de tacões que se afastam e uma porta que se fecha.
     Lentamente vão-se levantando todos, a recompor as roupas. O Senhor Konstanz afasta-se deles, porém, com o fato enrugado e a gravata aberta.

O Padre Alexei Konstantinov.- Tem uma mulher muito formosa e inteligente, Konstanz. Se não se importa de pensar na sua própria carreira, deveria pensar, pelo menos, um pouco na dela…

     O Senhor Konstanz chega até à borda do cenário e senta-se ali, com os pés para fora. Tira do casaco o seu telemóvel e começa a marcar um número.

O Senhor Konstanz.- As vossas é que estão acabadas, vais ver… Eu tenho amizades, tenho relações… Vais ver…

     Ouve-se a voz enlatada de um relógio telefónico.

Voz Telefone.- Vinte horas Quarenta Minutos Cinquenta segundos…(Continua a soar sempre por baixo do parlamento)
O Senhor Konstanz.- Estamos na hora de dizer as verdades, não importa a quem quer que seja… (Muda de tom: choroso) Cabe-me a duvidosa honra de ser o primeiro universitário sueco, desde a invasão de Ivan o Terrível, em se bater corpo a corpo conta um pope russo. Sou um porco… sou um porco, sou um porco… Sou um kamikaze da porcaria! Pensas que eu não sei que me destruo a mim próprio tão só para lhe fazer dano a ela… (Ouve-se o relógio dizer alguma hora) Sim, sim, sei bem que o tempo corre e que a vida passa e que eu não faço senão arruinar a minha e a dela. Pensas que o não sei? Sacrifico o meu orgulho para lhe contagiar o meu ridículo… Como eu não consigo aproximar-me dela, tenho que tentar aproximá-la a mim… Vejo-o tão claro como que agora são… (Deixa que se ouçam as horas que está a dizer a voz)…Tu conheces-me bem: sabes que eu podia ter sido um bom madeireiro, casar com uma rapariga da minha terra e termos muitos filhos, com grandes dentes, e loiros… Mas quis aproveitar-me do seu brilho, e ela colaborava também no meu intento, talvez porque lhe resultaria ainda mais difícil ter que dizer “conhecias já o meu marido, Alexander, o carpinteiro?”… Agora ambos não nos podemos perdoar ter sucumbido um ao outro… Eu não consegui sair da sua sombra, e ela foi perdendo todo o brilho que inutilmente me prestava.. A minha vida já não tem outro sentido que torcer o da dela… Oh! Não faz falta que mo repitas… Sei que o tempo corre e que não faço nada para mudar o rumo… Mas fica descansada, que todas as análises realizadas a respeito tem vindo a demonstrar que a vida é facilmente solúvel em álcool.

     Ouve-se, algures, um telefone móvel. Todos os convivas começam a tirar os seus para ver de quem é a chamada. Mas nenhum cintila. Ficam todos a olhar-se entre eles, e, depois de um pedaço, olham só para Konstanz.
     Atira então o telefone para trás. Deixa de se ouvir a voz enlatada e apaga-se toda a luz desse lado, fora um projector que segue o Senhor Konstanz na sua louca corrida de volta ao carro, convertendo-se, quando se senta, nas luzes de um carro que atravessa rápida e perigosamente. O Senhor Konstanz quase que não chega com tempo de girar violentamente o volante. Ainda que se parece preocupar mais em atender o telemóvel que não deixa de apitar, exactamente como o carro que vinha de frente.

A Senhora Konstanz.- Onde é que tens a cabeça, Alexander! Como não mudastes o rumo! Vinha de frente!
O Senhor Konstanz.- Tinha que ter mudado ele: eu ia pela minha direita (Enfatiza essa afirmação a sacudir veementemente a mão esquerda) (A falar pelo telefone) Estou… Verker! Ah! Então você?… (Para ela, a segredar) …É o velho Verker… Deixe de tentar falar inglês: sou eu… Não, estamos de volta… Como soube… É uma história longa… Amanhã vou aí… Saiu o camião que dissemos para Göteborg? O quê? Como? Oh, Verker, pode-me dizer de vez o que diabo quer dizer? Bom, não sabe quanto o sinto… mas que tem a ver connosco a morte do senhor Svenson? Sei, sei que acabava de fazer a casa e que nós lhe tínhamos servido a madeira… Não me faça rir… os rapazes o que querem é ir à taberna… a um funeral… senão for o meu… Chegou, Verker! Amanhã sai esse camião para Göteborg! A empresa é minha, e se não está de acordo: rua!

