A Tábua Ocre de Núbia (ou o Significado da Vida)

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Quadro VIII: Cenas 1ª, 2ª e 3ª.

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Quadro VIII
A Neve de Todos

Cena 1ª


     No escuro e no silêncio total, ouve-se, a concluir a intervenção anterior, a voz do Secretário/Coordenador,

Voz do Secretário/Coordenador.- No seu lugar, vai intervir o professor Sandar Constandhi, agregado do departamento de transcrição de sânscrito da Universidade de Deli, de cuja amabilidade temos abusado ao lhe pedir que improvise umas palavras a fim de cobrir este oco no nosso programa. Professor Constandhi, faz favor…

     Ao se acender a luz vemos o busto do professor Sandar Constandhi desenhado no pano. Figura que terá que lembrar a daquele indivíduo de aspecto hindu que tentou mediar na singular batalha entre Konstanz, Konstantinos, Constantini e Konstantinov.

Professor Sandar Constandhi.- Não vou falar aqui nem da minha especialidade, o sânscrito e a sua interpretação, nem das suas inegáveis semelhanças com a Língua empregada na inscrição realizada na Tábua Ocre de Núbia… tema sobre o qual nunca me tenho ocupado. Eu não vinha a este Congresso senão como um assistente mais, como um ouvinte atento, como uma pessoa com desejos de aprender, e, nesse sentido, vou-me gratamente satisfeito.
     Queria, porém, aproveitar a oportunidade que me brinda a organização de me poder dirigir a este auditório, para tratar de algumas coisas que têm acontecido nele, e das quais não tenho gostado tanto. Temos assistido a dias de necessária polémica e dias de interessante debate. Mas temos assistido também a confrontações viscerais, a desqualificações pessoais, ofensas verbais e mesmo alguma tentativa de agressão física, de que tenho sido, desgraçadamente testemunha.
     Quero aproveitar esta imprevista intervenção para fazer um chamado ao bom senso e o sossego que deve presidir qualquer reunião científica, a procurarmos não só pontos de debate e de conflito, mas também pontos de acordo e de consenso. A Tábua Ocre de Núbia resulta um enigma de que cada um presume ter a única chave. Porém eu digo-vos, ilustres colegas, companheiros… não podiam ser todos esses pontos de vista, aparentemente opostos, pontos de vista complementares? Não podíamos fazer todos um esforço de acordo e, pelo bem da ciência e a concórdia, admitir, por exemplo, que dita Tábua foi realizada por um autor grego de tragédias, que conhecia a linguagem rúnica, acerca da vida de um santo copto que escrevia chinês, e que esse autor não tivesse sido senão uma invenção de Fernando Pessoa?
     E se não gostarem desse reparto, por que não pode cada um pegar num signo, naquele que mais se conformar com a sua teoria, e os outros respeitar-lho, em vez de andar a pelejar, entre todos pelo domínio de tudo? Esta poderia ser uma saída factível e satisfatória para todas as partes. Proponho que este Congresso se pronuncie, nas suas conclusões, a favor desta teoria de consenso: a Tábua Ocre de Núbia consiste numa compilação de todas as escritas no seu tempo conhecidas, das quais cada carácter constitui uma amostra, e que portanto a mensagem que encerra não é outra que a da paz universal e o bom entendimento que deve reinar entres todos os homens, de todos os países e de todas as línguas.

     Ouvem-se fortes aplausos.

     Mas ainda caberia uma outra possibilidade, que, devo confessar, é a minha favorita. Concluirmos todos, em cordial camaradagem, que a Tábua de Núbia foi uma criação única na história da humanidade, e que o seu autor, sem dúvida um génio irrepetível do qual não nos tem ficado nenhuma outra obra, elaborou um texto propositadamente ambíguo, que pudesse ser interpretado de todos esses modos aqui expostos, e de muitos outros diferentes, por ventura. Este génio desconhecido teria conseguido escrever assim, num espaço plano, um texto poliédrico, um texto de muitas caras, que sempre te devolveria, como num jogo de espelhos, aquilo de que tu andasses à procura.
     Por se a minha proposta não estivesse suficientemente clara, vou tentar a explicar melhor com um exemplo, tirado de uma interessante reportagem que lia, vindo para aqui de avião, no Times Magazine… Penso que trago o recorte no bolso…

