A Tábua Ocre de Núbia (ou o Significado da Vida)

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Quadro VIII: Cenas 4ª, 5ª, 6ª, 7ª, 8ª, 9ª e 10ª.

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Cena 4ª

Voz do Prof. Sandar Constandhi.- A cena seguinte acontece na rua…

     Acende-se a luz. Magda continua o seu caminho. Já não traz o avental e leva uma saca grande na mão. Sons de rua. Ela olha para os lados, como se algum automóvel pudesse atravessar o cenário. Corre um pedaço, pára. Sons de porta que bate e a sua campainha. Diante da cortina de neve aparece agora um balcão baixo de mercearia antiga, com quartéis lavrados em madeira escura.

     Magda vai fazer a sua compra diária…

     Magda fala e acena como se a cortina de neve fosse um ser híbrido: merceeiro e mercearia numa única substância. Sobre o balcão há alguns saquinhos de papel, que abre a assoprar e enche aproximando-os da zona em que caem os flocos.

     Ia comprar, mormente, muito, muito, muito açúcar…

     Cheio o saco, guarda-o na saca grande. Faz menção de sair, mas é o balcão que se retira para trás da cortina e desaparece, deixando-a fora. Voltam o barulho da rua. Olha, estranhada, para a sua esquerda.

     Ao sair descobriu algo que a inquietou…

     Zhôlnec e Vêddec aparecem, agitados e nervosos, a falar com alguém que se oculta trás a cortina de neve.

     Os netos da Senhora Lil, Zhôlnec e Vêddec, estavam a disputar com um tipo estranho, que passava as horas encostado naquela esquina, a falar, de vez em quando, com algum grupo de rapazes que passavam.
     Magda retirou-se para dentro da loja e espreitou…

     Magda recua até ficar por trás da neve. Ilumina-se então a sua figura, que fica em último termo. Mais adiante os flocos caindo, e ainda, em primeiro termo, os netos da Senhora Lil a falar com essa cortina.

Vêddec.- Quanto me dás por isto…

     Tira uma nota e deixa-a cair na linha que traçam os flocos. Depois, com a mesma mão, apanha um punhado de neve. Retira-a e abre, amostrando a modesta quantidade arrecadada.

     …É tudo?

     Esconde-o logo na algibeira. Zhôlnec repete a operação com a outra nota, obtendo não melhores resultados.

Zhôlnec.- Ontem custava metade! (A olhar para o apanhado na mão) Como pensas que vamos conseguir esse dinheiro?

     Esconde o seu punhado na algibeira. Ambos os irmãos vão-se, a falar baixo e pouco. Antes de eles passarem por diante de Magda, apaga-se a luz que ilumina. Escurece toda a cena, excepto o jorro de sol e a neve.






Cena 5ª

Voz do Prof. Sandar Constandhi.- Magda não sabia o que tudo aquilo poderia significar… Como não suspeitava o que iria acontecer aquela noite…

     Acende-se apenas a luz suficiente para manter a cena na penumbra. A cama da Senhora Lil. Os netos entram acocorados pela cortina de neve. Chegam ao pé da cama. Procuram entre as roupas. Tiram uma caixa de cartão. A Senhora Lil acorda. Observa-os, mas faz de conta de que está adormecida. Os netos parecem ter encontrado aquilo de que andavam à procura. Têm um sorriso leve, dão-se mutuamente os parabéns e somem do mesmo modo em que apareceram. Faz-se escuro.






Cena 6ª

Voz do Prof. Sandar Constandhi.- Mas, ao dia seguinte…

     No escuro ouve-se um grito desumano.

A Senhora Lil.- Magda!

     O grito faz acordar as luzes que iluminam a cena. Vemos a Senhora Lil, completamente incorporada na cama, fora de si. Magda, cuja sombra permanecia na mesma posição, recupera o movimento e penetra rapidamente na peça. Traz o avental e as sacas da compra já desapareceram.

Magda.- Quer já o seu café?
A Senhora Lil.- Qual café! O dinheiro!
Magda.- (Sem perceber) O dinheiro? Disse-lhe que não corria pressa…
A Senhora Lil.- Olha a intrigante, como anda a fazer cara de santa! Não me enganas… O dinheiro!!!
Magda.- Juro que não compreendo: qual dinheiro?
A Senhora Lil.- Qual dinheiro? O meu dinheiro! (Acena para uma caixa de cartão vazia que tem no meio da roupa de cama) Tu espreitavas, tu esperavas, tu fazias que não sabias, mas sabias…
Magda.- Senhora, eu juro…

     Entram correndo, através da neve, os dois netos. Vêm a rir, exultantes. Vão beijar a avó e retiram-se de novo.

Vêddec.- (A passar ao pé dela) Então Magda? Nãos tens boa cara! Deixou-te o moço?