     Uma nova luz atravessa, a riscar, todo o cenário. Apagam-se todas as luzes. Há um momento de silêncio absoluto, que é roto por essa voz que às vezes nos adverte:

Voz Telefone.- O telefone marcado não se encontra operativo neste momento…

     Antes de que se possam concretizar as mais turvas suspeitas, acende-se de novo a luz, regressa o barulho do motor, o trânsito e as vozes.

O Senhor Konstanz.- Estou… Estou… Ouviu, Verker!… Não, nada… Acabamos de passar por uma zona de sombra radioeléctrica… que tinha pensado? Eh? Quê? Como?… Inácio de Lo…que?… o quê está a dizer, Verker, você bebeu… converteu-se à Igreja Romana ou é que se nacionalizou italiano aproveitando a minha ausência? Deixe-me de santos, que estou cheio de toda a classe de padres… Está bem, está bem… Mas imediatamente depois do funeral sai o camião… Não, não me importa o que possam pensar em Göteborg ao ver chegar um camionista de fato preto e gravata… Siga bem, Verker, e desculpe… Até amanhã, sim…

     Deixa o telemóvel, e concentra-se de novo no trânsito.

A Senhora Konstanz.- (Para si, a olhar para o seu lado) Por isso, ainda que saiba que é inútil, não posso deixar de me perguntar qual é o sentido da vida…
O Senhor Konstanz.- (A falar para ela, interrogando com as mãos) …A primeira à direita e depois a segunda à esquerda e sempre à frente até chegar ao largo? … ou a primeira à esquerda e depois do largo a segunda à direita? (Muda de tom, a falar para si) Sei bem que é absurdo, e nunca o reconheceria diante dos amigos, mas não posso evitar perguntar-me qual é o sentido da minha vida…
A Senhora Konstanz.- (Para ele) É: a primeira à esquerda, depois a segunda à direita, e, ao chegar ao largo, sempre em frente…

     O Senhor Konstanz assente e faz menção de ir virar à direita.
     Acendem-se agora simultaneamente ambos os lados. Uma iluminação azulada que incide sobre um dédalo de sinais de trânsito que pespontam ambas as metades, marcando complexos circuitos. O Senhor e a Senhora Konstanz levantam-se também à vez, e começam a circular, como num ballet ou um sonho, por esse labirinto de sinais, em que aparecem e desaparecem, do lado dela elegantes bailarinos, saídos de um clássico “music-hall” com que dança alguns passos numa curva, para passar aos braços de outro numa mudança de sentido, e do lado dele as suas correspondentes bailarinas com idênticos usos e costumes. Vão falando, cada um para si, mas ambos ao mesmo tempo.

O Senhor e a Senhora Konstanz.- Oh, se soubesses quantas vezes penso que em cada uma dessas bifurcações há uma vida nova, e a vontade que sinto de me espalhar por todas elas ao mesmo tempo, se pudesse… Igual à vertigem que atira para o abismo, algumas noites tenho tentações de, sem pensá-lo, sair do carro e me deixar cair pelas avenidas vazias do destino… Talvez essa rua me leve para um final diferente daquele que nos têm prognosticado. Por outra bifurcação, por outra estrada, a vida talvez não seja assim, e amanhã poderás despertar no teu outro futuro…

     Sem interromper a dança circulatória vão regressando para o centro do cenário.

     Mas o triste do caso é que se não ousas nunca, nem em sonhos, fazê-lo, não é tanto por medo daquilo que não sabes, como de puro pânico daquilo que suspeitas: que no fundo de qualquer rua ou viela, de qualquer passo ou caminho, teu futuro é o mesmo, como é igual a cor do céu em qualquer rumo.

     Os seus respectivos caminhos levam-nos a reencontrarem-se. Os últimos dançantes foram arrojá-los um nos braços do outro. Mas, antes de se tocarem, voltam a sentar-se no carro, e apagam-se as luzes de ambos os lados.
     Mesmo a olhar de frente, continuam a falar ainda, por um momento, juntos.