     A mão direita penetra então numa fenda aberta no pano, que coincide com a abertura do casaco. Fazendo de conta que a mão tira um papel dobrado do seu interior, outros manipuladores (ocultos) vão abrindo essa parte do pano, que é independente do conjunto. E fazendo de conta que a outra mão desdobra esse papel, vai-se descobrindo uma outra abertura oculta, exactamente igual, praticada do outro lado. De maneira que, ao acabar a operação, fica um rectângulo aberto no peito do professor Sandar Constandhi que representa uma revista cuja fotografia da capa é aquilo que o pano nos permite ver da parte posterior. Um cenário de teatro vazio (cordas, sacas, uma mesa, decorações desmontadas etc.) com uma abertura no tecto pela qual penetra um jorro de luz do exterior. Suspensas no ar (quer dizer coladas num tecido transparente que fecha essa abertura) umas letras vermelhas que dizem “Times Magazine” e umas outras brancas em que se lê “Sarajevo: a True War Theatre”.

     Conta que, durante a última guerra, em Sarajevo, um teatro sofreu os efeitos de um bombardeio… Entre os danos mais graves coube contar um enorme furado aberto no tecto, mesmo sobre o lugar do palco, por onde podia penetrar a luz do dia no cenário, sim, mas também a neve…

     A “fotografia” começa a animar-se. Do alto começam a cair flocos de neve, que não cessarão até ao final do quadro.

     …Bom, se todos já viram suficientemente a fotografia, penso que posso guardar…

     As mãos fingem dobrar e guardar o papel, mas é o pano inteiro que se dobra e que se guarda, pelo lateral, deixando livre a cena que há por trás.






Cena 2ª


     A cena que o pano deixa livre, ao correr, é o prolongamento natural da imagem que víramos na “fotografia”: um cenário com as decorações aparentemente desmontadas, em cujo tecto se abre um furado respeitável, por onde entra um jorro de luz do exterior sobre o palco, e uma cortina de neve incessante.
     Em primeiro termo, por diante da cortina de neve e deitada sobre uma cama improvisada com enormes sacas sujas, aparece a Senhora Lil, vestida com um camisão e uma touca que parecem feitos com o mesmo tecido que os sacos. Incorpora-se com dificuldade e languidez e tenta berrar, como num suspiro.

A Senhora Lil.- Magda!
Voz do Prof. Sandar Constandhi.- A companhia que actuava não interrompeu por isso as suas representações, que se mantiveram, pelo menos, durante toda a primeira fase da guerra…

     A Senhora Lil volta a incorporar-se com maior ímpeto, e chama também com uma voz mais forte.

A Senhora Lil.- Magda!
Voz do Prof. Sandar Constandhi.- Estavam a interpretar, então, uma obra de um autor local… desculparão que não lembre o nome, porque era um desses apelidos estranhos, igual de estranhos, curiosamente, para vocês que para mim… Tratava das desventuras de Magda, uma eslovena que viera trabalhar, havia muitos, para a pequena cidade da costa adriática em que se desenvolve a acção. As coisas não correram bem nos últimos tempos e Magda, que ia deixando de ser nova, teve que se pôr a servir de criada na casa da Senhora Lil, uma viúva que vivia acamada desde que padecera umas febres turcas, e já levava mais de quinze anos a morrer …
A Senhora Lil.- (Incorpora-se num pulo e berra) Magda!!
Voz do Prof. Sandar Constandhi.- Mas o curioso do caso é que, a Companhia, carecendo de meios para reparar os danos, decidiu tirar proveito deles, e adaptou rapidamente a obra, de maneira que aquela neve que caía de modo incessante sobre o palco, fosse mais um elemento da representação…

     Por trás da neve aparece uma figura em sombra, que avança para a Senhora Lil. Aparta a cortina de flocos como se fosse uma cortina de rendas de algodão: primeiro introduz as mãos criando uma fisga de sombra que vai abrindo como abre os braços, e por onde assoma o seu rosto, que pergunta.

Magda.- Que é o que a senhora quer?
A Senhora Lil.- (A berrar) Acerca-te desavergonhada, que me vais fazer rebentar os pulmões! Quando eu te chamar, tens que vir ao pé da cama! Não sabes que o médico me proibiu berrar!