     Desaparecem por trás da cortina de flocos. Então acende-se uma luz na zona posterior, que permite ver através da cortina. Zhôlnec e Vêddec, sem deixar de rir, vão sentar numa pilha de trouxas que há do outro lado. Pegam numas saquinhas que tinham escondidas e, redobrando as gargalhadas, estiram os braços para a cascata de neve, e começam a apanhar, às mãos-cheias, flocos que vão introduzindo nelas. De vez em quando mesmo atiram algum punhado pelo ar, a festejar a abundância.

A Senhora Lil.- Não jures, pecadora… Para além de ladra, perjura!
Magda.- Senhora, não faço ideia… como quer que lho explique…
A Senhora Lil.- Vais explicar, mas à polícia… se não aparecer já o meu dinheiro!

     No entanto, uma vez fechadas as sacas, e ocultas de novo nos seus esconderijos, começam, de costas, o ritual da seringa, momento em que se extingue toda a luz desse lado.

Magda.- Oh, Senhora Lil, sabe bem que eu agora sou estrangeira, e se chamar à polícia…

     Magda senta-se ao pé da neve e chora. No próprio gesto de chorar, apanha entre ambas as mãos presas de neve que leva ao rosto, para que a neve que se derrete sobre a sua pele faça de lágrimas.

Voz do Prof. Sandar Constandhi.- A obra não aclara se as lágrimas que ela chorava estavam feitas de açúcar, ou de heroína. O que fica claro é que a Senhora Lil não albergava a menor suspeita de que tivesse sido Magda. Mas analisando bem a situação tinha compreendido que dos seus netos jamais poderia obter ressarcimento, mas naquela mulher forte, sã e trabalhadora, não iam faltar meios de compensação.

     Magda reincorpora-se e vira-se para a Senhora Lil.

A Senhora Lil.- Vamos… que decidiste? Fala!
Magda.- Senhora. Eu não roubei. Mas, se quiser, pode ficar com o meu ordenado até completar a soma. Trabalharei de graça até então…Mas não chame à polícia.
A Senhora Lil.- Achas que sou parva? Com o ordenado que te dou, quando acabasses de pagar já levaria eu mais de quarenta anos morta…
Magda.- E que mais quer que eu faça?
A Senhora Lil.- Vais ver como, no fundo, sou generosa. Vamos procurar uma saída intermédia. Nem a tua, nem a minha: Devolves-me a metade da importância em dinheiro e a outra metade em ordenados… Não achas uma solução equilibrada?
Magda.- E como vou eu conseguir esse dinheiro?
A Senhora Lil.- Não sei… Quanto a mim, roubando, se quiseres… Dou-te prazo até ao Domingo. Não era esse o teu dia favorito?
Magda.- Está bem, mas, se lho pagar, dar-me-ia então a manhã livre?
A Senhora Lil.- Não sei o que estás a fazer aí, de braços caídos, a olhar para mim como uma parva! Tenho pressa por recuperar a perda. Começa logo a trabalhar. A casa está feita uma sujeira!

     Magda começa a retirar-se em direcção à cortina. Apaga-se a iluminação da cena.






Cena 7ª

 

     Acende-se a luz. Magda está no mesmo ponto, mas sem avental, e leva uma carteira firmemente agarrada nas mãos. Continua o seu caminho em direcção à neve. Murmúrios de trânsito pouco intenso.

Voz do Prof. Sandar Constandhi.- No Sábado anterior Magda saía do banco. Tinha ido retirar todas as suas economias. Um dinheiro que fora juntando mês a mês, para o caso hipotético de que ela e o seu “moço” chegassem a casar um dia. Mas, no meio do caminho encontrou uns indivíduos com as caras cobertas…

     Ao chegar à fronteira da neve, emergem umas mãos que empunham facas. Ela fica parada. Uma outra mão estira-se e puxa da carteira. As mãos desaparecem. Ouvem-se umas risadas conhecidas. Magda põe-se a correr. Atravessa a cortina de flocos não sem se deter a apanhar um punhado com que fazer as lágrimas.
     Quando desapareceu, surgem as cabeças de Zhôlnec e Vêddec.

Zhôlnec.- Não te disse que sabia de alguém tinha que andar hoje na rua com muita massa…
Vêddec.- És um génio, irmãozinho: segunda vez que roubámos este mesmo botim!

     Apaga-se a luz da cena.






Cena 8ª


     Acende-se a luz, mas agora tão só do lado posterior da neve. Na parte dianteira vemos apenas a sombra da Senhora Lil a ressonar. Por trás da cortina de flocos Magda, pensativa anda a passar uma vassoura

Voz do Prof. Sandar Constandhi.- Para acelerar o pagamento, a Senhora Lil mandou naquela tarde, fazer limpeza geral em toda a casa. Não podia ter escolhido um melhor momento: Magda, podia ter esfregado todo o chão com as próprias lágrimas. Mas, quando chegou a vez do quarto dos “meninos”, ao remexer entre as suas pertenças…

     Magda recolhe as trouxas. Parece descobrir algo. Curva-se, e começa a extrair uma série de objectos.

