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Voz do Prof. Sandar
Constandhi.- A cena seguinte acontece na rua
Acende-se
a luz. Magda continua o seu caminho. Já não traz o
avental e leva uma saca grande na mão. Sons de rua. Ela
olha para os lados, como se algum automóvel pudesse
atravessar o cenário. Corre um pedaço, pára. Sons de
porta que bate e a sua campainha. Diante da cortina de
neve aparece agora um balcão baixo de mercearia antiga,
com quartéis lavrados em madeira escura. |
Magda
vai fazer a sua compra diária
Magda
fala e acena como se a cortina de neve fosse um ser
híbrido: merceeiro e mercearia numa única substância.
Sobre o balcão há alguns saquinhos de papel, que abre a
assoprar e enche aproximando-os da zona em que caem os
flocos. |
Ia
comprar, mormente, muito, muito, muito açúcar
Cheio
o saco, guarda-o na saca grande. Faz menção de sair,
mas é o balcão que se retira para trás da cortina e
desaparece, deixando-a fora. Voltam o barulho da rua.
Olha, estranhada, para a sua esquerda. |
Ao
sair descobriu algo que a inquietou
Zhôlnec
e Vêddec aparecem, agitados e nervosos, a falar com
alguém que se oculta trás a cortina de neve. |
Os
netos da Senhora Lil, Zhôlnec e Vêddec, estavam a disputar com
um tipo estranho, que passava as horas encostado naquela esquina,
a falar, de vez em quando, com algum grupo de rapazes que
passavam.
Magda retirou-se para
dentro da loja e espreitou
Magda
recua até ficar por trás da neve. Ilumina-se então a
sua figura, que fica em último termo. Mais adiante os
flocos caindo, e ainda, em primeiro termo, os netos da
Senhora Lil a falar com essa cortina. |
Vêddec.- Quanto
me dás por isto
Tira
uma nota e deixa-a cair na linha que traçam os flocos.
Depois, com a mesma mão, apanha um punhado de neve.
Retira-a e abre, amostrando a modesta quantidade
arrecadada. |
É
tudo?
Esconde-o
logo na algibeira. Zhôlnec repete a operação com a
outra nota, obtendo não melhores resultados. |
Zhôlnec.- Ontem
custava metade! (A olhar para o apanhado na mão) Como pensas que
vamos conseguir esse dinheiro?
Esconde
o seu punhado na algibeira. Ambos os irmãos vão-se, a
falar baixo e pouco. Antes de eles passarem por diante de
Magda, apaga-se a luz que ilumina. Escurece toda a cena,
excepto o jorro de sol e a neve. |
Voz do Prof. Sandar
Constandhi.- Magda não sabia o que tudo aquilo poderia
significar
Como não suspeitava o que iria acontecer aquela
noite
Acende-se
apenas a luz suficiente para manter a cena na penumbra. A
cama da Senhora Lil. Os netos entram acocorados pela
cortina de neve. Chegam ao pé da cama. Procuram entre as
roupas. Tiram uma caixa de cartão. A Senhora Lil acorda.
Observa-os, mas faz de conta de que está adormecida. Os
netos parecem ter encontrado aquilo de que andavam à
procura. Têm um sorriso leve, dão-se mutuamente os
parabéns e somem do mesmo modo em que apareceram. Faz-se
escuro. |
Voz do Prof. Sandar
Constandhi.- Mas, ao dia seguinte
No
escuro ouve-se um grito desumano. |
A Senhora Lil.-
Magda!
O
grito faz acordar as luzes que iluminam a cena. Vemos a
Senhora Lil, completamente incorporada na cama, fora de
si. Magda, cuja sombra permanecia na mesma posição,
recupera o movimento e penetra rapidamente na peça. Traz
o avental e as sacas da compra já desapareceram. |
Magda.- Quer já
o seu café?
A Senhora Lil.- Qual café! O dinheiro!
Magda.- (Sem perceber) O dinheiro?
Disse-lhe que não corria pressa
A Senhora Lil.- Olha a intrigante, como anda a
fazer cara de santa! Não me enganas
O dinheiro!!!
Magda.- Juro que não compreendo: qual dinheiro?
A Senhora Lil.- Qual dinheiro? O meu dinheiro! (Acena
para uma caixa de cartão vazia que tem no meio da roupa de cama)
Tu espreitavas, tu esperavas, tu fazias que não sabias, mas
sabias
Magda.- Senhora, eu juro
Entram
correndo, através da neve, os dois netos. Vêm a rir,
exultantes. Vão beijar a avó e retiram-se de novo. |
Vêddec.- (A
passar ao pé dela) Então Magda? Nãos tens boa cara!
Deixou-te o moço?
Desaparecem
por trás da cortina de flocos. Então acende-se uma luz
na zona posterior, que permite ver através da cortina.