     Eu sei perfeitamente todos os gestos que hei-de fazer agora, até ao fechar de olhos.

     Os parlamentos bifurcam-se.

O Senhor Konstanz.- (A fazer de conta que acena com um telecomando) A porta da garagem…
A Senhora Konstanz.- (A sair pelo seu lado e fechar a porta) A porta do meu lado…
O Senhor Konstanz.- (De novo com o telecomando) Fechar a porta da garagem…
A Senhora Konstanz.- (A acenar para ele) Lembrar-lhe a sua porta.
O Senhor Konstanz.- (Depois de fechar, a olhar para a sua esquerda e a bater com os pés no chão) Subirmos a escada….
A Senhora Konstanz.- (Faz o mesmo, mas a olhar para a direita, tendo primeiro ido até ao fundo, como à recolha das sacas) …Depois de termos recolhido a bagagem…

     Ambos descrevem, em direcções divergentes o caminho de uma escada de três lados. Continuam a mimar todas as acções a que se referem.

O Senhor Konstanz.- A porta da Sala…
A Senhora Konstanz.- As coisas no sofá…
O Senhor Konstanz.- A saudação de Hilde…
A Senhora Konstanz.- Dizer-lhe para ir embora… já jantámos…
O Senhor Konstanz.- Trazer-lhe o agasalho, agradecer a espera…
A Senhora Konstanz.- Esquece o guarda-chuva…
O Senhor Konstanz.- …e a carteira…

     Ainda que as acções sejam complementares, continuam a fazer cada um pelo seu lado. Sincrónicos e divergentes.

A Senhora Konstanz.- Subir ao quarto…
O Senhor Konstanz.- Abrir devagarinho a porta do pequeno…
A Senhora Konstanz.- Agasalhá-lo bem e ir-se em pontas…
O Senhor Konstanz.- Enfim, despir-se… Os dentes, o pijama…
A Senhora Konstanz.- As luzes, a revista…

     A Senhora Konstanz desata o cabelo (é o único gesto real que faz) e pára-se um momento, a falar num tom muito diferente.

     …às vezes penso que todas estas coisas seríamos capazes de as repetir estando mortos…

     As suas trajectórias divergentes e complementares têm chegado convergir no centro do cenário, diante dos assentos, e deixaram-se cair neles, como se fosse a cama.

O Senhor Konstanz.- Boa noite…

     O Senhor Konstanz fica adormecido.

A Senhora Konstanz.- Alexander, acorda!

     Ouve-se um apito e uma luz potente atravessa a cena. O Senhor Konstanz abre os olhos e volta a segurar o volante.

     …Falta pouco… Estamos a chegar… Olha a Granja de Hjalmar… Aquelas são as árvores da estrada da estação… Aguenta, é só um momento…
O Senhor Konstanz.- Estou bem, estou bem… foi um lapso…
A Senhora Konstanz.- (A olhar pela janela, para si) Mas saber que no fundo, continuo com ele tão só por cobardia, porque em romper com ele não sou melhor do que ele… Se rompesse com ele, teria que romper com o meu passado… e não tenho outro… Pareceria absurdo, por exemplo, que rompesse com ele e que ficasse aqui… Porquê? O lógico seria que voltasse para um país que quase já nem lembro…

     Vai dando voltas a qualquer coisa no ar, como se estivesse a abrir a janela. Assoma a cabeça para fora. Olha, reconhecendo, a paisagem. O vento esparge a longa melena, enquanto o Senhor Konstanz continua a guiar e bocejar.

     …Porque, devo confessar que me acabei enamorando deste país tão frio, e que, se afinal não sou capaz de romper é porque, para mim, este país é ele. Pena não ter sido tua filha, Miss’s Morlay! Mas a verdade é que já não saberia viver sem este vento fresco, sem essa neve miúda que o canto da porta borrifa quando sais, nem a cor destas tardes tão curtas… e que, enfim, esta vida falsa, a olhá-la da janela, tem os seus momentos de luz e de mistério, como um vento real que atravessa um teatro…

     Escuro e silêncio total.

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