     Magda acaba de atravessar a cortina de neve e vai para ao pé da cama. É uma mulher madura, traz o cabelo recolhido, um vestido negro, sem manga, e um avental de cores esvaídas e, ao mesmo tempo, berrantes.

Magda.- (Incómoda) Que é o que a senhora quer?
A Senhora Lil.- (Num tom muito fraco, como no começo) O café…

     Magda vai ao pé da cortina de neve. Introduz a mão nela, e dessa escuridão vai tirando (como se a neve fosse, antes que cortina, a porta da prateleira) uma cafeteira, uma jarra para o leite, uma chávena, um prato, uma colher, que deposita numa caixa de embalagem próxima, que tem cara de mesa, e começa a preparar a servir esse café.

Magda.- (Desde ali, a realizar toda a operação) Por certo, que tinha que lhe pedir à senhora a manhã do Domingo livre…
A Senhora Lil.- (No mesmo fio de voz) Que é o que estás a dizer? Não ouço!

     Quando lhe corresponde pôr o açúcar, limita-se a pegar na colher, aproximá-la da cortina de neve, esperar a que caia um, ou mais flocos nela, e proceder a vertê-la no café.

Magda.- (Do mesmo ponto, mas num tom mais baixo) Proibiu-lhe o médico ouvir também?
A Senhora Lil.- São esses modos de responder a uma senhora?!

     Magda regressa para ao pé da cama, sem deixar de remexer no café.

Magda.- Vejo que melhora por momentos… (Dá-lhe a chávena) Dizia que no próximo Domingo preciso a manhã livre…
A Senhora Lil.- (Depois de beber um golo curto) Falta açúcar!

     Magda volta para ao pé da neve e recolhe mais uma colherada dela que verte na chávena e dissolve, durante o caminho de volta, no café.

Magda.- Nem a manhã inteira preciso. Estaria de volta para a hora do almoço…
A Senhora Lil.- (Depois de experimentar) Acho-o amargo ainda.

     Magda volta a recolher uma colherada do enorme açucareiro em que se converteu o céu e repete idêntico passeio.

Magda.- É que o meu moço toca este Domingo na praça, e como nesse dia vem por cá a sua filha..
A Senhora Lil.- (Igual) Mais açúcar, mais! Ou é que és tu quem o tem que pagar!

     Volta a carregar a colher na cortina de neve e a açucarar o café. De regresso remexe e pergunta.

Magda.- Então, afinal, pode prescindir de mim essas horas…?

     A Senhora Lil, depois de molhar apenas a ponta da língua no café, devolve-lhe a chávena violentamente.

A Senhora Lil.- Isto está um xarope insuportável! Vaza-o no sanitário! Nem é bom para o cano! Faz-me um novo…

     Magda regressa para a neve com o rosto radiante, as mãos a segurar a chávena como se fosse um tesouro, sem se importar das queixas da Senhora, que a perseguem no caminho.

     Com a justa dose de açúcar… a justa dose…

     Começa a diminuir toda a luz, excepto a que vem de cima, e uma pouca que se concentra sobre ela, que fica um instante parada, a sonhar, e começa a ouvir-se um saxofone.

Voz do Prof. Sandar Constandhi.- Magda era feliz. A Senhora Lil não tinha dito “não”! E isso, nela, era mais do que se podia esperar! Magda contava com impaciência os dias que faltavam para o Domingo. Porque Magda tinha um noivo chamado Kiril. Um “moço”, como dizia ela, embora ambos superassem a quarentena. E Kiril acabava de entrar, de saxofone baixo, na banda de música da vila…

     Na cortina de neve emerge um saxofone dourado, tocado por uma sombra que permanece por trás dela. Toca alguma melodia melancólica adaptada para banda popular.

     Tinha feito grandes planos para aquele dia. Primeiro o concerto, na praça principal, e o seu Kiril a tocar diante de todo o mundo, com aquele saxofone dourado, e os botões do casaco não menos dourados, que quase se diria que se podia fazer música com eles sós. E depois, se o tempo acompanhasse, iriam passear à beira-mar, pelo passeio novo. Ela a tomar um gelado de creme, de braço dado, a andar devagarinho, como uma senhora. Ele com a sua farda azul, o boné algo inclinado, a olhar de vez em quando o mar, com certo ar de capitão sem barco.