Zhôlnec e Vêddec, sem deixar de rir, vão sentar numa
pilha de trouxas que há do outro lado. Pegam numas
saquinhas que tinham escondidas e, redobrando as
gargalhadas, estiram os braços para a cascata de neve, e
começam a apanhar, às mãos-cheias, flocos que vão
introduzindo nelas. De vez em quando mesmo atiram algum
punhado pelo ar, a festejar a abundância. |
A Senhora Lil.-
Não jures, pecadora
Para além de ladra, perjura!
Magda.- Senhora, não faço ideia
como
quer que lho explique
A Senhora Lil.- Vais explicar, mas à
polícia
se não aparecer já o meu dinheiro!
No
entanto, uma vez fechadas as sacas, e ocultas de novo nos
seus esconderijos, começam, de costas, o ritual da
seringa, momento em que se extingue toda a luz desse
lado. |
Magda.- Oh,
Senhora Lil, sabe bem que eu agora sou estrangeira, e se chamar
à polícia
Magda
senta-se ao pé da neve e chora. No próprio gesto de
chorar, apanha entre ambas as mãos presas de neve que
leva ao rosto, para que a neve que se derrete sobre a sua
pele faça de lágrimas. |
Voz do Prof. Sandar
Constandhi.- A obra não aclara se as lágrimas que ela
chorava estavam feitas de açúcar, ou de heroína. O que fica
claro é que a Senhora Lil não albergava a menor suspeita de que
tivesse sido Magda. Mas analisando bem a situação tinha
compreendido que dos seus netos jamais poderia obter
ressarcimento, mas naquela mulher forte, sã e trabalhadora, não
iam faltar meios de compensação.
Magda
reincorpora-se e vira-se para a Senhora Lil. |
A Senhora Lil.-
Vamos
que decidiste? Fala!
Magda.- Senhora. Eu não roubei. Mas, se quiser,
pode ficar com o meu ordenado até completar a soma. Trabalharei
de graça até então
Mas não chame à polícia.
A Senhora Lil.- Achas que sou parva? Com o
ordenado que te dou, quando acabasses de pagar já levaria eu
mais de quarenta anos morta
Magda.- E que mais quer que eu faça?
A Senhora Lil.- Vais ver como, no fundo, sou
generosa. Vamos procurar uma saída intermédia. Nem a tua, nem a
minha: Devolves-me a metade da importância em dinheiro e a outra
metade em ordenados
Não achas uma solução equilibrada?
Magda.- E como vou eu conseguir esse dinheiro?
A Senhora Lil.- Não sei
Quanto a mim,
roubando, se quiseres
Dou-te prazo até ao Domingo. Não
era esse o teu dia favorito?
Magda.- Está bem, mas, se lho pagar, dar-me-ia
então a manhã livre?
A Senhora Lil.- Não sei o que estás a fazer
aí, de braços caídos, a olhar para mim como uma parva! Tenho
pressa por recuperar a perda. Começa logo a trabalhar. A casa
está feita uma sujeira!
Magda
começa a retirar-se em direcção à cortina. Apaga-se a
iluminação da cena. |
Acende-se
a luz. Magda está no mesmo ponto, mas sem avental, e
leva uma carteira firmemente agarrada nas mãos. Continua
o seu caminho em direcção à neve. Murmúrios de
trânsito pouco intenso. |
Voz do Prof. Sandar
Constandhi.- No Sábado anterior Magda saía do banco.
Tinha ido retirar todas as suas economias. Um dinheiro que fora
juntando mês a mês, para o caso hipotético de que ela e o seu
moço chegassem a casar um dia. Mas, no meio do
caminho encontrou uns indivíduos com as caras cobertas
Ao
chegar à fronteira da neve, emergem umas mãos que
empunham facas. Ela fica parada. Uma outra mão estira-se
e puxa da carteira. As mãos desaparecem. Ouvem-se umas
risadas conhecidas. Magda põe-se a correr. Atravessa a
cortina de flocos não sem se deter a apanhar um punhado
com que fazer as lágrimas.
Quando desapareceu, surgem
as cabeças de Zhôlnec e Vêddec. |
Zhôlnec.- Não
te disse que sabia de alguém tinha que andar hoje na rua com
muita massa
Vêddec.- És um génio, irmãozinho: segunda
vez que roubámos este mesmo botim!
Acende-se
a luz, mas agora tão só do lado posterior da neve. Na
parte dianteira vemos apenas a sombra da Senhora Lil a
ressonar. Por trás da cortina de flocos Magda, pensativa
anda a passar uma vassoura |
Voz do Prof. Sandar
Constandhi.- Para acelerar o pagamento, a Senhora Lil
mandou naquela tarde, fazer limpeza geral em toda a casa. Não
podia ter escolhido um melhor momento: Magda, podia ter esfregado
todo o chão com as próprias lágrimas. Mas, quando chegou a vez
do quarto dos meninos, ao remexer entre as suas
pertenças
Magda
recolhe as trouxas. Parece descobrir algo. Curva-se, e
começa a extrair uma série de objectos. |
encontrou
umas sacas cheias de um pó branco. E ao pé delas duas facas,
que imediatamente reconheceu, e vários feixes de dinheiro, algum
com uma fita que ela própria lhes atara para melhor os segurar.