     …encontrou umas sacas cheias de um pó branco. E ao pé delas duas facas, que imediatamente reconheceu, e vários feixes de dinheiro, algum com uma fita que ela própria lhes atara para melhor os segurar. Então compreendeu tudo, e a sua mente encheu-se de repente, a mesmo tempo, de luz e de sombra. Lembrou-se de que Kiril lhe falara daqueles pós brancos por que alguns estavam dispostos a matar e morrer… Viu como se lá estivesse, a cena do roubo, sabedora da torpeza dos netos e a agudeza auditiva da senhora…

     Vira-se para a cortina de neve. Acende-se uma débil luz na parte dianteira e, na penumbra repete-se a cena do roubo. Zhôlnec e Vêddec ao pé da cama, a abrir a caixa, a Senhora Lil que os vê e faz de conta que continua adormecia. A cena dianteira apaga-se e Magda volta a fixar a atenção em todos aqueles objectos.

     … Veio-lhe também, sem saber muito por quê, a lembrança de seu pai, que fora partisan e que morrera a lutar na Grande Guerra, e nesse ponto invadiu-a uma terrível, mas serena, determinação:

     Apaga-se rapidamente a luz, na parte traseira, sobre o contorno de Magda que se levanta, deixando caída a vassoura.






Cena 9ª


     Acende-se, de igual modo, a luz na parte dianteira. O velho balcão de mercearia ao pé da cortina de neve. Magda pousa as mãos nele.

Magda.- Quero veneno para os ratos. O mais forte que tiver. Um saco grande.

     Estende um saco para a frente, tal como tinha feito antes, até o encher de neve. Volta a pagar o seu tributo de moedas na corrente de flocos. Faz-se rápido escuro na parte dianteira.






Cena 10ª

Voz do Prof. Sandar Constandhi.- Dormiu bem aquela noite, a esperar tranquilamente a manhã seguinte para levar a cabo, com calma e com escrúpulo, todos os seus planos…

     Acende-se com idêntica rapidez a parte traseira. Magda remexe nas trouxas. Tira as sacas. Vaza-as na corrente de neve que cai. Apanha o saco grande que comprara o dia anterior na mercearia, e enche-as do seu conteúdo. Realmente limita-se suster um saco vazio no ar, por trás da cortina, levemente inclinado, como se a neve que cai saísse do seu interior, colocando por baixo do seu curso as outras sacas. Uma voz terrível detém-na.

A Senhora Lil.- Que estás a fazer tu, Magda!

     Acende-se a luz da parte de diante. A Senhora Lil a chamar da cama. Magda acaba. Volta a esconder as sacas no seu sítio. Atravessa a cortina. Vai ao pé da cama. Apaga-se a iluminação traseira.

Magda.- Nada, Senhora, fui procurar açúcar à despensa. Tinha-se acabado.

     Magda regressa para o fundo e, ao pé da cortina, esvazia o conteúdo do saco na chuva de flocos. Limita-se realmente a suster de novo a saca vazia por diante da neve, a incliná-la como se toda a neve que cai por baixo dela estivesse a sair do seu interior.

A Senhora Lil.- Ainda bem. Prepara-me um café…
Magda.- Não se preocupe a senhora, que já logo o há-de ter…

     Introduz a mão e vai tirando chávena, cafeteira, jarra, colher, pires. Coloca logo a colher na vertical da neve e verte-a logo na chávena, várias vezes. Logo remexe.

     …e com a sua justa dose de açúcar…

     Volta para a Senhora sem deixar de remexer.

A Senhora Lil.- Não sei se vai chegar a esse concerto: hoje é o dia em que conclui o prazo.
Magda.- Não esqueço senhora. Pode ficar descansada também a esse respeito, que eu vou-lhe devolver agora mesmo tudo quanto devo. Não está a ver que tenho posta a roupa de sair? Mas tome-se antes o café. Senão, esfria.

     Dá-lhe a chávena. A Senhora Lil prova.

A Senhora Lil.- Falta açúcar…
Magda.- (A regressar ao fundo) Não se preocupe. Há mais...

     Repetem-se os intermináveis passeios.

Voz do Prof. Sandar Constandhi.- E ainda a Senhora Lil teria que tentar, até ao último momento, estragar a Magda, o único dia de festa da sua vida…. E fez-lhe esperar ainda muitas doses de açúcar…

     Finalmente a Senhora Lil fica com a chávena e bebe-a num gole.

A Senhora Lil.- Não…se tu quisesses… Olha: se até sabe melhor o café desde que és boa…

     Magda fica de pé à espera. Acende-se a luz posterior. Vemos os netos avançar com andar inseguro até às trouxas.

Voz do Prof. Sandar Constandhi.- E teve que esperar, também, que Zhôlnec e Vêddec regressassem, como sempre, da sua noite de pândega…

     Procuram com dificuldade as sacas. Encontram-nas. Repetem o ritual da seringa. Antes de que se apague completamente a luz do seu lado, vemos os corpos cair de costas. Então a chávena roda desde a mão da Senhora Lil ao chão e a luz dianteira também se apaga. Um segundo antes de isso acontecer Magda começara a tirar o avental e a correr.

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