     A música vai minguando e o saxofone se retira para a parte em penumbra, trás a neve. Sobe a iluminação geral. A Senhora Lil incorpora-se levemente.

A Senhora Lil.- Quanto demora esse café!

     Magda recupera o movimento e volta para a tarefa. Chega até à neve. Prepara um novo café. Deita várias colheradas de “açúcar”, sem acabar de se convencer a maior ou menor conveniência de mais uma. Quando finalmente regressa, com a chávena pronta, para o pé da Senhora, encontra-a a dormir profundamente.






Cena 3ª


     Vai-se retirar quando, na neve, assomam as cabeças de Zhôlnec e Vêddec, dois adolescentes, que podem mesmo ter mais de vinte anos.

Zhôlnec.- Olá… Magda! Já te tinhas esquecido de nós…
Vêddec.- Não chorarias, na nossa ausência?!

     Atravessam a cortina e irrompem buliçosamente. Magda segura bem a chávena e eles começam a brincar a seu redor, tentando fazer que lhe caia.

Magda.- (Baixinho e a fazer sinal de silêncio) Ó meninos, pouco barulho… Olhem que a sua avó está a dormir…

     Eles continuam a brincar ao seu redor.

Voz do Prof. Sandar Constandhi.- Porque a Senhora Lil vivia com dois netos que os pais não podiam manter, por razões que veremos…
Zhôlnec.- Tens medo ao despertar do monstro!
Vêddec.- Pois as pílulas para dormir estão caras… Digo-te eu, que conheço o mercado!
Magda.- (Tira do bolso do avental uma nota e oferece-lha) Tenham, meninos… Por que não vão tomar, para aí, qualquer coisa, enquanto eu preparo o almoço?

     Pegam no dinheiro e começam a berrar.

Zhôlnec.- Viva! Bravo, Magda!
Vêddec.- (Como se fosse no nome de uma equipa de futebol) Magda! Magda! Magda!
Magda.- Chega! Querem calar?! Devolvam o dinheiro!
A Senhora Lil.- (A acordar) Eh! Quem é! Ah… Tinha que ter sido a desavergonhada! Não respeita o descanso de uma anciã… mas é sagrado o da “grande senhora”! (A mudar o tom, maviosa) Ó meninos, estavam cá! Ainda bem… se não fossem vocês…

     Eles correm a proteger-se nos braços dela, com o dinheiro de Magda numa mão. A avô faz-lhes um lugar, ao seu pé, na cama, e volve-se para Magda.

     … Onde está o meu café!

     Magda dá-lhe a chávena que tinha na mão. A Senhora Lil prova-o e devolve-lha iracunda.

     Arrefeceu! Traz outro! Não sabes onde é que tens a cabeça!

     Magda recolhe a chávena e vai-se para a neve.

Zhôlnec.- Ó avó, andamos à rasca…
A Senhora Lil.- Zhôlnec, meu rei, se ainda ontem…
Vêddec.- Temos tantos gastos, a roupa, os livros, e depois… não quererá que nos deixemos convidar das meninas?!
A Senhora Lil.- (A rir) Ó Magda, não terá por aí destrocado? Só uns vinte dinares, é para os meninos…

     Magda, a servir o café, fica rija.

     …Não se preocupe, que eu “antes do Domingo” devolvo…

     Magda, que compreende a alusão, volta para ao pé da cama, com a chávena numa mão e uma nota noutra.

Magda.- (A lhe tender a chávena e o dinheiro) Pois não, senhora! E não tenha pressa em devolver…

     Zhôlnec apanha a nota e, junto com Vêddec, sai correndo, a rir e brincar, através da cortina de neve. A Senhora Lil experimenta o café e berra.

A Senhora Lil.- Ah! Isto ferve!

     Magda recolhe a chávena e dirige-se, de novo, para a neve. Mas detém-se e fica em pé com a chávena a tremer-lhe na mão. Vai diminuindo a iluminação “interna” do teatro. Magda é uma sombra recortada contra a neve que cai, da que voltam a emergir duas mãos a tocar o saxofone.
     Acaba de se apagar toda a luz, excepto a de “fora”. O saxofone retira-se, a sua música vai também apagando-se, mas a última nota que se percebe tem um nítido sotaque de velho automóvel.

 

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