Então compreendeu tudo, e a sua mente encheu-se de repente, a
mesmo tempo, de luz e de sombra. Lembrou-se de que Kiril lhe
falara daqueles pós brancos por que alguns estavam dispostos a
matar e morrer
Viu como se lá estivesse, a cena do roubo,
sabedora da torpeza dos netos e a agudeza auditiva da
senhora
Vira-se
para a cortina de neve. Acende-se uma débil luz na parte
dianteira e, na penumbra repete-se a cena do roubo.
Zhôlnec e Vêddec ao pé da cama, a abrir a caixa, a
Senhora Lil que os vê e faz de conta que continua
adormecia. A cena dianteira apaga-se e Magda volta a
fixar a atenção em todos aqueles objectos. |
Veio-lhe também, sem saber muito por quê, a lembrança de seu
pai, que fora partisan e que morrera a lutar na Grande Guerra, e
nesse ponto invadiu-a uma terrível, mas serena, determinação:
Apaga-se
rapidamente a luz, na parte traseira, sobre o contorno de
Magda que se levanta, deixando caída a vassoura. |
Acende-se,
de igual modo, a luz na parte dianteira. O velho balcão
de mercearia ao pé da cortina de neve. Magda pousa as
mãos nele. |
Magda.- Quero
veneno para os ratos. O mais forte que tiver. Um saco grande.
Estende
um saco para a frente, tal como tinha feito antes, até o
encher de neve. Volta a pagar o seu tributo de moedas na
corrente de flocos. Faz-se rápido escuro na parte
dianteira. |
Voz do Prof. Sandar
Constandhi.- Dormiu bem aquela noite, a esperar
tranquilamente a manhã seguinte para levar a cabo, com calma e
com escrúpulo, todos os seus planos
Acende-se
com idêntica rapidez a parte traseira. Magda remexe nas
trouxas. Tira as sacas. Vaza-as na corrente de neve que
cai. Apanha o saco grande que comprara o dia anterior na
mercearia, e enche-as do seu conteúdo. Realmente
limita-se suster um saco vazio no ar, por trás da
cortina, levemente inclinado, como se a neve que cai
saísse do seu interior, colocando por baixo do seu curso
as outras sacas. Uma voz terrível detém-na. |
A Senhora Lil.-
Que estás a fazer tu, Magda!
Acende-se
a luz da parte de diante. A Senhora Lil a chamar da cama.
Magda acaba. Volta a esconder as sacas no seu sítio.
Atravessa a cortina. Vai ao pé da cama. Apaga-se a
iluminação traseira. |
Magda.- Nada,
Senhora, fui procurar açúcar à despensa. Tinha-se acabado.
Magda
regressa para o fundo e, ao pé da cortina, esvazia o
conteúdo do saco na chuva de flocos. Limita-se realmente
a suster de novo a saca vazia por diante da neve, a
incliná-la como se toda a neve que cai por baixo dela
estivesse a sair do seu interior. |
A Senhora Lil.-
Ainda bem. Prepara-me um café
Magda.- Não se preocupe a senhora, que já logo
o há-de ter
Introduz
a mão e vai tirando chávena, cafeteira, jarra, colher,
pires. Coloca logo a colher na vertical da neve e verte-a
logo na chávena, várias vezes. Logo remexe. |
e
com a sua justa dose de açúcar
Volta
para a Senhora sem deixar de remexer. |
A Senhora Lil.-
Não sei se vai chegar a esse concerto: hoje é o dia em que
conclui o prazo.
Magda.- Não esqueço senhora. Pode ficar
descansada também a esse respeito, que eu vou-lhe devolver agora
mesmo tudo quanto devo. Não está a ver que tenho posta a roupa
de sair? Mas tome-se antes o café. Senão, esfria.
Dá-lhe
a chávena. A Senhora Lil prova. |
A Senhora Lil.-
Falta açúcar
Magda.- (A regressar ao fundo) Não se
preocupe. Há mais...
Repetem-se
os intermináveis passeios. |
Voz do Prof. Sandar
Constandhi.- E ainda a Senhora Lil teria que tentar,
até ao último momento, estragar a Magda, o único dia de festa
da sua vida
. E fez-lhe esperar ainda muitas doses de
açúcar
Finalmente
a Senhora Lil fica com a chávena e bebe-a num gole. |
A Senhora Lil.-
Não
se tu quisesses
Olha: se até sabe melhor o café
desde que és boa
Magda
fica de pé à espera. Acende-se a luz posterior. Vemos
os netos avançar com andar inseguro até às trouxas. |
Voz do Prof. Sandar
Constandhi.- E teve que esperar, também, que Zhôlnec e
Vêddec regressassem, como sempre, da sua noite de pândega
Procuram
com dificuldade as sacas. Encontram-nas. Repetem o ritual
da seringa. Antes de que se apague completamente a luz do
seu lado, vemos os corpos cair de costas. Então a
chávena roda desde a mão da Senhora Lil ao chão e a
luz dianteira também se apaga. Um segundo antes de isso
acontecer Magda começara a tirar o avental e a correr. |